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  • Antígona e o direito universal de enterrar nossos mortos

    Antígona e o direito universal de enterrar nossos mortos

    Neste nosso momento, com este nosso presidente eleito, há uma significativa parcela da população que saliva por sangue. Gente que, em outros tempos, embarcaria com convicção nas cruzadas contra os mouros (ou, covardemente, apoiaria os templários da santa paz de suas casas). Essa gente, que é parte do mesmo povo brasileiro do qual faço parte, tomou ódio dos “direitos humanos”. Suponho que essa gente esteja acompanhando as notícias do dia de hoje com a mesma disposição de quem acompanha um capítulo de novela, cheio de revira-voltas. Afinal, hoje a justiça brasileira teve de decidir se Lula poderia acompanhar o enterro do irmão. Gostem de spoilers ou não, o fato é que Lula conseguiu a autorização já tarde demais, quando seu irmão já havia sido sepultado. Como se sentiu essa gente com esse desfecho?

    Posso imaginar o júbilo de grande parte dessa gente. Mas tenho fé de que muitos antipetistas, e mesmo probolsonaristas, vacilaram hoje. Há algo de profundo nos eventos desta quarta-feira, 30 de janeiro de 2019. Algo que diz respeito aos direitos humanos e que é capaz, como em toda dramaturgia clássica, transmitir ensinamentos preciosos. Diante disso, afirmo: o dia de hoje, às custas da dor de um cocidadão, generosamente explica o humano no direito.

    Sepultar um irmão é um direito tão, mas tão antigo, que o dramaturgo Sófocles escreveu, no século V antes de Cristo, uma tragédia, intitulada “Antígona”, inteira sobre esse tema. No caso, a personagem Antígona contraria as ordens do rei e sepulta seu irmão, condenado a jazer insepulto. Um corpo insepulto é a maior das desonras. Não por acaso as famílias de desaparecidos clamam pelos seus mortos. Somos humanos porque temos humanidade. E se há, nas culturas comparadas, alguns pontos convergentes, esse é um deles: mesmo os indignos têm direito à sepultura. E seus parentes têm o direito (e o dever) de enterrá-los. Por isso que nossas leis garantem aos presidiários, os criminosos condenados popularmente chamados de “bandidos”, o direito de sepultarem seus familiares mais próximos. Um irmão, por exemplo. Esse direito foi negado ao Lula.

    Antipetistas e probolsonaristas podem vibrar com a justiça brasileira ter julgado, condenado e preso um ex-presidente (certamente não compartilham da minha visão de que Lula é um preso político). Podem, inclusive, perder a compostura e rejeitar o tratamento honrado que cabe a ex-presidentes. Porém, diante dos fatos ocorridos hoje, tenho certeza de que somente os mais inumanos e crueis dos homens não empatizem com Lula. Tenho certeza de que a justiça dos homens falhou aqui e que o povo compreende isso. Porque lá dentro, em nós, há um humano compassivo que sabe que esse nosso direito soberano e universal de enterrar nossos mortos vale pra todos. Um direito que, se nos fosse negado por um Moro-Creonte, nos levaria à desobediência civil. Afinal, somos todas Antígona. Se eu fosse Lula e pudesse fugir para enterrar meu irmão, eu o faria.

    *Por Raquel Valadares, documentarista, especial para os Jornalistas Livres.

  • Formatura inclusiva deixa bolsistas de fora

    Formatura inclusiva deixa bolsistas de fora

    Um movimento de estudantes formandos em Direito na PUC-SP, formado por bolsistas do curso, tem reivindicado um processo mais transparente e inclusivo para as negociações com a comissão encarregada de organizar a formatura dos alunos de 2018.

