Moradores em situação de rua de Belo Horizonte e Região Metropolitana realizaram hoje uma manifestação no centro da cidade para denunciar as precárias condições que tem enfrentado em meio à pandemia de covid-19. Entre as suas bandeiras de luta estão a reforma urbana, a não violência contra as mulheres e o atendimento precário dos governos.
Conforme levantamento do serviço social da prefeitura, a capital mineira já conta quase 5 mil moradores de rua, sendo 88% do sexo masculino e 12% de mulheres. Mas o Cadastro Único – CAD do Ministério da Cidadania, que identifica pessoas em extrema pobreza para direcionar políticas públicas de acolhimento e atendimento, indica que são 9.164 pessoas vivendo nas ruas de Belo Horizonte, boa parte delas vindas do interior ou de outros estados. Nada menos que 84% delas são beneficiários do Programa Bolsa-Família.
Recentemente, mais de mil barracas foram distribuídas aos moradores de rua pela Frente Humanitária do Canto da Rua Emergencial, movimento solidário organizado pela Pastoral da Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte que reúne várias entidades. Os abrigos fazem parte de um “kit inverno”, composto também por mantas de cobertura, meias, agasalhos e saco de dormir. As barracas foram adquiridas por um instituto privado parceiro, que ofereceu o aporte financeiro para os kits e para outras ações promovidas pelos mais de 200 colaboradores. As equipes de apoio saíram as ruas, realizaram um cadastro, identificaram as necessidades de cada um e depois distribuíram as doações. Outras 120 pessoas, idosas ou com comorbidades, foram encaminhadas a três centros de acolhimento montados pela Frente.
Claudenice Rodrigues Lopes, assistente social e voluntária da Pastoral de Rua da Arquidiocese, disse ao repórter Elian Guimarães, do jornal Estado de Minas, que ultimamente o número de moradores de rua cresceu devido também aos casos de pessoas liberadas do sistema prisional por causa da pandemia. “É significativo o número de pessoas vindas do sistema que nos procuram, algumas em busca de passagens. Grande parte é do interior, não tem recursos para voltar pra casa e não tem para onde ir. Então, ficam por aí”. Segundo Claudenice, a diminuição do fluxo de pessoas circulando pelo Centro da cidade deu visibilidade a elas. “Antes eram invisíveis, que passavam despercebidas pelos cantos, diante do grande movimento”, observou.
Perfil das pessoas em situação de rua
Gênero Masculino 88% Feminino 12%
Idade 0 a 17 0,7% 18 a 24 7,1% 25 a 34 22,2% 35 a 39 16,5% 40 a 44 15,6% 45 a 49 12,1% 50 a 54 10,8% 55 a 59 7,4% +60 7,1%
Renda familiar per capita Até R$ 89 90,84% Entre R$ 89,01 e R$ 178 0,99% Entre R$ 178,1 e meio salário mínimo 1,9% Acima de meio salário mínimo 6,28%
Grau de instrução Sem instrução 7,3% Fundamental incompleto 52,3% Fundamental completo 14,3% Médio incompleto 10% Médio completo 14,3% Superior incompleto ou mais 1,2% Não informado 0,6%
Motivos para estar nas ruas (principais) Problemas familiares 56% Desemprego 41,5% Perda de moradia 30% Alcoolismo 19,3%
Outros 33% dizem usar abrigos para dormitório 84% são beneficiários do Programa Bolsa-Família
Fonte: Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania
Neste domingo (16), em um dos mais importantes destinos turísticos da Amazônia Brasileira, a impressão que se teve foi de que não existe mais pandemia. Turistas sem máscara, aglomerados, protagonizaram um deprimente espetáculo de falta de empatia e desrespeito com os moradores de Alter do Chão, balneário localizado no baixo Tapajós, no município de Santarém-PA.
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Alter do Chão, vila situada na margem direita do rio Tapajós, tem uma beleza de tirar o fôlego, e já foi eleita a mais bela praia (na verdade, a vila abriga diversas praias) de água doce do mundo.
