Luciana Novaes, vereadora do PT do Rio de Janeiro
Durante a pré-história os seres humanos desenvolveram técnicas de domesticação de plantas e animais em um processo que historiadores e antropólogos conhecem como sedentarização. Aos poucos deixamos de vagar pelo mundo em busca de alimentos e passamos a construir o que chamamos hoje de moradia. Desde então, as habitações se tornaram elementos indispensáveis para a boa manutenção da vida humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 25°, reconhece que todo ser humano deve ter um padrão de vida suficiente para garantir a si e a sua família saúde e bem-estar, e isso inclui a habitação. O mesmo faz a Constituição Brasileira ao garantir no artigo 6º que a moradia é um direito social.
Porém, os dispositivos legais não foram suficientes para assegurar moradia digna para todos os brasileiros. Estima-se que o Brasil tenha um déficit habitacional de cerca de 7,7 milhões de residências. Na cidade do Rio de Janeiro, a situação é dramática e faltam mais de 220 mil habitações. Ao mesmo tempo, a capital fluminense é a segunda cidade com o aluguel mais caro do país, perdendo apenas para São Paulo. A defasagem no número de domicílios é um dos fatores que fizeram a população de rua do município crescer acentuadamente. Dados da Defensoria Pública do Rio de Janeiro de 2019 estimam que ao menos 15 mil cariocas estão no relento. Por sua vez,os abrigos atendem apenas 2,3 mil pessoas menos de 15% do necessário.
No meio da crise do coronavírus, não são apenas os desabrigados que preocupam, mas também quem reside em habitações insalubres. É preciso lembrar que 22,5% da população da cidade do Rio de Janeiro mora em favelas. Na periferia da cidade o isolamento social mostrou-se inviável, e um dos motivos é a precariedade das habitações. Na Rocinha, por exemplo, 38% dos moradores dividem o mesmo cômodo com uma ou mais pessoas, já na Tijuca esse percentual cai para apenas 2% dos habitantes.
Contudo, o poder público municipal parece dar de ombros para o problema habitacional, mesmo quando se trata de conter o vírus. Medidas paliativas que poderiam amenizar a situação de quem não dispõe de uma casa segura nesse momento não foram tomadas. É o caso do arrendamento de hotéis inoperantes, que poderiam abrigar parcela da população de rua, ou mesmo servir para isolar casos suspeitos. Essa medida foi importante, por exemplo, na Itália, cuja rede hoteleira acolheu moradores de rua e cidadãos que não tinham condições de isolamento, uma vez que nos centros urbanos como a Lombardia grande parte das habitações são apartamentos verticais pouco espaçosos.
A pandemia escancara aos gestores públicos que é preciso frear a grande especulação imobiliária no município do Rio de Janeiro, que supervaloriza imóveis enquanto escanteia para os morros e os cantões urbanos os pobres e desabrigados, negando a eles o direito à cidade. É necessário também apostar em uma política pública justa de urbanização e construção de moradias populares. Moradia digna não pode ser o privilégio de poucos, deve ser direito de todos.
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Moradia digna: um direito essencial em tempos de pandemia
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43 famílias da ocupação Almirante Negro pedem socorro!
Reportagem e vídeos Luiza Rotbart | Jornalistas Livres
Se não houver a intervenção de um desembargador, 43 famílias incluindo 32 crianças e adolescentes, 10 idosos e 4 pessoas com doenças graves, uma delas com câncer terminal, correm risco de irem parar nas ruas!
A juíza Andrea de Abreu e Braga, da 10° Vara CÍvel de São Paulo, assinou a emissão da reintegração de posse não levando em consideração que as famílias não têm onde morar e que a perda do endereço interfere no final do ano letivo das crianças e compromete o tratamento médico dos enfermos.
A Ocupação Almirante Negro instalou-se no edifício de oito andares, situado na rua Carlos de Sousa Nazaré 630, centro de São Paulo, desde 15 de abril de 2018. O imóvel que anteriormente já foi locado para a Prefeitura e abrigou o projeto Braços Abertos. De propriedade de Law Kin Chong, empresário sino-brasileiro, acusado e réu em casos de contrabando, o imóvel encontrava-se desocupado e completamente depredado. As famílias organizaram-se e investiram cerca de 50 mil reais para reformar a edificação, providenciando fiação elétrica, encanamento e instalações de cozinhas, banheiros e janelas.
