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  • A FORÇA E A FRAQUEZA DO BOLSONARISMO

    A FORÇA E A FRAQUEZA DO BOLSONARISMO

    “O tema da educação não é da esquerda”. Foi dessa maneira que o líder do Governo na Câmara dos Deputados, deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), se dirigiu a seus seguidores nas redes sociais, comentando o resultado da votação sobre a renovação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

    Daniel Pinha é professor do Departamento de História da UERJ

    Embora o governo tenha agido nos bastidores para postergar a votação e sequer tenha apresentado proposta alternativa sobre a matéria, no discurso de Vitor Hugo a votação foi vitoriosa para Bolsonaro. A fala do deputado, postada em vídeo em suas redes sociais, evidencia a fraqueza e a força do bolsonarismo: a fraqueza em operar no interior das regras do jogo democrático para propor e aprovar uma agenda, um plano de ação; a força, em ideologizar absolutamente todas as esferas da vida política, mantendo acesa e permanente a chama eleitoral de embate direita versus esquerda, animando, desta forma, sua base nas ruas e redes sociais.

    Criado em 2007 pelo governo Lula, o Fundeb recolhe 20% dos impostos e os divide para estados da federação investirem na educação básica, em proporção ao número de alunos matriculados em cada escola. A divisão dos recursos obedece critérios quantitativos, repassando verbas para governadores de estados dos mais diversos matizes ideológicos.

    Em um primeiro momento, o governo Bolsonaro encaminhou uma proposta de suspensão do Fundeb para 2021 e alterações no uso dos recursos, como a proibição do uso para pagamento de aposentados e pensionistas. O objetivo era retirar recursos do fundo para fortalecer o Renda Brasil, novo projeto que o governo está preparando para substituir o Bolsa Família.

    Deputados do centrão fisiológico, apoiadores de Bolsonaro, tentaram obstruir e adiar a votação, para tentar emplacar suas propostas. Sem sucesso. A votação decorreu e a derrota da proposta do governo foi acachapante: 499 a 7. Se a medida “direita versus esquerda” valesse para este caso, atendendo ao modo como o Major Vitor Hugo narrou a situação, a esquerda poderia começar a preparar seu processo revolucionário a partir do Parlamento, com a incrível base de quase 500 deputados…

    A derrota do governo expressa não só a inabilidade no Legislativo, mas também do Executivo em apresentar reformas imprimindo ritmo a mudanças. O governo não apresentou proposta alternativa ao Fundeb. Não possuía. Sofreu uma derrota retumbante e mudou, pouco antes, a narrativa: recuou porque sabia que ia perder. A discussão não contou com a presença do ministro da Educação. Em um ano e meio, já são quatro ministros e nenhum conseguiu apresentar um projeto estrutural de educação para o país.

    A pergunta feita pela deputada Tábata Amaral ao então ministro Velez Rodrigues continua no ar: qual o programa, qual a agenda deste governo para a educação? A ausência, no caso do governo Bolsonaro, é até bem vinda, tendo em vista o que poderia ser este projeto, se ele existisse. De qualquer forma, é sintomático que este governo tenha mantido e renovado um projeto criado por Lula para a educação brasileira.

    A renovação do Fundeb é vitória do Lulismo. Educação e cultura são trincheiras fundamentais do projeto político bolsonarista no sentido de implementar sua guerra ideológica. Cortes de bolsas de pesquisa científica, nomeações impostas de reitores e diretores de institutos de pesquisa são exemplos de medidas tomadas por este governo no âmbito da educação. São mudanças sensíveis, com impactos diretos na atuação dos educadores e pesquisadores. Não se pode dizer que executem um programa; antes destroem do que edificam algo.

    A bandeira da educação é vista, sobretudo, como instrumento retórico de um embate ideológico que retoma instrumentos conceituais da Guerra Fria. Weintraub foi exemplo máximo disso: administrava com um celular na mão, soltando bravatas, espalhando mentiras, ódio, violência e racismo pela internet, inclusive em horário de expediente.

    O discurso bolsonarista impõe uma narrativa que reduz toda agenda do governo a uma fórmula esquerda versus direita. Um caso aparentemente despolitizado, como, por exemplo, a importação de respiradores, remédios ou vacinas para o tratamento da Covid, ganha outro significado quando se fala que eles foram importados da China. Nos termos das guerras virtuais, das disputas políticas nas redes sociais, onde paira, em grande parte, a lógica da “bolha” que confirma expectativas prévias – e não a abertura para a diferença – esta modalidade de discurso faz sentido e soa efetiva. No entanto, isso não parece ser suficiente para governar nos termos da democracia.

    Entendendo o ato de governar como construir um plano de ação, ter uma estratégia e conseguir implementar efetivamente este plano. Bolsonaro mostrou capacidade de vencer a eleição, de governar não – uma eleição marcada pelo afastamento forçado e injustificado do seu principal adversário, Lula. Hoje, ora reclama que a democracia é regime “ingovernável”, ora faz uma ameaça de golpe, ora negocia com o centrão a própria sobrevivência. Este discurso super ideologizado traz também uma força: mantém uma base convicta de sua visão de mundo, mantém uma coesão ideológica em torno de si. Isto faz diferença em um contexto de crise democrático-representativa, em que boa parte da população expressa profunda desconfiança da política e dos políticos.

