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  • “Desfaça tudo essas reservas”, diz ruralista a secretário em reunião de fazendeiros do Pará com governo federal

    “Desfaça tudo essas reservas”, diz ruralista a secretário em reunião de fazendeiros do Pará com governo federal

    Da Publica

    Quem entrasse desavisado pela porta do auditório Olacyr de Moraes, no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), no início da tarde do último dia 10, teria dificuldade em saber que se tratava de um encontro entre grandes fazendeiros paraenses e autoridades das áreas da agricultura e do meio ambiente do governo Jair Bolsonaro. Em vez dos esses chiados, típicos do sotaque do Pará, ouvia-se na plateia os erres marcados dos sotaques sulistas, comuns entre os que detêm latifúndios em solo amazônico. Reunidos no auditório, os produtores rurais foram à Brasília apresentar a fatura do apoio enfático dado a Jair Bolsonaro durante a campanha presidencial.

    A reportagem da Pública presenciou as quase quatro horas do encontro, idealizado pela Federação de Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa) e bancado pelo governo, sobretudo pelo titular da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf), Luiz Antônio Nabhan Garcia. Ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan Garcia foi tratado na reunião como “vice-ministro” apesar da inexistência formal do cargo. Foi ele quem gravou vídeos disparados pelo WhatsApp convocando os produtores ao encontro. O convite empolgou: o auditório ficou completamente abarrotado e alguns fazendeiros ficaram do lado de fora, esticando o pescoço para acompanhar a discussão.

    A titular do Mapa, ministra Teresa Cristina, fez questão de reconhecer o pronto apoio dado pelo agronegócio, grande protagonista da economia brasileira nos últimos anos, em campanha. “Podem ter certeza que o governo do presidente Bolsonaro tem um apreço e um carinho muito especial pelos produtores rurais, que foram aqueles que primeiro o apoiaram, foram aqueles que primeiro acreditaram. Talvez porque a gente tenha sofrido tanto que os produtores rurais deram um basta e acreditaram que o presidente Jair Bolsonaro era a pessoa que podia fazer a mudança de rumo no nosso país”, discursou. “O estado do Pará foi um dos estados que primeiramente deu a ele [Bolsonaro] o seu voto de confiança.” Vale registrar que a ministra se referia aos fazendeiros, e não à população, que votou majoritariamente no candidato do PT, Fernando Haddad.

     

    O presidente da União Democrática Ruralista, Luiz Antônio Nabhan Garcia. Foto Tânia Rêgo/Agência Brasil

    Diante da ministra, do “vice-ministro” Nabhan Garcia e outras autoridades, como o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), general Jesus Corrêa, o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato, e o secretário executivo da Secretaria de Governo, Mauro Biancamano, a principal exigência colocada à mesa pelos ruralistas foi a flexibilização radical (talvez o termo correto seja desmonte) da fiscalização ambiental feita em solo paraense.

    O Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgãos encarregados por lei de fazer fiscalização ambiental, foram alvos de duras críticas e xingamentos. Era alguém tocar no nome deles e o burburinho começava. Aos poucos, palavras de ordem eram gritadas e aplausos efusivos demonstravam o apoio da plateia a quem tomava coragem de gritar no meio da multidão. Nas manifestações anônimas, feitas durante as falas, os órgãos foram acusados de praticar “terrorismo de Estado”, alguns disseram que o governo “tem que acabar” com eles, a despeito da obrigação do Estado em mantê-los, e os chamaram de “câncer”. Produtores falaram em “desfazer essas porcarias de Unidades de Conservação” (UCs) – termos similares aos usados por eles para se referir a outras áreas protegidas pela União, como terras indígenas e assentamentos de reforma agrária.

    Nas falas feitas em um púlpito do auditório por produtores rurais e autoridades não ligadas ao governo federal, o tom não foi muito diferente. Para ficar em um exemplo, a representante da Associação dos Produtores dos Campos do Araguaia (Aprocampo), Genny Silva, chamou o Ibama, em fala pública, de “instituto brasileiro de assalto à mão armada”. O radicalismo das demandas foi tamanho que levou os representantes do governo Bolsonaro à não usual posição de pedir ponderação, cautela e apego à institucionalidade aos presentes. Se o descrédito demonstrado por Bolsonaro pelos órgãos ambientais, como na ocasião em que o presidente disse que a festa do ICMBio e do Ibama “ia acabar”, gela a espinha dos ambientalistas, para os ruralistas paraenses parece ser pouco. Eles querem a nova era de Bolsonaro para já e, nela, não querem ter que receber fiscais do Ibama em suas porteiras.

    “O Brasil está numa hemorragia generalizada e o governo vem com band-aid pra querer estancar a hemorragia. Não vai conseguir! Nós não podemos querer reformar órgãos inúteis que não têm mais função a não ser consumir dinheiro público e perpetuar a corrupção”, afirmou Paulo César Quartiero, que ocupava o posto de vice-governador em Roraima até janeiro do ano passado pelo DEM. “Quer que eu cito (sic)? Ibama, ICMBio, quantos mais? Vou citar o Incra também? Vou. Que mais?”, questionou à plateia. Alguns fazendeiros falaram na Fundação Nacional do Índio (Funai). “A Funai a gente deixa à parte porque ela não obedece ao governo brasileiro, ela obedece às monarquias europeias”, disse, arrancando risos, referindo-se ao fato de a fundação ter firmado parcerias para desenvolvimento de projetos com recursos do Fundo Amazônia, que tem a Noruega como principal doadora.

    Quartiero, aliás, é um antigo adversário da causa indígena em Roraima, como ele mesmo admitiu em entrevista ao jornal O Globo. Foi arrozeiro na área da TI Raposa Serra do Sol, homologada em 2005. Teve uma fazenda desapropriada em decorrência do processo de demarcação. Em 2008, quando era prefeito de Pacaraima (RR), foi preso pela Polícia Federal (PF) acusado de tentativa de homicídio, formação de quadrilha e posse de artefatos explosivos. Segundo o Ministério Público Federal afirmou em denúncia, tais crimes ocorreram após ele ter coordenado ataques a indígenas da Comunidade Renascer. Nove indígenas ficaram feridos na ação, oito deles baleados, segundo a PF informou à época. A ação ainda corre na Justiça Federal. Hoje Quartiero é suplente na diretoria da Faepa, pois é produtor rural na ilha do Marajó, no Pará.

