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  • Nota da ABI – Bolsonaro mente na ONU e envergonha o Brasil

    Nota da ABI – Bolsonaro mente na ONU e envergonha o Brasil

    No seu discurso na manhã desta terça-feira na Assembléia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro contribuiu para que o Brasil caminhe para se tornar um pária internacional.
    Sem qualquer compromisso com a verdade, o presidente afirmou que seu governo pagou um auxílio emergencial no valor de mil dólares para 65 milhões de brasileiros carentes, durante a pandemia. O auxílio foi de 600 reais.
    Bolsonaro mentiu
    O presidente responsabilizou, ainda, índios e caboclos pelos incêndios na Amazônia e no Pantanal, que alcançam níveis nunca antes vistos no País. Todas as investigações, inclusive de órgãos oficiais, indicam que fazendeiros estão na origem das queimadas.
    Como se vê, de novo Bolsonaro mentiu.
    O presidente transferiu a responsabilidade para governadores e prefeitos pelos quase 140 mil mortos vítimas do coronavírus. Todo o país é testemunha de sua leviandade, ao classificar a pandemia de “gripezinha” e ir na contramão dos procedimentos defendidos pelas autoridades de Saúde.
    Assim, mais uma vez Bolsonaro mentiu.
    A ABI, com a autoridade de seus 112 anos de existência em defesa da democracia, dos direitos humanos e da soberania nacional, repudia esse comportamento que vem se tornando recorrente e conclama o povo brasileiro a não aceitar o verdadeiro retrocesso civilizatório que o governo está impondo ao País.
    Paulo Jeronimo – Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

  • Dilma: As 12 falsificações do discurso de Bolsonaro na ONU

    Dilma: As 12 falsificações do discurso de Bolsonaro na ONU

    Por Dilma Rousseff

    Praticamente não há uma sentença no discurso de Bolsonaro na ONU que não cometa pelo menos uma falsificação, uma manipulação, uma adulteração dos fatos. O Brasil que Bolsonaro descreve não existe, e não existe por causa dele.

    As maiores florestas brasileiras ardem em chamas, com recordes de incêndios, e ele culpa os índígenas, que são as primeiras vítimas desses crimes ambientais.

    Os maiores biomas do país são consumidos pelo desmatamento ilegal, e ele diz que exerce controle rigoroso sobre a ação dos destruidores das florestas, o que é falso.

    O Brasil voltou a registrar a mazela da fome, que maltrata mais de 10 milhões de pessoas, e ele se jacta de estar alimentando o mundo.

    Quase 140 mil brasileiros já morreram de Covid-19, e ele diz que agiu com rigor para combater a doença. ao mesmo tempo em que culpa os governadores pelas mortes.

    Bolsonaro dissimula de maneira contumaz e o faz por cálculo, não por ignorância. Mesmo quando fala na ONU, não é ao mundo que está se dirigindo, mas ao seus seguidores mais radicalizados, que ele mantém mobilizados à base de fake news e deturpações da verdade. Seu objetivo é manter a iniciativa política e a polarização. Foi assim que, na Itália dos anos 1910 e 1920 e na Alemanha dos anos 1930, o fascismo e o nazismo cresceram até chegar ao poder: mobilizando permanentemente uma minoria de seguidores agressivos, capazes de intimidar o campo democrático da sociedade.

    O mundo já não acredita em Bolsonaro. Parte dos brasileiros já não acredita nele. Mas não há sinal de que ele pretenda parar. Terá de ser parado.

    No texto a seguir, é possível verificar pelo menos 12 falsificações que Bolsonaro apresentou ao mundo, ontem, no seu discurso.

    Por Nei Lima

    1

    A fala – “Desde o princípio, alertei, em meu país, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade.”

    A verdade – Bolsonaro negou a gravidade da doença. Tratou-a com desdém, afirmando que era uma gripezinha. Não tomou medidas efetivas para garantir o emprego, propôs R$ 200 de auxílio emergencial e foi apenas diante da pressão da sociedade e da iniciativa da oposição no Congresso que acabou sendo aprovado o valor de R$ 600. Por culpa do governo, o Brasil foi o país que menos aplicou testes. Bolsonaro foi contrário ao isolamento e distanciamento social, ele próprio promovendo e participando de aglomerações e desprezando o uso de máscaras. Defendeu e expandiu a produção de cloroquina, enquanto deixava de adquirir analgésicos para a implantação de tubos respiratórios nos doentes graves.

    2

    A fala “Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao Presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País.”

    A verdade – Bolsonaro vem se escondendo por trás de uma decisão do STF que, supostamente, transferia o poder de enfrentar a Covid-19 para estados e municípios. Trata-se de uma versão inverídica e absurda, pois há uma clara obrigação constitucional da Presidência da República de coordenar ações diante da gravidade da crise sanitária, que já matou 138 mil pessoas; também somos uma Federação e, assim, há o dever intransferível de a União articular a ação dos 26 estados, o Distrito Federal e os 5.570 municípios. O Supremo nunca eximiu o governo federal do dever de agir, nem transferiu seu poder. Apenas deu a estados e municípios o direito de também tomar decisões sobre medidas sanitárias, de isolamento e de distanciamento social, segundo suas circunstâncias específicas.

    3

    A fala – “Nosso governo, de forma arrojada, implementou várias medidas econômicas que evitaram o mal maior: concedeu auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente 1000 dólares…”

    A verdade – Não houve arrojo, mas mesquinharia. Bolsonaro tentou impor um auxílio emergencial de apenas R$ 200 por mês. O auxílio só foi de R$ 600 por decisão do Congresso, proposta pelo PT e demais partidos de oposição, impondo uma derrota ao governo. Bolsonaro insinua, na fala, que pagou mil dólares por mês. Mas mesmo somadas, as parcelas do auxílio emergencial estarão longe de totalizar mil dólares. Se cumprir o que anunciou, o governo terá pago, até o fim de dezembro, 5 parcelas de R$ 600 e no máximo 4 parcelas de R$ 300. Isto totalizará, na melhor hipótese, R$ 4.200, muito abaixo de mil dólares, que são R$ 5.470. A iniquidade do governo também se fez sentir no tratamento dado aos que têm direito ao auxilio emergencial, na forma de milhões de exclusões injustificadas, atrasos, filas e aglomerações nas agências da Caixa, aplicativos que não funcionam — um labirinto burocrático que transformou a busca por ajuda num grande sofrimento.

    4

    A fala – “[Nosso governo] assistiu a mais de 200 mil famílias indígenas com produtos alimentícios e prevenção à Covid.”

    A verdade – Do projeto aprovado no Senado de apoio às comunidades indigenas, Bolsonaro vetou artigos que obrigavam o governo federal a fornecer água potável, material de higiene e limpeza e cestas básicas às aldeias. Em outro momento, proibiu a entrada de equipes da organização Médicos sem Fronteiras nas comunidades indigenas.

    5

    A fala – “Não faltaram, nos hospitais, os meios para atender aos pacientes de covid.”