Veja o depoimento do Pastor Ricardo que acompanha as famílias:
O Pastor Ricardo da Igreja Metropolitana de São Paulo, que convive com as famílias da ocupação Almirante Negro a mais e um ano, faz um apelo emocionado à juíza que assinou reintegração de posse de 43 famílias.A juíza Andrea de Abreu e Braga, não aceitou os recursos da equipe técnica, como a denúncia de abuso ocorrido no último dia 11/10, quando a advogada do proprietário, acompanhada de forte aparato policial, quis mobilizar o despejo forçado das famílias, sem possibilidade de defesa, encostando vários caminhões na porta do edifício e alegando risco de desabamento, sem apresentação de laudo.
Nesse momento crucial, a única possibilidade de reverter o despejo será através da intervenção direta do Ministério Público, uma vez que a Juíza não aceitou os recursos apresentados nem o apoio do Conselho Tutelar.
AS HISTÓRIAS DE VIDA QUE NÃO ESTÃO SENDO VISTAS:
Conheça um pouco mais de cada história de vidas das moradoras, na sua maioria mães, que tem os filhos matriculados e estudando na região:
Rose, 4 filhas:
Liliana é uma das mães, com 4 filhos, que mora no imóvel, e não tem outra opção de sobrevivência. Ela é imigrante da Bolívia e seus 4 filhos são brasileiros.
Kettia é uma das mães que moram no imóvel, ela veio do Haiti, e tem uma filha com problemas cardíacos.
Paula é mãe de 3 filhos, mora no imóvel, e não tem outra opção de sobrevivência “Se eu tiver que pagar aluguel eu não como”.
Valéria é mãe de 2 filhos. Seu filho de 15 anos acabou de ganhar uma bolsa de estudo numa escola próxima a ocupação.
Lidiane é baiana, mãe de 7 filhos, 5 moram com ela em São Paulo. Ela não tem outra opção de sobrevivência “Como vou pra rua com 5 crianças?”
Estima-se que São Paulo possui atualmente, mais de 206 ocupações que abrigam cerca de 45 mil pessoas. A perseguição aos Movimentos de Luta por Moradia coloca em risco a vida de milhares de pessoas e crianças atualmente abrigadas em ocupações e provocará o aumento de pessoas em situação de rua, que já beira a mais de 17 mil nas ruas da capital.
Bandeira de Frente de Luta por Moradia; Por Luiza Rotbart ” Jornalistas Livres A FLM – Frente de Luta por Moradia, é uma junção de Coletivos e Movimentos Sociais unidos pela construção de políticas públicas habitacionais, que obriguem o poder estatal a cumprir o dever constitucional de garantir o direito à moradia e demais direitos sociais garantidos na Constituição Federal e Declaração dos Direitos Humanos.
Imagens da festa do dia das crianças, na ocupação Almirante Negro ameaçada de reintegração de posse. Fotos Luiza Rotbart -
(IN)Justiça de SP manda despejar milhares de pessoas em Carapicuíba
Por Laura Capriglione e Lucas Martins, dos Jornalistas Livres
Sob temperatura de 37ºC, a Justiça de São Paulo autorizou nesta quinta (12/9) a destruição de mais de 700 moradias precárias, ocupadas por idêntico número de famílias, representando algo entre 3.000 e 4.000 pessoas, que ocupavam há 3 anos um terreno conhecido como Comunidade do Escadão, localizado na cidade de Carapicuíba, na Grande São Paulo.
O terreno pertence à Cohab de São Paulo, estatal que tem como principal acionista a Prefeitura Municipal de São Paulo, administrada por Bruno Covas. Oitocentas crianças cadastradas pelo Conselho Tutelar perderam o endereço em poucas horas, deixando brinquedos e cadernos para trás. Muitas abandonarão as escolas, porque viverão longe daquelas em que estavam matriculadas.