    A sugestão de Quartiero de que não adiantaria reformar órgãos ambientais, mas sim extingui-los, gerou uma manifestação imediata do anfitrião Nabhan Garcia. Ao tomar a palavra, ele sublinhou que não fora o governo Bolsonaro quem havia “criado” ou referendado a TI Raposa Serra do Sol e lembrou as consequências legais de extinguir órgãos ambientais. “Não se acaba com a Funai como você tá dizendo. Aqui não tem espaço para a pirotecnia, me desculpe. Se tem alguém aqui formado em direito, sabe o que eu tô dizendo. Não é assim que se acaba com Funai, com Ibama, com Incra. Não é assim. Não se acaba, aí é pirotecnia”, respondeu Nabhan Garcia.

    Apesar da impossibilidade jurídica de extinção dos órgãos, o secretário de Assuntos Fundiários lembrou que o governo federal vem esticando a corda nesses órgãos, tentando favorecer os interesses dos ruralistas. “A questão da Funai: ela é responsável pela identificação, delimitação, demarcação, licenciamento de terra e etc. [O governo] Tirou isso da Funai. Não dá pra acabar com a Funai, mas dá pra tirar o que era nocivo que a Funai fazia e assim o governo fez em 1º de janeiro, feriado nacional, no dia de sua posse. Tem lá uma medida provisória tirando da Funai todas essas situações. Passando pra nossa secretaria inclusive as cláusulas quilombolas também, da Fundação Palmares. Hoje está tudo no Ministério da Agricultura, na Secretaria de Assuntos Fundiários, que por sua vez o órgão executor é o Incra, o novo Incra, que está com boas intenções e vai promover as mudanças”, argumentou Nabhan Garcia, sinalizando mudanças na política indigenista. “Eu só estranho que a lei funciona contra nós e a nosso favor não funciona”, murmurou Quartiero, ainda um tanto contrariado.

    Ibama engole críticas e promete mudanças para agradar a fazendeiros

    Quando subiu ao púlpito ao som dos murmúrios do público, o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, procurou ser breve. Começou pedindo desculpas pela ausência de seu chefe, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. “Todo o ministério, inclusive o Ibama, tem um apreço muito grande pelos produtores rurais. A gente tá tentando mudar uma mentalidade que existiu no passado, de perseguição para quem produz nesse país”, afirmou Bim. “Nesse novo Ibama, a gente está buscando um diálogo muito grande com todos os atores envolvidos pra gente se entender. E, se entendendo, evitar os pontos de atrito que ainda existem. Mudar a cultura de um órgão é uma coisa que demora um pouco, mas a gente está lutando para que essas mudanças aconteçam”, disse. O presidente do Ibama saiu rápido da sala a pretexto de uma audiência com o Ministério Público. Para aguentar a pressão dos produtores, ficou o titular da Diretoria de Proteção Ambiental, Olivaldi Azevedo, major da Polícia Militar de São Paulo, alçado ao posto pelo ministro Salles.

     

     

    Diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Major Olivaldi.
    Reprodução Instituto Brasileiro de Segurança Pública.

     

    O major foi alvo de um dos discursos mais inflamados e aplaudidos da tarde, feito por Nelci Rodrigues, a presidente da Associação de Produtores Rurais Vale do Garça. Nelci começou pedindo desculpas por não saber fazer “discurso bonito” e foi direto ao assunto. Sua associação fica na região da influência do trecho da rodovia BR-163 que corta 11 municípios do estado do Pará onde, em 2006, o governo federal criou um mosaico de áreas protegidas com o objetivo de fazer um plano de desenvolvimento sustentável para a região e mitigar o impacto do futuro asfaltamento da rodovia, ainda não realizado.

    As UCs foram criadas sobre pequenas e grandes posses rurais já existentes – muitas delas estimuladas pelo próprio governo – e até hoje a regularização fundiária não foi efetivada a contento. Com sotaque sulista, Nelci conta que foi à Amazônia ainda criança acompanhando seu pai, que havia sido estimulado pela propaganda dos governos militares que rezava o lema “integrar para não entregar”. E prosseguiu: “A BR-163 vive um conflito de guerra. O Brasil tem que ter memória. Eu me lembro perfeitamente quando meu pai dizia que o militarismo só era ruim pra vagabundo: ‘Então vocês podem ir para o Pará e tenham certeza que vocês vão melhorar de vida’. E sabe o que aconteceu? Nós pioramos”, relatou. “Vivo no Pará há mais de 30 anos, tenho cinco filhos, criei todos e eles são formados, hoje, graças a uma posse e eu sou produtora rural. Em 2006, foi criado um mosaico de Unidades de Conservação atingindo o meu Pará. Aí eu lhe digo: os xiitas do Ibama, as ‘mundiça’ do ICMBio, o câncer do ICMBio no país tomam a casa de uma mãe de família e fala o seguinte: ‘Você tem que sair dessa casa, porque essa casa vai virar casa do macaco’. Tinha um general que abriu a BR-163 e o chamamento era unânime: ‘Venham integrar para não entregar’. Agora, se não deram título da terra, se não fizeram nada, não é culpa nossa”, protestou. “Eles nos invadiram. A regra do jogo muda e a gente fica sem saber. E somos tachados de grileiros. Se um audacioso xiita repetir um trem desse… Eu não tenho tamanho, mas coragem Deus me deu”, bradou, sendo ovacionada por aplausos.

    Muitos fazendeiros falaram no estímulo dado à chamada colonização dos rincões do Pará pelos governos militares e demonstraram ressentimento com as questões ambientais trazidas na democracia. A lei ambiental da época permitia que as posses e propriedades rurais desmatassem 50% da área das fazendas. A aprovação do Código Florestal, em 2012, determinou em 20% a superfície passível de desmatamento para a produção no bioma amazônico. Alguns produtores se manifestaram até mesmo pedindo a volta dos parâmetros de desmatamento da ditadura. Coube a Nabhan Garcia novamente acalmar os ânimos e dizer que não cabia ao governo alterar o código na canetada, mas deixar claro que seria possível uma articulação no Congresso para mudar as leis ambientais.