    A verdade – O governo federal falhou fragorosamente no planejamento e na distribuição de máscaras, EPIs e respiradores aos hospitais de todo o país. A testagem é uma das mais baixas do mundo. A falta de testes suficientes é uma das causas de o Brasil ter se tornado um dos epicentros da doença no mundo. A maior parte dos recursos federais destinados ao combate à pandemia nos estados não foi liberada de fato, segundo várias reportagens. A maioria das máscaras e equipamentos prometidos não chegou aos hospitais e os estados e prefeituras foram obrigados a agir por conta própria. Faltaram equipamentos e medicamentos nos hospitais, sobrou cloroquina nas prateleiras do ministério da Saúde, comandando por um militar especializado em logística.

    6

    A fala – “O caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas. Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação.”

    A verdade – Praticamente todos os casos de incêndios na Amazônia e no Pantanal identificados ou suspeitos de ação criminosa foram cometidos por fazendeiros, grileiros e invasores de terras públicas e reservas florestais e terras indigenas. Sentiram-se autorizados para tal diante do desmonte das políticas de contenção do desmatamento e da fiscalização. Os caboclos e os indígenas são, sabidamente, vitimas dos incêndios e do desmatamento criminosos, não seus autores. Dados obtidos pelo sistema de monitoramento da NASA mostram que 54% dos focos de incêndios na Amazônia estão relacionados ao desmatamento. No Pantanal, organizações de proteção ambiental informam que incêndios iniciado em 9 fazendas particulares destruiram 141 mil hectares, quase a área da capital de São Paulo. Cinco destas fazendas estariam sendo investigadas pela PF.

    7

    A fala “Lembro que a Região Amazônica é maior que toda a Europa Ocidental. Daí a dificuldade em combater, não só os focos de incêndio, mas também a extração ilegal de madeira e a biopirataria. Por isso, estamos ampliando e aperfeiçoando o emprego de tecnologias e aprimorando as operações interagências, contando, inclusive, com a participação das Forças Armadas.”

    A verdade – A extração ilegal de madeira e os incêndios criminosos não são combatidos devidamente por causa da leniência deliberada do governo Bolsonaro, que desde ao assumir desautorizou, fragilizou e desmontou a fiscalização, assim como cometeu ataques contra o INPE, tendo, inclusive, demitido seu diretor, um dos cientistas mais respeitados do Brasil. O ministério do Meio Ambiente não apenas suspendeu o trabalho de fiscalização, e cancelou operações, como tem protegido os verdadeiros criminosos ambientais. Chegou a trazer a Brasília, em aviões da FAB, para reunião com o ministro, um grupo de garimpeiros ilegais que atuava em reserva indígena. Em famosa reunião ministerial, filmada e divulgada, o ministro defendeu que o governo aproveitasse a distração criada pela pandemia para, como disse, “passar a boiada” de decretos e portarias que facilitem os crimes ambientais.  

    8

    A fala “Somente o insumo da produção de hidroxicloroquina sofreu um reajuste de 500% no início da pandemia.”

    A verdade – No Brasil e no mundo, a comunidade científica séria e conceituada alertou o tempo todo, desde o início da pandemia, para o fato de que a cloroquina e a hidroxocloroquina não têm eficácia contra a Covid-19, em nenhum estágio da doença, e podem, ao contrário, acarretar efeitos colaterais que levam à morte. Até mesmo Trump, a quem Bolsonaro imitou agindo como garoto-propaganda de um remédio perigoso, abandonou a defesa da cloroquina e, para livrar-se do medicamento que parou de indicar, despachou o estoque para o Brasil.

    9

    A fala “No campo humanitário e dos direitos humanos, o Brasil vem sendo referência internacional.”

    A verdade – Só se for referência negativa. Desde a posse de Bolsonaro, a situação dos Direitos Humanos no Brasil vem se deteriorando, a ponto de provocar advertências da Alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, que denunciou a miliarização de instituições civis, a violência policial, e ataques a ativistas, líderes comunitários e jornalistas.

    10

    A fala “Em 2019, o Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano, vendido sem controle.”

    A verdade – Não há nenhuma conclusão ou prova de que a Venezuela tenha contribuído para o derramamento de óleo no Atlântico, trazido pelas correntes marítimas à costa brasileira. O que ficou demonstrado, sobejamente, foi a demora e a inação do governo brasileiro, que levou quase três meses para tomar as primeiras providências em relação ao desastre que atingiu o litoral de 10 estados.

    11

    A fala “No primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificamos um aumento do ingresso de investimentos, em comparação com o mesmo período do ano passado. Isso comprova a confiança do mundo em nosso governo.”

    A verdade – A imprensa informa hoje que do ano passado para cá houve, na verdade, uma queda de 30% nos Investimentos Estrangeiros Diretos no Brasil. E nos primeiros oito meses deste ano o Brasil sofreu uma fuga recorde de capitais, que chegou a US$ 15,2 bilhões. Outra notícia dá conta de que, por causa do estado de paralisia do MEC desde a posse de Bolsonaro, o país deixou de receber os repasses de um empréstimo de US$ 250 milhões do Banco Mundial para dar suporte à reforma do ensino médio.

    12

    A fala “O homem do campo trabalhou como nunca, produziu, como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado.”

    A verdade – O Brasil de fato continua sendo um grande produtor e exportador agropecuário, mas dilapidou a agricultura familiar, que até 2014 era responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelo povo brasileiro. Por esta e outras escolhas de índole neoliberal, o Brasil voltou a registrar a calamidade da fome, que aumentou em 43,7% em cinco anos, atingindo mais de 10 milhões de brasileiros.

  • As eleições nos EUA e Bolsonaro na ONU

    As eleições nos EUA e Bolsonaro na ONU

    Acompanhamos as convenções dos partidos democrata e republicano nos Estados Unidos que decidiram pelas candidaturas de Joe Biden/Kamala Harris e Donald Trump/Mike Pence respectivamente. Como era de se esperar, os protestos de rua, associados ao movimento Black Lives Matter e à derrubada de estátuas, foram mencionados mais de uma vez em diversos discursos em ambas as convenções.

    Mayra Marques – Mateus Pereira – Valdei Araujo (UFOP)*

    Em novembro saberemos se os eleitores estadunidenses escolherão viver em seu presente em constante atualização, como promete o discurso quase mágico de Donald Trump ou continuar a história imperfeita e inconclusa que Barack Obama descreveu em seu próprio discurso na convenção democrata:

    “Estou em Filadélfia, onde a Constituição foi escrita e assinada. Não foi um documento perfeito. Ela permitiu a desumanidade da escravidão, e falhou em garantir às mulheres  – e mesmo àqueles homens sem propriedade –  o direito de participar do processo político. Mas inserido neste documento estava a estrela polar que guiaria as gerações futuras; um sistema de governo representativo – uma democracia – através do qual podemos compreender melhor nossos mais elevados ideais. Através da Guerra Civil, e amargas disputas, aperfeiçoamos esta Constituição para incluir as vozes daqueles que foram deixados de fora. Gradualmente fizemos esse país mais justo, mais igualitário e mais livre”.[1]

    Em um contexto em que os personagens históricos estão no centro de polêmicas, Obama escolheu cuidadosamente o lugar (o Museu da Revolução Americana), ao canto dedicado à escrita da Constituição.[2] A intenção imediata era reforçar o diagnóstico de que Trump representa um risco aos fundamentos da democracia estadunidense. O retrato que aparece no painel de fundo talvez não tenha sido tão planejado, embora pudesse ter sido excluído da imagem com uma simples mudança de ângulo. Trata-se de James Madison, considerado o pai da Constituição e presidente dos Estados Unidos entre 1809 e 1817. As posições de Madison a respeito da escravidão estavam longe de serem avançadas para o período. Como outros pais fundadores, esteve de vários modos envolvido com a infame instituição. A presença de Madison ao fundo do cenário de Obama ilustra bem a imperfeição da Constituição a que ele se refere no discurso, e uma disposição de comemorar a história sem esconder seus defeitos. 

