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  • O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise

    O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise

     

     

     

     

    Em entrevista exclusiva, o líder indígena Ailton Krenak reflete sobre o significado da pandemia e faz um alerta:“Se voltarmos à chamada ‘normalidade’, não valeram de nada as mortes de milhares de pessoas”

     

     

     

     

     

     

    O mundo está em suspensão. O momento é de recolhimento, de silêncio. A experiência do isolamento social, para enfrentar o horror do novo coronavírus, pode trazer lições valiosas à humanidade. “Se essa tragédia serve para alguma coisa é mostrar quem nós somos. É para nós refletirmos e prestar atenção ao sentido do que venha mesmo ser humano. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. Tomara que não”, afirma o escritor Ailton Krenak, de 66 anos, um dos mais destacados ativistas do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas e doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora.

    Recolhido em sua aldeia no Rio Doce, o autor de Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras) observa que o ser humano descolou-se da natureza e da sintonia com a terra, “devorada” por grandes corporações que controlam os recursos financeiros do planeta e persistem na concepção europeia colonizadora de que exista uma “humanidade”, enclausurada na maior parte de sua vida em ambientes artificiais. “Essa chamada humanidade, na verdade, constitui um grupo seleto que exclui uma variedade de sub-humanidades, caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes, que vivem agarradas à terra, aos seus lugares de origem, que são coletivos vinculados à sua memória ancestral e identidade. Esse grupo exclui também 70% das populações arrancadas do campo e das florestas, que estão nas favelas e periferias, alienadas do mínimo exercício do ser, sem referências que sustentam a sua identidade. São lançadas nesse liquidificador chamado humanidade”, acredita.

    Para Ailton Krenak, os seres humanos têm neste isolamento social pelo qual passa a maior parte do planeta uma oportunidade para a pausa e correção de rumos: “Todos precisam despertar. Se, durante um tempo, éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a terra não suportar a nossa demanda. Tomara que, depois de tudo isso, não voltemos à chamada ‘normalidade’, pois se voltarmos é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Aí, sim, teremos provado de que a humanidade é uma mentira”. A seguir, mais trechos da entrevista exclusiva com o escritor.

    No início do livro Ideias para adiar o fim do mundo, o senhor introduz uma discussão que parte da indagação: Somos mesmo uma humanidade?.O senhor poderia responder à esta provocação, particularmente mais intrigante nestes tempos de pandemia: somos uma humanidade?

    Eu penso que essa pergunta fica em suspenso. Vivemos esta experiência de isolamento social, como está sendo definida a experiência do confinamento, em que o mundo inteiro tem de se recolher. Ao mesmo tempo, assistimos a uma tragédia de gente morrendo em diferentes lugares do mundo, ao ponto de na Itália os corpos serem colocados em caminhões para incinerar, sem sequer ser identificados. Essa dor, talvez ajude as pessoas a responder a essa pergunta. Nós nos acostumamos com a ideia de que somos uma humanidade. Embora a ideia tenha sido naturalizada, ninguém mais presta atenção ao sentido do que venha mesmo ser humano. É como se tivéssemos várias crianças brincando que, por imaginar essa fantasia da infância, continuassem a brincar por tempo indeterminado. Viramos adultos, estamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de desigualdades entre povos e as sociedades. De modo que há uma sub-humanidade que vive uma grande miséria, sem chance de sair dela. Isso também foi naturalizado. O presidente da República disse outro dia que brasileiros vivem no esgoto. Esse tipo de mentalidade doente está dominando o planeta. E veja agora esse vírus, um organismo do planeta, responder a essa alienação dos humanos com um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha, essa fantástica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta sobre o seu preço. Veja que esse vírus está discriminando essa humanidade. Ele não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Apenas a humanidade está sendo discriminada. Quem está em pânico são os povos humanos, o modo de funcionamento deles entrou em crise. Consolidaram esse pacote que é chamado de humanidade, que vai sendo descolada de uma maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. Esta é a sub-humanidade: caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes. Existe, então, uma humanidade que integra um clube seleto, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais rústica e orgânica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na terra. Eu não me sinto parte dessa humanidade. Eu me sinto excluído dela. Por isso digo, no livro, que é um clube, seleto, que não aceita novos sócios.