    Ao fim de sua fala, Nelci Rodrigues vocalizou outro pensamento comum entre os produtores rurais: a argumentação de que as leis ambientais os empurravam para a ilegalidade. Protestou contra o fato de a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), órgão do governo estadual paraense, não validar o Cadastro Ambiental Rural (CAR) em fazendas situadas em UCs, o que é proibido por lei. “Tem 300 mil cabeças de gado nas Unidades de Conservação. A gente não pode vender porque não tem o CAR. Aí eu não posso vender porque o frigorífico é multado ao comprar. Obrigam nós a ser ilegal. Obrigam nós a tirar nosso gado e levar pra um arrendamento que é legalizado pra só assim nós podermos vender”, afirmou Nelci. “Desfaça tudo essas reservas que a maldita Marina Silva fez”, exigiu, referindo-se à ex-ministra do Meio Ambiente, que estava à frente do Ministério do Meio Ambiente quando da criação das UCs.

    Quando subiu ao púlpito, o major Olivaldi estava nitidamente nervoso. Antes de começar a falar, alguém da plateia disse que queria ver acabar logo o ICMBio. Quando disse que era o novo diretor de proteção ambiental do Ibama, veio outro comentário da plateia: “Não fala esse nome [Ibama]. Vamos mudar o nome”. Olivaldi tentou brincar para quebrar o gelo. “Me sinto um pouco apedrejado aqui. Serei outros dias por conta do que foi construído lá atrás entre quem produz e o órgão de fiscalização ambiental”, começou. A plateia não deu descanso. “Vai trabalhar na cidade e abandona as fazendas. Não tem problema ambiental em fazenda nenhuma. Então nos abandone. Vocês não são bem-vindos”, afirmou um fazendeiro. “Não façam nada durante 60 dias. Só fecha”, disse outra voz.

    Olivaldi pediu calma. Quando conseguiu falar, o major agradou aos ruralistas. “Vamos fazer um mutirão para desembargar áreas passíveis de desembargar. Isso é promessa do governo Bolsonaro, do ministro Ricardo Salles. Estamos revendo esses embargos”, afirmou. “Tentaremos reverter o máximo daquilo que está prejudicando. Não é promessa. Isso nós vamos fazer. Mas eu peço tempo. Não se esqueçam que muito do que foi dito aqui [nas reivindicações], é preciso mudar porcaria de lei. Eu sou funcionário público. Eu vou preso… Alguém criou aquele monte de Unidade de Conservação; se tá certo ou errado, eu não vou entrar na discussão.” “Revoga!”, uma voz gritou. “Mas não sou eu que revogo. Aquilo é criado mediante lei. Tenham paciência e vamos mudar o que precisa ser mudado. Todo mundo aqui é inteligente pra entender que fazer o que ele disse: ‘Ah, não faça nada agora’. Eu vou preso. Existe Ministério Público, juiz, Judiciário, um monte de coisa cobrando a gente”, disse Olivaldi. Ele deixou o auditório na sequência.

     

    Senador Zequinha Marinho (PSC), Foto Agencia Senado.

    Senador compara atuação de órgãos ambientais ao Estado Islâmico

    O discurso de ataque aos órgãos de fiscalização ambiental ganhou respaldo também entre os parlamentares presentes ao encontro. Nos dois discursos que fizeram, o deputado federal Delegado Éder Mauro (PSD), coordenador da bancada paraense na Câmara, e o senador Zequinha Marinho (PSC) formaram fileiras com os fazendeiros nos ataques ao Ibama e ao ICMBio.

    “Estamos assistindo às piores arbitrariedades que um governo pode cometer contra os seus cidadãos. Cidadão que produz, que paga imposto”, disse Marinho, referindo-se às autuações e operações dos órgãos socioambientais. “Se o senhor tiver tempo pra ouvir alguém da região da BR-163… É uma coisa do outro mundo. É pior do que o Estado Islâmico na Síria”, qualificou. “A gente não queria continuar sendo tratado como inimigo deste país. É fundamental pacificar a questão ambiental. Produtor precisa ter mais liberdade pra produzir. O produtor do Pará é visto como um marginal. Nós somos invadidos pelo governo federal lá no Pará, que não quer diálogo, não quer conversar. Quer botar fogo em máquinas, quer prender cidadão, arrebentar com tudo, quer matar tudo”, discursou Marinho.

    O deputado Éder Mauro partiu para uma acusação mais direta. “O Ibama no estado do Pará… Eu ainda esta semana já deixei documentações na Casa Civil mostrando que hoje o Ibama ainda é dirigido por uma petista que persegue nossos produtores, os homens que produzem no estado do Pará. Vai mudar, meu amigo. Confie. A bancada do estado do Pará vai estar junto do ministro Onyx pedindo a mudança de todos que estão no estado do Pará. Da Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia] até lá embaixo, seja que órgão for. A gente quer andar pra frente e eu acredito no presidente Bolsonaro e nesses homens que ele colocou aqui em Brasília. O Pará precisa crescer! Vocês não vão sair daqui sem a esperança de que o estado vai mudar!”, disse. Mauro não deixou claro se a “petista” a que se referiu era a superintendente do Ibama no Pará, Clívia Bezerra Araújo. Os fazendeiros que estavam na plateia, consultados pela reportagem, disseram que sim. Mauro saiu antes de o evento acabar, mas aproveitou seu tempo para defender os responsáveis pela segunda maior chacina do campo brasileiro nos últimos 20 anos, o Massacre de Pau d’Arco, que deixou dez trabalhadores mortos. “Naquela ocasião, quando a polícia esteve em Pau d’Arco pra defender o Estado, pra defender o proprietário, pra tirar os invasores da terra, matou todos na resistência e os policiais viraram bandidos”, disse.

