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    MÍDIA, MENTIRAS E INTERVENÇÃO MILITAR

    ARTIGO

    Angela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

     

    O Queiroz finalmente foi preso. Estava em Atibaia, na Grande São Paulo, em uma residência, disfarçada como escritório, de propriedade do advogado do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente da República.
    A prisão aconteceu nesta quinta-feira (18/6) depois de um fim de semana marcado por atos antidemocráticos, que tentaram colocar em xeque a autoridade do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, exigiam intervenção militar e a volta da ditadura.
    Em qualquer país do mundo, que se pretenda minimamente democrático, atos assim são considerados terroristas e tratados como tal. O agravante, no caso brasileiro, é que esses atentados foram cometidos por apoiadores do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e, pior ainda, estimulados por declarações que ele vem fazendo em meio ao caos econômico e à pandemia de covid-19.
    No domingo (14/6), um dos acusados de soltar rojões em frente ao STF, em Brasília, Renan Sena também foi preso. Seu celular será periciado, mas já se sabe que o teor das trocas de mensagens é bombástico, porque demonstra sua ligação com figuras de peso do governo federal.

    Nesse mesmo dia, o agora ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, aquele que durante reunião ministerial disse que “tinha que botar todos os vagabundos na cadeia, começando pelo STF”, não só estava entre os manifestantes, como se encontrava em lugar público sem máscara para proteção contra o covid-19. Em função do cargo que ocupa, não foi preso, mas terá que pagar multa. Sua permanência na equipe de Bolsonaro, que já era muito complicada, tornou-se quase impossível.
    No dia anterior, um grupo de 78 militares reformados (entre os signatários estão 12 brigadeiros, cinco almirantes e três generais) havia lançado manifesto contra o ministro do STF, Celso de Melo, relator das investigações que apuram as acusações feitas pelo ex-ministro Sérgio Moro de que Bolsonaro estaria interferindo politicamente na Polícia Federal. O manifesto, com pesadas críticas a Celso de Melo, parece ter garantido ânimo aos manifestantes.

    O repúdio de setores dos militares reformados começou depois que o ministro do STF disse que os generais que ocupam cargos no Palácio do Planalto deveriam depor como testemunhas no inquérito. Caso não comparecessem, poderiam ser conduzidos “debaixo de vara”, termo jurídico que significa serem obrigados a comparecer. A tentativa de intimidação dos militares reformados não surtiu efeito. Entre segunda e terça-feira, a Polícia Federal prendeu seis pessoas e cumpriu 21 mandados de busca e apreensão solicitados pela Procuradoria-Geral da República e autorizados pelo ministro do STF, Alexandre de Morais. Entre os presos estão a militante de extrema-direita, Sara Giromini, que usa o pseudônimo de Sara Winter em homenagem a uma espiã nazista.
    Já entre os alvos de busca, apreensão e quebra de sigilo bancário estão além de 11 parlamentares (dez deputados e um senador), blogueiros e youtubers, o publicitário Sérgio
    Lima e o empresário Luís Felipe Belmonte, ligados ao Aliança pelo Brasil, partido que o
    presidente da República pretende fundar, desde sua saída do PSL, no final do ano passado.
    Todos são bolsonaristas de carteirinha. Possuem fotos e imagens ao lado do “Mito” e estão
    sendo acusados de financiamento e/ou envolvimento com redes de fake news.

    Na noite de terça-feira, através de uma sequência de tweets, Bolsonaro postou que irá tomar “todas as medidas legais” para proteger seus aliados investigados pelo Supremo. Ele frisou também que não vai “assistir calado” enquanto “direitos são violados e ideias são
    perseguidas”. Na manhã de ontem (17/06), respondendo a pergunta de uma apoiadora no
    jardim do Palácio da Alvorada, disse que houve abuso na operação autorizada pelo STF contra
    seus aliados e que “está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”.
    Não por acaso, o governo Bolsonaro foi o único num total de 132 países de todo o mundo que
    não aderiu a uma iniciativa para estabelecer o compromisso de não difundir desinformação
    em meio à pandemia de covid-19. Até aliados de Bolsonaro como Israel, Hungria e Estados
    Unidos assinaram. Na América do Sul, só o Brasil ficou de fora desse compromisso.
    Enquanto a temperatura entre Bolsonaro e os demais Poderes sobe, a popularidade do
    presidente derrete de forma acelerada. A soma dos que consideram seu governo ruim ou
    péssimo já está em torno de 50%, ao mesmo tempo em que piora acentuadamente a
    expectativa para o restante do seu mandato.

    O caos em que Bolsonaro e seus apoiadores transformaram o Brasil não aparece como tal na mídia corporativa, também autodenominada grande mídia, mas tem sido alvo de frequentes reportagens e comentários em jornais, revistas e TVs de todo o mundo. Com exceção de veículos do Grupo Globo, os demais têm feito de tudo para transmitir a imagem de que “as instituições estão funcionando”, e que os problemas, quando não há como sonegá-los da população, são atribuídos aos “inimigos do Brasil”, aos que querem atrapalhar o governo, enfim aos “esquerdistas e comunistas”.
    Depois de 18 meses à frente do Palácio do Planalto, Bolsonaro não tem nada, mas exatamente nada, para apresentar como obra ou ação de seu governo a não ser criar todo tipo de problema interno (com mulheres, negros, índios, LGBTs, ambientalistas, professores, estudantes, cientistas, aposentados, pequenos e médios empresários, artistas) e externamente transformar o Brasil, de um protagonista respeitado, em pária mundial.
    Sem qualquer explicação a não ser o alinhamento e a subserviência aos interesses dos Estados Unidos, o governo Bolsonaro passou a hostilizar a Argentina, quase declara guerra à Venezuela, criticou a França, Alemanha e Noruega e não tem medido estocadas contra a China. Detalhe: China e Argentina são, respectivamente, o primeiro e o terceiro parceiros
    econômicos do Brasil.

    Ao contrário do que tenta argumentar o ministro da Economia, Paulo Guedes, não foi a
    pandemia que criou o caos em que o país se encontra. O caos já estava instalado. O Brasil
    fechou 2019 – o quarto ano após a deposição de Dilma Rousseff – com recordes históricos
    negativos: quase 12 milhões de desempregados, cerca de 40 milhões de pessoas trabalhando
    na informalidade, a doença e a fome voltando a se instalar entre os mais pobres e os novos
    pobres.
    O Brasil não quebrou ainda, devido às reservas de 390 bilhões de dólares deixadas pelos
    governos de Lula e Dilma. Reservas que Guedes e a própria mídia reconhecem como sendo a
    âncora do país. Só que tanto Guedes quanto a mídia se esquecem de acrescentar que elas
    foram fruto dos governos petistas, aqueles que, segundo essa mesma mídia, “quebraram o
    Brasil”.
    Há três meses, o covid-19 fazia sua primeira vítima fatal e de lá para cá o Brasil já se aproxima das 50 mil mortes e de um milhão de infectados. Isso, segundo dados oficiais. Como há uma enorme subnotificação, os números reais são muito maiores, podendo ser multiplicados por no mínimo seis. Em outras palavras, o Brasil já superou os Estados Unidos, transformando-se no epicentro mundial da pandemia e não há sinal de que a curva esteja prestes a começar a descer.
    Em plena pandemia, no entanto, o Brasil continua sem ministro da Saúde. O ocupante interino do cargo, cuja interinidade parece que será permanente, Eduardo Pazuello, é um general com especialização em logística. Os outros 22 militares que passaram a atuar na Pasta também não são do ramo. Os dois ministros que o antecederam nesse governo, ambos médicos, saíram, por discordâncias com Bolsonaro querer “receitar” cloraquina – uma droga no mínimo controvertida – para os tratamentos contra a covid-19, e ameaçar prefeitos e governadores que defendem o isolamento social.
    Por si só, o descaso de Bolsonaro para com o combate à pandemia seria motivo de sobra para que fosse aberto processo de impeachment contra ele. O presidente da Câmara dos
    Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já coleciona em seu poder 35 pedidos nesse sentido,
    oriundos de partidos políticos, entidades da sociedade civil e até de cidadãos comuns. Maia
    resolveu deixá-los na gaveta, por considerar que o momento “não é oportuno”.
    A mídia corporativa brasileira também não considerava o momento “adequado” para tratar do assunto. Talvez a prisão do Queiroz possa contribuir para que mude de ideia. Mesmo o Grupo Globo, que nos últimos meses passou a fazer críticas a Bolsonaro e à sua péssima atuação em relação à pandemia, não parecia nada disposto a colocar em pauta o  ]impeachment, ao contrário do que fez com Dilma Rousseff.
    Nas demais TVs, Bolsonaro continua nadando de braçadas e o apoio a ele nos telejornais pode
    até aumentar com a nomeação do deputado Fábio Faria (PSD-RN) genro de Sílvio Santos, dono
    do SBT, para o ministério das Comunicações. É importante lembrar que o ministério das
    Comunicações foi recriado para abrigar um integrante do “Centrão” e contemplar a mídia
    “chapa branca”, sempre de olho nas verbas oficiais de publicidade, que, apesar da crise, não
    param de crescer.