A primeira morte indígena confirmada por covid-19 no país ocorreu justamente em Alter do Chão, no dia 19 de março deste ano. A prefeitura de Santarém imediatamente decretou o fechamento das praias do município e, prontamente, a comunidade de Alter do Chão, em sua maioria formada por indígenas Borari, entendeu o recado e fez um eficiente isolamento social. Os serviços de turismo pararam, e muitas famílias se refugiaram no interior, distantes das praias. Enquanto isso, os casos e mortes confirmadas por covid-19 explodiram na cidade de Santarém, um dos polos econômicos mais importantes do Pará. Resultado: rapidamente, as vagas em UTIs, para tratamento dos casos graves, se esgotaram.
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Apesar disso, muitos turistas, vindos de Santarém, continuaram a manter suas rotinas de visitar Alter do Chão nos finais de semana, desrespeitando o decreto municipal de fechamento das praias. Foi então que os moradores da vila, através de conselhos comunitários, pediram à prefeitura a decretação de lockdown no balneário. Uma barreira foi montada na estrada que liga a cidade de Santarém a Alter do Chão. A medida deu certo, e a covid-19 não se espalhou pela famosa vila. Até hoje, apenas três mortes confirmadas, causada pela doença que já deixou quase 110 mil mortos no país, sem que o governo Bolsonaro tome qualquer medida eficaz no combate à pandemia. Pelo contrário, sabota, a todo instante, a principal recomendação da Organização Mundial de Saúde: o isolamento social, além de criar atritos políticos com governadores, tentando impedir às ações estaduais de combate à pandemia.
No dia 21 de julho, com o número de casos e mortes crescendo, o prefeito de Santarém, Nélio Aguiar (DEM-PA), que é médico, decidiu liberar o acesso às praias do município. Desde então, o turismo voltou a crescer na região. Algo que chamou atenção neste domingo, em Alter do Chão, foi a falta de empatia e responsabilidade dos turistas que visitaram o balneário. Enquanto a maioria dos moradores, que atuam no setor de turismo, utilizava máscaras e álcool em gel, a maior parte dos turistas, vindos principalmente de Santarém, protagonizou aglomerações, sem o uso de máscara, sem qualquer cuidado, como se o “novo normal”, provocado pela pandemia, tivesse morrido.
Entidades apontam ainda que entre a população negra, quilombolas, mulheres, pessoas presas e moradores de favelas são os mais afetados
Por Alane Reis e Naiara Leite
No último sábado (8) o Brasil alcançou a marca de 100 mil mortes em decorrência do coronavírus. De acordo com a 11ª Nota Técnica divulgada pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) da PUC-RJ, entre o número de óbitos, negros são 55% dos vitimados, contra 38% dos brancos. A mesma pesquisa aponta que as pessoas que não concluíram o ensino básico apresentam taxas três vezes maiores de letalidade (71%) ao adquirirem a doença do que pacientes com nível superior (22,5%).
A pandemia tem escancarado as violências do racismo na vida da população negra, das periferias e favelas, dos quilombos e comunidades rurais de todo país. Condições de moradia, saneamento básico, uso de transporte público, ocupações em postos de serviços essenciais fazem com que negros se exponham mais ao risco de adquirirem a doença. Mas além disso, as vulnerabilidades sociais têm agravado a situação da população negra no contexto atual: aumento do índice de pessoas convivendo com a fome e o não acesso a renda básica para suprir as necessidades fundamentais; o desemprego ou o dia a dia dos trabalhos informais; o não acesso a manutenção da educação em método home office; o crescimento das violências do Estado e doméstica; entre outros fatores, expõem as pessoas negras a diversas ameaças à vida e ao bem estar.
Como forma de enfrentar esta realidade a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos apresentou no dia 13 de julho um requerimento, para realização de audiência pública junto a Comissão Externa de Enfrentamento à Covid-19 (CEXCORVI) com o objetivo de discutir e incidir nos impactos do coronavírus nas populações negras e quilombolas.
A Frente Parlamentar é presidida pelo deputado Marcelo Freixo (PSOL – RJ) e é formada por representantes da Câmara, do Senado e da sociedade civil. De acordo com Paola Gersztein, assessora do Instituto de Estudos Sócio-econômicos (INESC) na coordenação do GT de Direitos Humanos da Rede de Advocacy Colaborativo (RAC), o objetivo da audiência é a escuta de especialistas que representam a população negra acerca dos impactos da pandemia e a urgente visibilização que o tema merece, para que assim sejam tomadas medidas necessárias para a proteção e a garantia de direitos. “Nosso objetivo é denunciar, visibilizar e exigir providências do Estado que sempre tratou essas vidas como supérfluas, em um genocídio que se perpetua desde que a primeira pessoa negra foi violentamente arrancada de seu território e escravizada nessas terras”, afirma.