     

    O deputado Delegado Éder Mauro (PSD – PA) – Agência Câmara

    Nosso patrão, Bolsonaro

    “Tudo o que foi relatado aqui, nós tínhamos em governos anteriores. Agora nós temos um governo presente, que começou há praticamente 90 dias. Estamos sob o comando da autoridade maior, aquele que foi eleito pela maioria do povo brasileiro. Se chama presidente Jair Messias Bolsonaro. Ele é o nosso patrão”, afirmou Nabhan Garcia. Em quase todas as ocasiões, ele, o grande anfitrião do encontro no Mapa, procurou acalmar os ânimos e prometer a tal nova era bolsonarista. “Eu conheci o então deputado Bolsonaro em 1994. Ele sempre foi em primeiro lugar um aliado. Todas as vezes que o setor produtivo precisou de ajuda, esse homem que não tem um palmo de terra, não era da profissão dele, sempre esteve do nosso lado”, garantiu Nabhan Garcia. A maioria da plateia pareceu confiante nas palavras, mas alguma impaciência pairava no ar. Nabhan Garcia voltou à carga: “Não queiram que o governo que assumiu há 90 dias conserte o que houve de errado em 34 anos em 90 ou 100 dias. Nós temos alguns cânceres aqui que não podem continuar mais fazendo o que fazem. Ele precisa do apoio da população pra fazer mudar. Ninguém legisla ou governa sozinho”, falou em um tom mais exaltado. O marco de 34 anos remonta ao término da ditadura.

    Um dia depois da reunião entre Nabhan Garcia e os fazendeiros do Pará, o presidente Bolsonaro assinou um decreto para converter multas ambientais em áreas de recuperação. No último dia 14, o presidente pessoalmente desautorizou uma operação do Ibama em Rondônia enquanto ela estava em curso. A operação visava combater a extração ilegal de madeira. “Ontem, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, veio falar comigo com essa informação [sobre a operação]. Ele já mandou abrir um processo administrativo para a apurar o responsável disso aí. Não é para queimar nada, maquinário, trator, seja o que for, não é esse procedimento, não é essa a nossa orientação”, afirmou o presidente em um vídeo que circulou nas redes sociais. Após o ministro Ricardo Salles ter ameaçado investigar agentes do ICMBio, o presidente do órgão, Adalberto Eberhard, pediu demissão no último dia 16 – seria substituído dois dias depois pelo coronel da Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo, Homero de Giorge Cerqueira. Servidores ambientais divulgaram um dia depois uma carta acusando o ministro Salles de destruir a política ambiental federal. Em uma live no último dia 17, Bolsonaro ameaçou demitir a diretoria da Funai e criticou a legislação ambiental vigente.

    Ao menos no meio ambiente, a nova era deu passos largos desde a reunião no Mapa.

    Publicado originalmente: https://apublica.org/2019/04/desfaca-tudo-essas-reservas-diz-produtora-a-secretario-em-reuniao-de-fazendeiros-do-para-com-governo-federal/?fbclid=IwAR2_5tQv6dF4EKi9jJHDuV_ny4-EdPyrngKLOP4uyguSfQh2DOCKsx-qn-8 

  • Quilombo resiste à violência em área turística da Ilha de Santa Catarina

    Quilombo resiste à violência em área turística da Ilha de Santa Catarina

    Atraso em laudo antropológico ameaça sobrevivência dos remanescentes do Quilombo Vidal Martins, que chegaram a ser registrados como brancos e com sobrenome diferente para não ter acesso à terra herdada dos escravos. Localizado no Norte da Ilha de Santa Catarina, no acesso às praias, o Quilombo Vidal Martins vive neste final de semana um momento dramático da sua história à espera que um documento público devolva-lhe o direito à vida em comunidade. O reconhecimento definitivo do território se arrasta desde 2013, quando a Fundação Cultural Palmares expediu a certidão de autorreconhecimento quilombola. Esse libelo para o martírio de 28 famílias (cerca de cem pessoas) descendentes de escravos que resistem a uma situação de marginalidade social, fora da área de demarcação, depende, contudo, da apresentação de estudo histórico, socioeconômico, cultural e ambiental da área. Depois de um tortuoso processo burocrático, a comunidade espera que o laudo antropológico seja entregue na segunda-feira (20/8), como prometido, para que possa dar continuidade ao processo de regularização do seu território e ocupá-lo de fato.

    Joana Zanotto para os Jornalistas Livres

    Fotos: Jekupe Mawé

    Edição: Raquel Wandelli

    Jucélia, de óculos, e seus parentes estão entre as 28 famílias que aguardam o reconhecimento definitivo das terras herdadas dos antepassados escravos. (Foto: Jekupe Mawé)

    Uma mulher está à frente da luta pela demarcação do quilombo que leva o nome de seus antepassados. Helena Vidal Martins, presidente da Associação dos Remanescentes dos Quilombolas de Vidal Martins, perdeu o pai de sua filha em 2012, assassinado num conflito por terra. Decidiu então ir atrás de sua história para garantir território aos descendentes da comunidade. Foi então que a líder descobriu a grande fraude contra seu povo: a certidão no cartório dizia que o seu bisavô era branco. O avô havia sido registrado como Martins. Helena achou estranho. Ninguém dos seus era branco nem levava o nome de Martins. O avô relatava que os parentes haviam chegado à ilha confinados como escravos nos porões de um navio atracado na praia dos Ingleses. “Fomos atrás. Achamos o livro de escravos no Rio Vermelho. Constava os nomes de Vidal Martins, meu avô, e da sua mãe Joana, também escrava.” Com as informações e memórias dos antigos, foi possível montar a árvore da família e traçar o vínculo com a terra.

    A certidão de autorreconhecimento quilombola, pré-requisito do processo, foi expedida em 2013 pela Fundação Cultural Palmares. Em 30 de março de 2015, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e a Universidade Federal de Santa Catarina firmaram acordo de cooperação técnica para elaboração do laudo que deveria ter sido concluído no prazo de um ano. No entanto, o relatório antropológico necessário para completar a primeira parte do processo demarcatório foi entregue pela UFSC e recusado pelo Incra em 2016, que o considerou incompleto e levantou 27 questionamentos. Após a recusa da primeira versão dos estudos, a universidade atrasa a apresentação dos documentos prometidos para dezembro de 2017.