     Mesmo que possamos criticar Obama confrontando seu discurso de progresso da igualdade com os resultados pífios e contraditórios de seus dois mandatos, podemos reconhecer o êxito de seu esforço em recuperar aspectos do passado que parecem ainda servir à sua história, neste caso o legado democrático, revolucionário e a consciência das injustiças raciais, aspectos que podem estar associados à Revolução Americana e a nomes mais avançados na crítica da escravidão como Alexander Hamilton a partir de qualquer análise historicamente fundamentada. Este caso é um exemplo de como podemos elevar nossas exigências éticas e políticas com relação ao passado e ainda assim encontrar nele elementos de orientação para o futuro.

    Dos dois lados do espectro político nos EUA se explora hoje uma retórica de tempos de crise, fora da normalidade, e, por isso, decisivos para o futuro. Alguns analistas chamam essa linguagem de retórica existencial, no sentido de produzir um clima de que é a própria sobrevivência de um estilo de vida que estaria em jogo nas eleições. Estes analistas lamentam que essa atmosfera esteja esvaziando a campanha do debate de temas mais diretamente ligados aos problemas cotidianos da maioria dos cidadãos. A disputa aberta nos últimos dias pelo preenchimento de mais uma vaga na Suprema Corte, a versão estadunidense de nosso STF, tende a agravar a polarização. Mas é indubitável que Trump é ainda quem melhor tem explorado a linguagem da ameaça existencial: “Apesar de toda nossa grandeza como nação, tudo o que alcançamos está agora ameaçado. Esta é a mais importante eleição da história de nosso país”.[3] 

    O discurso de Obama, e em menor medida, também o de Biden, promovem uma visão liberal de progresso transformativo a partir de um legado histórico ambivalente, o mal e o bem estão inscritos na história estadunidense, luzes e trevas, cabe a cada geração escolher o caminho correto. Em um dos momentos mais graves de seu discurso, marcado por imagens de luz e trevas e por um combate pela alma da nação, Biden afirma: “A História nos confiou mais uma tarefa urgente. Seremos nós a geração que finalmente irá limpar a mancha do racismo de nosso caráter nacional?”[4] 

    Discursando alguns dias após Biden, Trump responderia a diversos pontos do discurso do seu oponente, pintando uma imagem muito mais simplificada e homogênea da história. Em sua visão mítica, os Estados Unidos e seu povo são a maior e talvez única fonte de grandeza, justiça e liberdade no mundo, tudo isso garantido por eleição divina. Não há em seu discurso qualquer vestígio de crítica ao passado, a história surge como algo uniforme e a luta não é interna, entre anjos e demônios em uma mesma alma, mas entre a verdadeira América e seus detratores. O bem e o mal aqui representam polos opostos e uniformes: “Entendemos que a América não é uma terra  mergulhada em trevas, a América é a tocha que ilumina o mundo inteiro”.

    Enquanto as narrativas da história apresentadas pelos Democratas são facilmente enquadradas no repertório do pensamento histórico moderno, no discurso de Trump o recurso à história é algo mágico, o tempo é apresentado como a atualização de uma essência miraculosa do ser americano. A única alternativa a essa atualização é a sua destruição por forças externas à sua essência. Assim, em seu discurso, ouvimos incessantemente a promessa de mais do mesmo, não há um princípio transformativo ou um campo de possibilidades, apenas mais América para os verdadeiros americanos, conduzidos a um “futuro maior e mais brilhante”.

    “O que uniu gerações passadas foi a inabalável confiança no destino Americano, e uma fé inquebrantável no Povo Americano. Eles sabiam que nosso país é abençoado por Deus, e que tem um propósito especial no mundo. Foi essa convicção que inspirou a formação de nossa união, nossa expansão para o oeste, a abolição da escravidão, a aprovação dos direitos civis, o programa espacial e a derrocada do fascismo, da tirania e do comunismo”.

    Como se vê, não é um princípio histórico (como o governo representativo e a democracia em Obama) o que guia a história dos Estados Unidos para Trump, mas a eleição divina. No lugar de um progresso transformativo, a história é apenas a atualização desse destino em expansão – sempre mais. Por isso ele recusa em diversos planos o tema do resgate da alma americana levantada por Biden; Deus é a única garantia da pureza nacional e a cruzada moral democrata é transformada em uma guerra cultural que pretende obrigar a população a uma forma de pensamento único, submetê-los a novos códigos de linguagem e comportamento que seriam essencialmente alheios à verdadeira alma nacional:

    “Precisamos recuperar nossa independência dos mandatos repressivos da esquerda. Os americanos estão exaustos de tentar acompanhar a última lista de palavras e frases aprovadas, e dos decretos políticos cada vez mais restritivos. Muitas coisas têm nomes diferentes agora, e as regras estão em constante mudança. O objetivo da cultura do cancelamento é fazer com que os americanos decentes vivam com medo de serem demitidos, expulsos, envergonhados, humilhados e excluídos da sociedade como a conhecemos”.

    Em outras seções do discurso, Trump repete sua crença de que os Estados Unidos são únicos e superiores a qualquer outra nação, reforça o mito da terra das oportunidades para todos, independente de suas origens. Diríamos, terra das oportunidades, mas não das possibilidades, nesse pacto mítico, seu sucesso ou fracasso depende apenas do quanto você decidiu ser como todo e qualquer americano eleito por Deus. O seu fracasso só pode ser sinal de que não conseguiu ser americano o bastante, pois não há falhas no projeto nacional. A forma como em seu discurso ele descreve a conquista do Oeste é emblemático, alguns aventureiros juntaram seus pertences, a Bíblia e ocupando as terras ilimitadas, abrindo cidades, indústrias e comércio como em um passe de mágica – nenhuma palavra sobre o massacre aos nativos americanos, apenas a sentença mágica: “Os americanos constroem o futuro, não destruímos o passado!”. O passado e o futuro de quem, cara pálida?

    Embora em seu discurso hoje na ONU Bolsonaro tenha se afastado da retórica antiglobalização e feito pequenos acenos aos órgãos de governança global, sua matriz discursiva e seu recurso à história tem semelhanças estruturais inequívocas com o imaginário de Trump. Em nenhum outro lugar isso fica tão evidente quanto em suas palavras de encerramento: “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família a sua base”.[5] Todos os brasileiros que sejam diferentes dessa descrição não são brasileiros o suficiente, são provavelmente candidatos a inimigos da nação, sob constante ameaça de extermínio. Qualquer história do Brasil que possa ser contada a partir dessa definição será uma peça de ficção violenta e excludente. As raízes do sucesso dessas ilusões autoritárias precisam ser buscadas no fracasso das políticas neoliberais e na imensa crise de coesão social que nos legou.