    Após a formatura da turma de 2017, que ganhou repercussão nacional por conta do discurso da aluna Michele Alves, a questão do espaço dos bolsistas no curso e na formatura gerou discussões nas turmas de Direito na universidade. Questão colocada em pauta por diversos coletivos da própria PUC-SP como o coletivo Da Ponte Pra Cá – Frente Organizada de Bolsistas da Puc-SP e o Coletivo NegraSô, a dificuldade e preconceito enfrentados pelos bolsistas ao longo da vida acadêmica na universidade tem, normalmente, pouco espaço de discussão se não é levantada pelos próprios alunos bolsistas. A formatura de 2017 também disponibilizou três convites para cada estudante bolsista, possibilitando sua participação e a de mais dois convidados.

    A comissão de 2018, formada desde o segundo ano de faculdade dos alunos formandos (2015), para a formatura do Direito apresentou propostas para tornar, como chamou a própria comissão, o evento “a formatura mais inclusiva do brasil”: abrir um espaço específico entre os oradores, professores e alunos, para um aluno bolsista e o desconto nos ingressos para bolsistas.

    A ação foi vista como importante, mas ainda insuficiente por alunos que resolveram se incorporar ao movimento para reivindicar alguns pontos, entre os quais: 1) a mudança no processo de eleição para o orador representante dos bolsistas 2) adesão garantida para 14 estudantes bolsistas e 3) uma prestação de conta mais transparente sobre os custos do evento. Formado majoritariamente por estudantes bolsistas o movimento, que surgiu em outubro deste ano, também conta com apoio e participação de alunos não bolsistas. No entender dos bolsistas a votação para o orador que os representa deveria ser exclusiva dos estudantes bolsistas e não geral, para todos os alunos do curso de Direitos formandos em 2018. Já no quesito a inclusão dos 14 seria possível, visto o orçamento da festa a gratuidade, e para que se pudesse discutir a questão uma abertura das contas para todos os formandos. O movimento defende que seus pontos são a manutenção de conquistas garantidas na formatura de 2017, buscando evitar retrocesso de espaço de fala e representatividade.

    Para se comunicar com a comissão o movimento passou a repassar informes, redigidos coletivamente pelos seus membros, nos grupos de WhatsApp das salas. Por vezes foi necessário que um aluno de outro grupo fosse adicionado para transmitir as notas, por desconforto ou medo de represália. Também criou uma página no Facebook, chamada “Diário da #MaiorFormaturaInclusiva“, para manter atualização pública de suas notas, descrever as ações e contatos com a comissão e disponibilizar relatos.

    Após a criação do movimento a comissão se posicionou em uma nota em que dizia estar aberta ao diálogo e que vinha adotando algumas ações como adotar para “Todos os Prounistas e Fundasp 100% (“bolsistas”) contam com o desconto de 15% na adesão, desde o princípio.” e “A C18 lançou um pacote especial para os bolsistas no valor de R$150,00, com ampla possibilidade de parcelamento (o pacote “normal”, somente a colação, para formandos custa, em geral, R$1.200,00).” além de criar “um fundo solidário para apoiar a causa dos bolsistas, permitindo doações de valores através de aplicativo, e também de convites.”.

    Luiz Alberto Castro de Miranda Portásio, aluno de Direito do décimo semestre da PUC-SP, explica como entende a situação

    “Eu fico profundamente chateado com essa postura excludente por parte da comissão de formatura. Ter que fazer essas reivindicações, um ano após o discurso da Michele (na formatura de Direito da PUC 2017), e ter todas elas sumariamente negadas pela comissão, nos faz sentir estar vivendo um retrocesso. A única coisa que ameniza essa frustração é poder contar com o apoio dos colegas não-bolsistas, se manifestando solidariamente a nossa causa, assim como ver que as próximas comissões estão acompanhando nossa luta de perto e criando, desde já, mecanismos para impedir que essa situação se repita. Espero que nos próximos anos os bolsistas não se sintam desamparados nesse momento, afinal a gente sabe como é difícil nossa vida aqui dentro da Universidade ao longo desses 5 anos. Como a comissão pretende estabelecer essa ponte com os bolsistas, se a primeira coisa que eles falam para a gente, tanto seus membros individualmente quanto como o grupo, é que a formatura é daqueles que pagam por ela? Como isso pode ser visto como uma atitude inclusiva, lidando com alunos com comprovada carência financeira? Acontece que para nós bolsistas isso não é novidade. Sou ProUnista e escutei desde o primeiro ano do curso que a faculdade era de quem “pagava” por ela. Não será agora, 5 anos depois, que eu irei engolir esse discurso.”.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    A formatura de 2018 está orçada em 4,5 milhões de reais, de acordo com um dos alunos do movimento. Cada adesão custa, no pacote completo, R$ 6.099,00 para não bolsistas e R$ 5.185,00 para bolsistas. O pacote mínimo, somente a colação, é de R$ 150,00 para bolsistas e R$ 1.200,00 para não bolsistas.