O prefeito de Carapicuíba, Marcos Neves, do Partido Verde, não se dignou a aparecer no local, embora tenha frequentado aquela favela durante a campanha eleitoral de 2016. Na ocasião, ele prometeu “buscar recursos nos projetos habitacionais do governo do Estado e governo Federal, além de cobrar agilidade nas ações do Programa Cidade Legal, do Governo do Estado, para concluir o trabalho de regularização e entregar o título de posse aos moradores [que ocupam lotes irregulares].
Em vez de cumprir suas promessas, o prefeito da cidade nem sequer providenciou um galpão para abrigar os flagelados. A defesa civil foi orientada a não distribuir garrafinhas de água para os moradores desalojados, apesar do calor desalmado e do fato de o fornecimento de água para a favela já ter sido cortado de véspera. Auxílio-moradia, então, nem pensar. De acordo com a Prefeitura de Carapicuíba não existe a obrigatoriedade do benefício nesse caso.
Uma imensa operação de guerra foi montada para forçar os moradores a sair de suas casas nas primeiras horas do dia. Centenas de policiais militares em terra, helicópteros, tropa de choque, além dos agentes fortemente armados da Guarda Civil Metropolitana de Carapicuíba, que portavam armas de canos longos, invadiram a Comunidade do Escadão a partir das 6h da manhã, enquanto máquinas retroescavadoras demoliam os barracos.
A imprensa foi orientada a cobrir todo o evento a partir de um campo de futebol, onde havia banheiros químicos e distribuição de garrafinhas de água e de kits com suquinho, sanduíche e banana. A PM bloqueava o acesso dos profissionais de imprensa ao interior da comunidade, alegando questões de segurança, já que havia fogo e demolição ocorrendo nas vielas estreitas.
O que se verá a seguir é o registro exclusivo e sem cortes obtido pelos Jornalistas Livres, que percorreram o local com uma câmera baixa, a 30-40 centímetros do chão, para não chamar a atenção dos policiais e dos agentes da Guarda Civil de Carapicuíba. O único momento em que a câmera foi levantada ocorreu durante o registro da prisão de uma moradora que tentou voltar ao barraco em vias de demolição para resgatar seu gato. Impedida de recolher o animal pelos PMs, desesperada, ela os chamou de “malditos”. Foi presa por “desacato”.
A PM bloqueava o acesso dos profissionais de imprensa ao interior da comunidade, alegando questões de segurança, já que havia fogo e demolição ocorrendo nas vielas estreitas. Mas, mesmo em áreas isentas de risco, os jornalistas eram impedidos de entrevistar moradores e trabalhadores, como se vê neste vídeo, intitulado PM TENTA IMPEDIR JORNALISTAS LIVRES DE MOSTRAR O DRAMA DO DESPEJO EM CARAPICUÍBA (SP)
Veja abaixo uma galeria de fotos da reintegração
REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM CARAPICUIBA (SP) Foto Lucas Martins Jornalistas Livres -
Dona Carmem, líder da luta por Moradia, é absolvida de acusação injusta e infamante
O juiz Marcos Vieira de Morais, da 26ª Vara Criminal de São Paulo, absolveu a dirigente do movimento de moradia Carmem da Silva Ferreira do crime de extorsão contra moradores da ocupação do Hotel Cambridge. Segundo o magistrado, as provas apresentadas, e que visavam a provar que Carmem ameaçava moradores para obter ilicitamente benefícios financeiros, não foram eficazes para gerar uma condenação.
“Com efeito, o quadro probatório é conflitante e inconcludente, sendo insuficiente para comprovar que a acusada realmente exigiu, mediante violência ou grave ameaça, das vítimas protegidas Alfa e Beta os valores mencionadas na denúncia e seu aditamento, muito menos que obteve para si ou para outrem vantagens econômicas indevidas.”
O juiz ensinou em sua sentença de 88 páginas:
“É patente a impossibilidade de configurar a extorsão, neste caso, quando a [suposta] vítima não se comporta como se atemorizada estivesse, tampouco sofre as consequências que sustentou ser inexoráveis. Oras, não se tipifica a extorsão, se a vítima não ficou atemorizada.”