    Como essa escolha pode afetar o futuro das esquerdas?

    Acreditamos que nossa crise de coesão social tem causas reais, presentes no nosso cotidiano: um exemplo é o aumento da população carcerária, especialmente de jovens negros; isso mostra que o passado-presente da escravidão e do racismo não é apenas uma memória/passado sensível, mas uma presença estrutural na vida social brasileira e estadunidense. Também a pandemia de Covid-19 mostrou que, durante uma crise sanitária, as pessoas pobres e negras se tornam mais vulneráveis. Sem resolver este problema estrutural, a disputa cultural tem seus limites.

    O debate sobre as estátuas e sobre a história é importante para revelar esse passado-presente, e não apenas disputar representações sobre um suposto passado morto. A crise de solidariedade que vivemos resulta do fracasso de certos projetos nacionais em realizar suas promessas para a maior parte da população. Falta emprego e oportunidades; a concentração de renda atinge patamares inéditos; ainda não há tratamento igual para homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres. Estes ideais e valores, além de incompletos e imperfeitos, parecem até mesmo retroceder em nosso tempo.

    Em um momento em que a crítica ou o elogio dogmático e naturalizante a um genérico “projeto ocidental” entrou na ordem do dia na disputa política, é preciso reforçar avaliações mais cuidadosas. Contra os que, vestidos de novos cruzados, celebram a sacralidade da civilização ocidental e consagram Donald Trump ou Jair Bolsonaro seus novos paladinos, pouco temos o que dizer. Mas, no campo daqueles que de boa fé buscam formas de enfrentar o grande desafio de defesa da democracia, vale insistir sobre a necessidade de diferenciarmos duas matrizes de crítica ao projeto moderno-ocidental. Há elementos fundamentalmente autoritários, racistas e aporéticos no projeto que devem ser revisados e abandonados, mas também há valores e ideais que ainda podem nos servir, que no lugar de serem abandonados precisam ser aprofundados e atualizados.

    Parte do “novo sentimento antidemocrático” e da frustração causada pela desigualdade social é fruto da não realização desses valores modernos, em especial, da democracia, ao menos não de forma satisfatória: a igualdade prometida pela universalidade, a fraternidade prometida pelo reconhecimento do mérito e a liberdade, não apenas permanecem como promessas não plenamente cumpridas, como foram distorcidas para legitimar projetos de opressão. É possível que esses valores sejam atualizados em sentido propriamente histórico para atender as demandas do presente e o aprendizado das ruas.

    O futuro da esquerda passa por enfrentarmos a perda de solidariedade social aberta pela crise entre o capitalismo e valores democráticos, em especial, atacar as causas da concentração de renda e da piora nos indicadores sociais, e avançar na compreensão dos modos de produção da desinformação, para alargar o controle social das fontes de produção e circulação de informação, combatendo o negacionismo da história, da ciência e dos valores éticos.

    Isso deverá levar a uma ocupação cidadã das novas estruturas da esfera pública e ampliar as oportunidades para o debate franco e honesto como forma de mediar conflitos e produzir novas solidariedades. Desde que possamos levar a sério o desafio proposto pela ideia de interseccionalidade de gênero, raça e classe, respeitando e conscientes dos limites e potencialidades da vivência e da experiência do lugar social de fala e ação. Afinal, conforme Géssica Guimarães e Amanda Danelli, “no interior do discurso pela igualdade deve haver espaço para o respeito à diversidade e o combate às opressões estruturais que ainda hoje assolam as vidas de tantas pessoas”.[6] 

    Assim, para sobreviver à ansiedade e à nostalgia do atualismo, assim como poder sair do fluxo contínuo de apropriações violentas do passado e do futuro pelo tempo presente, é necessário criar possibilidades de desatualização e de atualizações próprias, o que é mais do que desacelerar o tempo. Oscilar entre o atual e o inatual é entender que podemos ainda ter um papel sobre o futuro, que o presente pode ser futurizado e passadizado por decisões que podemos tomar coletivamente.

    (*) Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e aos grupo Proprietas pelo apoio e interlocução neste projeto.


    [1] A transcrição pode ser lida no site https://edition.cnn.com/2020/08/19/politics/barack-obama-speech-transcript/index.html.

    [2] É possível fazer um tour virtual pelas salas do museu em seu site: https://museumvirtualtour.org/

    [3] A transcrição do discurso de Trump na convenção do partido republicano pode ser lida no link – https://edition.cnn.com/2020/08/28/politics/donald-trump-speech-transcript/index.html 

    [4] A transcrição do discurso de Biden pode ser lida no link https://edition.cnn.com/2020/08/20/politics/biden-dnc-speech-transcript/index.html

    [5]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/22/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-na-assembleia-geral-da-onu.htm