Paola Gersztein destaca que além da formalização do requerimento, as organizações da sociedade civil que compõem a Frente tem buscado apoio junto aos gabinetes dos deputados que fazem parte da CEXCORVI para que a realização da reunião técnica não tarde ainda mais. “Nesse processo, algo já ficou claro: a demora na concretização deste pedido é uma inequívoca expressão de racismo institucional”, enfatizou.
Ação comunitária feita por moradores do Complexo do Alemão (RJ)
O “Novo Normal” do Congresso
Desde o início da pandemia os trabalhos do Congresso Nacional têm sido realizados de maneira virtual. A sociedade civil, por meio da Frente Parlamentar, lançou um manifesto pressionando a garantia de sua participação no processo legislativo e a transparência das decisões tomadas pelo parlamento. Nenhuma medida proposta no manifesto foi acatada pelo presidente da câmara Rodrigo Maia (DEM – RJ). E neste cenário, parlamentares demoram para votar pautas essenciais como PLs de proteção às mulheres, indígenas e quilombolas; e ainda tentam pautar retrocessos de direitos, como foi o caso do “PL da grilagem”.
A Emenda Constitucional (EC 95), chamada da EC do Teto de Gastos, aprovada em 2016 pelo Congresso, resultou na perda de 20 bilhões de reais entre 2018 e 2020 para a saúde pública no Brasil. Os cortes limitaram a capacidade de uma resposta rápida e eficiente à pandemia da Covid-19, prejudicando principalmente as populações mais vulneráveis – ou seja, negras –, que dependem exclusivamente do SUS.
Ainda assim, o Congresso Nacional autorizou desde 20 de março, R$ 500 bilhões de reais para enfrentamento a Covid-19 no Brasil, não só para a saúde, mas diversas ações. Deste montante, apenas 54% já foram executados, o que é insuficiente considerando que é recurso específico para o enfrentamento da crise sanitária, já contamos com quatro meses do decreto de calamidade.
Carmela Zigoni, representante do Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR) na Frente Parlamentar, destaca que ao analisarmos as ações específicas do governo em enfrentamento à pandemia, a melhor execução é a do Auxílio Emergencial, pois trata-se de transferência direta da Caixa Econômica Federal para as contas dos beneficiários. “Do recurso geral destinado ao enfrentamento à pandemia, R$ 254,2 bilhões são reservados ao pagamento do auxílio, e 65,7% deste recurso já foram executados. No entanto, outras ações estão com execução aquém do necessário para a sociedade, como auxílio financeiro aos estados e municípios, com 50,4%; e o benefício emergencial para manutenção do emprego e renda, com execução de apenas 37,4%. A ação específica de enfrentamento da Covid executou somente 47% do recurso disponível, após 4 meses de crise sanitária”, informa Zigoni, que também é assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e atua no monitoramento do orçamento público.
Os impactos da baixa execução orçamentária é um dos fatores responsáveis para que alcançássemos a triste marca de 100 mil mortos em quatro meses de pandemia. Ainda segundo Zigoni, “se a política fosse feita de maneira responsável, certamente o número de vitimas letais da covid-19 seria menor, principalmente entre negros e quilombolas, cujos territórios não acessam as políticas públicas necessárias”.
Ressalta-se que a política de promoção da igualdade racial e enfrentamento ao racismo foi completamente desmontada após a publicação da EC 95. O Programa 2034: Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo sofreu uma queda de 80% de seus gastos entre 2014 e 2019, passando de R$ 80,4 milhões para R$ 15,3 milhões no período; quando comparamos 2019 e 2018, a queda foi de 45,7%. A despeito de todas as legislações, conferências nacionais e estruturação da política de igualdade racial desde 1988, o PPA 2020-2023 do Governo Bolsonaro extinguiu o Programa de Promoção da Igualdade Racial e Enfrentamento ao Racismo, bem como qualquer menção às palavras racismo e quilombolas.
Situação da população negra dos Quilombos
Organizações da sociedade civil desde o início da pandemia denunciam que os povos tradicionais, incluindo as comunidades quilombolas, seriam os mais afetados com o contexto, justamente pelo não acesso a direitos fundamentais anteriores. De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), até o dia 11 de agosto, foram 4.102 casos e 151 óbitos nas comunidades quilombolas. Um destaque revelador da negligência do governo com esta população, é que estes números estão sendo coletados pela própria CONAQ.