    Quem se lembra que Sílvio Santos mandou tirar do ar o Jornal do SBT, principal telejornal de sua emissora, no sábado, dia 23/05? Motivo: o Planalto não havia gostado da cobertura do dia anterior sobre a reunião ministerial que teve o sigilo levantado pelo STF. A truculência da ação de Santos, sem paralelos na história da mídia brasileira, revoltou até as emissoras afiliadas ao grupo, com vários “rebatizando” a sigla como Sistema Bolsonarista de Televisão.

    Mas se o apoio ao governo justifica o fato de que parte da mídia não abordava o tema impeachment, o que leva o Grupo Globo, que agora se coloca na oposição, a também, até agora, ter fugido do assunto? Será que a prisão de Queiroz e os desdobramentos que ela certamente trará vão alterar essa situação?
    O acompanhamento atento dos noticiários do Grupo Globo (O Globo, G1, CBN, TV Globo, GloboNews, Época, Valor Econômico) indica que os problemas da família Marinho com o governo se limitavam aos “excessos” de Bolsonaro e de alguns de seus ministros “terra plana” como Damares Alves, Abraham Waintraub e Ricardo Salles. Guedes continua sendo queridinho da família, que defende com unhas e dentes a sua agenda ultraliberal para o Brasil (redução de direitos sociais, estado mínimo, privatizações, submissão aos interesses dos Estados Unidos).

    Em outras palavras, para a família Marinho, pouco importa quem seja o ocupante da
    presidência, desde que a agenda ultraliberal continue sendo adotada e aprofundada e que o
    PT não retorne ao poder. Foi para isso que ela teve participação tão intensa no golpe,
    travestido de impeachment, contra Dilma. Foi para isso que ela jogou pesado em 2018 para
    que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse preso e não pudesse disputar as eleições.
    O sonho da família Marinho e da “elite do atraso” da qual é parte, sempre foi emplacar na
    presidência da República um candidato de centro, que poderia ser desde o seu funcionário e
    apresentador Luciano Huck até o banqueiro João Amoêdo, passando por Henrique Meirelles,
    Álvaro Dias e Geraldo Alckmim. Como nenhum deles decolou nas pesquisas de opinião pública,
    a solução, para neutralizar Lula e o PT, acabou sendo apoiar Bolsonaro.
    Nesse processo de estimular e ampliar o ódio ao PT, a Globo, mas não só ela, também se valeu de fake news. Exemplos?
    A condenação, sem provas, de Lula, seguida por sua prisão é fruto, em grande medida das mentiras que a mídia, Globo à frente, pregou ao povo brasileiro. A tentativa de comparar Lula, um humanista, a Bolsonaro, um autoritário com nítidas inclinações fascistas, é outro exemplo dessas mentiras estampadas em jornais como o Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo.
    A mídia corporativa se aproveita do senso comum, que ela mesma difundiu, de que é independente e que apenas apresenta a verdade ou a realidade ao seu público, para divulgar, como notícia, os seus próprios interesses. Para essa mídia é muito confortável, agora, em que o caos está instalado, tentar jogar a responsabilidade por iludirem o povo brasileiro exclusivamente nas fake news, no “Gabinete do Ódio” e nos militantes bolsonaristas.

    Não resta dúvida que eles possuem enorme responsabilidade pelas mentiras que são contadas diariamente aos brasileiros. A título de exemplo, basta lembrar que relatório produzido a pedido da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News identificou mais de 2 milhões de anúncios pagos pela então Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República em sites de fake news e até de pornografia. Muitos deles são exatamente os que agora estão sob investigação.
    Só que essas mentiras não surtiriam efeito se não tivessem tido e não continuassem tendo o beneplácito ou mesmo o apoio da mídia corporativa, quando lhe é conveniente. Exemplos? Quando o grupo Globo, mesmo agora que se posiciona de forma crítica contra Bolsonaro e é ameaçado com censura e não renovação da concessão, fez alguma reportagem investigativa sobre o teor das fake news? Qual veículo da mídia corporativa teve a coragem de romper com a farsa do tríplex atribuído a Lula? Qual veículo dessa mídia resolveu ir fundo nas denúncias que o advogado Tacla Durán quer fazer contra a turma da Operação Lava Jato em Curitiba? Qual veículo se dispôs a investigar, para valer, as denúncias envolvendo o clã Bolsonaro? Qual veículo de mídia investigou a fundo o paradeiro de Queiróz e suas ligações com o clã Bolsonaro?
    Enquanto a mídia corporativa, inclusive a Globo, em última instância, passava pano para Bolsonaro, ele se sentia cada dia mais à vontade para fazer ameaças, aprofundar crises e tentar estabelecer clima para um golpe de estado, na realidade um autogolpe.
    Como não existe nenhuma força política interna ou externa ameaçando-o politicamente (corrupção é crime previsto no Código Civil), um possível golpe teria como objetivo apenas ampliar os seus poderes. Algo como governar de forma absoluta, livre dos freios e contra freios do Legislativo e do Judiciário, como acontece apenas nas ditaduras.
    É interessante observar como todas as crises no governo Bolsonaro são provocadas por ele,
    por seus filhos ou por gente muito próxima a eles. Crises quase sempre seguidas por ameaças
    autoritárias e insinuações de que, com o apoio dos militares, que já estão em seu governo,
    poderia haver um endurecimento “em nome da democracia” ou “em defesa da democracia”.

    Essa retórica propositalmente confusa acaba sendo reproduzida e amplificada pelas fake news.
    É ela que está na origem de termos como “intervenção militar constitucional” ou “ditadura
    militar democrática”, que povoam cartazes de apoiadores de Bolsonaro em manifestações.
    Como nenhum dos que gritam esses slogans consegue explicar o que seria uma ditadura
    militar democrática, acabaram sendo apelidados de “gado”, por apenas seguirem o berrante
    do dono. No caso, uma manada cada dia mais agressiva e reduzida.
    Os “300 do Brasil”, de Sara Giromini, não passam de uns 30 gatos pingados. Até no
    “curralzinho”, armado pelo governo na saída do Palácio da Alvorada, a militância bolsonarista
    dá sinais de desalento. Tanto que os gritos de “Mito” deram lugar a cobranças em relação ao
    número de mortos pela pandemia e à inação do governo.
    Irritado com as cobranças, Bolsonaro estuda por fim ao “curralzinho”, ao mesmo tempo em
    que vem redobrando as insinuações de que teria apoio dos militares para um endurecimento.
    Sintomaticamente, Bolsonaro ainda não falou nada depois da prisão de Queiroz.
    A exceção dos militares que ocupam cargos em seu governo – perto de 2.500 – e dos de pijama
    que assinaram o manifesto, não se tem notícia de postura inquieta nos quartéis. Ao contrário.
    Mesmo as informações sobre esse setor sendo poucas, o que se sabe é que os militares não
    demonstram entusiasmo para aderir a uma aventura antidemocrática como parece desejar
    Bolsonaro.
    Pesquisas divulgadas nos últimos dias apontam para um visível desgaste na imagem dos
    militares brasileiros junto à opinião pública, exatamente pela excessiva aproximação e
    participação no governo Bolsonaro. O caso do ministério da Saúde é o mais sintomático. Em
    outras palavras, as críticas ao governo Bolsonaro estariam contaminando a própria imagem
    dos militares enquanto instituição.
    Um autogolpe do capitão, respaldado pelos militares, teria ainda muitos problemas com os
    quais se defrontar. Como se sustentaria interna e externamente? Com a crise econômica se
    aprofundando, a saída da pandemia, que ainda parece distante, promete ser nada alentadora.
    Basta lembrar que a queda na venda do comércio, em maio, foi a maior nos últimos 20 anos, e
    os dados da produção industrial estão descendo ladeira abaixo.
    Donald Trump, em plena campanha eleitoral para a reeleição, não parece disposto a apoiar
    uma aventura desse tipo por parte de seu declarado “love”. As Forças Armadas dos Estados
    Unidos certamente não demostrariam simpatia por seus colegas brasileiros, especialmente