    Valores dos pacotes de adesão
    Foto: Dilvulgação

    Embora não esteja distante do valor rotineiro para esse tipo de evento, em universidades privadas no Brasil, a proposta da comissão de realizar um evento inclusivo não alcançou a possibilidade financeira de alguns alunos. A adesão dos 14 bolsistas, calculada com base no último valor dado pela comissão (R$ 5.185,00), teria como custo total R$ 72.590,00, representado assim 1,6% do custo total da festa.

    O evento será realizado no dia 23 de fevereiro no salão de eventos São Paulo Expo, que cedia grande ventos internacionais como a Comic Con Experience e o Salão do Automóvel. Com ingressos avulsos, sem a possibilidade de convidados e demais práticas cerimoniais, de no mínimo R$ 460,00. As grandes atrações da noite são o cantor Wesley Safadão, um dos maiores cachês musicais do Brasil, e a banda Eva.

    Após a criação do movimento foram tentadas algumas reuniões com a comissão, sendo que só foi possível um encontro acontecido no dia 13 de novembro, no qual o movimento apresentou suas demandas para alguns integrantes da comissão. Após a reunião o movimento soltou a seguinte nota de esclarecimento:

    “No dia 13 de novembro de 2018, às 21 horas, na PUC, foi realizada uma reunião entre o Movimento de Formandos Bolsistas e a comissão de formatura C18, com participação do Centro Acadêmico 22 de Agosto. Discutimos os tópicos a seguir: 

    VOTAÇÃO DO DISCURSO:  Tendo em vista o desrespeito ao lugar de fala dos bolsistas no sistema utilizado pela C18, defendemos a realização de uma nova votação, com participação apenas de bolsistas. Apesar de somente os aderidos poderem concorrer a orador, solicitamos que os bolsistas não aderidos pudessem votar, uma vez que esse discurso busca dar visibilidade à vivência de uma minoria, existente na PUC, que se vê impedida de participar da formatura por um obstáculo financeiro. INCLUSÃO NOS EVENTOS:  Solicitamos que a comissão se comprometesse em utilizar o caixa principal da formatura para incluir todos os bolsistas não aderidos que se manifestaram pelo formulário que divulgamos. Até o momento, contamos com 14 (quatorze) bolsistas não aderidos que gostariam de participar dos eventos. Sabemos que novos interessados poderão surgir nos próximos dias, entretanto, a projeção não se distancia muito do número atual. Considerando o universo de mais 400 (quatrocentos) aderidos, o grupo que buscamos incluir é uma pequeníssima minoria numérica. Reconhecemos que os mecanismos criados para a inclusão (como rifa, vaquinha etc) são válidos, entretanto, insuficientes – como é possível perceber pelo baixo valor arrecadado até agora no fundo geral dos bolsistas. Dessa forma, destacamos que seria inviável assegurar a inclusão se possuirmos apenas esses mecanismos, que não dão a segurança de um retorno satisfatório. Por fim, enfatizamos que, caso a C18 garanta a inclusão desses bolsistas utilizando o caixa principal, nós, do Movimento de Formandos Bolsistas, nos comprometemos a trabalhar junto com a comissão, colaborando nos eventos e buscando ampliar a arrecadação desses mecanismos acessórios.  TRANSPARÊNCIA: Ressaltamos a necessidade de haver mais transparência nas ações da comissão e pedimos esclarecimentos sobre Bota-fora, Fundo Solidário, doação de convites e rifa. Também solicitamos uma nova prestação de contas, tendo em vista as novas contratações e eventos realizados nos últimos meses.  O QUE FICOU DECIDIDO? Os representantes da comissão que participaram da reunião se comprometeram em levar as nossas demandas a votação com os demais da C18. Ficou agendada nova reunião para o dia 22 de novembro, às 21h, na PUC, onde serão apresentadas respostas às nossas solicitações.”