  • O Amor vai vencer o Ódio – Lula no Encontro Nacional do PT

    O Amor vai vencer o Ódio – Lula no Encontro Nacional do PT

    Companheiras e companheiros do PT,
    Convidados de todo o Brasil e de outros países,
    Minhas amigas, meus amigos,
    Esperei muito tempo para poder falar livremente ao povo brasileiro. Esse dia finalmente chegou, e minha primeira palavra tem de ser de agradecimento, pela solidariedade, pelo carinho e pelas manifestações de quem não desistiu de lutar e vai continuar lutando pela verdadeira justiça.
    Durante 580 dias fui isolado da família, dos amigos e companheiros, apartado do povo, mesmo tendo o direito constitucional de recorrer em liberdade contra a sentença injusta e fraudulenta de um juiz parcial. Um direito que somente agora foi proclamado pelo Supremo Tribunal Federal, para todos, sem exceção.
    Com as armas da verdade e da lei, continuarei lutando para que os tribunais reconheçam, agora, que fui condenado por quem sequer poderia ter me julgado:
    um ex-juiz que atuou fora da lei, grampeou advogados, mentiu ao país e aos tribunais, antes de desnudar seus objetivos políticos. Lutarei para que seja anulada a sentença e me deem o julgamento justo que não tive.
    Aos 74 anos de idade, não tenho no coração lugar para ódio e rancor. Mas quem nesse país já sofreu a humilhação de uma acusação falsa, por causa da cor de sua pele ou por sua origem social humilde, conhece o peso do preconceito e é capaz de sentir o quanto fui ferido em minha dignidade. E isso não se apaga.
    Nada nem ninguém vai devolver o pedaço arrancado da minha existência, mas quero dizer que aproveitei esses 580 dias para ler, estudar, refletir e reforçar meu compromisso com o Brasil e com nosso povo sofrido. Voltei com muita vontade de falar sobre o presente e principalmente sobre o futuro do Brasil.
    Mas logo depois da minha primeira fala, de volta ao sindicato onde passei o último momento de liberdade, disseram que eu deveria ter cuidado para não polarizar o país. Que seria melhor calar certas verdades para não tumultuar o ambiente político, para o PT não provocar uma ameaça à democracia.
    Vamos deixar uma coisa bem clara: se existe um partido identificado com a democracia no Brasil é o Partido dos Trabalhadores. O PT nasceu lutando pela liberdade durante a ditadura. Não tentem negar essa verdade porque nós apanhamos da repressão, fomos perseguidos, presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional por defender essa ideia.
    Desde que foi criado, há quase 40 anos, o PT disputou dentro da lei e pacificamente todas as eleições neste país. Quando perdemos, aceitamos o resultado e fizemos oposição, como determinaram as urnas. Quando vencemos, governamos com diálogo social, participação popular e respeito às instituições.
    Outros partidos mudaram as regras da reeleição em benefício próprio. Nós rejeitamos essa ideia, mesmo gozando de uma aprovação que nenhum outro governo jamais teve, porque sempre entendemos que não se pode brincar com a democracia.
    Não fomos nós que falamos em fechar o Congresso, muito menos o Supremo, com um cabo e um soldado. Em nossos governos, as Forças Armadas foram respeitadas e os chefes militares respeitaram as instituições, cumprindo estritamente o papel que a Constituição lhes reserva. Nenhum general deu murro na mesa nem esbravejou contra líderes políticos.
    Não fomos nós que pedimos anulação do pleito só para desgastar o partido vencedor; que sabotamos a economia do país para forçar um impeachment sem crime; que sustentamos uma farsa judicial e midiática para tirar do páreo o candidato líder nas pesquisas.
    Não fomos nós os responsáveis, ativos ou omissos, pela eleição de um candidato que tem ojeriza à democracia; que foi poupado de enfrentar o debate de propostas, que montou uma indústria de mentiras com dinheiro sujo, sob a complacência da mesma Justiça Eleitoral que, desacatando uma decisão da ONU, cassou o candidato que poderia derrotá-lo.
    São essas pessoas que agora nos dizem para não polarizar o país. Como se polarização fosse sinônimo de extremismo político e ideológico. Como se o Brasil já não estivesse há séculos polarizado entre os poucos que têm tudo e os muitos que nada têm. Como se fosse possível não se opor a um governo de destruição do país, dos direitos, da liberdade e até da civilização.
    Aos que criticam ou temem a polarização, temos que ter a coragem de dizer: nós somos, sim, o oposto de Bolsonaro. Não dá para ficar em cima do muro ou no meio do caminho: somos e seremos oposição a esse governo de extrema-direita que gera desemprego e exige que os desempregados paguem a conta.
    Somos e seremos oposição a um governo que rasga direitos dos trabalhadores e reduz o valor real do salário mínimo. Que aumenta a extrema pobreza e traz de volta o flagelo da fome. Que destrói o meio ambiente. Que ataca mulheres, negros, indígenas e a população LGBT; ataca qualquer um que ouse discordar.
    Somos, sim, radicais na defesa da soberania nacional, da universidade pública e gratuita, do Sistema Único de Saúde, público, gratuito e universal. Nós não somos meia oposição; somos oposição e meia aos inimigos da educação, da cultura, da ciência e da tecnologia. Nós não aceitamos mais censura, tortura, AI-5 e perseguição a adversários políticos.
    Andam negando essa verdade científica, mas a Terra é redonda e nós estamos, sim, em polos opostos: enquanto eles semeiam o ódio, nós vamos mostrar a eles o que o amor é capaz de fazer por este país.
    Companheiras e companheiros,
    Já foi dito que o PT nasceu para mudar o Brasil. E mudou. Porque trazemos na origem o compromisso com os trabalhadores, com os mais pobres, com os que carregaram ao longo de séculos o peso da exclusão e da desigualdade. Porque pela primeira vez fizemos um governo para todos os brasileiros e brasileiras, e isso fez toda a diferença em nosso país.
    Se fosse para governar apenas para uma parte da população, o Brasil não precisaria do PT.
    Para o mercado decidir quem pode e quem não pode se aposentar, quanto vai custar o gás de cozinha, o combustível, a energia elétrica, visando somente o lucro, o Brasil não precisaria do PT.
    Se fosse para entregar ao estrangeiro as riquezas naturais, o petróleo, as águas, as empresas que o povo brasileiro construiu, o Brasil não precisaria do PT.
    Se fosse para queimar a floresta, envenenar a comida com agrotóxicos, deixar impunes crimes como os de Marielle, Mariana, Brumadinho, ignorar desastres como o óleo no litoral do Nordeste, quem precisaria do PT?
    Para o filho do rico estudar nas melhores universidades do mundo e o filho do trabalhador ter de largar a escola pra sustentar a família, o Brasil não precisaria do PT.
    Se é para alguns terem mansão em Miami e muitos viverem debaixo do viaduto; para o rico ficar isento até do imposto de herança e o trabalhador carregar o peso do imposto de renda, o Brasil não precisaria do PT.
    Para manter a mais escandalosa concentração de renda do planeta Terra, para o rico continuar cada vez mais rico e o pobre ficar cada dia mais pobre, aí mesmo é que o Brasil não precisaria do PT.
    Porque o maior inimigo do Brasil hoje e desde sempre é a desigualdade, esse vergonhoso fosso em que 1% da população detém 30% da renda nacional e para a metade mais pobre sobram 17%, as migalhas de um banquete indecente.
    Mas se este país quer superar a chaga imensa da desigualdade, recuperar a soberania e o seu lugar no mundo, se quer voltar a crescer em benefício de todos os brasileiros e brasileiras, o Partido dos Trabalhadores é mais do que necessário: ele é imprescindível.
    Esta é a enorme responsabilidade que estamos recebendo. O Brasil nunca precisou tanto do PT. E o PT tem de ser grande o bastante para corresponder ao que o país espera de nós. Tem de estar unido, forte e cada vez mais conectado com o povo brasileiro.
    Temos a responsabilidade de renovar o partido, compreender o que mudou na sociedade brasileira nesses 40 anos e buscar as respostas para os novos desafios. Fomos forjados na luta em defesa da classe trabalhadora.
    O peso da injustiça recai hoje sobre os motoristas de aplicativos, os jovens que perdem a saúde e arriscam a vida fazendo entregas em motos, bicicletas, ou mesmo a pé. Os que não têm a quem recorrer por seus direitos, porque a única relação de trabalho que conhecem não é a carteira profissional, mas um telefone celular que ele precisa recarregar desesperadamente.
    Esse é o lugar que resta aos deserdados de um modelo neoliberal excludente, cada vez mais desumano. Um mundo em que o mercado é deus e em que a solidariedade deixa de ser um valor universal, substituída por uma competição individualista feroz.
    É com esse mundo novo que o PT precisa dialogar, sem abrir mão de nossos compromissos históricos, mantendo os pés firmes no presente e mirando sempre o futuro. Se as formas de exploração mudaram, a injustiça e a desigualdade permanecem e são cada vez mais cruéis. Temos de estar mais organizados, mais fortes, conscientes e mais decididos do que nunca a construir um país mais generoso, solidário e mais justo. É por isso que o Brasil precisa tanto do PT.