    depois que a maior autoridade militar do país, general Mark Milley, pediu desculpas por “sua
    presença em ato ao lado de Trump ter criado a percepção de envolvimento dos militares na
    política interna”.
    O discreto comandante do Exército brasileiro, general Edson Leal Pujol, certamente viu com interesse essa declaração do colega. É desnecessário lembrar a diferença que existe entre Pujol e, por exemplo, o general Luis Eduardo Ramos, que ocupa a Secretaria de Governo de
    Bolsonaro. Mesmo descartando golpe militar, Ramos não deixou de advertir a oposição para “não esticar a corda”. Foi com Pujol e não com Ramos que o ministro do STF, Gilmar Mendes,
    manteve um encontro reservado no fim de semana, no qual, obviamente, o enfrentamento aos atos antidemocráticos esteve em pauta.
    Uma aventura golpista traria ainda problemas extras como criar novas dificuldades para o
    Brasil junto à comunidade internacional, afastar investidores e condenar o país a um isolamento político e econômico maior e mais profundo do que o já experimentado. Em síntese: mesmo que um autogolpe ou algo no gênero se concretizasse, sua continuação seria pouco provável.
    Quanto ao futuro imediato, como lembra a ex-presidente Dilma, “parte da direita rompeu com
    o neofascismo, mas sustenta o neoliberalismo de Guedes”. O que explica o fato de os pedidos de impeachment contra Bolsonaro não andarem na Câmara dos Deputados e explica, também, como o próprio STF, antes tão complacente com todos os ataques à democracia, finalmente resolveu reagir.
    Paralelo a isso e tendo em vista o aprofundamento da crise econômica e sanitária, os verdadeiros manifestantes em defesa da democracia e contrários a Bolsonaro estão de volta às ruas. Espera-se igualmente que a Justiça mantenha a disposição de ir fundo no desbaratamento da rede de fake news e na criminalização de seus financiadores e divulgadores. Espera-se também que Queiroz não tenha nenhum infarto ou coisa que o valha e possa falar sobre tudo o que sabe. Se isso acontecer, dificilmente o coração do bolsonarismo não será atingido.
    Os próximos dias prometem muitas emoções.

     

     

  • A oposição conservadora da mídia da ‘Casa Grande’ e as fake news

    A oposição conservadora da mídia da ‘Casa Grande’ e as fake news

     

    Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Por falta de segurança para realizarem seu trabalho, os repórteres das TVs Globo e Band, da Folha de S. Paulo e do portal UOL não vão mais cobrir a entrevista matinal de Bolsonaro, na saída do Palácio da Alvorada. A decisão foi tomada por essas empresas, uma vez que o “cercadinho” destinado à imprensa fica colado ao local de onde os apoiadores do “Mito”, alguns extremamente exaltados, ameaçam os jornalistas.
    O próprio Bolsonaro já ameaçou cassar a concessão da TV Globo e cortar a publicidade do governo federal na “Folha”. A cada dia, Bolsonaro vem subindo mais o tom das críticas aos profissionais e aos veículos que divulgam notícias que o desagradam. Enquanto isso, a reação da mídia brasileira, quando acontece, se mantém tímida e circunscrita a alguns poucos assuntos.
    A título de exemplo, enquanto a mídia internacional, há meses, chama Bolsonaro pelo
    que ele realmente é – um presidente fascista que está destruindo o Brasil – aqui, a mídia hegemônica, também conhecida como mídia da “Casa Grande”, insiste em tratá-lo por presidente. A mídia da “Casa Grande”, por exemplo, não faz qualquer menção à eleição fraudada de 2018. Fraudada por fake news e também pelas matérias tendenciosas e distorcidas por ela publicadas ao longo de anos.
    Nas redes sociais e em inúmeros grupos de Whatsapp, as questões envolvendo Bolsonaro e essa mídia estão cada dia mais polarizadas. De um lado, os apoiadores do capitão reformado insistem em afirmar que a Rede Globo e qualquer outro veículo que o critica “é comunista” e, de outro, os que defendem que essa mídia mudou.
    Já em locais sombrios da internet, continuavam sendo produzidas e divulgadas fake news sobre os mais diversos assuntos. Estavam em alta as “fakes” dando como certa a intervenção militar, as que insultavam os ministros do STF e as que desacreditavam a ciência e a quarentena em se tratando do combate ao covid-19.

    Razões que levaram o ministro do STF, Alexandre de Moraes, no âmbito do processo
    aberto naquela Corte em 2019 para investigar o uso de fake news e a disseminação de
    discursos de ódio, ter determinado, na quarta-feira (27/5), a busca e apreensão de
    material junto a 29 suspeitos – entre empresários e blogueiros -, ter quebrado os sigilos
    fiscal e bancário deles (de agosto de 2018 a maio de 2020) e determinado que sete
    parlamentares prestem esclarecimentos.
    Entre os suspeitos que tiveram seus sigilos fiscal e bancário quebrados estão o
    empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan, o dono da rede de academias Smart
    Fit, Edgard Gomes Corona, Wiston Rodrigues, que coordena o Bloco Movimenta Brasil,
    e a blogueira Sara Winter. Os quatro, bolsonaristas de primeira hora. Todos devem ser
    ouvidos pela Polícia Federal nos próximos dias.
    O resultado disso tudo tem sido uma enorme confusão na cabeça do cidadão comum.
    E não é para menos. Daí a importância de se entender esse aparente novo
    posicionamento de parte da mídia corporativa brasileira, o impacto das fake news
    nesse contexto e o que isso tem a ver com os interesses da oposição conservadora.

    Racha das TVs

    Essa é uma das poucas vezes, em mais de três décadas, que as seis famílias que detém concessões de TVs no Brasil (Marinho, Macedo, Santos, Saad, Dallevo Jr. e Carvalho) apresentam divergências e estão rachadas. A Globo, mesmo apoiando a agenda ultraliberal do governo (Estado mínimo, retirada de direitos sociais, privatizações, subserviência aos Estados Unidos) tem sido crítica a determinadas posturas de Bolsonaro em especial agora, no que diz respeito à pandemia. Já as demais têm feito de tudo para se manterem numa boa com o governo.
    O espaço de emissora “chapa branca”, do qual a Globo foi titular durante tanto tempo, passou a ser ocupado pela TV Record, do empresário e autointitulado bispo, Edir Macedo. O apoio explícito de Macedo e de sua igreja a Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018 lhe valeu as boas graças e gordas verbas oficiais desde a posse do ex- capitão. Foi para a Record que Bolsonaro deu a primeira entrevista depois de eleito, desbancando um privilégio sempre concedido à Globo.

    As brigas entre os Marinho e Edir Macedo não são de agora e antes se pautavam mais
    por questões específicas do que por problemas políticos. Os Marinho sempre tiveram
    uma relação espúria com o poder público, e Macedo, uma relação promiscua com a
    Igreja Universal do Reino de Deus. Os ataques que uns faziam aos outros não eram
    mentirosos, mas o problema é que expunham milhares de telespectadores aos interesses privados desses dois grupos, valendo-se de uma concessão pública, como são os canais de TV.
    Essa guerra, onde não há “mocinhos”, acabou chegando à política e tem atingido a Globo e a própria saúde da população brasileira. Um exemplo disso aconteceu com a série que o Jornal Nacional estreou há poucos dias, na qual apresenta depoimentos de médicos e profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate ao coronavírus no país.

    Em um desses depoimentos, houve uma confusão por parte do JN, ao apontar um dos hospitais no qual uma médica trabalha como não possuindo condições adequadas de atendimento aos pacientes. Foi o que bastou para que a TV Record lançasse críticas à série. Críticas replicadas por muitos internautas como sendo prova de “fraude” e de “mentira” por parte da Globo e que contribuíram para alimentar o submundo das fake news.

    A pressão foi tanta que a Globo, que raramente leva ao ar um “erramos”, em editorial lido por William Bonner, dois dias depois, explicou o que aconteceu e pediu desculpas à médica, ao hospital e aos telespectadores.

    O SBT vem em seguida à Record no quesito apoio ao governo. Como se não bastassem os elogios rasgados (pagos a peso de ouro) que Sílvio Santos tem feito dentro e fora de seu programa a Bolsonaro, no sábado (23/5) ele chegou ao cúmulo de cancelar a edição do principal noticiário de sua emissora, o “SBT Brasil”, depois de ouvir reclamações do governo após a edição do telejornal do dia anterior, quando foi mostrado o execrável vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, aquela onde sobraram palavrões e ameaças e faltou um mínimo de espírito público.

    No lugar do telejornal, sem qualquer aviso prévio de mudança, o SBT exibiu a reprise do programa “Triturando”. A descarada censura empresarial de Sílvio Santos é um caso único mesmo em se tratando da mídia da “Casa Grande” e está sendo criticada até pelas emissoras afiliadas ao SBT, que a consideraram “vergonhosa”.
    Já a TV Bandeirantes e Rede TV vêm alternado elogios e críticas a Bolsonaro, conforme as verbas publicitárias que recebem. Isso ficou nítido na fala do presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, durante a reunião ministerial do dia 22 de abril, em que afirmou que a Band “queria dinheiro”.
    A frase dá a entender que o banco havia recusado um pedido de ajuda da emissora, pois Guimarães emendou dizendo que “acho que a gente tá com um problema de narrativa. Hoje de manhã, por exemplo, o pessoal da Band queria dinheiro. O ponto é o seguinte: vai ou não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Ah, não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Passei meia hora levando porrada, mas repliquei”.
    Considerado porta-voz informal de Bolsonaro, o apresentador do programa policialesco “Brasil Urgente”, José Luiz Datena, de maior audiência na Band, reagiu com indignação e criticou as palavras do presidente da Caixa. Chegou mesmo a anunciar que “nunca mais” entrevistaria Bolsonaro, atitude que, para muitos, não passou de jogo de cena, certo de que os brasileiros têm memória curta.