Em outro ponto da sentença, o juiz apontou a falta de “credibilidade” na “prova da acusação”. Ele escreveu:
“As contradições e divergências existentes na prova da acusação, desprestigiam a sua credibilidade, mormente se confrontadas com o valor probante advindo das oitivas das testemunhas de defesa inquiridas no contraditório judicial, assim como do convincente interrogatório da acusada.”
“Se, para o recebimento da denúncia, exige-se apenas a narrativa geral da imaginada e suposta empreitada criminosa, no julgamento derradeiro deve revestir-se o decisum de fundada certeza, a partir dos elementos probatórios, de que a denunciada concorreu para a prática das infrações penais a ela imputada, e em qual medida se deu tal a sua participação.”
O xeque-mate veio nesta frase, extraída da melhor jurisprudência:
“A verossimilhança, por maior que seja, não é jamais a verdade ou a certeza, e somente esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um possível criminoso é condenar um possível inocente”.
(Ainda bem que nem todos os juízes são seguidores da estapafúrdia tese Lava-jatista, segundo a qual convicções podem substituir provas…)
A defesa de Carmem foi feita pelos advogados especialistas em Direitos Humanos e Movimentos Sociais, Ariel de Castro Alves e Francisco Lucio França. Para eles, o objetivo da promotoria, que apresentou a acusação, foi tão somente “criminalizar os movimentos de moradia”.
“As contribuições dos moradores são de fato recolhidas na ocupação, mas nunca em benefício de Carmem ou de seus parentes, mas sim porque são essenciais nas ocupações para a manutenção dos locais ocupados, já que viabilizam reformas, limpezas, projetos habitacionais e segurança, inclusive para evitar tragédias como a que ocorreu no ano passado na ocupação do edifício Wilton Paes, no Largo do Paissandu. A absolvição de Carmem consiste em decisão importante e emblemática contra a criminalização dos movimentos sociais e de moradia!”, afirmou Castro Alves.
Jornalistas Livres, que acompanham de perto a trajetória de Carmem da Silva Ferreira e da Frente de Luta por Moradia, desde 2015, jamais presenciaram qualquer atitude que desabonasse a grande dirigente. Parabenizamos, portanto, o movimento social por esta importante vitória na Justiça. Seguiremos juntos porque, como diz o lema sempre lembrado nas ocupações, “Quem Não Luta Tá Morto!”
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O MTST É GENTE ARRANCANDO A VIDA COM AS MÃOS
Em pleno 2017, período que deveria ser democrático no país, os sem-teto enfrentaram a censura que proibiu Caetano Veloso de realizar um show no acampamento do MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, na última segunda (30), mas isso não tirou a coragem dessa gente que já na madrugada da terça (31), enfrentou 23 km de caminhada, quase 10 horas de asfalto, calçadas, buracos, sol, chuva, frio e calor pra reivindicar moradia ao governador Geraldo Alckmin.
Alckmin não deve dar a menor importância para isso. E conversando com amigos sobre a admiração que tenho pelo MTST, me veio à mente a canção Linha de Montagem, de Chico Buarque, que diz:
“Eu não sei bem o que seja/Mas sei que seja o que será/O que será que será que se veja/Vai passar por lá”
estrofes que descrevem a importância dos mais de 100 mil trabalhadores sem-teto terem ido pressionar o Estado, por um direito fundamental: a moradia. Eles passaram bonito por diversas avenidas e ruas de São Paulo. De chão em chão, de casa em casa, de prédio em prédio, dos mais simples aos mais luxuosos, muita gente aplaudiu, filmou, fotografou e gritou junto em apoio ao movimento. Coisa rara de se ver em tempos de golpe. Eu senti até alguma empatia dos ricos com os mais pobres, de novo, coisa rara de se ver.
Cada rosto mostrava uma história de vida sofrida. Eu me orgulho de ter aprendido mais um pouco sobre o que é vida com aquela gente. E quero lembrar que quando Caetano Veloso deixou o acampamento do MTST, depois de proibido de cantar, ele declarou que sua canção “Gente” seria dedicada aquele povo. Acho que essa é uma verdade absoluta, pois na caminhada, vi aquela gente “arrancando a vida com a mão”, a vontade daquele povo de chegar ao QG de Alckmin era tanta, que era como se estivessem arrancando, com as mãos, dos poderosos, a vida que tem direito. A vida é o teto e o teto é a vida.