    Filosoficamente, como interpreta a pandemia que acomete o mundo?

    Estamos há muito divorciados desse organismo vivo que é a Terra. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só os que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas todos. Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas tomam conta e submetem o planeta: acabam com florestas, montanhas, transformam tudo em mercadorias. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade e nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações, que são os donos da grana. Agora, já imaginou que esse organismo, o vírus, possa também ter se cansado da gente e nos “desligado”? Sabe como faz isso? Tirando o nosso oxigênio. Dizem que a COVID-19, quando evolui para os pulmões, se não tiver bomba, aparelho para alimentar de oxigênio, a pessoa morre. Quantas máquinas dessa vamos ter de fazer? Para 6 bilhões de pessoas na terra? A nossa mãe, a Terra, dá de graça o oxigênio, põe a gente para dormir, desperta de manhã com sol, dá oxigênio, deixa pássaros cantar, as correntezas, as brisas, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele? Isso pode significar uma mãe amorosa, que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não é porque não goste dele, mas quer ensinar alguma coisa para ele. Filho, silêncio. A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não é ordem imperativa. Ela simplesmente está dizendo para a gente: silêncio. Esse é também o significado do recolhimento.

    aldeia Lahatuha – origem Kuikuro – Alto Xingu/por helio carlos mello©

    Os idosos, chamados de grupo de risco, em algumas abordagens são lembrados como algo descartável – do tipo, “alguns vão morrer”, como algo inevitável. Como avalia esta abordagem que parece arrancar toda e qualquer humanidade do indivíduo, tornando-o uma estatística?

    Esse tipo de abordagem cria uma insegurança afeta as pessoas que amam os idosos, que são avós, pais, filhos, irmãos de outras pessoas, que estão na idade útil de trabalho. É uma palavra insensata, não tem sentido que alguém em sã consciência faça comunicação pública dizendo ‘alguns vão morrer’. É uma banalização da vida, mas também é uma banalização do poder da palavra. Pois alguém que faz uma emissão dessa está pronunciando a condenação. Seja diretamente dirigida a alguém em idade avançada, com 80, 90, 100 anos. Sejam os filhos, netos, ou todas as pessoas que têm afeto uns com outros. Imagine se vou ficar em paz pensando que minha mãe ou meu pai podem ser descartados. Eles são o sentido de eu estar vivo. Se eles podem ser descartados eu também posso. Olhando para além do Brasil, mirando o mundo, Foucault tem uma obra fantástica: Vigiar e punir. Nesse livro, diz que essa sociedade de mercado que vivemos, essa coisa mercantil, só considera o ser humano útil quando está produzindo. Com o avanço do capitalismo, foi criado um instrumento que é o de deixar viver e o de fazer morrer: quando deixa de produzir, passa a ser um custo. Ou você produz as condições para você ficar vivo ou produz as condições para você morrer. Essa coisa que conhecemos como a Previdência, que existe em todos os países com economia de mercado, ela tem um custo. Os governos estão achando que, se morressem todas as pessoas que representam custo, seria ótimo. Isso significa dizer: pode deixar morrer os que integram os grupos de risco. Não é ato falho de quem fala, a pessoa não é doida, é lúcida, sabe o que está falando.

    Ailton Krenak encontra Tom Zé, especulam do mundo, refletem, escaramuçam / helio carlos mello©

    Como está a sua rotina, agora com o isolamento social? 