    Companheiras e companheiros,
    Salvar o país da destruição e do caos social que este governo está produzindo não é tarefa para um único partido. Fomos eleitos e governamos em aliança com outras forças do campo popular e democrático. Por mais que tentem nos isolar, estamos juntos na oposição com partidos da centro-esquerda e estamos com os movimentos sociais, as centrais sindicais e importantes lideranças da sociedade.
    Embora tantos tenham cometido erros antes e depois dos nossos governos, é somente do PT que exigem a autocrítica que fazemos todos os dias. Na verdade, querem de nós um humilhante ato de contrição, como se tivéssemos de pedir perdão por continuar existindo no coração do povo brasileiro, apesar de tudo que fizeram para nos destruir.  Preciso dizer algumas verdades sobre isso.
    O maior erro que nós cometemos foi não ter feito mais e melhor, de uma forma tão contundente que jamais fosse possível esse país voltar a ser governado contra o povo, contra os interesses nacionais, contra a liberdade e a democracia, como está sendo hoje.
    Deveríamos ter feito mais universidades do que fizemos, mais reforma agrária, mais Luz Pra Todos, mais Minha Casa Minha Vida, mais Bolsa Família e mais investimento público.
    Teríamos de ter conversado muito mais com o povo e com os trabalhadores, conversado mais com os jovens que não viveram o tempo em que o Brasil era governado para poucos e não para todos.
    Também tínhamos de ter trabalhado muito mais para democratizar o acesso à informação e aos meios de comunicação, apoiado mais as rádios comunitárias, fortalecido mais a televisão pública, a imprensa regional, o jornalismo independente na internet.
    Antes que a Rede Globo me acuse outra vez pelo que não disse nem fiz, não ousem me comparar ao presidente que eles escolheram. Jamais ameacei e jamais ameaçaria cassar arbitrariamente uma concessão de TV, mesmo sendo atacado sem direito de resposta e censurado como sou pelo jornalismo da Globo.
    Eu sempre disse que jamais teria chegado onde cheguei se não tivesse lutado pela liberdade de imprensa. Hoje entendo, com muita convicção, que liberdade de imprensa tem de ser um direito de todos, não pode ser privilégio de alguns.
    Não pode um grupo familiar decidir sozinho o que é notícia e o que não é, com base unicamente em seus interesses políticos e econômicos.
    Entendo que democratizar a comunicação não é fechar uma TV, é abrir muitas. É fazer a regulação constitucional que está parada há 31 anos, à espera de um momento de coragem do Congresso Nacional. É fazer cumprir a lei do direito de resposta. E é principalmente abrir mais escolas e universidades, levar mais informação e consciência para que as pessoas se libertem do monopólio.
    Enfim, penso que teríamos de ter lutado com mais vontade e organização, fortalecido ainda mais a democracia, para jamais permitir que o Brasil voltasse a ter um governo de destruição e de exclusão social como voltou a ter desde o golpe de 2016.
    A autocrítica que o Brasil espera é a dos que apoiaram, nos últimos três anos, a implantação do projeto neoliberal que não deu certo em lugar nenhum do mundo, que vai destruir a previdência pública e que ao invés de gerar os empregos que o povo precisa está implantando novas formas de exploração.
    A autocrítica que a democracia e o estado de direito esperam é daqueles que, na mídia, no Congresso, em setores do Judiciário e do Ministério Público, promoveram, em nome da ética, a maior farsa judicial que este país já assistiu.
    O mundo hoje sabe que, ao contrário de combater a impunidade e a corrupção, a Lava Jato corrompeu-se e corrompeu o processo eleitoral e uma parte do sistema judicial brasileiro. Deixou impunes dezenas de criminosos confessos que Sérgio Moro perdoou e que continuam muito ricos.
    Como podem dizer que combateram a impunidade se soltaram pelo menos 130 dos 159 réus que ele mesmo havia condenado? Negociaram todo tipo de benefício com criminosos confessos, venderam até o perdão de pena que a lei não prevê, em troca de qualquer palavra que servisse para prejudicar o Lula.
    Que ética é essa que condena 2 milhões de trabalhadores, sem apelação, destruindo empresas para salvar os patrões acusados de corrupção?
    Não tem moral, não tem autoridade para discutir ética quem deu cobertura aos procuradores de Deltan Dallagnol e Rodrigo Janot quando eles entregaram a Petrobrás aos tribunais dos Estados Unidos, um crime de lesa-pátria que já custou quase 5 bilhões de dólares ao povo brasileiro.
    Temos muito o que falar sobre ética, sobre combate à corrupção e à impunidade. Mas acima de tudo temos que falar a verdade.
    Meus amigos e minhas amigas,
    Alguns professores de deus defendem um modelo suicida de austeridade fiscal e redução do estado, que não deu certo em nenhum lugar do mundo. Tiveram o apoio da mídia e das instituições para culpar os governos do PT por tudo de ruim que havia no Brasil. Mentiram que tirando o PT do governo tudo se resolveria, por obra do mercado e do ajuste fiscal. E os problemas se agravaram ainda mais.
    Os indicadores econômicos do Brasil pioraram: a balança comercial em queda, a economia paralisada, setores da indústria destruídos, o investimento público e privado inexistente, o rombo nas contas aumentado irresponsavelmente por razões políticas. O custo de vida dos pobres aumentou e as pessoas voltaram a cozinhar com lenha porque não podem comprar um botijão de gás.
    É preciso dizer umas verdades sobre isso também.
    A primeira delas é que o Brasil só não quebrou ainda por causa da herança dos governos do PT. Por causa dos 370 bilhões de dólares em reservas internacionais que acumulamos e querem queimar na conta dos juros. Por causa dos mercados internacionais que abrimos e que uma política externa irresponsável está fechando. Por causa do pré-sal que descobrimos e que estão vendendo na bacia das almas.
    O Brasil só não está passando por uma convulsão social extrema por causa da herança dos governos do PT. Porque não conseguiram acabar com o Bolsa Família, último recurso de milhões de deserdados. Porque milhões de famílias ainda produzem no campo, para onde levamos água, energia, tecnologia e recursos em nosso governo. E também porque não conseguiram destruir ainda os sistemas públicos de saúde, educação e segurança, mas fatalmente isso irá ocorrer pela criminosa política de cortes do investimento público.
    Sempre acreditei que o povo brasileiro é capaz de construir uma grande Nação, à altura dos nossos sonhos, das nossas imensas riquezas naturais e humanas, neste lugar privilegiado em que vivemos. Já provamos que é possível enfrentar o atraso, a pobreza e a desigualdade, desafiando poderosos interesses contrários ao país e ao povo.
    Soberania significa independência, autonomia, liberdade. O contrário é dependência, servidão, submissão. É o que está acontecendo hoje. Estão entregando criminosamente a outros países as empresas, os bancos, o petróleo, os minerais e o patrimônio que pertence ao povo brasileiro. Trair a soberania é o maior crime que um governo pode cometer contra seu país e seu povo.
    A Petrobrás está sendo vendida em fatias a suas concorrentes estrangeiras.
    Fiquem alertas os que estão se aproveitando dessa farra de entreguismo e privatização predatória, porque não vai durar para sempre. O povo brasileiro há de encontrar os meios de recuperar aquilo que lhe pertence. E saberá cobrar os crimes dos que estão traindo, entregando e destruindo o país.
    Tão importante quanto defender o patrimônio público ameaçado é preservar os recursos naturais e nossa riquíssima biodiversidade. Utilizar esse patrimônio, fonte de vida, com responsabilidade social e ambiental.
    Um país que não garante educação pública de qualidade a todas as suas crianças, adolescentes e jovens não se prepara para o futuro.
    Mas parece que enfiaram o Brasil à força numa máquina do tempo e nos enviaram de volta a um passado que a gente já tinha superado. O passado da escravidão, da fome, do desemprego em massa, da dependência externa, da censura, do obscurantismo.
    O Brasil precisa embarcar de volta para o futuro. E não tem ninguém melhor para pilotar essa máquina do tempo do que a juventude desse país. Porque essa juventude, seja ela branca, negra ou indígena, ela quer ensino de qualidade, quer adquirir conhecimento, quer de volta as oportunidades de trabalho digno, sem alienação e sem humilhações.
    Essa juventude quer e merece um mundo melhor do que este em que estamos vivendo.
    Hoje me coloco à disposição do Brasil para contribuir nessa travessia para uma vida melhor, vida em plenitude, especialmente para os que não podem ser abandonados pelo caminho.
    Sem ódio nem rancor, que nada constroem, mas consciente de que o povo brasileiro quer retomar a construção de seu destino; de que temos de fazer juntos um Brasil soberano, democrático, justo, em que todos e todas tenham oportunidades iguais de crescer e sonhar.
    O futuro será nosso, o futuro será do Brasil!
    Muito obrigado!
    Luiz Inácio Lula da Silva
    _____________________________________________________________________________