    A votação do Fundeb traz uma boa e uma má notícia. A boa é que Bolsonaro é ruim de governo e as regras do jogo democrático parecem atrapalhá-lo em suas próprias pernas, vivendo o drama do jogador que reclama o quanto a bola é redonda. Agindo dessa forma, por outro lado, ele mantém acesa a chama eleitoral naquilo que mais “fideliza” a sua base, isto é, a ideologia; assim, ele é forte candidato à reeleição, o que é uma péssima notícia para todos os brasileiros.

  • Futebol e violência contra a mulher na pandemia

    Futebol e violência contra a mulher na pandemia

    ARTIGO

    Camille Cristina, mestranda em História pela UERJ/FFP, e Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ

    Na fala de Renê Simões a normalização do machismo se faz presente de diversas formas. Em primeiro lugar, considera que o contexto “enlouquecedor” da quarentena criaria uma condição de estresse capaz de justificar a violência contra a mulher. O futebol – e não importa se em tempos de pandemia há exposição da saúde dos atletas nos treinos e jogos – serviria como uma espécie de “circo”, espetáculo, capaz de entreter e “acalmar” ânimos violentos. Como se o público consumidor do futebol fosse só de homens, algo que contraria o crescimento do esporte entre mulheres, que jogam e assistem. Reforça a máxima do “futebol é coisa de homem”, algo ainda mais grave quando proferido por um ex-treinador da Seleção feminina de futebol.
    Por fim, ele fala de amigos que já separaram, outros bateram… O grau de naturalização da violência é tamanho que ele fala de crimes cometidos por amigos como se isto fosse normal – pessoas próximas, com quem ele tem relação afetiva. Aliás, se ele soube de agressão a mulheres neste contexto de pandemia, por que não denunciou à polícia? Ou será que ele trabalha com a lógica machista de que em “em briga de marido e mulher não se mete a colher”?
    Em suma, a violência contra a mulher se revela nos gestos, mas também em discursos de normalização como o de Renê: “Vamos colocar homens correndo atrás de uma bola, para que outros homens assistam e parem de bater em suas mulheres por causa do estresse da quarentena”. Uma atitude que ainda é muito presente, infelizmente, na cultura futebolística brasileira.
  • E SE GEORGE FLOYD FOSSE BRASILEIRO?

    E SE GEORGE FLOYD FOSSE BRASILEIRO?

     

    ARTIGO

    Abner F. Sótenos, doutorando da University California San Diego, e Daniel Pinha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

     