    Parei de andar mundo afora, suspendi compromissos. Estou com a minha família na aldeia krenak, no Médio Rio Doce. Já estávamos aqui de luto com o nosso Rio Doce. Não imaginava que o mundo faria esse luto conosco. Está todo mundo parado. Todo mundo. Quando os engenheiros me disseram que iriam usar a engenharia, a tecnologia para recuperar o Rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu disse: a minha sugestão é impossível de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a 100 quilômetros na margem direita e esquerda do rio, até que voltasse a ter vida. O engenheiro me disse: ‘Mas isso é impossível’. O mundo não pode parar. E o mundo parou. Desde muito tempo a minha comunhão com tudo o que chamam de natureza é experiência que não vejo muita gente que vive na cidade valorizando. Já vi pessoas ridicularizando, ele conversa com árvore, abraça árvore, conversa com o rio, contempla a montanha, como se isso fosse uma espécie de alienação. Essa é a minha experiência de vida. Se é alienação, sou alienado no sentido comum que as pessoas. Há muito tempo não programo atividades para depois. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.

    Agora o prognóstico, ou algo do tipo: se continuarmos ao ritmo de sempre, em sua avaliação, que fim nos aguarda?

    O ritmo de hoje não é o da semana passada nem o do ano novo, do verão, de janeiro ou fevereiro. O mundo está agora numa suspensão. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. Desconfio que não vai ser a mesma coisa depois. Se tiver depois. Tem muita gente que suspendeu projetos, atividades que estavam fazendo. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Estão enganadas. Pode não haver o ano que vem. Em artigo que li sobre a pandemia, o sociólogo italiano Domenico de Masi cita a obra profética A peste, de Albert Camus: a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado. Ele cita trecho inteiro do romance em que o personagem diz, aquele bacilo que trouxe aquela mortandade, que parece que tinha sido dominado, podia continuar oculto em alguma dobra, algum corrimão, janela, poltrona, só esperando o dia em que, infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los morrer numa cidade feliz. Este vírus que nos ameaça não é o mesmo na China, na Itália, nos Estados e no Brasil. Ele muda. E se muda, não sabemos o que é. Então seria muito bom parar de fazer projetos para amanhã, para o ano que vem e nos ater ao aqui e agora. Não tenho certeza nenhuma se no ano que vem tudo vai continuar a acontecer como se nada tivesse mudado. E tomara que não voltemos à normalidade, pois se voltarmos é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira. Se essa tragédia serve para alguma coisa, é nos mostrar quem nós somos. Estamos em suspensão. Vamos ver o que vai acontecer.

    cosmovisão das águas – helio carlos mello©

    Quais são as suas ideias e inspirações para adiarmos o fim do mundo?

    Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea em que o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. Para que cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões. Boaventura de Sousa Santos nos ensina que a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade. Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, adiaremos o fim. Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século 21 ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos.

  • Exclusivo: Fogo e negligência nas políticas ambientais ameaçam a Amazônia

    Exclusivo: Fogo e negligência nas políticas ambientais ameaçam a Amazônia

    Por: Cyro Assahira (Doutorando em em Ciência Ambiental e Juliana Lins (Mestre em botânica).

    Fotos: Cyro Assahira

    “o Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) recebeu a denúncia de que grupos que apoiam o governo iriam promover queimadas pela Amazônia em um denominado “Dia do Fogo”.

    Desmontes das instituições de preservação e conservação da Amazônia, aumento do desmatamento, negligência a dados ambientais e fogo na Amazônia colocaram a região no centro do mundo. 

    Não seria exagero dizer que a Amazônia agora é o centro do mundo, é para onde os debates políticos, econômicos, científicos e culturais estão voltados. As discussões têm tomado cada vez mais corpo desde o anúncio pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial) do aumento do desmatamento na Amazônia em 88% com relação ao mesmo período do ano passado [1]. Em seguida, uma nuvem de fumaça que veio das queimadas percorreu grande parte do Brasil, colocando preocupações na cabeça de todo o mundo. Nesse preâmbulo uma guerra de informações e a disputa por uma verdade têm ocorrido. 