    Os Jornalistas Livres também fizemos a transmissão ao vivo que pode ser assistida em https://www.youtube.com/watch?v=XJTUbyFB5II&feature=youtu.be

     

     

  • O aspecto positivo do discurso de Bolsonaro

    O aspecto positivo do discurso de Bolsonaro

    ARTIGO

    RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Terça-feira, 24 de setembro de 2019.

    Jair Bolsonaro protagonizou aquele que talvez tenha sido um dos maiores vexames da história da diplomacia. Em aproximadamente 30 minutos de discurso, o presidente do Brasil vomitou no púlpito da ONU todas as bobagens que vem falando desde o início da década de 1990, e que durante muito tempo foram lidas como devaneios sem importância.

    Erro grave. A democracia brasileira subestimou o potencial destrutivo de uma fenda autoritária. A fenda foi crescendo, crescendo, até fazer desaparecer o chão sob nossos pés.

    Na ONU, Bolsonaro falou do Foro de São Paulo, do projeto socialista dos governos petistas, de ideologia de gênero e tudo aquilo que circula no submundo do Whatsapp.

    Confesso que não sei se o presidente acredita mesmo no que diz ou se isso faz parte da estratégia de constante excitação de sua base social orgânica. Pode ser que sejam as duas coisas. Acho mais provável que sejam as duas coisas.

    Não vou comentar o conteúdo do discurso. Muitos já o fizeram. Quero mesmo é mostrar o lado positivo do evento, acompanhado com atenção pelo mundo inteiro, que tenta entender o que está acontecendo no Brasil.

    O discurso mostrou ao mundo que a narrativa que desde o século XIX afirma o lugar do Brasil no concerto internacional das nações é, simplesmente, mentirosa.

    Mas que narrativa é essa?

    Em 1843, foi publicado um texto de autoria do botânico alemão Karl von Martius, onde o autor prescreve um modelo para aqueles que no futuro tentassem escrever a história do Brasil. Para Martius, qualquer um que se dedicasse ao empreendimento não poderia deixar de ressaltar aquele que seria o aspecto fundamental da formação histórica brasileira: a mistura pacífica entre as raças branca, negra e indígena.

    A tópica da mistura racial pacífica atravessou o pensamento social brasileiro, ganhando seus contornos mais conhecidos no livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, publicado pela primeira vez em 1933. A “democracia racial” se tornou a principal ideologia de autoapresentação brasileira no mundo.

    Em todas as exposições universais realizadas ao longo do século XX, lá estava no stand do Brasil um índio trajado de nu e com o corpo pintado, uma baiana fritando acarajé ou uma mulher negra sambando de biquíni.

    Durante muito tempo a narrativa colou, a tal ponto que na década de 1950, a ONU enviou uma missão ao Brasil para estudar como se dava a convivência pacífica entre raças diferentes. Naqueles anos, a ONU investia em uma agenda multiculturalista e estava convencida de que o Brasil tinha algo a ensinar ao mundo.

    O futebol ajudou a alimentar essa imagem positiva: Pelé, os Ronaldinhos, Romário. O Brasil seria tão tolerante e pacífico a ponto de monumentalizar heróis negros.

    Se é possível ver o copo meio cheio e encontrar algo de bom no discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral das Nações Unidas, eu diria que foi a revelação ao mundo de uma verdade sobre o Brasil.

    Manifestações racistas, ataques aos direitos das comunidades indígenas, ofensas às mulheres. Os absurdos ditos por Bolsonaro ecoam na imprensa internacional desde o segundo semestre do ano passado, quando ele pintou como candidato forte na corrida presidencial.

    O discurso na ONU foi a cereja do bolo e jogou pá de cal na representação que durante quase 200 anos definiu o Brasil no imaginário internacional.

    Bolsonaro, com sua imagem fedorenta (a imagem de Bolsonaro fede, sou capaz de sentir o mal hálito exalando da TV), foi lá, tomou o microfone e mostrou ao mundo quem é o homem médio brasileiro.

    Bolsonaro é a representação perfeita do homem médio brasileiro, como já disse com astúcia Eliane Brum: autoritário, violento, deselegante, feio.

    Mesmo com todo o vexame, o discurso de 24 de setembro de 2019 serviu para globalizar o homem médio brasileiro e dar fim à farsa que durante muito tempo enganou o mundo, incluindo nós mesmos.

    Agora, talvez, diante do grotesco manifestado em espelho, sejamos capazes de entender quem somos e melhorar. Essa tragédia toda precisa servir pra alguma coisa.

     

  • Leia a íntegra do primeiro discurso de Lula em Davos, em 2003

    Leia a íntegra do primeiro discurso de Lula em Davos, em 2003

    “Boa tarde.

    Estou chegando, como vocês sabem, diretamente de Porto Alegre, onde participei do Fórum Social Mundial, e falei a dezenas de milhares de pessoas sobre os mesmos assuntos de que pretendo tratar aqui.

    A Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial tem como tema central a construção da confiança. Sinto-me muito à vontade com esse tema. Sou depositário da confiança do povo brasileiro, que me atribuiu a responsabilidade de conduzir um país de 175 milhões de habitantes, uma das maiores economias industriais do planeta. Mas, um país que convive, também, com enormes desigualdades sociais.

    Trago a Davos o sentimento de esperança que tomou conta de toda a sociedade brasileira. O Brasil se reencontrou consigo mesmo, e esse reencontro se expressa no entusiasmo da sociedade e na mobilização nacional para enfrentar os enormes problemas que temos pela frente.

    Aqui, em Davos, convencionou-se dizer que hoje existe um único Deus: o mercado. Mas a liberdade de mercado pressupõe, antes de tudo, a liberdade e a segurança dos cidadãos.

    Respondi, de forma serena e madura, aos que desconfiaram dos nossos compromissos, durante a campanha eleitoral. Na Carta ao Povo Brasileiro, reafirmei a disposição de realizar reformas econômicas, sociais e políticas muito profundas, respeitando contratos e assegurando o equilíbrio econômico.