    Dos veículos da “Casa Grande”, apenas a Folha de S. Paulo, durante a campanha eleitoral de 2018, com uma série de reportagens de Patrícia Campos Mello, chegou a fazer críticas ao processo. A série dava conta de que dezenas de empresários brasileiros, que apoiavam Bolsonaro e haviam comprado pacotes de disparos de mensagens contra o PT no WhatsApp às vésperas do primeiro turno, se preparavam para repetir a prática no segundo turno das eleições. A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha por empresas, o que é vedado pela legislação eleitoral. Some-se a isso que o conteúdo dessas mensagens era mentiroso. O que constitui crime.

    A grave denúncia da “Folha” acabou caindo no vazio, pois não teve repercussão nos
    demais jornais como Globo e Estado de S. Paulo e menos ainda nas TVs. O próprio
    Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que havia se comprometido publicamente a combater
    e punir as fake news durante as eleições, não tomou qualquer providência.
    Os chamados “jornalões” que tanto combateram os governos petistas, por sua vez, foram unânimes ao apoiar a retirada de direitos da população brasileira, a exemplo das reformas Trabalhista e da Previdência, nos governos Temer e Bolsonaro, apresentadas por eles como “fundamentais e necessárias” para a “geração de empregos e retomada do crescimento”.
    Esses mesmos jornais, na maioria das vezes, fizeram vistas grossas não só às declarações como as próprias ações do governo Bolsonaro no que diz respeito à destruição da Amazônia, à perseguição aos índios, mulheres, negros, LGBTs, professores, artistas, cientistas, aposentados e funcionários públicos. Perseguição às quais se somam agora as contra governadores e prefeitos que criticam Bolsonaro e resistem ao “retorno às atividades normais” em plena pandemia. O que esses jornais e a própria Globo não imaginavam é que poderiam ser a próxima vítima.
    Como a perseguição chegou também a alguns veículos da “Casa Grande”, era de se esperar que, finalmente, passassem a fazer jornalismo. Vale dizer: divulgar o que está acontecendo e ouvir sempre os vários lados envolvidos na questão. Mas não é o que se vê. Nesse sentido, os casos da TV Globo, do Estado de S. Paulo e da própria “Folha” são emblemáticos.
    Na edição de quarta-feira (27/5) o Jornal Nacional trouxe uma longa reportagem sobre a decisão do ministro Alexandre de Moraes no que diz respeito ao combate às fake news e aos discursos de ódio. Os mandados de busca e apreensão atingiram em cheio apoiadores de Jair Bolsonaro e têm tudo para chegar ao Palácio do Planalto.
    Para repercutir a decisão, sem dúvida muito importante para o futuro da democracia
    brasileira, o JN ouviu quase uma dúzia de pessoas: entrevistou os presidentes da Câmara e do Senado, além de parlamentares de diversas agremiações e de especialistas.
    Ficou de fora dessa repercussão, no entanto, o nome mais importante: o do candidato
    Fernando Haddad, do PT, que disputou com Bolsonaro o segundo turno das eleições em 2018 e foi derrotado exatamente pelo discurso de ódio e pelas fake news. Excluir o PT e os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff do noticiário não só da TV Globo como de todos os demais veículos do Grupo Globo – O Globo, CBN, G1, Valor Econômico, Época, GloboNews – tem sido uma prática. Além de jamais entrevistá-los, até em comparações são excluídos. Já se transformou em bordão os repórteres da Globo, por exemplo, ao fazerem comparações entre o governo atual e os de Lula e Dilma, citá-los apenas como “governos anteriores”. O nome dessa técnica em jornalismo é silenciamento e tem como objetivo impedir que recordações positivas voltem à memória das pessoas.

    Moro

    Ao mesmo tempo em que buscam apagar a memória positiva associada aos governos Lula e Dilma, a Globo não mede esforços para expor seus “heróis” como é o caso do ex-juiz da Operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, e do governador de São Paulo, o tucano João Dória, possivelmente já de olho nas eleições de 2022.
    O pedido de demissão de Moro rendeu uma cobertura digna dos mais importantes fatos da República. Presente com destaque em todas as edições do JN desde então, Moro foi alvo de uma entrevista de 20 minutos no Fantástico, no domingo 24/5.
    Entrevista que se assemelhou muito a um processo de mídia training, no qual os
    “pontos positivos” de Moro (implacável contra a corrupção, determinou a prisão de Lula) foram destacados e os “negativos” apresentados de maneira que ele pudesse, desde já, neutralizá-los. Algo como: permaneci no governo Bolsonaro por 16 meses, porque queria defender a independência da Polícia Federal e deixei o governo, por me sentir traído.
    Quanto a João Dória, ele tem sido presença constante no JN, que tem deixado sua câmera e microfone abertos para falar sobre o combate à pandemia e quaisquer outros assuntos do seu interesse. O curioso é que São Paulo, o estado mais rico da federação, é o que tem também o maior número de contaminados e mortos pelo covid-19.
    São Paulo vem sendo governado pelos tucanos há mais de 20 anos, mas isso não vem ao caso. Como não vem ao caso que todos os partidos conservadores – MDB e PSDB à frente – com o entusiástico apoio da mídia da “Casa Grande” aprovaram o congelamento por 20 anos dos gastos com saúde e educação. Deu no que deu. Já o “Estadão” que no segundo turno das eleições presidenciais havia considerado, em editorial, “uma escolha muito difícil” entre o candidato do PT, Fernando Haddad, e Jair Bolsonaro, então filiado ao PSL, voltou a insistir na mesma tecla.
    Um dia depois de ver parte da mídia determinar que seus profissionais abandonassem o “cercadinho”, o matutino conservador paulistano fez outra comparação para lá de esdrúxula, entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula, dizendo que “nasceram um para o
    outro” e “enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva”.
    Além de vergonhoso e não corresponder minimamente à realidade (Bolsonaro é um
    fascista e Lula, um humanista) um texto como esse tem tudo para entrar para a história da mídia da “Casa Grande” como prova da má-fé e subserviência de um punhado de redatores aos seus patrões. Não por acaso, o próprio Haddad, fazendo uma paródia do editorial do “Estadão”, publicou, em suas redes sociais, que entre o jornal conservador paulistano e Bolsonaro, a “escolha ficou muito difícil”.
    Já a “Folha”, como esses outros dois veículos, quer a saída de Bolsonaro do poder, mas
    está longe de admitir, por exemplo, que fez campanha contra Dilma; que defendeu a
    condenação e prisão, sem provas, de Lula; que a eleição de 2018 foi fraudada e que a
    restauração da democracia no Brasil passa por novas eleições. Uma pista do que ela e
    os demais veículos da “Casa Grande” pretendem foi dado pelo artigo do professor de
    Direito Internacional da USP, Pedro Dallari, publicado em sua edição de 28/5.
    Sob o título de “A hora do vice-presidente. A gravidade da situação atual não admite
    outra solução para o país”, o também matutino paulistano deixa claro os limites e os
    interesses da oposição que passou a fazer ao governo Bolsonaro. Essa oposição, por
    exemplo, exclui o campo progressista, a começar pelo maior partido político brasileiro,
    o PT.

    É nesse sentido que, guardadas as proporções, a mídia da “Casa Grande” tem lá suas
    semelhanças com a turma das fake news e da disseminação do ódio. Foi no caldo da
    sistemática desconstrução dos governos petistas – e, no passado, no de todos os governos progressistas como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart – que as fake news prosperaram: combate ao comunismo, denúncias sem provas de corrupção, linchamento midiático de adversários etc.
    Ao tomar partido contra o PT, a mídia corporativa brasileira passou a apoiar tudo o que pudesse significar a sua derrota. E foi aí que veio Bolsonaro. E foi aí também que essa mídia, que já não gozava de muita respeitabilidade, perdeu a condição de fonte confiável de informação, se é que algum dia a teve. Condição que agora luta para recuperar e até mesmo para sobreviver.
    A TV Globo – que tem visto sua audiência aumentar, mas ao mesmo tempo, vem sendo
    obrigada a um drástico enxugamento em sua folha de pessoal e reestruturação de seus
    veículos – trabalha para sair por cima não só desse racha, mas para voltar a dar as cartas na política brasileira. Quem não se lembra que o patriarca Roberto Marinho se considerava um “fazedor de presidentes” e realmente o foi mesmo após o fim da ditadura de 1964?
    Daí o dilema que vivem no momento Globo, Folha e Estadão. Ao contrário dos demais veículos e da turma das fakes news, que parecem dispostos a ir com Bolsonaro até o fim (qualquer que seja ele), os três tendem a calibrar essas críticas. Dificilmente, no entanto, elas atingirão a agenda ultraliberal do governo, que defendem com unhas e dentes. Daí, cada dia mais, a oposição que fazem assumir a postura de “conservadora”, com nome e sobrenome para quem apoiam: Hamilton Mourão.
    A Globo sabe que Bolsonaro não tem como cassar-lhe a concessão, pois exigiria o apoio de dois terços dos membros do Congresso Nacional, que ele não tem. Mas ele pode adotar medidas como colocar a Receita Federal para analisar a situação da empresa. Várias no setor da mídia são devedoras contumazes. Toda essa situação é inédita no Brasil. É a primeira vez que parte dessa mídia se vê
    afrontada por quem ela mesma ajudou a eleger. O fato, por si só, deveria propiciar uma profunda reflexão e mudança de comportamento por parte dessa mídia e de quem a faz.
    Como dificilmente isso acontecerá, a democracia no Brasil continua precisando de outra mídia. Mas isso é assunto para outro artigo.