    A importância global da Amazônia para a manutenção da biodiversidade, ciclos da água e como estoque de carbono é amplamente debatida e de alguma forma se coloca como um assunto comum em nossa sociedade. Ao mesmo tempo, a imagem de um ambiente selvagem à parte da sociedade humana ganhou contornos. Com a suposta separação entre sociedade dos homens e a natureza, somos colocados em um caminho de intensa exploração dos recursos naturais sem refletir que o que está sendo destruído faz parte da própria ecologia em que estamos inseridos. Junto a esse preâmbulo vem a narrativa econômica neoliberal a favor da intensa atividade exploradora do meio natural com a justificativa de ser uma necessidade para o desenvolvimento do país.

    Ao longo das últimas décadas, a perspectiva da Amazônia ou qualquer ambiente natural estar a parte das sociedades humanas tem sido questionada. Em muitos casos refutada diante de estudos científicos que têm trazido à tona o fato de que a Amazônia é amplamente habitada por povos originários e tradicionais desde tempos pré-colombianos. A floresta foi moldada a partir da interação sustentável e duradoura com os povos indígenas, que ainda hoje perpetuam tais práticas. Aliás, seus territórios se encontram especialmente preservados com relação às áreas de floresta fora desses territórios [2].

    Pesquisas têm demonstrado que o desmatamento está relacionado com maiores incidências de queimadas [3], derrubar a floresta a deixa mais suscetível a propagação do fogo com a maior incidências de ventos e a presença de materiais de fácil combustão como galhos e madeira secas [4]. Nesse sentido o aumento do desmatamento também pode estar relacionado com a intensidade e a quantidade dos incêndios que estão ocorrendo neste instante. No mês anterior à atual onda de incêndios, o desmatamento na Amazônia aumentou em 88% com relação ao mesmo período no ano passado. Tal desmatamento foi tratado como descaso, com a exoneração do diretor do INPE logo após a publicação desses dados. Os mesmos dados foram questionados pelo atual ministro do meio ambiente Ricardo Salles, apontando que teria sido um erro nas estimativas. A postura do ministro do meio ambiente diante do aumento do desmatamento, não foi tomar medidas que freassem a devastação da floresta e sim buscar formas de invalidar os fatos publicados por um órgão do próprio governo [5]. 

    Desde o início da gestão do atual ministro Salles, os órgãos fiscalizadores do meio ambiente estão sofrendo desmonte, o orçamento do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) foi reduzido em 24%, o que não cobre nem as despesas fixas do ano, refletindo na diminuição da capacidade de fiscalização [6]. Diante da negligência do governo brasileiro em combater o desmatamento, os principais financiadores do Fundo Amazônia (um fundo criado para projetos de preservação e conservação da Amazônia), Noruega e Alemanha, bloquearem seus repasses e com isso o cenário de devastação da Amazônia pode se agravar ainda mais nos próximos meses. A questão ambiental no governo Bolsonaro tem sido tão controversa que em maio de 2019, todos os ex-ministros do meio ambiente de governos anteriores se reuniram em uma frente de oposição ao projeto ambiental em andamento [7].

    O que chama a atenção em muitos dos fatos que têm chocado a opinião pública [8], é que tudo isso fez parte da campanha eleitoral, ou seja, está tudo de acordo com as promessas de governo para área ambiental. Assim, é difícil não atribuir, em algum nível, as queimadas que chocam o mundo ao projeto político e ao discurso do atual governo brasileiro.

    Anualmente no período de seca, em especial de agosto a setembro, as queimadas se acentuam na Amazônia. Considerar somente os dados de fogo em isolado, sem levar em conta o contexto em que se insere, tem sido utilizado como argumento de membros do governo federal para atribuir as queimadas às causas naturais e à terceiros, ausentando-se da responsabilidade – O ministro Sales atribuiu às condições climáticas e o presidente Bolsonaro trouxe a hipótese de ter sido causado por ONGs ambientais insatisfeitas com os cortes financeiros [9]. No entanto, 2019 não é um ano especialmente seco na Amazônia, que são os anos em que ocorrem as maiores incidências de queimadas. E contradizendo a afirmação do presidente de que os incêndios podem ter sido causados por ONGs Ambientalistas, segundos documentos publicados pelo site Poder 360 [10,11], o Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) recebeu a denúncia de que grupos que apoiam o governo iriam promover queimadas pela Amazônia em um denominado “Dia do Fogo”. O Ibama solicitou ajuda à Força Nacional para combater o grupo, mas não foi atendido. No dia 25 de agosto, o site da revista Globo Rural [12] publicou uma reportagem que revela que mais de 70 ruralistas (fazendeiros, criadores de gado e proprietários de grandes propriedades rurais) haviam combinado por Whatsapp de colocar fogo em diversos pontos da floresta. Segundo a reportagem, o ato teve como justificativa mostrar apoio ao presidente Bolsonaro que têm afrouxado a fiscalização ambiental. 