    George Floyd foi morto no último 25 de maio após detenção policial na cidade americana de Minneapolis no estado de Minnesota. Floyd era um homem negro de 46 anos, asfixiado por quase oito minutos após ter sido algemado e imobilizado pela polícia local. Um dos policiais, que é branco, ajoelhou sobre o pescoço de Floyd e, com as mãos nos bolsos, posava para as câmaras de celular que filmavam Floyd agonizando e implorando pela mãe e por ar. As últimas palavras de Floyd foram: “Eu não consigo respirar!”. Esta frase estampou cartazes e se tornou um dos lemas dos protestos antirracistas que varrem o país até hoje. Ao público brasileiro que acompanha este caso, surge a incômoda pergunta: se caso semelhante ocorresse no Brasil, como seria a repercussão e mobilização social?
    O caso Floyd nos abre a possibilidade de pensar que o lema “Vida Negras Importam” não seja exclusivo dos negros. Nas ruas norte-americanas se observa a formação de uma frente multiétnica. Mais do que isso. Há o reconhecimento do privilégio branco a serviço da luta antirracista: mulheres brancas formaram cinturões humanos para proteger negros da ação policial nas manifestações. Importante lembrar, neste sentido, o papel dos movimentos sociais e black scholars na educação da população, na contínua mobilização de brancos e negros, após a frustração do resultado eleitoral de 2016. Este processo de formação fez com que a população não entendesse as lutas antirracistas atuais como separatistas ou supremacistas.
    No Brasil, não identificamos ainda uma associação direta entre racismo e privilégio, ou seja, não há o reconhecimento de que brancos se beneficiam do racismo estrutural. Isso dificulta a formação de uma frente racial por aqui e o racismo é entendido como problema dos negros e marca de seu vitimismo. Negros são atingidos pelo racismo, mas não os causadores do racismo e não devem ser os únicos responsáveis por seu combate.
    Racismo à brasileira
    O racismo brasileiro é entendido geralmente como uma ação de indivíduos isolados considerados às vezes ignorantes, às vezes perversos, mas quase nunca inseridos numa lógica social. A violência do Estado contra pessoas negras e indígenas mobiliza muito pouco a opinião pública brasileira. Muitas vezes tais violências não são percebidas como racismo, ainda que sejam praticadas sistematicamente contra grupos específicos, negros e indígenas. O exemplo disso é a letalidade policial. A polícia mata quase que exclusivamente a população preta – negros e pardos. De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), no primeiro semestre 2019, cerca de 80 % das vítimas policiais no Rio de Janeiro eram pretas. Dados mais recentes, apontam que, entre janeiro e abril de 2020, houve aumento significativo no Brasil de assassinatos cometidos por policiais civis e militares. Somente em abril, em pleno período de quarentena, houve estados em que a letalidade policial aumentou mais de 53% quando comparado ao ano anterior. Ao mesmo tempo, estudos apontam que jovens negros são os alvos preferencias dos homicídios cometidos no país.
    O racismo no caso brasileiro deve ser visto como ele funciona, operado pelas instituições públicas e privadas. Muitos casos ganharam dimensão nacional, mas não dispararam grandes mobilizações de rua, somente alguns atos na localidade em que a pessoa foi assassinada. Os assassinatos praticados entre 2019 e 2020 superam em muito os ocorridos nos Estados Unidos. Os exemplos se multiplicam, neste sentido.
    O caso do músico Evaldo Rosa, assassinado no Rio de Janeiro com 80 tiros disparados pelas forças interventoras do Exército brasileiro na cidade. Já a menina Ágatha Félix, de 8 anos, também assassinada por forças policiais em 2019 na cidade do Rio de Janeiro. As investigações apontaram que Ágatha foi assassinada pela Polícia Militar, que atirou a esmo num motociclista desarmado; a bala atingiu a menina dentro do transporte onde ela estava junto com a mãe. O assassinato do adolescente João Pedro, morto pela PM em casa, em meio à pandemia, embora tenha causado muita revolta não parou o país. Agora, no último dia 24 de abril, o jovem David Nascimento dos Santos, de 23 anos, foi sequestrado pela PM paulista e encontrado morto tempos depois. David, que morava numa favela em Jaguaré, Zona Oeste de São Paulo, esperava seu lanche chegar depois de um pedido feito pelo aplicativo iFood. As imagens captadas por uma câmera da rua revelaram o sequestro. As circunstâncias da morte do jovem negro Pedro Henrique Gonzaga, em fevereiro de 2019, são ainda mais tragicamente próximas as de George Floyd: asfixiado até a morte por um golpe de “mata-leão”, realizado por um segurança da rede de supermercados Extra, no Rio de Janeiro, na presença da mãe e sob lentes filmadoras.
    No Brasil, assassinar negros e negras virou algo cotidiano e naturalizado. O caso Floyd parece ter mobilizado mais a imprensa brasileira do que casos ocorridos aqui. A distância parece trazer uma espécie de conforto e a segurança de que a cobertura não incitará maiores riscos sociais ou uma espécie de chamado às ruas. Grosso modo, a imprensa tem apoiado não só a causa, mas as manifestações. O caso Floyd trouxe à tona a necessidade de negros conduzirem o debate sobre racismo na TV. Exemplo emblemático neste sentido foi a postura do canal de TV por assinatura Globo News que, após receber uma série de críticas nas redes sociais, trocou uma bancada de comentaristas formada por jornalistas brancos, por outra formada por negros, para tratar do caso. Ou seja, a própria forma de contar se tornou um fato digno de nota, mostrando o quanto a perspectiva anterior revelava o ponto de vista branco pretensamente universal.
    De orientação liberal, a abordagem da grande imprensa evita relacionar racismo estrutural e capitalismo. Reformas liberais, como a previdenciária, trabalhista e a PEC do Teto dos Gastos, amplamente endossadas pela grande imprensa, atacaram diretamente direitos dos trabalhadores. Sobretudo os negros, submetidos às condições de maior vulnerabilidade social. Exemplo disto ocorre no contexto da pandemia de Covid-19, em que negros ocupam as ruas a trabalho, fazendo entregas, transportando pessoas, vendendo máscaras, dentre outras atividades que põem suas vidas em risco.
    A morte trágica do menino Miguel evidenciou estas condições vulneráveis do trabalho negro em meio à pandemia: sua mãe, dona Mirtes, trabalhadora doméstica, não teve a “escolha” de aderir à campanha do “Fique em casa”. E se dona Mirtes descuidasse do filho da patroa branca, quais não teriam sido as consequências para ela?
    Floyd em meio ao racismo-neofascista
    A luta antirracista no Brasil é histórica, mas encontra no contexto atual obstáculos ainda maiores. O processo de “fascistização de setores sociais” torna as circunstâncias de reprodução do racismo ainda mais perversas. Em primeiro lugar, discursos em defesa da ação violenta da polícia são amplamente aceitos e aplaudidos por parcelas significativas da sociedade que, nas últimas eleições de 2018, elegeram não apenas um presidente com histórico de declarações racistas, mas também governadores e parlamentares que se vangloriavam de discursos em defesa do “homem de bem” branco. Será que, por exemplo, o discurso em defesa do porte de armas imagina que negros possam utilizá-las para defesa de incursões policiais em suas residências?
    Em segundo lugar, há o que podemos chamar de “negacionismo do racismo”. Não se trata apenas de disseminar o falso discurso de igualdade e democracia racial, tentando impor o esquecimento do trauma da escravidão. Mas agora esta modalidade negacionista é mais contundente. Ataca símbolos das lutas do movimento negro, aponta dimensões positivas da escravidão, reduz o problema estrutural do racismo ao chamado “mimimi”. O atual presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, é o caso mais exemplar em relação a isso. Ele é pago pelo Estado, com recursos de homens e mulheres negras, para negar a existência do racismo, invertendo inteiramente o propósito de seu cargo.
    Por fim, se George Floyd fosse brasileiro, o raciocínio racista-neofascista traria para primeiro plano a cínica afirmação feita em tantos casos: “Mas também, alguma coisa ele deve ter feito para merecer aquilo”. Uma afirmação, por vezes silenciosa, por vezes explícita, que revela o extravasamento do racismo praticado aqui. Aliás, nunca foi tão questionável a afirmação de que por aqui o racismo é velado, silencioso. Aqui se pratica política de morte, posta à prova de maneira contundente contra o corpo negro, acertado pela bala ou pelo joelho de um policial. Depois, atingido pela narrativa que banaliza e justifica sua morte, normaliza a violência, relativiza a brutalidade dos assassinos.
    Se George Floyd fosse brasileiro, seu corpo negro seria alvo da política de morte praticada aqui e a barbárie racista-neofascista trataria de liquidar não só seu corpo, mas sua memória. Por aqui, mais do que nunca, está muito difícil respirar… Por isso, no Brasil de hoje, uma premissa é inescapável: qualquer iniciativa de luta democrática e antifascista só será efetiva se for antirracista.
  • Unidade democrática: somos 70% e os desafios da esquerda