Mais uma vez, em anos de experiência no Jornalismo, as desigualdades sociais apareceram nuas e cruas para mim. Diferenças injustas, pra refletir sobre o que a classe média e as elites burguesas pensam que estão fazendo nesse Brasil. E a canção de Caetano voltou pra cabeça, e percebi que há um ponto dela que naquele momento não tem nada a ver com a realidade: “Gente quer comer/Gente que ser feliz” e eu me perguntava: como eles vão conseguir isso? Eu ficava tomada de revolta e tristeza, pois no que depender de “gente” como Alckmin, esses irmãos estão perdidos.
Minhas penas não aguentaram fazer a caminhada toda a pé. Não aguentei porque não sou de “couro grosso” igual ao Povo Sem Medo, admito. Tenho muito para aprender e viver ainda com eles. Por isso, num dado momento, pedi carona num daqueles caminhões de som e dali tive uma visão privilegiada, afetiva e extremamente emocionante.
A visão de uma massa vermelha fez meus olhos derrubarem lágrimas que eu nem percebi que estavam caído. Um jornalista da Telesur, olhou para mim e sorriu. Na minha cabeça, a massa se tornou um grande coração pulsante, vibrante. De cima, muitos olhavam para a câmera que eu carregava, eles sorriam, brincavam, cantavam como se 23 km de cansaço não fossem nada perto da história de luta de cada um deles.
Alckmin tem um Palácio para morar, trabalhar, os sem-teto tem lona levantada com madeira, em chão rústico, de mato, de rua, então, na triunfal chegada ao QG do governador, chamado ironicamente de ‘Palácio dos Bandeirantes’, eu desabei de emoção. O coração vermelho de gente, que eu avistava no trajeto da caminhada, levou vida aquela imponente construção.
Alckmin não recebeu o MTST
Embora Alckmin não tenha recebido os sem-teto, ele mandou representantes: Rodrigo Garcia, secretário de habitação e Samuel Moreira, Chefe da Casa Civil. A conversa foi dura e teve quase 3 horas de duração.
Depois de quase 10 horas de caminhada, os sem-teto mereciam mais sensibilidade. Mas porque esperar isso de alguém que vive em Palácio? Não faz sentido. Uma reunião ficou agendada para o próximo 10 de novembro. Jogaram a responsabilidade da discussão por política de moradia pra frente. Empurraram com a barriga? Não sabemos.
No dia 10 de novembro, o MTST quer respostas. Eles querem que um cadastro das pessoas que estão na Ocupação em São Bernardo do Campo seja realizado. Desejam também uma solução que busque encontrar terrenos que estão sem função social, para as pessoas serem contemplados com moradia digna e o compromisso para evitar uma reintegração de posse violenta no terreno no ABC paulista.
Linha de Montagem, de Chico Buarque, foi lançada num show 1º de Maio (álbum) em 1980.
“Gente”, canção de Caetano Veloso, foi lançada em 1977
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Retomada da Terra Sagrada
Cinco guerreiros caminham pela trilha na mata nativa. “Tudo limpo”, avisa alguém. No local escolhido, começam a limpar onde será o “Apy”, Casa de Reza, na língua Tupi. “Aqui é onde nossos filhos crescerão”, afirma Awaratan Wassu, líder indígena em Guarulhos, a 20 Km de São Paulo, capital. “Você viu que lugar lindo?”, pergunta Alex, liderança do povo Wuerá Caimbé, “ali tem um lago, ali uma nascente. Águas cristalinas”, diz com olhos de quem observa ancestrais. Enquanto os facões cortam a vegetação rasteira, chegam as mulheres com os mantimentos.
Foto: Christian Braga Rosa Pankararu é a primeira a entrar no espaço sagrado. “Paz, tranquilidade. Este local é como se eu estivesse na minha aldeia, na minha terra. A mente da gente vai longe, sabia? Acho que cada parente aqui está com a mente longe, tenho certeza que cada um está na sua terra”. Rosa nasceu em Pernambuco, na Aldeia Brejo dos Padres, vive em Guarulhos há 32 anos, onde teve dois filhos. “Nós vamos poder fazer uma casa de farinha aqui?”, grita para todos mirando longe. Respondem com sorrisos, afirmativas e exemplos de como era a casa de farinha em suas aldeias.