    No decorrer dos últimos anos, a comunidade se reuniu inúmeras vezes com o pessoal do Incra e universidade, com mediação do Ministério Público Federal. A Defensoria Pública da União entrou com pedido para realização de uma audiência pré-processual, após contato feito pela comunidade, em 25 de abril. A UFSC alegou que a comunidade Vidal Martins ainda deveria entregar alguns documentos importantes que faltavam para a constituição do laudo Os documentos deveriam ser referendados em assembleia da comunidade e por assinatura de todos os membros.

    Um novo prazo de 90 dias foi determinado. “Passaram os 90 dias, o prazo foi prorrogado em mais 15. Esperamos que entreguem o laudo na segunda-feira, dia 20/8. porque a demora impede a comunidade de sair do aperto que vive hoje num território de resistência com casas muito pequenas”, como explica Helena.

    Há anos na batalha pelo reconhecimento do território, Helena reclama da demora para a finalização do laudo. O primeiro relatório entregue foi devolvido pelo Incra que contestou a ausência de indicação do território. “A gente deu tudo. A comunidade que mais deu documentos foi a nossa. Fizemos o mapa três vezes, meu tio com a memória histórica dele tendo que caminhar de um lado ao outro, velho e com a perna machucada. Desumano. As pessoas passaram a desacreditar que conseguiríamos.” Enquanto isso, ameaçados pela especulação imobiliária, hostilizados pela população branca e vítimas de violência policial, os descendentes quilombolas foram se favelizando em torno do território que lhes pertence por direito.

     

    ESCRAVOS PREFERIRAM POUPAR DESCENDENTES
    DAS SUAS HISTÓRIAS DE SOFRIMENTO

     

    Jucélia Beatriz Vidal se recorda das dificuldades de infância, quando morava num casebre de barro e atravessava os caminhos tomados d’água, tudo a pé. Não que a vida tenha se tornado fácil. Aos 60 anos, mãe de duas filhas, Helena, de 36 e Shirlen, de 38, vive com os parentes em uma casa de 200 metros quadrados fora do perímetro apontado oficialmente como área quilombola na capital de Santa Catarina, famosa pela colonização europeia. Ela e sua família estão entre as 28 que aguardam o reconhecimento do quilombo remanescente no Parque Estadual do Rio Vermelho. “Nós mesmo nos reconhecemos. A gente sabe da nossa história. Ninguém vai tirar da nossa boca. Mas o estado tem que reconhecer nós”, cobra Jucélia.

    – A gente está na terra onde nossos antepassados estão enterrados. Nós quando éramos pequenos sofríamos muito, muito mesmo. Por isso não sei muito da lei, sei ler e escrever pouco. Mas meu pai sempre falava para nós: “Isto aqui tudo é de vocês. Nossos antepassados eram escravos que vieram no navio negreiro.” Desde que eu era pequenininha ele contava. Mas eu falo com muita tristeza… Alegria e tristeza! Porque eles apanhavam muito. Ali, antes de chegar na entrada do Rio Vermelho [aponta na direção],  tem o nome de Mocotó porque eles matavam o gado. Os senhores comiam do bom e davam o mocotó pros escravos comerem.

    Odílio Martins. morador mais antigo do Quilombo Vidal Martins, ajudou a abrir a estrada que leva o Parque do Rio Vermelho à Barra da Lagoa, mas foi impedido de entrar na terra herdada de seu pai, que foi enganado pelo regime militar  (Foto: Jekupe Mawé)

    Aos 65 anos, Odílio Izidro Vidal, o tio de Helena, é a pessoa mais velha da comunidade. Cresceu vendo seu pai trabalhar na roça no cultivo de arroz, feijão, mandioca, produzindo farinha, trocando pescado por carne seca e açúcar na Lagoa da Conceição. Quando o pai ia ao centro saía às 5 da manhã e retornava meia-noite para casa, o trajeto feito a pé pela Barra da Lagoa. “A gente não tinha dinheiro, mas tinha fartura”. Por dia de pesca chegava a pegar de 30 a 40 quilos de camarão.

    –  As únicas pessoas que moravam aqui éramos nós, meu pai, meu tio e tia. No tempo do golpe militar, enganaram meu pai. Falaram que ele poderia continuar usando a área. Até que tiraram a gente e ele comprou aquele pedacinho de terra pequeno com o dinheiro do trabalho. Quando eu fiquei maior, trabalhei na área. Ajudei a abrir a estrada para a Barra da Lagoa. Mas fomos impedidos de continuar entrando no terreno onde hoje está o Parque do Rio Vermelho. Agora podemos entrar aqui por causa do quilombo. Íamos brigar com quem? Com o governo? Meu pai morreu faz uns 30 anos e nem sabia dessa lei dos quilombolas. Nem eu não sabia. Fui saber agora, faz uns cinco anos mais ou menos. A Helena [sobrinha] foi atrás dos documentos da nossa história. Do que eu vivi em diante sei tudo.

     

     

     

     

     

     

     

    O procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos é regulamentado pelo Decreto nº 4.887, de 2003, assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da SIlva. Em 2004, passou a vigorar no Brasil a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. O Brasil, juntamente com mais 16 países, ratificou a convenção dando a ela força de lei. A Convenção assegura às comunidades quilombolas o direito à propriedade de suas terras e estabelece a necessidade de consulta sobre todas as medidas suscetíveis de afetá-las.

    Helena, de óculos, em roda de conversa de mulheres quilombolas no Parque Estadual do Rio Vermelho.  (Arquivo pessoal de Cláudia Prado da Rosa)

     

     

    Comunidade Quilombola Vidal Martins
    Dos arquivos da comunidade Vidal Martins, formada por descendentes de escravos do séc. XVIII

    O Quilombo Vidal Martins, onde habitam 28 famílias descendentes de escravos, localiza-se no bairro Rio Vermelho, em Florianópolis. Um dos mais antigos da ilha, completou 180 anos em 2011.

    Escavações arqueológicas realizadas pelo padre João Alfredo Rohr (1908-1983) apontam a existência de populações dos índios Carijós no local, os resultados das pesquisas encontram-se no Museu do Homem do Sambaqui e no Museu de Antropologia da UFSC.