    Unidade democrática: somos 70% e os desafios da esquerda

    ARTIGO
    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ. E é 70%
    Trata-se de um excelente desafio para as esquerdas repensarem seus desafios, no interior de um modelo democrático representativo que, como princípio, não atende inteiramente às suas aspirações. Trata-se também de pensar o potencial desestabilizador das esquerdas em relação ao governo Bolsonaro, em meio a uma crise democrática anterior à pandemia de Covid-19, mas acentuada nela. Afinal, quais as condições da esquerda avançar em suas agendas, neste ambiente político? Como a esquerda se insere neste “somos” do #Somos70%?
    Bolsonaro e a brecha antidemocrática
    É necessária e tardia a formação dessa frente. Bolsonaro é a presença do passado ditatorial em nosso ambiente democrático, personificando a contradição de origem do sistema político inaugurado em 1988. O liberal Ulysses Guimarães no discurso de promulgação da Constituição exaltou o fim da Ditadura, dizendo: “Temos ódio e nojo à Ditadura”, “Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”.
    Tal contundência não foi acompanhada por uma justiça de transição capaz de rever o pacto de anistia proposto em 79, julgando crimes e violações cometidas por agentes do Estado na Ditadura. Nesta brecha, Bolsonaro atuou intensamente. Como deputado, usava o espaço parlamentar para atacar a própria democracia. Comemorava, ano a ano, os aniversários do golpe de 1964. Bradava pela violência de Estado, do passado e do presente, como se esta já não fosse suficiente. Rechaçava o espaço da pluralidade democrática, do convívio com a diferença, dos princípios mais básicos de funcionamento da democracia moderna. Exemplo máximo, neste sentido, são seus ataques ao conceito de direito humano, um conceito de matriz liberal, fundado nos valores iluministas e da Revolução Francesa, renovado mais recentemente no pós-segunda Guerra Mundial, em contraponto ao nazi-fascismo. Bolsonaro formou uma identidade política contrária a todos esses valores em sua atuação parlamentar, crescente na crise representativa iniciada em 2013, se apresentando como voz e ameaça concreta a todos os espectros políticos existentes no interior do jogo democrático, de esquerda e de direita.
    O movimento #Somos70% expressa a necessidade, tardia e urgente, de demarcar a diferença fundamental entre fascismo e democracia. O primeiro fundado na cultura do ódio, na violência de Estado em favor de um projeto único de sociedade, exaltação de uma política de morte, anulação das diferenças políticas, considerando o adversário como inimigo que não deve ser vencido, mas exterminado. A democracia se ampara em valores opostos a estes, tais como: a prerrogativa essencial do direito humano enquanto forma de preservação da vida, diferença política entendida como valor, convívio necessário com a pluralidade de projetos políticos, tendo em vista a inescapável condição de que o adversário continua no jogo mesmo que tenha sido derrotado.
    Vejam que, enquanto princípio, se tomarmos como referência o contexto pós-guerra, a democracia não é nem de esquerda nem de direita. Como nos lembra o cientista político Luis Felipe Miguel, este contexto pós-guerra tornou a democracia objeto de disputas entre direita e esquerda. A direita, ancorada no lucro e na propriedade privada enquanto valores essenciais geradores de diferenças sociais, em função da capacidade individual dos sujeitos em alcançarem lugares diferentes de acordo com as suas capacidades. A esquerda prioriza o princípio da “igualdade social” fundado na possibilidade de equivalência (ou melhor distribuição) entre produção e distribuição da riqueza, fundamentais para a coletividade e, em consequência, para os indivíduos.
    A Constituição de 1988 combina/ concilia, de maneira moderada, estes dois princípios: propriedade privada geradora de lucro como cláusula pétrea, geradora das diferenças sociais; direitos sociais universais, como saúde e educação, enquanto serviços essenciais comuns a todos. Um e outro, acomodados a um sistema político democrático, sustentado no equilíbrio entre os poderes republicanos, autonomia dos estados da federação, pluripartidarismo, eleições regulares, liberdade de expressão, dentre outros.
    Situação limite para a direita
    O caso brasileiro atual acompanha um fenômeno bem peculiar: mesmo eleito por um sistema democrático – ainda que em crise, tendo em vista o golpe de 2016 e impedimento da eleição de Lula em 2018 –, Bolsonaro é um presidente antidemocrático que radicaliza uma agenda econômica de direita. No primeiro ano de governo, o pragmatismo econômico pôs a direita democrática ao lado do governo Bolsonaro na aprovação da Reforma da Previdência. Mesmo assim, Bolsonaro já revelava grandes dificuldades de governar nas regras deste jogo, sobretudo em impor sua agenda própria, de unificação moral em torno do tripé “Família patriarcal, Bala (nos pretos) e Bíblia”. Exemplar, neste sentido, foi a derrota que conheceu na aprovação parlamentar de sua política de morte, por meio do armamento do “cidadão (branco) de bem” e do “excludente de ilicitude”, sinal verde para policiais matarem em serviço.