    A comissão já tinha algumas alternativas como valores com descontos para os alunos bolsistas, a doação de convites, rifas com a venda de um Iphone, 5% do valor arrecadado com festas organizadas pela comissão desde o 3º ano de faculdade e a soma de R$ 1167,00, arrecadado por meio de convites vendidos na plataforma “Blacktag” referente a festa universitária denominada “Bota-Fora: Tropucália”, ocorrida em 1/12 . Mas o valor garantido por essas ações, até a publicação desta matéria, não somou o suficiente para cobrir a adesão de um bolsista (uma adesão de um aluno bolsista representa hoje o valor de R$ 5.185,00). Para isso a reunião marcada teria a resposta da comissão sobre as pautas apresentadas e a se daria continuação ao diálogo.

    Com relação aos valores somados pelas festas a comissão afirmou para o movimento que “Não informaremos os valores de cada evento, mas sim o que possuímos. A decisão interna da C18 após a primeira festa foi de não divulgar os lucros de nenhuma festa. Razão pela qual não iremos divulgar. Lembro vocês que esse dinheiro do caixa da c18 não tem ligação alguma ao caixa de adesão. Sendo assim, lucro do trabalho de 3 anos da comissão”.

    A reunião marcada para o dia 22 foi desmarcada e remarcada para o dia 25 de novembro. A reunião remarcada também não ocorreu, sendo desmarcada no dia anterior, motivando o movimento a convocar um ato no Campi da Monte Alegre, o principal da universidade e que cedia o curso de direito, no dia 27 do mesmo mês. Realizado na prainha, espaço comum do Campi, o ato foi uma forma de chamar a atenção de outros estudantes para a questão.

    Ato realizado pelo movimento no Campi Monte Alegre
    Foto: Juntos PUC-SP

    No dia 25 a comissão lançou uma nota em que dizia

    “A C18 discorda do Coletivo quando este alega o desrespeito ao lugar de fala dos bolsistas, vez que todos aqueles que concorreram ao pleito são bolsistas. Ficou estabelecido e foi amplamente divulgado que a C18 não interferirá no conteúdo do discurso, vez que esta preza pela liberdade de expressão, e o orador terá a liberdade para alterá-lo se assim julgar pertinente. Adicionalmente, não concordamos com o Coletivo quando este se posiciona contra o voto de não bolsistas, como foi o caso, sob a alegação de que estes não estão aptos a decidir sobre um discurso que fala sobre uma realidade a qual não vivem. Desta forma, entendemos por justa e legítima a votação realizada. Até o presente momento, nestes 3 anos que se passaram, apenas a C18 trabalhou pela inclusão dos Bolsistas nos eventos. Talvez, os mecanismos criados não sejam suficientes para uma inclusão tão ampla como buscamos – mas são um começo, e não um fim – e continuamos batalhando por todas elas, e pelas novas que surgirão. Nos causa espanto o Coletivo se comprometer em nos ajudar no desenvolvimento de medidas inclusivas apenas e tão somente se suas demandas forem atendidas, quando o contrário faria mais sentido, que é o apoio e a colaboração no alcance das metas e inclusões. Aguardamos, mas ainda não recebemos, propostas efetivas por parte do Coletivo, que promovam a inclusão dos demais bolsistas nos eventos, vez que a luta pela inclusão dos bolsistas tem sido uma pauta solitária da C18. Não há que se falar em comprometimento da C18 com a utilização do caixa principal da formatura para promover a inclusão, o caminho precisa ser construído com o envolvimento de todos, e não forçado aos aderidos, como proposto pelo Coletivo.”