Área da Terra Sagrada em Guarulhos que há 40 anos está sem uso, antigamente usado para a criação de porcos. Foto: Christian Braga A aldeia multiétnica, Projeto Terra Sagrada, começou a ser gestado em 2002 pelas lideranças dos povos indígenas de Guarulhos. Em 2008 foi feito projeto junto à Prefeitura e neste ano, em abril, o Subsecretário de Igualdade Racial, de acordo com os indígenas, levou-os até duas terras, dois locais para que escolhessem onde seria a aldeia. “Aqui tem nascentes, tem mata nativa. Aqui escolhemos”, diz Alex Wuerá Caimbé. “Se é aqui que vocês querem ficar, é aqui que vão ficar, essa terra será de vocês. Não se surpreendam se em agosto tudo já estiver resolvido, disse o secretário. Gerou expectativa, fomos a nossas casas, falamos com nossos filhos, nos preparamos, fizemos um projeto para aqui viver”.
Toda a estrutura de concreto que já estava no local será derrubada e cada etnia vai ter uma área na aldeia. Foto: Christian Braga Projeto que começa com a Casa de Reza. Local onde tudo acontece, o coração da aldeia. Nele são realizados os torés, cerimônias de canto e dança para conectar com os ancestrais, a cultura e a tradição de suas etnias. Nos torés, as diferenças, as questões, as propostas da aldeia são tratadas. Ao chegarem na Terra Sagrada, a primeira providência foi limpar o terreno para fazer a Casa de Reza. Entre tirar as folhas, revirar a terra e preparar a fogueira, Xukuru explica “a casa de reza é a primeira. Nela a gente faz orações, reza, dança o toré. Casa de Reza é a base para todas as etnias, e cada um em sua área poderá fazer seu templo. Temos diferentes religiões. O importante na aldeia é estar todo mundo junto, porque para ser aldeia o índio tem que estar junto. E é importante conhecer os costumes uns dos outros, acompanhar os saberes”. Cada etnia das 14 representadas nesta retomada de terra terá uma área própria em que irá desenvolver as tradições de seu povo.
A limpeza no local foi feita rapidamente pelas nove etnias que vão morar no local. Foto: Christian Braga
“Terra é amor. Terra para índio é um sonho, o nosso sonho de consumo”, diz o líder Caimbé. Pai de quatro filhos, dentre eles um bebê de seis meses, Alex se mudou para a Terra Sagrada. “Não estamos aqui brincando de casinha, a partir de segunda-feira meu endereço e dos meus filhos é aqui”. A decisão de retomar a terra foi tomada há cerca de 15 dias após reunião das lideranças com a Prefeitura de Guarulhos. “A Terra Sagrada existe? – indagamos ao subsecretário. Ele abaixou a cabeça, cruzou as pernas e disse ‘não’. Ficamos sem chão”.
Há cerca de 1600 indígenas em Guarulhos, 14 etnias têm representantes na Associação Arte Nativa Indígena, organização com sede no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá, de acordo com seu coordenador Awaratan Wassu. “Cada povo tem seu representante”. Nenhum indígena é Guaru, os donos primeiros da terra, aqueles que deram nome a Guarulhos. Os Guarus foram exterminados, suas terras tomadas, sua cultura e tradição extintas. A retomada da Terra Sagrada é uma homenagem aos parentes, como os indígenas se consideram e se chamam, além de representar a real possibilidade de vivenciar usos e costumes, de estar em contato com a natureza e de que os donos primeiros possam cuidar da mata, do local sagrado dos ancestrais, garantindo condições de vida a povos em situação de vulnerabilidade.