    A derrota do Programa Escola Sem Partido, no âmbito do STF, é outro exemplo. Tal incapacidade de governar nos termos do jogo democrático se acentuou em 2020, sobretudo em meio a pandemia da Covid-19. Não bastasse não seguir as recomendações sanitárias da OMS, ele entrou em rota de colisão com o parlamento, governadores, STF, grande imprensa, todos eles associados ao arco mais ampliado da direita (não fascista). Formou-se, assim, nesta situação limite, o ambiente para que a direita (não fascista) identificasse em Bolsonaro um inimigo da democracia.
    Desafios para a esquerda
    O primeiro desafio da esquerda, portanto, é reconhecer que as regras do jogo democrático-representativo, ancoradas na Carta de 1988, não foram criadas inteiramente para a satisfação de suas aspirações. A atuação da esquerda no interior deste jogo é sempre limitada. Os governos petistas parecem ter reconhecido essas limitações, produzindo transformações sociais, à esquerda, negociando e pondo em prática, como nenhum outro, as regras do arranjo institucional de 1988. O segundo desafio é reconhecer seu lugar no jogo político atual, suas condições de avançar mais, ou avançar menos em suas agendas.
    A ala parlamentar da oposição à esquerda tem sido notável, em sua missão essencial: reduzir danos. Tornar “menos pior” para o povo a experiência política do governo Bolsonaro. E não é de hoje, em meio à Covid, que este trabalho vem sendo realizado. A Reforma Previdenciária foi “menos pior” para o trabalhador e não se tornou um grande sistema de capitalização, em função desta atuação parlamentar. A retirada do excludente de ilicitude no pacote penal aprovado no Congresso é outro exemplo. A aprovação do auxílio emergencial no contexto Covid – velho desejo de renda básica do então senador petista Eduardo Suplicy – é outro exemplo. É importante reconhecer e narrar estas vitórias, nas ruas e nas redes, mas é também importante reconhecer que elas não são suficientes para reduzir a pobreza e a desigualdade social, escopo fundamental da atuação da esquerda. Há de se reconhecer que o trabalho é árduo, pois o Parlamento eleito era majoritariamente bolsonarista ou direitista, uma base que Bolsonaro conseguiu destruir em menos de dois anos de mandato.
    O que encontramos de mais fértil no campo na esquerda em termos transformação propriamente dita está fora da dinâmica institucional. Está, por exemplo, na atuação dos movimentos negro e feminista, em sua capacidade de avançar na compreensão estrutural do racismo e do machismo, nos cruzamentos diretos com o funcionamento do capitalismo historicamente praticado aqui. Nestas lutas, antirracista e antimachista, a esquerda tem encontrado capacidade de expansão, acumulando forças que lhes permitem tornarem estas agendas inegociáveis. Justamente por atacarem dimensões historicamente estruturais, seus passos são lentos, mas incisivos e duradouros.
    Cabe à esquerda, portanto, a despeito do esforço parlamentar e do avanço nas pautas de gênero e raça, considerar uma verdade inconveniente: nenhuma das maiores crises políticas de Bolsonaro foi gerada pelo campo da esquerda. Ela não conseguiu produzir nenhum grau de desestabilização institucional a este governo. A crise com o PSL, que rachou a base parlamentar, a crise ambiental, a crise com Mandetta, a crise com Moro, a crise com o STF, a crise com os governadores, em suma, a “usina de crises” deste governo, nos termos de Rodrigo Maia, não teve qualquer protagonismo da esquerda. Foi a própria pulsão destrutiva do bolsonarismo, antidemocrática por excelência, que gerou todas essas dissidências.
    O terceiro desafio, provavelmente o principal, talvez seja construir uma unidade, uma coalizão democrática. Junto, sim, com a direita não fascista. O que une um e outro é a reação, urgente, à pulsão destrutiva para a democracia que o governo Bolsonaro representa. Isto significa assumir, no agora, a tarefa de admitir o esquecimento como condição fecunda, para não ver a presença inadmissível de um fascista na presidência. Tal unidade não implica em dissipação das diferenças: elas devem permanecer, pois são a própria condição de existência democrática. Nas eleições, essas diferenças voltam a aparecer, dando ao povo o direito de escolha. O #Somos70% se baseia nas últimas pesquisas de opinião que indicam que os bolsonaristas são hoje, no máximo, 30%. Talvez o maior desafio deste movimento seja convencer o povo, sobretudo àqueles que votaram em Bolsonaro por ele representar uma alternativa de mudança, de que não existe alternativa fora da democracia. De que a democracia ainda é único regime político capaz de garantir melhores condições de vida, material e subjetiva, para a sua existência. E nisto a esquerda tem uma contribuição decisiva.
  • Sem ‘bala de prata’, com cloroquina do Paulo Guedes

    Sem ‘bala de prata’, com cloroquina do Paulo Guedes

    ARTIGO

    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

     

    A divulgação do vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro não foi a “bala de prata” para derrubar o governo, muito menos enfraquecer o bolsonarismo. E o problema não está no conteúdo do material divulgado, mas na expectativa gerada em torno dele: nem o presidente nem a ideologia que lhe sustenta caem com uma “bala de prata”. Para cair o governo por meio de impeachment, como sabemos, o caminho é longo e depende do procurador Geral da República e do Congresso, um um processo que é jurídico e político. Para a queda do bolsonarismo, o percurso é ainda mais longo e tortuoso, algo que nem a circunstância hipotética do impeachment será capaz de derrubar.