    Ao longo das últimas semanas, diversos protestos têm ocorrido pelo Brasil e pelo mundo contra as políticas ambientais do governo Bolsonaro. Este momento tem gerado profunda comoção acerca da Amazônia e muitos se questionam sobre o que fazer. Sabe-se que a principal causa de desmatamento na Amazônia está atrelada a expansão da agropecuária com suas plantações de soja e a criação de gado [13], assim, a proteção da Amazônia passa pelas mudanças de hábitos alimentares e de consumo. Outros processos relacionados com as mineradoras [14] e empreendimentos que precisam do recurso hídrico para a produção da energia elétrica [15] também possuem um enorme peso destrutivo na região e estão todos relacionados com o modelo de desenvolvimento atual. O cenário atual gera reflexões sobre as imediatas consequências da negligência com as questões ecológicas e se coloca como um importante momento para se pensar criticamente como resistir aos processos estruturais que têm que levado a crise ambiental na Amazônia. 

    Políticas que já vinham acontecendo em governos anteriores – em maior ou menor grau – em relação à Amazônia ajudaram a frear um pouco o desmatamento: iniciativas de geração de renda com produtos da sociobiodiversidade, investimento do Estado para fiscalização de territórios, incentivo a vigilância de território pela própria população local, multas aplicadas contra crimes ambientais, programas de monitoramento do desmatamento, incentivo a pesquisa na região amazônica, demarcação de Terras Indígenas, criação de Unidades de Conservação, incentivo ao transporte fluvial na região amazônica em detrimento a abertura de estradas. 

    É importante uma parceria entre Estado, movimentos sociais e a sociedade civil organizada. A maneira que o Estado brasileiro vem agindo a partir desse ano vem de encontro a tudo isso. As consequências são drásticas. Algumas regiões amazônicas, como o Estado do Acre e Rondônia foram desmatados muito rapidamente, a partir da década de 70, em um processo de ocupação da Amazônia com forte incentivo de migração de pessoas advindas das regiões sul e sudeste e a abertura de estradas. A Amazônia é imensa e é difícil acreditar que é possível acabar com ela, mas ao se aprofundar na história das regiões mais desmatadas, percebe-se, com perplexidade, que o processo de destruição é rápido e irreversível. Perde-se de muitas formas: perde-se biodiversidade, perde-se em mudanças climáticas, perde-se em centenas de modos de vida que nos ensinam que outros mundos são possíveis. Possíveis e necessários.   

    Sobre os autores:

    Juliana Lins é bióloga, vive e trabalha na Amazônia há 8 anos. Durante suas pesquisas de mestrado em botânica, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, trabalhou com etnobotânica em interfaces com a arqueologia com o objetivo de entender os processos que levaram a Amazônia a ser, pelo menos em parte, uma floresta domesticada e cultural, resultado do manejo de populações indígenas desde tempos pré-colombianos. Nos últimos 3 anos trabalhou com pesquisas interculturais em parceria com pesquisadores indígenas no Noroeste da Amazônia.

    Cyro Assahira é fotógrafo que durante o bacharel em biologia marinha estudou a percepção das mudanças climáticas por pescadores artesanais no ambiente costeiro. No mestrado em botânica, realizou pesquisas com o impacto das hidrelétricas nas florestas alagáveis da Amazônia. Também colaborou com pesquisas de dinâmica florestal na Amazônia. Atualmente é doutorando em Ciência Ambiental (Procam/USP) e investiga as conexões entre democracia, questões ecológicas e o Comum.