“Desde o primeiro óbito, no estado de Goiás, a CONAQ começou o monitoramento diretamente com as lideranças porque o acesso aos dados pelas secretarias de saúde e Ministério é muito complicado. A gente sabe que o número é muito maior do que isso, mas da nossa forma é como estamos conseguindo dialogar com a sociedade sobre a Covid nos quilombos”, afirma Selma Dealdina, quilombola que integra a secretaria da CONAQ.
Dealdina destaca que até o acesso a informação sobre a situação real do contágio e prevenção ao covid é um desafio enfrentado pelos quilombolas. Realidade vivenciada em muitas comunidades sem o mínimo de acesso a internet e a radiodifusão. “A gente teve várias situações de praticamente linchamento dentro dos quilombos porque muitas pessoas não entenderam que pacientes quilombolas que contraíram o covid estavam curados. O que demonstra o alto nível de violação do direito à informação nos quilombos”. A liderança quilombola denuncia que antes da pandemia a saúde sempre foi um problema sério nos quilombos. “As comunidades não têm acesso a posto de saúde, a médico da família, então, nessa época, também não temos nada garantido”.
Quilombo de Alcântara, no Maranhão
As Mulheres negras
É um grupo destacado no texto do requerimento apresentado pela Frente Parlamentar como vulnerável neste contexto. Um exemplo disso diz respeito a situação das trabalhadoras domésticas no período da pandemia. Como herança e manutenção da cultura escravocrata (racista e sexista), a maioria dos trabalhadores domésticos no Brasil (62,5%) são mulheres negras, de acordo com dados publicados pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).
A Deputada Federal Áurea Carolina (PSOL – MG), autora do Projeto de Lei (PL 2477/2020), que propõe a garantia da integridade do salário para trabalhadoras domésticas e a manutenção de todos os direitos trabalhistas durante o estado de calamidade pública, comenta a importância de construir uma política que defenda essas trabalhadoras.
“As terríveis mortes de Cleonice, infectada com covid-19 pela patroa que voltou da Itália, e Miguel Otávio, que há dois meses caiu do prédio onde sua mãe trabalhava, foram causadas por negligência e desumanização, decorrências diretas do racismo estrutural. Esses casos reforçam a urgência pela aprovação do projeto de lei 2477/20, para proteger as trabalhadoras domésticas durante a pandemia e garantir a elas o direito ao isolamento”, comenta a deputada.
Outro projeto de lei sobre o trabalho doméstico no período da pandemia que merece destaque é o PL 3977/2020, de autoria dos deputados federais Benedita da Silva (PT – RJ) e Helder Salomão (PT – ES). O projeto propõe que os empregadores domésticos que liberaram as trabalhadoras para o isolamento social mantendo a remuneração tenham desconto de abatimento equivalente no pagamento do Imposto de Renda.
O trabalho doméstico já foi pauta em destaque na agenda pública brasileira no contexto da pandemia algumas vezes. A morte de Cleonice, a primeira vítima letal da Covid-19 no Brasil, foi uma delas. Outra situação emblemática foi quando o governador do estado do Pará, Helder Barbalho (MDB), decretou que entre as medidas de prevenção e contenção da pandemia no estado, o trabalho doméstico deveria ser considerado como atividade essencial.
Enquanto isso, após cinco anos de cortes de recursos na política de mulheres, em 2020 o Ministério de Direitos Humanos (MDH) teve 425 milhões em recursos autorizados, porém, menos de 3% tinha sido gasto até maio deste ano. Carmela Zigoni destaca que “as mulheres negras periféricas e quilombolas são as mais vulneráveis no contexto da Covid-19, e é urgente que a ministra Damares Alves realize políticas com estes recursos para aliviar a violência e insegurança destas mulheres”.
Mulher Quilombola
População negra encarcerada
As prisões brasileiras registraram no início de junho um aumento de 800% nos casos de infecção pelo novo coronavírus em relação a maio, segundo balanço divulgado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). A situação da população carcerária no Brasil é outro contexto explícito do funcionamento do racismo institucional. O país possui a terceira maior população carcerária do mundo, com quase 800 mil pessoas presas, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Deste total, 65% são negros. A superlotação e as condições de baixa higienização nos presídios preocupam especialistas, ativistas e familiares de presos desde o início da pandemia.