A aldeia multiétnica Terra Sagrada ocupará 130 mil metros quadrados de área de mata ao norte da cidade de Guarulhos, próximo ao Rodoanel. O projeto prevê uma área comum, cujo centro é a Casa de Reza, e espaços próprios para cada etnia atuantes na Associação Arte Nativa Indígena e no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá de Guarulhos. “Já conta com uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e com a futura assistente social da aldeia”, diz Vanusa Caimbé. Para ela, morar na aldeia significa conviver com a natureza, ter hortas, plantas e não depender de remédios para uma simples dor de cabeça ou de barriga. A proposta é valorizar a cultura indígena em seus mais diferentes aspectos, dando suporte para que tradições não se percam, como no caso dos Guarus.
“Sabe aquela árvore ali que eles podaram?”, aponta a diretora da Associação Arte Nativa Xukuru, “é ameixa. Serve para fechar ferimentos, ferida de útero. É cicatrizante, une a carne. A floresta é rica em tudo. A gente pode sobreviver desta terra”. Para o líder dos Wassu e coordenador do movimento indígena, Awaratan “este é um projeto pedagógico para cultivar, preservar, viver uma cultura profundamente vinculada à sacralidade da terra. É terra indígena. Nós cuidamos da terra, preservamos a mata. Temos respeito e cuidado com a natureza”. O discurso comum das lideranças presentes na retomada da Terra Sagrada foi o de buscar evitar a destruição de mais uma área de mata em Guarulhos.
“É uma área de mata, os não-indígenas estão entrando, destruindo já, queremos reverter isso”.
Foto: Christian Braga Após a base da Casa de Reza, da fogueira pronta e do compartilhar do café, acontece a primeira dança sagrada no espaço prometido. O toré reúne saberes e ritmos. Retoma a conexão com a ancestralidade, reforça a beleza da cultura nativa brasileira.
Foto: Christian Braga | Foto: Guilherme Silva
“Não tem processo ”, foi a constatação que as lideranças chegaram na reunião com a Secretaria de Igualdade Racial. “Cadê o número do processo?”, pergunta Awaratan Wassu, “como podemos acompanhar o andamento sem um número de processo?” Ao perceberem que a Terra Sagrada pode ser promessa vazia, as lideranças indígenas decidiram retomar a terra dos Guarus.
“Hoje serão só os guerreiros, homens e mulheres. Crianças e mais mulheres entrarão no final de semana”, conta Awaratan Wasu. “A gente não quer morar em apartamento, a gente quer pisar na terra. É um direito que a gente tem, é um direito que a gente vai correr atrás”, reafirma Neide Xukuru. “Queremos conversar com o Prefeito, queremos um posicionamento”, diz Aléx Wuerá Caimbé. Na concentração da caravana em rumo à Terra Sagrada, Awaratan Wassu avisa:
“De lá eu só saio amarrado. Arrastado pelo trator”.
Histórico da Retomada Sagrada
A retomada ocorreu na tarde de 27 de outubro, sexta-feira. Após concentração no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá, uma pequena caravana levou as guerreiras e os guerreiros até imediações da Terra Sagrada, no limite das obras do Rodoanel Norte. No dia anterior, as lideranças indígenas entregaram documento com reivindicações para a Chefe de Gabinete do Prefeito de Guarulhos. Dentre elas, está a imediata cessão da terra para a construção da aldeia multiétnica e a transferência da coordenação indígena para outra secretaria. “Não estamos satisfeitos com a Secretaria da Igualdade Racial”, reafirma Awaratan Wassu.
27 de outubro de 2017 – Retomada da Terra Sagrada – entrada das lideranças indígenas na área prometida.
26 de outubro de 2017 – Entrega de documento reivindicatório da Terra Sagrada ao Prefeito de Guarulhos.
Início de outubro de 2017 – Subsecretaria de Igualdade Racial diz não ter o número do processo de efetivação da Terra Sagrada.
Abril de 2017 – Escolha do local da Terra Sagrada e compromisso da Subsecretaria de Igualdade Racial na entrega do local ainda este ano.
Janeiro de 2017 – Apresentação do projeto Terra Sagrada para a nova gestão municipal de Guarulhos.
2008 – Elaboração e entrada do projeto junto à Prefeitura de Guarulhos.
2002 – Concepção do Projeto Terra Sagrada pelas lideranças indígenas de Guarulhos.—
Texto: Caru Schwingel | Fotos: Christian Braga
Foto: Christian Braga