    1. Fearnside, P.M. 2019. Brazilian Amazon deforestation surge is real despite Bolsonaro’s denial (commentary). Mongabay, 29 July 2019. https://news.mongabay.com/2019/07/brazilian-amazon-deforestation-surge-is-real-despite-bolsonaros-denial-commentary/
    2. Nepstad, Daniel et al. Inhibition of Amazon deforestation and fire by parks and indigenous lands. Conservation biology, v. 20, n. 1, p. 65-73, 2006.
    3. Aragao, Luiz Eduardo OC, et al. “Interactions between rainfall, deforestation and fires during recent years in the Brazilian Amazonia.” Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences 363.1498 (2008): 1779-1785.
    4. Cochrane, Mark A. Fire science for rainforests. Nature, v. 421, n. 6926, p. 913, 2003.
    5. Fearnside, P.M. 2019. As Amazon deforestation in Brazil rises, Bolsonaro administration attacks the messenger (commentary). Mongabay, 3 August 2019. https://news.mongabay.com/2019/08/as-amazon-deforestation-in-brazil-rises-bolsonaro-administration-attacks-the-messenger-commentary/
    6. Arroyo, Priscilla, (2019, 1st May). Corte de recursos do Ibama ampliará desmatamento. Retrieved from. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588764-corte-de-recursos-do-ibama-ampliara-desmatamento

    7. Gortazar, Naiara Galarraga e Betim Felipe, maio de 2019. Uma inédita frente de ex-ministros do Meio Ambiente contra o desmonte de Bolsonaro. El País, Brasil.  https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/08/politica/1557338026_221578.html

    8. Fearnside, P.M. 2018. Why Brazil’s New President Poses an Unprecedented Threat to the Amazon. Yale Environment 360, 8 November 2018. https://e360.yale.edu/features/why-brazils-new-president-poses-an-unprecedented-threat-to-the-amazon

    9. O Globo, 2019. Ministro do Meio Ambiente afirma que parte dos incêndios na Amazônia é intencional, 27 agosto de 2019. https://oglobo.globo.com/sociedade/ministro-do-meio-ambiente-afirma-que-parte-dos-incendios-na-amazonia-intencional-23894245

    10. Roscoe Beatriz, 2019. Força Nacional ignorou alerta sobre ‘Dia do Fogo’, mostram documentos. Poder 360 https://www.poder360.com.br/brasil/forca-nacional-ignorou-alerta-sobre-dia-do-fogo-mostram-documentos/

    11. Revista Fórum, 2019. Amazônia em chamas: Ruralistas combinaram “dia do fogo” no Whatsapp por apoio a Bolsonaro. Revista Fórum. https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro/amazonia-em-chamas-ruralistas-combinaram-dia-do-fogo-por-whatsapp-por-apoio-a-bolsonaro/

    12. Matias Ivaci, 2019. Grupo usou whatsapp para convocar “dia do fogo” no Pará. Revista Globo Rural. https://revistagloborural.globo.com/Noticias/noticia/2019/08/grupo-usou-whatsapp-para-convocar-dia-do-fogo-no-para.html

    13. El País, 2019. Ibama diz que Força Nacional ignorou alertas sobre “Dia do Fogo” no Pará. El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/27/politica/1566859677_529901.html

    14. Zycherman, Ariela. “Cultures of soy and cattle in the context of reduced deforestation and agricultural intensification in the Brazilian Amazon.” Environment and Society 7.1 (2016): 71-88.

    15.  El Bizri, Hani Rocha, et al. “Mining undermining Brazil’s environment.” Science 353.6296 (2016): 228.

    1. Fearnside, Philip M.; PUEYO, Salvador. Greenhouse-gas emissions from tropical dams. Nature Climate Change, v. 2, n. 6, p. 382, 2012.