    Contraditoriamente, o vídeo enfraquece o governo e fortalece o sentimento político que o sustenta. O ponto central que levou à divulgação do vídeo é a acusação de Moro, mas há outros aspectos laterais que nos ajudam a entender a lógica e o funcionamento do governo, para além da exposição dos lunáticos olavistas, como mostrou o artigo de Valdei Araujo e Mateus Pereira aqui no Jornalistas Livres.

    Dois aspectos, no entanto, aparecem de maneira “lateral” na contenda com Moro, mas são fundamentais para o nosso contexto atual: enfrentamento da pandemia de Covid (1) e crise econômica dela decorrente (2). A ausência do primeiro e a presença do segundo na reunião nos ajudam a entender os próximos passos e é um termômetro decisivo para o enfraquecimento do governo.

    Sem bala de prata, com provas

    O vídeo não deixa dúvidas de que a acusação de Moro é procedente. Bolsonaro queria usar a Polícia Federal para proteger a si, seus amigos e sua família. Mais grave ainda, como ferramenta de polícia política para perseguir e atacar adversários, como fica claro nos momentos em que ele reclama de falta de acesso a sistema de investigação e informação. Assistindo a reunião completa, fica claro que a fala de Bolsonaro sobre a necessidade de substituição do “chefe, do diretor e do ministro” é, na verdade, a conclusão de uma longa “bronca”, toda ela direcionada a Moro, que já contava cerca quase dez minutos.

    Para “Bozo”, Moro não usava seu prestígio social e jurídico para defender aguerridamente o governo em meio aos ataques de todos os lados. Na hora de colher os louros, Moro colhia; na hora de defender o governo de ataques, se escondia. Bolsonaro cita o episódio de sua participação nas manifestações antidemocráticas de 19 de abril, e suas repercussões negativas na Imprensa e no Judiciário. Pedindo mais engajamento político de seus subordinados, insinuou que era o momento de ministros, com bom trânsito no Judiciário e na Opinião Pública, se apresentarem para a luta. Era óbvio que ele falava de Moro, um bolsonarista de última hora que, tal e qual um bom lava-jatista, apoiou o projeto sem fechar com um “pacote completo” que incluía “terra-planismo”, negacionismo científico, gestos milicianos e ataque ao STF.

    Moro foi para o governo com nome próprio e histórico de parceria com o núcleo lava-jatista do STF – sobretudo Barroso, Carmem Lúcia, Fachin e Fux (In “Fux we trust”, lembram?). Ao seu modo, autoritário e esbravejante, Bolsonaro pedia a Moro que submetesse sua imagem ao bolsonarismo. Se tivesse consciência democrática, Moro sequer aceitaria o convite de Bolsonaro, depois de condenar à prisão o principal líder de oposição ao governo; tampouco aceitaria continuar se subordinando a um presidente que se soma a manifestações políticas que pedem retorno do AI-5. Isso para citar apenas dois exemplos.

    Não é este o Sérgio Moro, mas dessa vez ele apresentou provas concretas: está lá, na voz de Bolsonaro, que exigia acesso a investigações de órgãos de inteligência. Que fique claro: ele não reivindicava a prerrogativa constitucional de demitir ministro nem nomear diretor, mas, sim, o acesso às investigações. Prometeu e fez. Demitiu Moro, Valeixo e o superintendente do Rio. Queria tornar oficial o que já é sua prática oficiosa (e criminosa), e ele esbravejou isto para quem quisesse ouvir no último dia 22, após a divulgação do vídeo. Se o governo cairá, diante de tantas provas e confissão, não sabemos. Dilma caiu por pretensas “pedaladas fiscais”; Temer não caiu, mesmo depois de ter sua voz exposta consentindo com crimes praticados por empresário corrupto (para dizer o mínimo). O processo de impeachment é político e juridico.

    Cloroquina de Paulo Guedes

    Paulo Guedes é uma das figuras mais representativas da mudança política que conduziu Bolsonaro da Câmara dos Deputados ao Planalto. Enquanto deputado, defendia um programa econômico nacional desenvolvimentista, alinhado ao modelo implementado pela Ditadura Militar. Orgulhava-se das obras monumentais, do padrão de desenvolvimento ancorado no Estado. Como candidato, já no quadriênio 2014-2018, enquanto exercia seu mandato, se alinhou ao discurso neoliberal como forma de agradar aos mercados e de polarizar com o governo Dilma, disputando o eleitorado de Aécio Neves, que em 2014 somara 49% no segundo turno.