    Até o presente momento não houve outra reunião, por mais que o movimento continue tentando dialogar com a comissão e a empresa contratada apara a execução da festa, a AGF 360, e continuamente seja ignorado. Com o fim do semestre a possibilidade de outra mobilização ou atos públicos se esgotou, mas o movimento continua mobilizado e atuado por meio de redes sociais.

  • Tucano preso pode votar, Lula é impedido.

    Tucano preso pode votar, Lula é impedido.

    Na manhã de hoje, Eduardo Azeredo, do PSDB, ex-governador de Minas Gerais, foi escoltado da prisão para a sua zona eleitoral. Votou sem algemas e sem farda prisional do Estado. Ele foi autorizado pelo juiz da Vara de Execuções Penais, Marcelo Augusto Lucas.

    Azeredo está preso em cela especial no Batalhão do Corpo de Bombeiros, na Avenida Afonso Pena em Belo Horizonte. Ele foi condenado por sua participação no que ficou conhecido como “Mensalão Mineiro”, ou “Mensalão tucano”, um esquema de financiamento irregular na sua campanha de re-eleição ao governo de Minas Gerais em 1998. A condenação é de 20 anos e um mês de prisão.

    A Justiça Eleitoral garante o direito ao voto de presos que não tiveram sua condenação transitada em julgada, ou seja, se ainda couber recurso.

    É o caso de Lula, preso sem provas na Polícia Federal de Curitiba, após uma condenação em segunda instância. Ainda cabe recurso. Lula, portanto, tem o direito a votar.

    O direito, no entanto, lhe foi negado.

    A defesa de Lula apresentou recursos ao Tribunal Regional Eleitoral dentro do prazo e o seu direito ao voto foi reconhecido pelos magistrados. O Juiz Pedro Luís Sanso Corat, do TRE-PR, afirmou porém que haveria uma “inviabilidade técnica”, um “obstáculo intransponível”, e admite que a Justiça Eleitoral falhou em não fornecer ao preso as garantias para o seu direito constitucional ao voto:

    “Se assim o tivesse feito, a Justiça Eleitoral estaria viabilizando o direito constitucional ao voto do ex-Presidente Lula, cabendo a outra esfera verificar os meios de deslocamento e a segurança de todos os envolvidos”

    Haveria a possibilidade de instalação de uma urna eletrônica na própria Polícia Federal de Curitiba. O juiz afirmou que seria necessário que pelo menos 20 presos manifestassem o desejo de votar. A Polícia Federal, porém, não informou quantos presos o fizeram.

    O juiz admite ainda que Lula protocolou o pedido dentro do prazo correto.

    Lula apóia publicamente a candidatura de Fernando Haddad à presidência da república.

    É um caso de justiça que tarda e falha. Resta saber porque tardou e falhou contra Lula, mas foi ágil e eficiente na concessão a um Tucano.

  • A canção “Tempo Perdido” na festa-baile de Dias Toffoli

    A canção “Tempo Perdido” na festa-baile de Dias Toffoli

    Por Paulo César de Carvalho

    De volta aos anos 80: em busca do tempo perdido

    Em 1986, no contexto da grave crise econômica do governo de José Sarney, o jovem José Antonio Dias Toffoli iniciou o curso de Direito na USP. No mesmo ano do “Plano Cruzado”, a banda “Legião Urbana” lançou o hit “Tempo Perdido”.