    O Brasil trabalha para reduzir as disparidades econômicas e sociais, aprofundar a democracia política, garantir as liberdades públicas e promover, ativamente, os direitos humanos.

    A face mais visível dessas disparidades são os mais de 45 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza. O seu lado mais dramático é a fome, que atinge dezenas de milhões de irmãos e irmãs brasileiras.

    Por essa razão, fizemos do combate à fome nossa prioridade. Não me cansarei de repetir o compromisso de assegurar que os brasileiros possam, todo dia, tomar café, almoçar e jantar.

    Combater a fome não é apenas tarefa do Governo, mas de toda a sociedade. A erradicação da fome pressupõe transformações estruturais, exige a criação de empregos dignos, mais e melhores investimentos, aumento substancial da poupança interna, expansão dos mercados no país e no exterior, saúde e educação de qualidade, desenvolvimento cultural, científico e tecnológico.

    Urge que o Brasil promova a reforma agrária e retome o crescimento econômico, de modo a distribuir renda. Estabelecemos regras econômicas claras, estáveis e transparentes. E estamos combatendo, implacavelmente, a corrupção. Nossa infra-estrutura deverá ser ampliada, inclusive com a participação de capitais estrangeiros.

    Somos um país acolhedor. A tolerância e a solidariedade são características do povo brasileiro. Temos uma força de trabalho qualificada, apta para os grandes desafios da produção neste novo século.

    A retomada do desenvolvimento requer a superação dos constrangimentos externos. O Brasil tem que sair desse círculo vicioso de contrair novos empréstimos para pagar os anteriores. É necessário realizar um extraordinário esforço de expansão do nosso comércio internacional, em particular das nossas exportações, diversificando produtos e mercados, agregando valor àquilo que produzimos.

    Todo o esforço que estamos fazendo para recuperar, responsavelmente, a economia brasileira, no entanto, não atingirá plenamente seus objetivos sem mudanças importantes na ordem econômica mundial. Queremos o livre comércio, mas um livre comércio que se caracterize pela reciprocidade. De nada valerá o esforço exportador que venhamos a desenvolver se os países ricos continuarem a pregar o livre comércio e a praticar o protecionismo.

    As mudanças da ordem econômica mundial devem passar, também, por uma maior disciplina no fluxo de capitais, que se deslocam pelo mundo, ao sabor de boatos e de especulações subjetivas e sem fundamento na realidade.

    É necessário que a comunidade internacional dê sua contribuição para impedir a evasão ilegal de recursos, que buscam refúgios em paraísos fiscais. Maior disciplina nessa área é fundamental para o decisivo combate ao terrorismo e à delinqüência internacionais, que se alimentam da lavagem de dinheiro.

    A construção de uma nova ordem econômica internacional, mais justa e democrática, não é somente um ato de generosidade, mas, também, e principalmente, uma atitude de inteligência política.

    Mais de dez anos após a derrubada do Muro de Berlim, ainda persistem “muros” que separam os que comem dos famintos, os que têm trabalho dos desempregados, os que moram dignamente dos que vivem na rua ou em miseráveis favelas, os que têm acesso à educação e ao acervo cultural da humanidade dos que vivem mergulhados no analfabetismo e na mais absoluta alienação.

    É necessário, também, uma nova ética. Não basta que os valores do humanismo sejam proclamados, é preciso que eles prevaleçam nas relações entre os países e os povos.

    Nossa política externa está firmemente orientada pela busca da paz, da solução negociada dos conflitos internacionais e pela defesa intransigente dos nossos interesses nacionais.

    A paz não é só um objetivo moral. É, também, um imperativo de racionalidade. Por isso, defendemos que as controvérsias sejam solucionadas por vias pacíficas e sob a égide das Nações Unidas. É necessário admitir que, muitas vezes, a pobreza, a fome e a miséria são o caldo de cultura onde se desenvolvem o fanatismo e a intolerância.

    A preservação dos interesses nacionais não é incompatível com a cooperação e a solidariedade. Nosso projeto nacional não é xenófobo e, sim, universalista. Queremos aprofundar nossas relações com os países da América do Sul, desenvolvendo com eles uma integração econômica, comercial, social e política.

    Queremos negociar cada vez mais positivamente com os Estados Unidos, a União Européia e os países asiáticos. Teremos, na condição de país que possui a segunda maior população negra do mundo, um olhar especial para o continente africano, com o qual temos laços étnicos e culturais profundos.

    Quero convidar a todos os que aqui se encontram, nessa montanha mágica de Davos, a olhar o mundo com outros olhos. É absolutamente necessário reconstruir a ordem econômica mundial para atender aos anseios de milhões de pessoas que vivem à margem dos extraordinários progressos científicos e tecnológicos que um ser humano foi capaz de produzir.

    Não fiquem indefinidamente esperando sinais para mudarem de atitude em relação ao meu país e aos países em desenvolvimento. Os povos, como os indivíduos, precisam de oportunidades. Os países ricos de hoje só o são porque tiveram as suas oportunidades históricas.

    Se querem ser coerentes com a sua experiência vitoriosa, não podem e não devem obstruir o caminho dos países em via de desenvolvimento. Ao contrário, podem e devem construir conosco uma nova agenda de desenvolvimento global compartilhado.

    Tenham certeza de que o Brasil já começou a mudar. Nossa determinação é resultado não somente de compromissos que assumimos há muitos anos, mas decorre, também, da esperança que mobiliza o nosso país. Sei que no debate contemporâneo há divergências, visões de mundo distintas, até mesmo antagônicas.

    Sou o Presidente de todo o povo brasileiro e não apenas daqueles que votaram em mim. Estamos construindo um novo contrato social, em que todas as forças da sociedade brasileira estejam representadas e sejam ouvidas.

    Assim, busco a interlocução com todos os setores que serão reunidos no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Vou buscar contatos e pontos de apoio para os nossos projetos de mudar a sociedade brasileira, onde quer que eles estejam.

    A mudança que buscamos não é para um grupo social, político ou ideológico. Ela beneficiará mais os desprotegidos, os humilhados, os ofendidos e os que, agora, vêem com esperança a possibilidade de redenção pessoal e coletiva. Esta é uma causa de todos. Ela é universal por excelência.

    Como o mais extenso e o mais industrializado país do hemisfério sul, o Brasil se sente no direito e no dever de dirigir aos participantes do Fórum de Davos um apelo ao bom senso. Queremos fazer um apelo para que as descobertas científicas sejam universalizadas para que possam ser aproveitadas em todos os países do mundo.

    Na mesma linha, proponho a formação de um fundo internacional para o combate à miséria e à fome nos países do terceiro mundo, constituído pelos países do G-7 e estimulado pelos grandes investidores internacionais. Isso porque é longo o caminho para a construção de um mundo mais justo e a fome não pode esperar.

    Meu maior desejo é que a esperança que venceu o medo, no meu país, também contribua para vencê-lo em todo o mundo. Precisamos, urgentemente, nos unir em torno de um pacto mundial pela paz e contra a fome.

    E, fiquem certos, o Brasil fará a sua parte.

    Muito obrigado”.