    Sobre o início da ocupação portuguesa sabe-se muito pouco, mas existem indícios de já haver algum povoamento no início do século XVIII, e da construção de uma capela em 1750. Com segurança, o povoamento e a história do Rio Vermelho começaram apenas na segunda metade do século XVIII, quando os açorianos chegaram a partir de 1748. A ocupação das terras motivou a construção de uma segunda igreja, em 1810. Pelo aumento rápido da população, em 1831, por decreto da Regência, foram criados o distrito e a paróquia de São João Baptista do Rio Vermelho.

    Alguns dos primeiros moradores do distrito foram os senhores de escravo, seus respectivos escravos e a população proveniente das ilhas dos Açores e da Madeira. As casas dos senhores de escravos eram em sua maioria de pedra, assim como as senzalas. Já as casas dos escravos alforriados eram de taipa, ou pau-a-pique e barro, e se localizavam na parte sul do povoado, mais distante do centro.
    Os meios de transporte antigos eram a pé, de canoa e a cavalo. Para transporte de carga usava-se a carroça e o carro de boi. No Rio Vermelho localizava-se a maior área da ilha cultivada com mandioca, e era onde ficava também, a maior concentração de engenhos, que antigamente eram manuais e mais tarde foram substituídos por engenhos movidos à força dos bois.
    O bairro do Rio Vermelho hoje possui cerca de 15.000 habitantes, segundo o IBGE (2010).

  • Povo Pankararu luta para concretizar demarcação

    Povo Pankararu luta para concretizar demarcação

    O povo Pankararu, do sertão pernambucano, hoje localizado entre os municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá, tem como primeiro registro de aldeamento em 1700, de acordo com a carta régia de 1703. Com 100 anos depois da criação do agrupamento do Brejo dos Padres, em 1877, Dom Pedro II, em viagem pelo Rio São Francisco fez a doação de uma sesmaria, ou seja, uma légua em quadra, 14.294 hectares marcada a partir da igreja que está no Brejo dos Padres. Esse foi o forte argumento para o reconhecimento étnico e para dar inicio ao processo de demarcação. Em 1940, no entanto, os limites das terras reivindicados não foram respeitados e o território foi reduzido de mais de 14.000 hectares iniciais por 8.100 hectares oficialmente reconhecidos. O povo Pankararu intensificou a batalha na justiça pelo reconhecimento correto de seu território e pela saída de posseiros de suas terras.

    Em 1984, a FUNAI propõe ao órgão corrigir a diminuição realizada em 1940, elevando o tamanho territorial para 14.294 hectares finalmente demarcados e homologados como reserva indígena Pankararu em 1987. Apenas em 1993, por força de uma ação civil pública movida pela Procuradoria da República, a Justiça decide pela retirada de doze famílias de posseiros, identificados como suas principais lideranças, na tentativa de viabilizar as demais retiradas, mas os posseiros recorrem e ganham a suspensão da decisão, voltando a situação indefinida anterior, um processo que já dura 25 anos e percorreu as três instancias de justiça do país e em todas as demais decisões se deu ganho de causa ao povo Pankararu.

    Em 14 de fevereiro de 2017, o juiz da 38 Vara Federal de Serra Talhada, determinou o cumprimento da execução pela saída imediata dos posseiros, dando um prazo máximo de 12 meses para concluir a desocupação das mais de 300 famílias de não indígenas que hoje ocupam 20% do território Pankararu. Agora, em 2018, determinou a saída dos posseiros por força policial e determinou que a PF e PM executasse a retirada sob pena de multa diária de R$ 2,000 a cada dia que a ordem não for executada. Em março de 2018, a Justiça Federal estendeu, novamente, o prazo por mais 45 dias para a saída de forma pacífica por parte dos posseiros, mas poucos aceitam os termos de acordos, as indenizações e os novos territórios onde serão alojados e a demora dos órgãos competentes em atender as demandas dos posseiros está a cada dia colocando indígenas e posseiros em risco.

    Os órgão competentes precisam agilizar essa desocupação de forma organizada e digna para aqueles que irão sair e não deixar que esse prazo acabe se estendendo por mais 25 anos. Os conflitos locais entre posseiros e indígenas estão cada vez mais reais e se instala uma sensação de guerra no ar. As lideranças indígenas tem suas casa vigiadas por câmeras de segurança e não deixam a aldeia sozinhos e muitos deles preferem não sair da aldeia, pois nas cidades vizinhas o discurso de ódio contra o povo Pankararu está a cada dia aumentando e gerando desconforto e insegurança em todos que se identificam como indígena. Poucos sabem a realidade, a história e as batalhas que o povo Pankararu vem bravamente resistindo por séculos de opressão e injustiças sociais e hoje, depois de 25 anos de espera pela garantia de posse total de seu território, ainda não se pode comemorar a conquista. Hoje os Pankararus são cerca de 7.200 pessoas em 14.294 hectares de reserva, daqui 50 anos serão mais 7, 8 mil indígenas dentro do mesmo território. Que o direito a terra seja garantido para essa e as próximas gerações e que encontremos uma forma saudável de convivência, indígenas ou não, baseados no respeito e na paz entre todos.

  • Retomada da Terra Sagrada

    Retomada da Terra Sagrada

    Cinco guerreiros caminham pela trilha na mata nativa. “Tudo limpo”, avisa alguém. No local escolhido, começam a limpar onde será o “Apy”, Casa de Reza, na língua Tupi. “Aqui é onde nossos filhos crescerão”, afirma Awaratan Wassu, líder indígena em Guarulhos, a 20 Km de São Paulo, capital. “Você viu que lugar lindo?”, pergunta Alex, liderança do povo Wuerá Caimbé, “ali tem um lago, ali uma nascente. Águas cristalinas”, diz com olhos de quem observa ancestrais. Enquanto os facões cortam a vegetação rasteira, chegam as mulheres com os mantimentos. 