    No dia 13 de setembro de 2018, cinco meses depois da prisão de Lula, o ministro Dias Toffoli assumiu a Presidência do Supremo Tribunal Federal. Na festa que sucedeu o rito, Sua Excelência cantou os mesmos versos de Renato Russo dos tempos em que ainda era calouro: “somos tão jovens/tão jovens”.

    https://www.youtube.com/watch?v=lQCkTEg1RKA

    Em 1987, no ano da “Constituinte”, em que a banda de Brasília tocou em todos os cantos do Brasil o hino “Que País é Este?”, Toffoli era da base de apoio do Centro Acadêmico XI de Agosto. Em 1988, no histórico “porão” da faculdade, quando o futuro ministro ainda era “tão jovem”, ecoavam nas mesas os versos do rock de protesto, entre debates calorosos e copos de cerveja quente: “ninguém respeita a Constituição/ mas todos acreditam no futuro da nação”.

    Em 1989, nas primeiras eleições diretas depois de vinte e cinco anos do famigerado Golpe de 1964, Toffoli, já diretor do Centro Acadêmico XI de Agosto, fez campanha para “Lula Presidente”. Com a bandeira vermelha na mão, a estrela no peito e o PT na boca, o futuro presidente do STF fez coro ao jingle: “Lula Lá/ Brilha uma estrela/ Lula Lá”.

    Em 12 de março de 2007, vinte anos depois que cantou “Que País é Este” com a “Legião”, ele foi nomeado Advogado-Geral da União por Luiz Inácio Lula da Silva. O seu candidato, derrotado por Fernando Collor em 1989, chegou enfim à Presidência da República nas eleições de 2002, sendo reeleito vinte anos depois que o calouro de Marília (SP) cantou pela primeira vez “Tempo Perdido”: “Não tenho mais o tempo que passou/ Mas tenho muito tempo/ Temos todo o tempo do mundo”.

    O garoto católico do interior chegou à capital acreditando que Renato Russo era mesmo um “profeta”, como se lhe dissesse que, no “Faroeste Caboclo” de cada dia, ele seria um abençoado “José de Santo Cristo” que daria certo na vida. Sem tempo perdido, em pouco tempo (com o perdão do trocadilho), no dia 23 de outubro de 2009, vinte anos após a vitória de Collor, José Antonio Dias Toffoli se tornaria “Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil”, promovido novamente por Luiz Inácio Lula da Silva.

    Como “o tempo não para” (evocando a canção de Cazuza de 1988, quando Toffoli foi eleito diretor do XI de Agosto), hoje o seu “benfeitor” está preso há quase seis meses: o agraciado com a “benção”, contudo, fez coro com a turma de juízes da “Santa Inquisição”, negando o “golpe parlamentar” que, afinal, conduziria à prisão do “padrinho”.

    Aquele estudante de Direito ainda “tão jovem” em 1986, que se dizia “socialista” (sempre reformista, nunca amou a revolução), que organizou o núcleo do PT no Largo de São Francisco, que gritou “Lula Lá” na Praça da Sé em 1989, é hoje este ministro que votou pela “terceirização das atividades-fim”, ajudando a legitimar a perda de direitos da classe trabalhadora imposta pela cruel “reforma trabalhista”.

    Nesse “flashback” oitentista, para evitar os contraditórios “ajustes fiscais” com o presente, Toffoli diria em sua defesa, parafraseando a máxima do antecessor de Lula na Presidência: “esqueçam o que defendi”. Na grande festa do dia 13 de setembro de 2018, a presença dos antigos companheiros do Centro Acadêmico XI de Agosto cumpriu importante papel para que a tragédia do passado não parecesse a farsa do presente (será que todos leram “A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” de Marx?). Enfim, ao lado de antigos diretores e presidentes do “XI”, é como se todos estivessem reunidos para simular o que nunca foram, dissimulando o que já eram quando cantaram em uníssono com Sua Excelência, pela primeira vez, “Tempo Perdido”.

    Nesse “revival” dos anos oitenta, ninguém estava preocupado, por exemplo, com o golpe e a prisão de Lula, ou com os votos de Toffoli contrários aos interesses dos trabalhadores e favoráveis aos privilégios corporativos, ou com a nomeação de um militar como seu assessor. Os colegas do ministro não queriam saber se ele estava sentado ao lado de Temer, o mesmo que deu o golpe não reconhecido por Toffoli.