  • Moro versus Bolsonaro: peças da crise democrática

    Moro versus Bolsonaro: peças da crise democrática

    ARTIGO

    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ
    O divórcio entre Bolsonaro e Moro põe em xeque peças decisivas da crise democrática. A parceria entre grande imprensa e Judiciário, geradora da Operação Lava-Jato e seu protagonista Sérgio Moro, tiveram papel determinante na queda de Dilma e prisão de Lula, acontecimentos fundamentais da crise. Precisamos saber como esta engrenagem irá se movimentar diante do bolsonarismo e será capaz de detê-lo. Levando-se em conta, ainda, uma condição específica ao nosso presente mais imediato, isto é, a pandemia de coronavirus.
    O primeiro passo para entender este xadrez é reconhecer as diferenças (e são muitas), entre estes dois sentimentos políticos, peças fundamentais neste jogo: Lava-jatismo e Bolsonarismo. O primeiro foi gerado na crise; o segundo, é anterior e foi impulsionado por ela.
    Lava-jatismo: narrativa gerada na crise
    Primeiro, o Lava-jatismo. A Operação Lava-Jato se construiu como força determinante do jogo político não apenas por sua função judicial-investigativa, mas por seu apelo midiático, como nos mostram as pesquisas do cientista político André Singer. A grande imprensa narrou a Lava-Jato para a população a colocando como se estivesse imune à podridão política, capaz de cumprir um papel saneador a atacar o maior dos problemas brasileiros, a corrupção. Transformou ações policiais em espetáculos televisivos, impôs o consenso da isenção e despolitização dos órgãos do Judiciário, traduziu à sua maneira o vocabulário jurídico (especializado) para o grande público consumidor de notícias. Quem não se lembra das operações da Lava-Jato às 6h, 7h da manhã transmitidas ao vivo como grande furo e notícia do dia? Ou ainda, o episódio da condução coercitiva de Lula, em março de 2016, com helicóptero ao vivo e câmeras a postos para filmar o carro de Lula pela via área? O “Japonês da Federal” se tornou personagem conhecido do público, motivo de conversas de bar, falado na feira, na fila dos elevadores, até em marchinha de Carnaval ele entrou.
    Sérgio Moro se tornou o maior representante do lava-jatismo justamente por conseguir controlar a grande mídia e transformá-la na porta-voz de suas ideias. A fala de Moro nunca foi vista como expressão de um ponto de vista. Sempre foi a verdade. Despolitizada, neutra, justa. Inteiramente ajustada ao contexto de sentimento antipolítica tradicional despertado desde 2013. E este apelo midiático-popular transformou a imagem sóbria de um juiz em uma figura pop, herói nacional.
    E isto que podemos chamar de populismo judicial contaminou parte significativa do corpo judiciário, que se sentiu “empoderada” para intervir cada vez mais no processo político, movido pela ideia de “popular” traçada pela grande imprensa. Exemplo desse ativismo é a postura do ministro do Supremo, Luis Roberto Barroso, cujas sentenças, muitas das vezes, se tornam verdadeiros discursos políticos voltados para a atenção do grande público, em favor deste saneamento moral. Foi dessa forma que Moro, ou o sentimento “morista” a contaminar juízes de diferentes instâncias, criou o clima para derrubar Dilma (sem crime de responsabilidade) e pôs Lula na cadeia (sem provas). Desse jeito, aliás, o PT foi retirado da presidência: pelas leis anticorrupção e instituições autônomas que fomentou, Ministério Público e Polícia Federal, sobretudo. Moro criou a hipótese de que Lula era o chefe do esquema de corrupção e torceu o processo jurídico em função daquela narrativa, que, em determinado momento, já não era só dele, mas também da grande mídia. Bolsonarismo: dois ressentimentos antidemocráticos.
    O bolsonarismo não é uma força política gerada apenas na crise democrática atual. A crise impulsionou o bolsonarismo, mas não o gerou. Ele é resultado de dois ressentimentos antidemocráticos acumulados da época do deputado federal Jair Bolsonaro, mobilizados agora na presidência, ora com mais ora com menos intensidade. Primeiro, o ressentimento sobre rumos da redemocratização. Ele se manifesta, por exemplo, no sentimento de nostalgia da Ditadura de 64, na retórica de ataque aos direitos humanos e no recurso à ditadura como modelo político ideal. Isso se manifestou claramente nas recentes participações de Bolsonaro em atos antidemocráticos que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e, até mesmo, o AI-5.
    Segundo, o ressentimento quanto à perda de valores morais associados à família conservadora, branca e patriarcal (o que ele chama de valores da maioria e não das minorias). Este movimento ocorre, sobretudo, a partir de 2011, no início do governo Dilma, quando o PT já somava oito anos de governo. Sua agenda passa a ser não somente a nostalgia da Ditadura, mas a reação aos avanços sociais e perspectivas de democratização abertas pelo governo Lula, sobretudo em relação às agendas de raça, gênero e políticas pública de fortalecimento dos direitos sociais – por exemplo, Bolsa Família e Mais Médicos, atacados por Bolsonaro ao longo do governo Dilma. Não por acaso, ele ganha tanta projeção em torno de causas morais e defesa da família: desde o “kit gay”, “ideologia de gênero”, contra o aborto, feminismo, gayzismo e tantas outras. Até a crise mais aguda, aberta pelas manifestações de junho de 2013, Bolsonaro atua no horizonte dessas duas perdas possibilitadas pela democracia: no público (desordem, corrupção e violência gerada pela inépcia do jogo político democrático) e no ambiente privado (família sem o comando do pai e do marido, desvirtuação homossexual e feminista).
    A crise democrática aberta em 2013, concretizada em 2016 no impeachment, aprofundada em 2018 na prisão de Lula, potencializa estes valores antidemocráticos e é neste momento que o parlamentar se transforma em Mito: na esteira do lava-jatismo e na crítica antissistema político (iniciada em 13), incluindo o anti-petismo. Há, entretanto, uma particularidade, decisiva, na forma de narrar do bolsonarismo. É nas redes sociais e no submundo do Whatsapp que ele ganha forma; ao contrário da Lava-Jato e Moro, que sempre contou com os meios tradicionais de manipulação discursiva, isto é, o centro difusor das empresas de comunicação. Bolsonaro se apresenta não só como outsider antissistêmico do jogo democrático, mas também da grande imprensa, a mesma que fabricou Moro e a Operação Lava-Jato.
    Crise e futuro aberto em tempos de Covid-19
    É com este instrumental histórico e conceitual que devemos operar para entender o divórcio entre Moro e Bolsonaro, iniciado na saída de Moro do Ministério da Justiça em 24 de abril e ainda em curso, com o mais recente episódio do vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro. Há uma condição fundamental a ser colocada aqui neste presente imediato: a pandemia do coronavirus. Bolsonaro já deu várias demonstrações de que não age em função de uma ética de valorização da vida; a crise da Covid tem mostrado de maneira radical este comportamento. Ele não apenas desmerece a comoção em torno da Covid, desfazendo o pacto mínimo em torno do cuidado com a vida, como se aproveita desta circunstância para avançar em seu projeto político. Ele age na esteira de uma (natural) desmobilização política na rua e no Parlamento – afinal, como priorizar um processo de impeachment agora?
    A Covid se torna não só a oportunidade para promover um rearranjo de seu governo, mas esticar a corda com Moro. Se a crise na Polícia Federal é inevitável, e é, diante do descontrole de investigações que caminham para implodir sua família e seu governo, a hora de agir é agora e não depois da Covid. Por outro lado, do ponto de vista de Moro, se ele gozava de tanto prestígio na Polícia Federal quando estava fora do governo (parte de Dilma e todo governo Temer), por que Moro toparia perder este controle, contraditoriamente, de dentro do governo? A princípio, contra Bolsonaro, Moro dispõe dos mesmos instrumentos de que dispunha contra Dilma e Lula: grande mídia e judiciário. Por um lado, não possui mais o cargo de juiz e a narrativa em torno da Operação Lava-Jato. Por outro, mantém prestígio popular acumulado da Lava-Jato, a despeito do escândalo (materialmente comprovado) da Vaza-Jato pelo site The Intercept Brasil. Judiciário, sobretudo STF, parece disposto a segui-lo. Nesta direção estão as decisões dos ministros Alexandre Moraes, impedimento da posse de Alexandre Ramagem como diretor da Polícia Federal, e Celso de Mello, pelo andamento do processo de investigação das denúncias feitas por Moro.
    Bolsonaro não formou base parlamentar no ano passado e parece disposto a fazer este movimento agora, mas não sabemos se isto será suficiente para deter um processo de impedimento. Terá ao seu lado, militância e milícia digital, que vão narrar essa experiência em contraponto à grande mídia. O “combate à corrupção” perde força, não só pela queda de Moro, mas pela aproximação com os parlamentares do “centrão”. Os dois ressentimentos antidemocráticos, no entanto, se mantém intactos. A tendência é que o discurso bolsonarista avance ainda mais nas pautas de ordem moral, como apontaram Géssica Guimarães e Amanda Danelli em seu artigo no site Jornalistas Livres.
  • Dilma cobra testes para detecção do vírus e o fim da PEC do teto de gastos durante pandemia