    Paulo Guedes era o nome ideal, com a experiência de quem atuou no regime ditatorial chileno de Augusto Pinochet. No governo, tal como Sérgio Moro, o “Posto Ipiranga” virou um elo entre governo e grande imprensa. Como forma de diferenciar Guedes e sua agenda econômica do restante do governo, comentaristas da Globo News cunharam o termo “ala ideológica”, como se Guedes não estivesse nela, mas, um quadro “técnico”, distante da política. Assim impôs-se um consenso em torno da necessidade da reforma da previdência como único caminho possível para uma modernização econômica. Paulo Guedes foi bastante poupado pela grande imprensa na cobertura sobre o vídeo e a reunião. Ali ele defendeu o turismo sexual em nome do livre mercado e a privatização da “porra” do Banco do Brasil, só para citar dois exemplos. Lamentou que o governo seja obrigado a subsidiar pequenas empresas para saída da crise – estas, as maiores geradoras de empregos do país.

    Não há motivos, portanto, para não considerarmos ele também um lunático. Mais do que isso. Na reunião ficou claro que há dois programas econômicos em disputa no governo. Um encampado pelos generais, Rogério Marinho e Tarcísio Freitas; e outro defendido pelo Posto Ipiranga. O motivo central daquela reunião, aliás, era apresentar e discutir o “Pro-Brasil”, coordenado pelo general Braga Netto, ministro Chefe da Casa Civil. O programa recebeu o apelido de novo Plano Marshall (prontamente atacado por Guedes) pela injeção de investimento público na economia em contexto de reconstrução, comparando o pós-pandemia ao pós-guerra. Nada muito diferente da tendência mundial atual, entre países de economia neoliberal, como França, Alemanha e Estados Unidos.

    Para Paulo Guedes, a saída continua sendo a radicalização das reformas neoliberais, privatizações (inclusive da “porra” do Banco do Brasil), cortes de direitos e retração econômica. Rogério Marinho, ministro da Integração Nacional, ressaltou que a crise econômica gerada pela pandemia não admite a reafirmação de dogmas, destacando a tendência internacional de maior intervenção econômica do Estado. Em resposta, Guedes reafirmou seu dogma: a saída para a crise da Covid é, ainda, a solução neoliberal, estreita e unilateral. Esta não conhece contexto, circustância, conjuntura internacional. Paulo Guedes revelou ali a sua própria cloroquina. Haverá um antídoto anti-bolsonarismo?

    Um governo como este não cai por meio de uma “bala de prata”. A geração da expectativa da “bala de prata” é motivada pelo ritmo temporal acelerado e ansioso que caracteriza o público de internet (de esquerda e de direita). Um tempo atualista, como denominam Valdei Araujo e Mateus Pereira em suas pesquisas. Acompanham a cena política nacional como se estivessem assistindo uma série de Netflix em final de temporada. O tempo real da política, entretanto, é outro, conhece outros ritmos. O bolsonarismo, enquanto fenômeno político e cultural mais amplo, não termina com o governo Bolsonaro, como gosta de lembrar o historiador Rodrigo Perez. Ele se alimenta das manifestações golpistas de Weintraub, da fala de Damares sobre as feministas do Ministério da Saúde, da exaltação armamentista do presidente da Caixa, da fala de Ricardo Salles que vê na crise do corona ótima oportunidade para passar projetos anti-ambientais.

    No vídeo, o bolsonarista-raiz reafirma o seu próprio modo de ver o mundo, a besta fascista que carrega em si. É o público que hoje se diz muito satisfeito com a atuação de Bolsonaro na pandemia, girando em torno de 25 a 30% pelas últimas de opinião. Para eles não há remédio a curto prazo; a solução imediata é colocá-los em minoria, diminuindo sua capacidade de capilarização no seio da sociedade. Infelizmente a pandemia de Covid atinge a todos. E a população brasileira está sentido na pele o que é ter um governo sem compromisso com as vidas. Países com situação sócio econômica como a nossa, como Argentina, tem números muito menores de infectados e mortes.

    A reunião ministerial retratou, pela ausência, este descaso. Sobre as vítimas e ações de combate ao virus, nada. Em meio a maior epidemia dos últimos cem anos, a reunião deixou claro para qualquer brasileiro que o enfrentamento da pandemia e das vítimas não é prioridade neste governo. Uma política de morte posta a prova. A cloroquina de Paulo Guedes, por sua vez, aponta para uma política econômica “anti-povo” e altamente destrutiva para os mais pobres. Não é necessário ser de esquerda para chegar a essas conclusões. Não haverá bala de prata, mas há crise. Há mito capaz de sobreviver a ela? 