    Os amigos dos tempos do XI, pseudo-socialistas tão adaptados à ordem quanto o PT, não estavam preocupados com princípios: todos estavam orgulhosos do amigo que chegou ao topo do Everest da carreira. Todos queriam apenas se divertir um pouco e se sentir vitoriosos com o triunfo do amigo, sem nenhum peso na consciência. Depois da festinha em Brasília, enfim, todos voltaram para casa lembrando os versos de Renato Russo, felizes com o reencontro: “Todos os dias antes de dormir/ Lembro e esqueço como foi o dia/ Sempre em frente/ Não temos tempo a perder”.

    *Paulo César de Carvalho (Paulinho) é militante da RESISTÊNCIA-PSOL e foi diretor do XI de Agosto em 1990.
    Foto: Renato Russo, em show com a Legião Urbana. Divulgação, em Gazeta do Povo.


    Esquerda Online

  • Lideranças feministas fazem atos de apoio à descriminalização do aborto pelo país

    Lideranças feministas fazem atos de apoio à descriminalização do aborto pelo país

    Por Tuka Pereira, especial para os Jornalistas Livres

    O Supremo Tribunal Federal (STF) terá audiências públicas nesta sexta-feira (3) e segunda-feira (6) para decidir sobre a descriminalização da interrupção da gravidez em até 12 semanas de gestação. Em discussão estão os artigos 124, que criminaliza a mulher (detenção de 1 a 3 anos) e 126, que criminaliza quem provocar o aborto (pena de 1 a 4 anos de reclusão), incluindo profissionais da saúde.

    Nas audiências, que serão conduzidas pela ministra do STF, Rosa Weber, serão ouvidas cerca de 60 especialistas na sala de sessões da Primeira Turma do STF selecionados entre os mais de 180 pedidos recebidos para falar na audiência. Entre os participantes estão médicos, juristas, religiosos e ativistas brasileiros e estrangeiros escolhidos com base na representatividade, qualificação técnica e na pluralidade de suas opiniões.

    Vários movimentos feministas estão organizando atos de apoio à legalização do aborto para reforçar as audiências públicas em várias capitais do país. No Rio de Janeiro, no sábado, 8, acontece a ” Marcha pela Legalização do Aborto na América Latina”. A concentração do ato começa às 16h, em frente à Alerj e às 18h, se inicia a marcha até a Cinelândia.

    Em Brasília, o grupo “Nem Presa, Nem Morta”, realizará entre os dias 3 e 6 de agosto, o “Festival Pela Vida das Mulheres” com uma programação que inclui palestras, debates e atrações musicais.

    Neste dia 03 de Agosto, em Curitiba, a Frente Feminista fará a transmissão ao vivo da audiência pública, das 8h30 às 18h, no TeUNI, da Universidade Federal do Paraná, na Praça Santos Andrade. A partir das 18h, será realizado um o “Ato Pela Descriminalização do Aborto e Pela Vida das Mulheres” em frente ao prédio histórico da UFPR com presença de lideranças femininas que fomentam o debate do aborto legal e seguro na capital paranaense.

    Taysa Scchiocchet, professora de direito da UFPR, Letícia Kreuz, doutoranda em direito da UFPR, Nicolle Schio, médica pediatra, Valéria Fiori, militante que esteve à frente das mobilizações pelo aborto legal na Argentina, Alarte Martins, doutora em saúde pública, são alguns dos nomes que participarão do evento.

    “A descriminalização do aborto é necessária não apenas para minimizar o número de mortes de mulheres, especialmente as pobres e negras, mas também para reconhecer uma prática existente que a lei não consegue inibir. É preciso lidar com este assunto lhe dando a devida importância, criando políticas públicas a fim de conscientizar a população sobre o que está acontecendo em nossa sociedade. A legalização do aborto se trata de uma necessidade e uma questão de saúde pública”, afirma Josiany Pereira, uma das advogadas colaboradoras do movimento Nem Presa, Nem Morta.