    Dilma cobra testes para detecção do vírus e o fim da PEC do teto de gastos durante pandemia

    Em live realizada hoje de manhã (9/4), quando participou de reunião do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), a ex-presidenta Dilma Rousseff disse que o PT não está denunciando como deveria a falta de testes para coronavírus. Segundo ela, não há como planejar ações de enfrentamento da epidemia, sem que se conheça a realidade do contágio. Para Dilma, o governo está escondendo da população o tamanho do problema. “Tem uma certa deliberação de não fazer testes”, cogitou.

    Dilma apresentou também propostas econômicas para o partido. O fim da PEC do Teto de Gastos é uma delas, seguindo o que estão fazendo os países europeus, que deixaram de lado os rigores do superávit fiscal, santo graal do neoliberalismo, como forma de gerar recursos para atender a população mais pobre durante a crise sanitária.

    A ex-presidenta quer que o PT defenda a idéia de reconversão de fábricas, de modo a produzir insumos necessários para o trabalho dos médicos. Dilma, com a experiência de gestão acumulada em seus anos na Presidência e como chefe da Casa Civil do governo Lula, conhece como poucos a estrutura produtiva do País.

    Estudiosa e meticulosa em suas análises, nesta live, Dilma Rousseff mostra como faz falta ao País uma abordagem ao mesmo tempo técnica, científica e competente em uma situação dramática como a que vive hoje o mundo.

     

     

  • A Lava Jato e os objetivos dos EUA para a América Latina e o Brasil

    A Lava Jato e os objetivos dos EUA para a América Latina e o Brasil

    Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty (2003-2009),
    ministro de Assuntos Estratégicos (2009-2010)

    1. Os objetivos estratégicos dos Estados Unidos para a América Latina e, em especial

    para o Brasil, são importantes para compreender a política externa e interna brasileira,

    inclusive a Operação Lava Jato.

    2. A América Latina foi declarada zona de influência exclusiva de fato americana pela
    Doutrina Monroe, em mensagem do Presidente dos Estados Unidos ao Congresso
    americano, em 02/12/1823.

    3. Esta Doutrina corresponde a uma visão e convicção histórica, nos Estados Unidos, de
    direito ao exercício de uma hegemonia natural sobre a América Latina, como o
    Corolário Roosevelt, de 1904, viria a explicitar.

    4. A partir da Guerra de Independência (1775-1783) e depois da formação da União em
    1787-1789 os Estados Unidos passam a procurar excluir as potências europeias de
    seu território continental (Louisiana – 1803, Florida – 1819, Oregon – 1845, Alaska –
    1867) e a absorver esses territórios na União Americana.

    5. A expulsão pelos americanos dos povos indígenas de seus territórios originais se
    realiza com intensidade após a revogação da Proclamation Line de 1763, em
    decorrência do Tratado de Paz de Paris (1783) entre a Grã-Bretanha e a
    Confederação, que separava o território das Treze Colônias das terras indígenas além
    dos Apalaches, até o Mississipi.

    6. A influência econômica, política e militar americana sobre a América Central e os
    países do Caribe foi e é avassaladora, com intervenções e ocupações militares, por
    vezes longas, e o patrocínio de ditaduras, sanguinárias.

    7. A Guerra contra o México (1848) levou à anexação de metade do território mexicano
    e, com a chegada ao Pacífico, permitiu a consolidação do território continental dos
    Estados Unidos do Atlântico ao Pacífico.

    8. A Guerra contra a Espanha (1898) levou à ocupação de Cuba, à anexação de Porto
    Rico, das Filipinas e de Guam e afirmou os Estados Unidos como potência asiática.

    9. A “criação” do Estado do Panamá e da Zona do Canal, que foi território americano
    até 2000, permitiu a ligação marítima rápida entre a Costa Leste e a região do Golfo
    com a Costa Oeste da América do Norte, tanto comercial como militar, através do
    Canal concluído em 1914, e administrado soberanamente pelos EUA.

    10. Pelas características de sua localização geográfica, a zona estratégica mais
    importante para os Estados Unidos é o Caribe, a América Central e o norte da
    América do Sul.

    11. Os objetivos estratégicos permanentes dos Estados Unidos para a América Latina
    são:
    1. impedir que Estado ou aliança de Estados possa reduzir a influência americana na região;
    2. ampliar sua influência cultural/ideológica sobre os sistemas de comunicação de cada Estado;
    3. incorporar todas as economias da região à economia americana;
    4. desarmar os Estados da região;
    5. manter o sistema regional de coordenação e alinhamento político;
    6. impedir a presença, em especial militar, de Potências Adversárias na região;
    7. punir os Estados que contrariam os princípios da liderança hegemônica americana;
    8. impedir o desenvolvimento de indústrias autônomas em áreas avançadas;
    9. enfraquecer os Estados da região;
    10. eleger lideres políticos favoráveis aos objetivos americanos.

    12. O principal Estado da região pelas dimensões de território, de recursos naturais, de
    população, de localização geográfica é, sem dúvida, o Brasil. Principal também pelos
    desafios que apresenta devido à possibilidade de graves turbulências futuras, sociais,
    econômicas e políticas.

    13. Devido a este caráter principal, os objetivos dos Estados Unidos são objetivos para a
    América Latina em geral, porém se aplicam em especial ao Brasil.

    14. O primeiro objetivo estratégico americano é impedir a emergência e
    fortalecimento de qualquer Estado ou aliança de Estados que possam se opor à
    presença ou afetar a influência política, econômica e militar americana na região.

    15. Para alcançar este objetivo tratam os Estados Unidos de aguçar e reacender
    eventuais rivalidades (históricas ou recentes) entre os maiores Estados da região, isto
    é, entre o Brasil e a Argentina, não estimular o conhecimento de suas histórias e
    culturas, estimuladas as rivalidades através da ação de lideranças locais que buscam
    obter tratamento privilegiado para seus países junto aos Estados Unidos (Carlos
    Menem e Jair Bolsonaro são exemplos desse comportamento).

    16. O segundo objetivo americano é manter e ampliar sua presença
    cultural/ideológica nos sistemas de comunicação de cada Estado da região como
    instrumento para sua maior influência política, econômica, militar e cultural.

    17. Essa presença aumenta sua capacidade de obter melhores condições legais (fiscais e
    regulatórias) para a ação de suas megaempresas (petroleiras, por exemplo); para
    obter contratos de venda de equipamentos militares; para lograr alinhamento e
    apoio às iniciativas americanas em nível mundial; para promover a “simpatia” pelos
    Estados Unidos na sociedade local; para obter o apoio da sociedade e dos governos
    para seus objetivos estratégicos.

    18. Este objetivo tem como instrumentos a defesa da mais ampla liberdade de imprensa
    e de Internet e para a livre ação das ONGS “internacionais” e “altruístas”; dos
    programas de formação de pessoal, desde os institutos de língua aos intercâmbios; às
    bolsas de estudo; ao recrutamento de talentos; à aquisição de editoras para
    publicaçãos de livros americanos; a hegemonia na programação de cinema e de TV;
    os programas de formação de oficiais militares e lideranças políticas; e recentemente
    a aquisição de instituições de ensino, em todos os níveis.
    19. O terceiro objetivo dos Estados Unidos é incorporar todas as economias dos
    Estados da região à economia norte-americana, de forma neocolonial, no papel de
    exportadores de matérias primas e importadores de produtos industriais.
    20. Após o fracasso do projeto regional “multilateral” da ALCA, lançado em 1994 e
    encerrado em 2005 na reunião em Mar del Plata, os Estados Unidos passaram a
    promover a negociação de acordos bilaterais com cada Estado latino-americano com
    dispositivos semelhantes aos da ALCA e até aos EUA mais favoráveis. Verdade seja
    dita que o acordo de livre comércio com o Chile fora assinado em 1994 e com o
    México e o Canadá (NAFTA) também em 1994.