    Foto: Christian Braga

    Rosa Pankararu é a primeira a entrar no espaço sagrado. “Paz, tranquilidade. Este local é como se eu estivesse na minha aldeia, na minha terra. A mente da gente vai longe, sabia? Acho que cada parente aqui está com a mente longe, tenho certeza que cada um está na sua terra”. Rosa nasceu em Pernambuco, na Aldeia Brejo dos Padres, vive em Guarulhos há 32 anos, onde teve dois filhos. “Nós vamos poder fazer uma casa de farinha aqui?”, grita para todos mirando longe. Respondem com sorrisos, afirmativas e exemplos de como era a casa de farinha em suas aldeias.

    Área da Terra Sagrada em Guarulhos que há 40 anos está sem uso, antigamente usado para a criação de porcos. Foto: Christian Braga

    A aldeia multiétnica, Projeto Terra Sagrada, começou a ser gestado em 2002 pelas lideranças dos povos indígenas de Guarulhos. Em 2008 foi feito projeto junto à Prefeitura e neste ano, em abril, o Subsecretário de Igualdade Racial, de acordo com os indígenas, levou-os até duas terras, dois locais para que escolhessem onde seria a aldeia. “Aqui tem nascentes, tem mata nativa. Aqui escolhemos”, diz Alex Wuerá Caimbé. “Se é aqui que vocês querem ficar, é aqui que vão ficar, essa terra será de vocês. Não se surpreendam se em agosto tudo já estiver resolvido, disse o secretário. Gerou expectativa, fomos a nossas casas, falamos com nossos filhos, nos preparamos, fizemos um projeto para aqui viver”.

    Toda a estrutura de concreto que já estava no local será derrubada e cada etnia vai ter uma área na aldeia. Foto: Christian Braga

    Projeto que começa com a Casa de Reza. Local onde tudo acontece, o coração da aldeia. Nele são realizados os torés, cerimônias de canto e dança para conectar com os ancestrais, a cultura e a tradição de suas etnias. Nos torés, as diferenças, as questões, as propostas da aldeia são tratadas. Ao chegarem na Terra Sagrada, a primeira providência foi limpar o terreno para fazer a Casa de Reza. Entre tirar as folhas, revirar a terra e preparar a fogueira, Xukuru explica “a casa de reza é a primeira. Nela a gente faz orações, reza, dança o toré. Casa de Reza é a base para todas as etnias, e cada um em sua área poderá fazer seu templo. Temos diferentes religiões. O importante na aldeia é estar todo mundo junto, porque para ser aldeia o índio tem que estar junto. E é importante conhecer os costumes uns dos outros, acompanhar os saberes”. Cada etnia das 14 representadas nesta retomada de terra terá uma área própria em que irá desenvolver as tradições de seu povo.

    A limpeza no local foi feita rapidamente pelas nove etnias que vão morar no local. Foto: Christian Braga

    “Terra é amor. Terra para índio é um sonho, o nosso sonho de consumo”, diz o líder Caimbé. Pai de quatro filhos, dentre eles um bebê de seis meses, Alex se mudou para a Terra Sagrada. “Não estamos aqui brincando de casinha, a partir de segunda-feira meu endereço e dos meus filhos é aqui”. A decisão de retomar a terra foi tomada há cerca de 15 dias após reunião das lideranças com a Prefeitura de Guarulhos. “A Terra Sagrada existe? – indagamos ao subsecretário. Ele abaixou a cabeça, cruzou as pernas e disse ‘não’. Ficamos sem chão”.

     

    Há cerca de 1600 indígenas em Guarulhos, 14 etnias têm representantes na Associação Arte Nativa Indígena, organização com sede no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá, de acordo com seu coordenador Awaratan Wassu. “Cada povo tem seu representante”. Nenhum indígena é Guaru, os donos primeiros da terra, aqueles que deram nome a Guarulhos. Os Guarus foram exterminados, suas terras tomadas, sua cultura e tradição extintas. A retomada da Terra Sagrada é uma homenagem aos parentes, como os indígenas se consideram e se chamam, além de representar a real possibilidade de vivenciar usos e costumes, de estar em contato com a natureza e de que os donos primeiros possam cuidar da mata, do local sagrado dos ancestrais, garantindo condições de vida a povos em situação de vulnerabilidade.

    A aldeia multiétnica Terra Sagrada ocupará 130 mil metros quadrados de área de mata ao norte da cidade de Guarulhos, próximo ao Rodoanel. O projeto prevê uma área comum, cujo centro é a Casa de Reza, e espaços próprios para cada etnia atuantes na Associação Arte Nativa Indígena e no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá de Guarulhos. “Já conta com uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e com a futura assistente social da aldeia”, diz Vanusa Caimbé. Para ela, morar na aldeia significa conviver com a natureza, ter hortas, plantas e não depender de remédios para uma simples dor de cabeça ou de barriga. A proposta é valorizar a cultura indígena em seus mais diferentes aspectos, dando suporte para que tradições não se percam, como no caso dos Guarus.

    “Sabe aquela árvore ali que eles podaram?”, aponta a diretora da Associação Arte Nativa Xukuru, “é ameixa. Serve para fechar ferimentos, ferida de útero. É cicatrizante, une a carne. A floresta é rica em tudo. A gente pode sobreviver desta terra”. Para o líder dos Wassu e coordenador do movimento indígena, Awaratan “este é um projeto pedagógico para cultivar, preservar, viver uma cultura profundamente vinculada à sacralidade da terra. É terra indígena. Nós cuidamos da terra, preservamos a mata. Temos respeito e cuidado com a natureza”. O discurso comum das lideranças presentes na retomada da Terra Sagrada foi o de buscar evitar a destruição de mais uma área de mata em Guarulhos.

    “É uma área de mata, os não-indígenas estão entrando, destruindo já, queremos reverter isso”.

    Foto: Christian Braga

    Após a base da Casa de Reza, da fogueira pronta e do compartilhar do café, acontece a primeira dança sagrada no espaço prometido. O toré reúne saberes e ritmos. Retoma a conexão com a ancestralidade, reforça a beleza da cultura nativa brasileira.

     

    Foto: Christian Braga | Foto: Guilherme Silva

    “Não tem processo ”, foi a constatação que as lideranças chegaram na reunião com a Secretaria de Igualdade Racial. “Cadê o número do processo?”, pergunta Awaratan Wassu, “como podemos acompanhar o andamento sem um número de processo?” Ao perceberem que a Terra Sagrada pode ser promessa vazia, as lideranças indígenas decidiram retomar a terra dos Guarus.