    Hoje, o aborto é permitido em três casos: estupro, risco de vida da mulher e feto anencéfalo – nas duas primeiras situações há previsão legal e na última a autorização foi dada pelo STF.

     

  • Concurseiros decidem os destinos da Nação

    Concurseiros decidem os destinos da Nação

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia

    Durante cinco anos, trabalhei em uma das maiores universidades particulares do Brasil. Aquela onda operário, professor horista, salário dependendo da quantidade de turmas.

    Lecionei para tudo quanto foi curso: moda, administração, pedagogia, história, direito.

    O curso de direito é o grande filão de mercado desse tipo de empresa. Duas coisas sempre me impressionaram, desde a primeira vez em que atuei no curso de direito: as expectativas dos alunos e o perfil dos professores.

    A grande maioria dos alunos não buscava os estudos jurídicos movida pela ideia de vocação ou pela vontade de estudar as leis como um exercício de compreensão da realidade. Quase todos viam a universidade como um tipo de curso preparatório para concursos públicos.

    O concurso público era visto como um fim em si, e não como uma forma de ter acesso ao emprego público e colaborar com a sociedade. O objetivo era o emprego público, pouco importando qual fosse o cargo ou a natureza do trabalho.

    Não havia muito interesse em discutir, em ler nenhum assunto que não fosse considerado algo absolutamente necessário para o sucesso no concurso público. O curso de direito naquela universidade particular era pouco mais que isso: fábrica de concurseiros.

    O pior é que a mentalidade dos professores, dos meus colegas, não era muito diferente. Não era mesmo.

    Convivi com Delegados, Juízes, Advogados, Procuradores, Desembargadores. Uma gente bem vestida, os homens trajando terno e gravata, as mulheres com saia social, saltão.

    Alguns eram um tanto cafonas: relógios grandes e dourados, bolsa com estampa de vaquinha, de oncinha. Confesso que de vez em quando eu debochava mentalmente. Ora ou outra nem tão mentalmente assim. Acho que por isso a galera não gostava muito de mim.

    Enfim.

    Fato é que a convivência sempre foi tensa, agônica, conflituosa, principalmente depois de 2014, quando a crise institucional ficou mais aguda. A sala dos professores se tornou um verdadeiro círco de horrores.

    Colegas, professores, que não cultivavam hábitos intelectuais, que não tinham interesse em nada que não tivesse diretamente relacionado ao seu cotidiano de trabalho: não liam literatura, não visitavam exposições de museus, não consumiam cinema, não frequentavam teatros.

    Sempre aqueles códigos criminais pesadíssimos na mão, só os códigos. Nenhum Gabriel Garcia Marques, nada de Clarice ou Guimarães Rosa. De Machado de Assis só ouviram falar.

    Vivem nomalmente sem conhecer os filmes de Woddy Allen, Almodóvar, Scorsese, sem ter quase contato com os grandes empreendimentos da inteligêngia humana.

    Os profissionais mais importantes para a manutenção do contrato social não têm formação humanista, nenhuma formação humanista.

    A maior parte dos meus colegas, que tem a função de arbitrar o conflito social, de zelar pelo bem comum, trata a lei como um manual, como uma receita de bolo.

    E aí vocês podem imaginar, né? O círculo vicioso se completa: os alunos chegam com mentalidade de concurseiro e isso é alimentado pelos professores.

    Resultado: todo semestre a universidade não diploma operadores do direito, pessoas sensíveis às questões sociais, capazes de tratar a lei como aquilo que ela é: um complexo experimento sociológico. A universidade forma concurseiros.

    Concurseiros formando concurseiros. Todos preocupados em marcar o “X” no lugar certo e assim garantir um emprego estável e os privilégios que o Poder Judiciário entrega numa bandeja aos seus servidores.

    São essas pessoas que estão decidindo os destinos da nação. Somos a República dos Concurseiros.