    21. O instrumento para alcançar este objetivo são os acordos bilaterais de livre comércio
    que levam à eliminação das tarifas aduaneiras e à abertura dos mercados dos Estados
    subdesenvolvidos nas áreas de investimentos; de compras governamentais; de
    propriedade intelectual; de serviços; de crédito e, às vezes, incluem cláusulas
    investidor-Estado.

    22. Por sua vez, os Estados subdesenvolvidos da América Latina que atingiram certo grau
    de industrialização não ganham acesso adicional aos mercados de produtos
    industriais, pois as tarifas americanas são baixas, existe a escalada tarifária e as
    medidas de defesa comercial, e o acesso a mercados agrícolas é restringido pela
    legislação agrícola, americana de subsídios e de proteção.

    23. O acordo Mercosul/União Europeia será instrumental para a abertura de mercados
    para os Estados Unidos sem ônus político pois, após sua entrada em vigor, estarão
    criadas as condições para os Estados Unidos reivindicarem ao Brasil e ao Mercosul
    igualdade de tratamento. Outros países altamente industrializados como o Japão, a
    Coréia do Sul, o Canadá e a China farão o mesmo e o Brasil não terá mais a tarifa
    como instrumento de política industrial. O Mercosul desaparecerá.

    24. O quarto objetivo estratégico dos Estados Unidos é desarmar os Estados da região.
    25. Os instrumentos para atingir este objetivo são a promoção da assinatura do Tratado
    de Não Proliferação Nuclear (TNP) e de outros tratados na área química e biológica, e
    mesmo sobre armas convencionais; a venda de equipamentos militares defasados a
    preços mais baixos e o “estrangulamento” de eventuais indústrias bélicas locais; os
    acordos de associação à OTAN; a transformação das Forças Armadas nacionais em
    forças de caráter policial, voltadas para o combate ao narcotráfico e a crimes
    transnacionais e, portanto, necessitando apenas de equipamento leve.

    26. O quinto objetivo estratégico americano é manter o sistema de segurança
    regional, a Organização dos Estados Americanos, reconhecido pela Carta da ONU,
    onde tradicionalmente os Estados Unidos podem exercer sua influência, contam com
    o auxílio do Canadá e de países da América Central e assim podem tratar das
    questões regionais sem ir ao Conselho de Segurança das Nações Unidas.

    27. Outro instrumento para alcançar este objetivo é promover a dissolução da UNASUL,
    como foro de solução de controvérsias concorrente da OEA e como organização de
    cooperação em defesa, da qual os Estados Unidos não participam.

    28. O sexto objetivo dos Estados Unidos na América do Sul consiste em impedir a
    presença de Estados adversários de sua hegemonia, e como tal nomeados pelos
    próprios EUA, quais sejam a Rússia e a China, na região latino-americana, em uma
    versão atual da Doutrina Monroe.

    29. Segundo documentos oficiais americanos recentes a “China é um poder revisionista”
    e a Rússia é um “Ator Maligno Revitalizado” (Indo-Pacific Strategic Report, do
    Pentágono).

    30. A presença russa e chinesa é especialmente temida na área militar, inclusive por
    ameaçar a Costa Sul do território americano e os acessos ao Canal do Panamá, via
    comercial e militar estratégica.

    31. Um sétimo objetivo americano, importante para demonstrar sua determinação de
    exercício de hegemonia na América Latina, é punir, dentro ou fora do sistema da
    OEA, com ou sem o apoio de outros Estados da região, aqueles governos que
    contrariarem, em maior ou menor medida, os princípios da liderança mundial
    americana:
     ter economia capitalista, aberta ao capital estrangeiro, com intervenção mínima do Estado;
     dar tratamento igual às empresas de capital nacional e estrangeiro;
     não exercer controle sobre os meios de comunicação de massa (TV etc);
     ter regime político de pluralidade partidária e eleições periódicas;
     não celebrar acordos militares com os Estados Adversários, quais sejam a Rússia e a China;
     apoiar as iniciativas dos Estados Unidos.

    32. A campanha política/econômica/midiática para promover a mudança de regime
    (regime change) de um Estado da região, isto é, para promover um golpe de Estado
    para derrubar um Governo que os Estados Unidos consideram hostil, inclusive com o
    financiamento de grupos de oposição, se desenvolve em várias etapas (que depois se
    superpõem) de denúncia do Governo “hostil” pela grande mídia regional e pela mídia
    mundial, com o auxílio da Academia, como sendo:
     autoritário;
     corrupto;
     traficante ou leniente com o tráfico de drogas;
     perseguidor de inimigos políticos;
     violador da liberdade de imprensa;
     ineficiente;
     opressor da população;
     ameaça aos vizinhos;
     ameaça à segurança americana.

    33. Um oitavo objetivo estratégico americano é impedir o desenvolvimento de
    indústrias autônomas nas áreas nuclear, espacial e de tecnologia de informação
    avançada na América Latina, e em especial no Brasil, país com as melhores condições
    para desenvolver tais indústrias.

    34. Um nono objetivo estratégico americano é enfraquecer politica e economicamente
    os Estados da região.

    35. Os instrumentos são estimular direta ou indiretamente (pela mídia) a redução do
    poder regulatório em defesa dos consumidores, da população em geral e dos
    trabalhadores, dos organismos do Estado, em especial aqueles que limitam ou
    disciplinam a ação das megacorporações multinacionais, entre as quais prevalecem as
    americanas.

    36. Outro instrumento para alcançar este objetivo é a campanha contra o Estado central
    como ineficiente e mais corrupto e autoritário, e a defesa da descentralização
    regulatória e de auto regulação dos setores pelas próprias empresas privadas.

    37. Um objetivo americano importante é enfraquecer o único organismo do Estado
    (brasileiro) que enfrenta, todos os dias, os interesses dos demais Estados nacionais,
    em especial os interesses dos Estados Unidos, de seus adversários, Rússia e China, e
    das chamadas Grandes Potências, como Inglaterra, França, Alemanha e Japão, nas
    negociações para aprovar normas internacionais que atendam seus interesses (e
    lucros).

    38. Os instrumentos para atingir este fim são denunciar a ineficiência; o corporativismo;
    o exclusivismo; o “globalismo”; a partidarização; a visão ideológica “esquerdista” da
    Chancelaria.

    39. O décimo objetivo estratégico dos Estados Unidos da América, e talvez o principal
    objetivo, é impedir a eleição de líderes políticos em cada Estado que manifestem
    restrições a seus objetivos estratégicos e promover a eleição de líderes que a eles
    sejam favoráveis.

    40.E aí entra o papel da Operação Lava Jato na defesa direta ou indireta dos
    interesses americanos.

    41. A partir da eleição, em 2002, do presidente Lula, a política interna e externa brasileira
    se contrapôs, ainda que não de forma sistemática, desafiadora ou revolucionária, a
    alguns dos objetivos estratégicos americanos:
    a. ao não apoiar a invasão do Iraque de 2003;
    b. ao estabelecer o entendimento político e econômico estreito com a Argentina;
    c. ao promover a coordenação com a Argentina, a Venezuela, o Uruguai, o Equador, a Bolívia e
    o Paraguai para a formação da UNASUL, em substituição à OEA.
    d. ao resistir à ALCA e ao fortalecer o Mercosul;
    e. ao fortalecer os instrumentos financeiros do Estado, como o BNDES, e ao utilizá-los na
    politica externa;
    f. ao fortalecer o programa nuclear;
    g. ao exercer operações de aproximação autônoma com os países africanos e árabes;
    h. ao promover a criação do BRICS, com a China e a Rússia;
    i. ao fortalecer a Petrobrás e ao estabelecer o regime de parceria para exploração do pré-sal;
    j. ao estabelecer a política de “conteúdo nacional” na indústria;
    k. ao promover a indústria de defesa brasileira;
    l. ao defender a regulamentação da mídia;
    m. ao negociar, com a Turquia, um acordo nuclear com o Irã;
    n. ao exercer o equilíbrio em suas relações com Israel e Palestina.

    42. A partir dessa nova situação nas relações Brasil-Estados Unidos e da crescente
    popularidade do presidente Lula, que terminaria em 2010 seu mandato com 87% de
    aprovação, a estratégia americana foi:
     mobilizar os meios de comunicação de massa no Brasil contra as políticas do Governo, e
    condenar sua ação através do Instituto Millenium, fundado em 2005, para dar amplo apoio à
    Operação Mensalão, que não conseguiu atingir o presidente Lula, mas que veio a atingir
    José Dirceu, chefe da Casa Civil, e provável sucessor de Lula;
     a partir do acordo de cooperação judiciária Brasil-Estados Unidos, iniciar a Operação Lava
    Jato, que viria a facilitar o alcance dos objetivos estratégicos americanos em especial 2, 8, 9 e
    10, listados no parágrafo 11 acima;
     iniciar o processo político de preparação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff;
     financiar direta e indiretamente a formação dos grupos MBL e Vem pra Rua.