  • “Vai malandra!”: Anitta e o público que não ama nem odeia Bolsonaro

    “Vai malandra!”: Anitta e o público que não ama nem odeia Bolsonaro

    ARTIGO

    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ

    A última pesquisa de opinião realizada pela CNT/ MDA sobre o governo Bolsonaro indicou um crescimento das avaliações “ótima” (de 9,5 para 14,3%) e “péssima” (de 21,5 para 32,3%) em comparação ao mês anterior. Realizada entre os dias 7 e 10 de maio, portanto, em meio ao crescimento significativo de casos e mortes provadas pela COVID-19, estes números não surpreendem, tendo em vista a característica super-polarizada e super-ideologizada de seu governo. Mesmo em decrescente (32,1 para 22,9%), o avaliador regular continua figurando entre os mais representativos – atrás apenas do avaliador do péssimo. São eles que me despertam mais curiosidade investigativa.
    Afinal, como pensa aquele que nem ama nem odeia Bolsonaro? E o que isso tem a ver com a recente (e interessante) incursão de Anitta nos debates políticos, em suas lives de quarentena?
    Convicção ideológica demora a ser formada, mas também demora a ser desfeita. O bolsonarismo não é bem uma ideologia, mas um fenômeno político que se ancora a tradições políticas de extrema direita que remetem ao período da Ditadura Militar, modificada e renovada em função da crise política do tempo presente (iniciada no Brasil em junho de 2013). Durante a pandemia, Bolsonaro vem se mostrando firme às convicções que o elegeram – negacionismo científico, programa ultra-liberal na economia e indisposição política para negociar com a diferença são alguns exemplos – e há um público que entende este movimento como sinal de coerência e fidelidade.
    Autenticidade, sinceridade e simplicidade são qualidades cada vez mais virtuosas em tempos de intimidade e exposição de privacidade nas redes sociais, e Bolsonaro se transformou em “mito”, entre 2014-2018, usando e abusando desses movimentos. Como presidente, ele fala e governa para a sua “bolha”, com a radicalidade que encontramos nos debates políticos típicos de Facebook. Um debate que não parece muito disposto a falar para não convencidos, cercado pelos iguais, na lógica Facebook de fechar o alcance dos posts a leitores que curtem e comentam apenas entre si. Isto é um grave problema de um ponto de vista republicano e democrático.
    Diz um princípio republicano básico moderno, uma vez presidente, em nome de uma razão de Estado, o espírito de facção se desfaz na defesa comum da res publica (coisa pública); ainda que seja orientada por princípios ideológicos, o presidente não governa apenas para os seus, os que pensam igual a ele, mas para todos. Ser democrático significa, necessariamente, negociar na diferença, visto que a maioria eleitoral não impõe erradicação da diferença, mas convívio com ela.
    Identifico o movimento recente de Anitta como um gesto “furador de bolha”, alcançando justamente o avaliador “regular” do governo Bolsonaro. Ela acena para o público comum não – polarizado, decisivo não só para a vitória eleitoral (como reforçam sempre os cientistas políticos), mas para acomodação do debate democrático no cotidiano, trazendo a política para o interior da casa (literalmente) a um público que, a princípio, não se interessaria por política e tem tantas dúvidas quanto ela, Anitta. Um público jovem em maioria que busca aproximação e intimidade com a artista que admira, por isso segue o cotidiano de Anitta, e agora, em tempos de quarentena, intensifica esse grau de intimidade por meio das lives.
    A modéstia em tom “alunal” não combina com a afirmação das certezas e convicções ideológicas que tanto circulam no ambiente das guerras virtuais. Antes de formar opinião, ela busca a informação da amiga jornalista Gabriela Prioli – que traduz, aliás, de maneira bastante didática, conceitos e teorias bastante abstratos, para Anitta e seu público. Paulo Freire chamaria este gesto de Anitta de “curiosidade ingênua”, passo decisivo para uma “curiosidade epistemológica”. O avaliador regular de um governo extremista talvez esteja em busca das mesmas respostas às perguntas trazidas por Anitta à Priolli: afinal, quais as regras do nosso jogo político? Quem são os jogadores? O que eles representam?

    Precisamos entender melhor o público que votou em Bolsonaro não por conhecer seu projeto a fundo, mas para dar uma “chance a ele”, por ele ser “novo”, simplesmente por isso. Na campanha havia aqueles que o apoiavam sem fechar com o “pacote completo”, sem acreditar que ele conseguiria cumprir o que estava prometendo. O eleitor de Bolsonaro que se manifesta nas redes sociais são relativamente fáceis de mapear, mas e aqueles que votaram sem fazer alarde? E tantos outros, que votariam em Lula se ele estivesse concorrendo e, diante do impedimento, passou para o Bolsonaro? Eles não são poucos, ao contrário do que a lógica “das bolhas políticas” possa indicar.

    Nas eleições, Bolsonaro conseguiu expressar o sentimento de “indignação” comum a tantos, canalizando a energia crítica em circulação no nosso ambiente de crise – como gosta de lembrar o historiador Rodrigo Perez. Esta crítica, que está na voz do homem e da mulher comum, não é patrimônio apenas do leitor interessado por política no padrão Facebook, mas está no ônibus, na fila do elevador, do supermercado etc. É dele que vem aquela típica sentença iniciada por “É um absurdo!”.
    Em tempos de pandemia de Covid-19, o “absurdo!” tem se manifestado e está na voz do presidente. O embate entre vida e morte está posto e é o próprio Bolsonaro que relativiza o valor das vidas, tão caras às mais diversas paletas de cores ideológicas. Talvez por este gesto, associado a uma total falta de plano de combate ao coronavirus, tantos avaliadores do governo estejam passando do “regular” para o “péssimo”.
    O trabalhador que vai à rua hoje o faz com medo do vírus, com medo da morte, diferente do empresário que aparece ao lado de Bolsonaro, que pede o fim do isolamento mas não quer colocar a própria pele e da sua família em risco. Tal conclusão não demanda maior grau de politização. A malandragem de Anitta está justamente aí, neste tempo de quarenta: ampliar e dar vazão às perguntas daqueles que estão “meio por fora da política”, sobretudo, um público de jovens abertos a todo tipo de novidade. Eles são fundamentais ao ambiente de debate democrático. Mais ainda agora, quando o presidente da República tenta transformar o pacto pela vida em questão de “bolha”.