    “Hoje serão só os guerreiros, homens e mulheres. Crianças e mais mulheres entrarão no final de semana”, conta Awaratan Wasu. “A gente não quer morar em apartamento, a gente quer pisar na terra. É um direito que a gente tem, é um direito que a gente vai correr atrás”, reafirma Neide Xukuru. “Queremos conversar com o Prefeito, queremos um posicionamento”, diz Aléx Wuerá Caimbé. Na concentração da caravana em rumo à Terra Sagrada, Awaratan Wassu avisa:

    “De lá eu só saio amarrado. Arrastado pelo trator”.

    Histórico da Retomada Sagrada

    A retomada ocorreu na tarde de 27 de outubro, sexta-feira. Após concentração no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá, uma pequena caravana levou as guerreiras e os guerreiros até imediações da Terra Sagrada, no limite das obras do Rodoanel Norte. No dia anterior, as lideranças indígenas entregaram documento com reivindicações para a Chefe de Gabinete do Prefeito de Guarulhos. Dentre elas, está a imediata cessão da terra para a construção da aldeia multiétnica e a transferência da coordenação indígena para outra secretaria. “Não estamos satisfeitos com a Secretaria da Igualdade Racial”, reafirma Awaratan Wassu.

    27 de outubro de 2017 – Retomada da Terra Sagrada – entrada das lideranças indígenas na área prometida.
    26 de outubro de 2017 – Entrega de documento reivindicatório da Terra Sagrada ao Prefeito de Guarulhos.
    Início de outubro de 2017 – Subsecretaria de Igualdade Racial diz não ter o número do processo de efetivação da Terra Sagrada.
    Abril de 2017 – Escolha do local da Terra Sagrada e compromisso da Subsecretaria de Igualdade Racial na entrega do local ainda este ano.
    Janeiro de 2017 – Apresentação do projeto Terra Sagrada para a nova gestão municipal de Guarulhos.
    2008 – Elaboração e entrada do projeto junto à Prefeitura de Guarulhos.
    2002 – Concepção do Projeto Terra Sagrada pelas lideranças indígenas de Guarulhos.

    Texto: Caru Schwingel | Fotos: Christian Braga

     

    Foto: Christian Braga
  • “Assina, Dilma!”

    “Assina, Dilma!”

    Lideranças indígenas exigiram hoje a assinatura imediata de portarias declaratórias e decretos de homologação de 22 Terras Indígenas em dez estados do país. Atos estão prontos e demandam apenas a assinatura da presidente Dilma.

    Brasília, 10 de maio de 2016 – A iminência de um Governo Temer levou lideranças indígenas de todo país a fazerem um apelo à presidente Dilma pela assinatura imediata de Portarias Declaratórias e Decretos de Homologação de 22 Terras Indígenas. Os territórios reivindicados beneficiariam 14 etnias em dez estados brasileiros, totalizando mais de 360 mil hectares.

    O apelo foi feito hoje, em Brasília, durante a abertura do Acampamento Terra Livre. Maior mobilização indígena do país, o acampamento é organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e ficará montado nos arredores do Memorial dos Povos Indígenas até o dia 13 de maio.

    “Se temos um cenário ruim hoje, nossa leitura é de que um governo do PMDB nos dará um trabalho dobrado ou triplicado porque eles já mostraram claramente que são totalmente contrários às demarcações e aos direitos que conquistamos na Constituição de 88. Por isso apelamos à presidente. Assina, Dilma!”, conclamou a coordenadora-executiva da APIB, Sonia Guajajara.

    Segundo a APIB, as 22 terras reivindicadas hoje referem-se apenas àquelas cujos processos estão prontos e demandam somente a assinatura da presidente e do ministro da Justiça. Ao todo, a APIB diz haver 180 Terras Indígenas (TIs) aguardando identificação, 43 aguardando Portarias Declaratórias, 63 esperando Decretos de Homologação e ainda outros 357 territórios que estão sendo reivindicados, mas ainda sem nenhuma providência tomada pelo governo federal.

    Presente ao acampamento, o líder Kaingang Luis Salvador faz parte da Terra Indígena Rio dos Índios, um dos territórios reivindicados para homologação imediata. Segundo ele, o Decreto de Homologação da terra, já pronto, está à espera de assinatura presidencial há 16 anos.

    “A luta da TI Rio dos Índios já tem 32 anos, esperamos que a presidenta possa nos ouvir”, diz. Atualmente, ele e mais 46 famílias, totalizando 203 indígenas, vivem “espremidos” em cerca de dois hectares na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. Se homologada, a TI passaria a ter 711 hectares.

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    Terra Livre

    O Acampamento Terra Livre reúne manifestantes de todo país para reforçar as reivindicações dos povos indígenas pela garantia de seus direitos. A expectativa é de que mais de mil representantes indígenas, dos 26 estados brasileiros, participem do encontro. Além de debates e atividades culturais,  haverá também um ato “Pelo Direito de viver” na quinta-feira (12) pela manhã. A concentração será no Memorial dos Povos Indígenas a partir das 9h

     

    Entre as reivindicações, está a suspensão imediata da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a responsabilidade pela demarcação de Terras Indígenas. O grupo também se levanta contra o Projeto de Lei (PL) 16/10, que permite a mineração em Terras Indígenas, e contra a PEC 654 e o PL 65, que flexibilizam o licenciamento ambiental. O grupo também se manifesta contra o “marco temporal” aplicado pelo STF, segundo o qual Terras Indígenas só podem ser reivindicadas se houver comprovação de ocupação anterior à promulgação da Constituição de 1988.

    “Nossos irmãos indígenas estão sendo assassinados, todos os dias tem parentes sendo ameaçados ou baleados, nossas mulheres estão sendo estupradas. Presidenta Dilma, ainda dá tempo da senhora demarcar nossas terras indígenas. Por favor, nos apoie”, resumiu o representante da Articulação dos Povos Indígenas no Rio de Janeiro e em São Paulo, Darã Tupi-Guarani.

     

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