    43. O principal objetivo da Operação Lava Jato não era a luta contra a corrupção, mas, sim,
    impedir a eleição do presidente Lula em 2018. Sua ação partia das seguintes
    premissas:
     a grande maioria da população, devido à sua precária situação econômica e cultural, está
    sujeita a ser manipulada por indivíduos populistas, socialistas, comunistas etc. que fazem aos
    eleitores promessas irrealizáveis para conquistar e explorar o poder;
     a sociedade brasileira é intrinsecamente corrupta;
     todos os políticos e partidos são corruptos;
     os governos se sustentam através da corrupção e da compra de votos;
     a violação de direitos constitucionais e legais por membros do Judiciário e do Ministério
    Público se justifica para combater a corrupção.

    44. O juiz Sérgio Fernando Moro descreveu em seu artigo intitulado Mani Pulite,
    publicado em 2004 na Revista CEJ – Justiça Federal N°26, a sua decisão de violar a lei
    para combater a corrupção, em uma interpretação de que “os fins justificam os
    meios”.

    45. A “corrupção” foi enfrentada pela Operação Lava Jato, comandada por Sérgio Moro,
    juiz de primeira instância que contou com a conivência e mesmo a cooperação de
    membros dos Tribunais Superiores e da grande imprensa, para uma condução
    processual altamente heterodoxa e ilegal.

    46. A divulgação quotidiana e seletiva de ações da Lava Jato através da imprensa, em
    especial da televisão, foram essenciais para criar a convicção de que a Lava Jato teria
    “revelado” que o partido que teria promovido e se beneficiado da corrupção no
    sistema político teria sido o PT, conduzido por Luiz Inácio Lula da Silva.

    47. Formou-se um amplo movimento anti-petista e anti-Lula, e tornou-se, assim, um
    objetivo não só político, mas ético e moral, para combater a corrupção, apresentada
    como o principal mal da sociedade brasileira, impedir por todos os meios que o ex-presidente Lula pudesse se candidatar e, iludindo o povo ingênuo, ser eleito e reimplantar os mecanismos de corrupção.

    48. Assim, foi Lula condenado, sem provas, em primeira instância por Sérgio Moro e em
    segunda instância por uma turma de três desembargadores do TRF-4 (não pelo
    Tribunal pleno), desembargadores que gozam de grande familiaridade e amizade
    com Sérgio Moro, que condenaram Lula à prisão em regime fechado, para não poder
    exercer qualquer atividade política e, assim, não poder nem competir nem influir nas
    eleições de 2018.

    49. A decisão arbitrária do TRF-4 correspondeu à cassação dos direitos políticos de Lula e
    do povo brasileiro, que não pôde votar em Lula, o candidato à frente em todas as
    pesquisas de opinião.

    50. A nomeação do juiz Sérgio Moro como ministro da Justiça por Jair Bolsonaro e a
    declaração de Bolsonaro de que devia muito de sua eleição a Moro indicam o alto
    grau de ilegalidade do comportamento de Sérgio Moro e de Jair Bolsonaro e sua ação
    política.

    51. A primeira etapa para atingir o Objetivo estratégico 10 era promover o impedimento
    da presidente Dilma Rousseff, o que foi conseguido em 16/4/2016. O vice-presidente Michel Temer assumiu com um programa econômico intitulado “Ponte para o Futuro”, elaborado por economistas liberais e perfeitamente compatível com
    os objetivos estratégicos dos EUA, e que vem sendo aplicado de forma ainda mais
    radical por Paulo Guedes.

  • JEAN WYLLYS: “Eu cuspi na cara dele por você, Dilma. Por nós”

    JEAN WYLLYS: “Eu cuspi na cara dele por você, Dilma. Por nós”

    Querida Dilma,

    Meu coração simultaneamente apertou e acelerou quando li a notícia de que um delegado da Polícia Federal, aliado do ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, pediu sua prisão.

    De imediato eu não pensei na explícita prática de lawfare que este pedido de prisão absurdo representa; não pensei na estratégia do canalha em criar, com este factóide, uma cortina de fumaça que impeça a maioria do povo brasileiro de ver a entrega do petróleo do pré-sal por parte do governo Bolsonaro (com apoio de plutocratas que apenas fingem se importar com o desapreço deste pela democracia); nem pensei nos ensaios de fechamento do regime que esses fascistas organizados em seitas religiosas e organizações criminosas fazem todo dia para testar os limites de uma nação agora adoecida por ter se recusado a trabalhar traumas como a escravatura e os terrorismos das ditaduras…

    Ao ler a notícia, eu só pensei em você, minha amiga. Primeiro, naquela senhora que me abraçou demorado – seu cheiro bom, aquele cheiro de afeto que os filhos identificam em mães amorosas, ainda está está na minha lembrança como se eu tivesse acabado de lhe abraçar – naquele restaurante japonês em Copacabana, onde jantamos em companhia do historiador americano James Green. Aquela senhora que me aconselhou a sair do país por reconhecer que eu realmente estava correndo risco de morte. Aquela senhora que, num dado momento da conversa, chamou-me de “meu filho”…

    Em seguida, lembrei-me de que aquela senhora amorosa é também a estudante da foto histórica em que, após dias sob tortura por parte de covardes idolatrados hoje pelos igualmente covardes que pediram sua prisão, você encara altiva seus torturadores, imorais que escondem suas caras na esperança de escapar do julgamento da história e da infâmia que a maldade joga sobre sua (deles) descendência…

    Só depois dessa reação afetiva; dessa preocupação com a pessoa (que é avó e ama sua família); só depois disso, é que, relembrando o quanto nossas histórias individuais se entrelaçaram na trama da história do Brasil, por eu ter sido o primeiro ativista gay a chegar no Congresso Nacional e você a primeira presidenta – sim, presidenta – da república, dei-me conta dos significados políticos e dos perigos terríveis contidos nesse pedido de sua prisão.

    As facções políticas (incluindo aí as organizações criminosas na cidade e no campo) que perpetraram o golpe contra seu governo – com o objetivo de garantir a si mesmas privilégios, lucros obscenos e impunidade em seus (delas, das facções) crimes – estão em guerra pelo poder desde então. A prisão do Lula, a intervenção militar no Rio de Janeiro feita pelo governo do crápula que lhe traiu e ao PT, Michel Temer, e a posterior execução de Marielle Franco são as consequências dessa guerra entre as forças políticas de direita que produziram a ruptura com a democracia em 2016.

    Você sabe, Dilma, que nem mesmo o alinhamento dessas facções golpistas em torno da figura de Bolsonaro nas eleições de 2018 (àquela altura já instrumentalizada e turbinada pelos plutocratas da extrema-direita americana) garantiu a paz entre elas.

    Os ricos brasileiros, os banqueiros ilustrados, os marajás do funcionalismo público, os donos de veículos de comunicação e os intelectuais endinheirados que fizeram da Lava Jato um complô e, do cafona e medíocre Sergio Moro, um fantoche, não esperavam que as facções criminosas com as quais se aliaram – milícias e seitas religiosas que servem de lavanderia para dinheiro sujo – fossem querer ter as rédeas do país. Mesmo assim, com todo o horror que elas vêm praticando, a Globo e a Folha de São Paulo seguem elogiando seu ministro da Economia, como se não se tratasse do mesmo governo fascista que ameaça a liberdade de imprensa, a cultura e a laicidade – e ignora emboscadas que matam os guardiões da Amazônia.

    Dilma, não sei se você sabe, mas, naquela noite em que teve início o golpe disfarçado de processo de impeachment, logo depois de dedicar seu voto ao torturador Brilhante Ustra (o covarde que quebrou com um soco o maxilar daquela menina da foto que é você), Bolsonaro me xingou de “queima-rosca” e me disse “tchau, querida”, numa referência à frase que o Lula lhe disse na conversa grampeada ilegalmente por Sergio Moro e divulgada pela Globo. A misoginia e a homofobia – males gêmeos – exigiram-me uma reação naquele momento. Além delas, a memória dos mortos sob as torturas perpetradas pela ditadura militar.

    Eu cuspi na cara dele por você, Dilma. Por nós.

    E, por tudo isso, mas principalmente por você, a quem poderia chamar de “minha mãe”, mas chamo de “minha amiga”, eu lhe peço nesta carta aberta:

    Tenha cuidado, amada! Os fascistas ressentidos de ontem e de hoje não toleram o que você representa, presidenta.

    Te amo!

    Jean Wyllys