Leonardo Santana, assessor de advocacy da Rede de Justiça Criminal, comenta que a pandemia do coronavírus ao atingir o sistema prisional, expos pessoas presas e trabalhadores à morte. “A superlotação torna impossível o distanciamento exigido para conter a propagação do vírus. Além disso, a ausência de equipes de saúde, água e itens de higiene contribui para que os números sobre a doença nas unidades prisionais sejam proporcionalmente superiores ao da população em liberdade. A visita de familiares foi suspensa em todo o Brasil e com ela a assistência material que supre em parte a omissão estatal, agravando o quadro de desespero intra e extramuros”, comenta Santana.
De acordo com as informações do Depen até o dia 3 de julho apenas 2,18% dos mais de 748 mil presos no país foram testados. O Conselho Nacional de Justiça, através da Recomendação 62, listou orientações ao Judiciário para evitar contaminações em massa da Covid-19 no sistema prisional e socioeducativo. A Recomendação vem sendo ignorada pelo sistema de Justiça. No Legislativo, os projetos de lei 978/2020 e 2468/2020 construídos em conjunto pela sociedade civil e parlamentares pretendem dar uma resposta para o problema.
Diante deste contexto as organizações da sociedade civil que compõem a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e pelos Direitos Humanos tem pressionado o Congresso Nacional para cobrar dos poderes executivos a realização de ações que protejam a população negra no Brasil. A sociedade civil segue pressionando o Congresso para agendamento da audiência, onde os parlamentares poderão ouvir especialistas nos temas da saúde e do orçamento, além de organismos internacionais e movimentos negros. Os poderes executivos seguem dando sinais do afrouxamento das medidas de isolamento, mas os números de contágio e morte continuam crescendo a cada dia. “O vírus é invisível, mas as ações do governo de descaso com nossas vidas são bastante visíveis. Somos nós que estamos morrendo e o cenário é desolador”, reafirmou Selma Dealdina, liderança quilombola da CONAQ.
A cada dia, os noticiários diários contabilizam as mortes da pandemia do novo coronavírus. Chegamos ao triste número de mais de 100 mil mortos. Mas para além dos números, 100 mil histórias, tranquilas ou conturbadas, felizes ou infelizes, cheias de memórias, fotografias, causos e saudade. Como isso te afeta? Um país em luto sem direito ao luto.
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Insuflação de Uma Morte Crônica. Quatro mulheres em quarentena enchem bexigas pretas em número equivalente ao de mortos pela Covid-19, no Brasil. As participantes, além de encher bexigas, estão convivendo com elas no ambiente doméstico em suas atividades cotidianas.
Na espaço foi instalado um sistema de câmeras de vigilância em todos os cômodos cujas imagens estnao sendo disponibilizadas ao vivo, 24 horas por dia, na internet.
A cada bexiga inflada, as performers acionam o sistema de contagem para que quem esteja assistindo seja atualizado sobre quantidade de bexigas cheias.
Todos os dias, em par com a atualização do número de mortes, novas bexigas são levadas para a casa onde se encontram essas mulheres.
Ao final de quinze dias, as bexigas serão esvaziadas e o espaço limpo. Os resíduos da performance serão entregues para um coletivo de mães da periferia de São Paulo e serão transformadas em um grande manto-tela.
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Quem são essas mulheres?
Joana da Silva Coutinho, 21 anos, sonoplasta, instrumentista de sopros e percussão. Mulher preta, moradora da periferia, na Zona Norte de São Paulo. Estuda música, literatura e teatro com a linha de pesquisa em sonoplastia. Atua também com o Coletivo Amaiemá, e compõe trilhas sonoras e projetos de sonoplastia.
Bruna Lessa, 35 anos cineasta e artista visual. Nasceu em Itajaí (SC), e mora em São Paulo há 15 anos. Graduada em Cinema, com pós-graduação em Roteiro Cinematográfico, trabalha como diretora, roteirista, montadora e produtora audiovisual para cinema e teatro.
Cacá Bernardes, 44 anos, fotógrafa still, videomaker e diretora de fotografia. Nasceu em Frutal (MG) e mora em São Paulo há 25 anos. Como fotógrafa de cena possui aproximadamente trezentos espetáculos teatrais fotografados em seu currículo com publicações de suas fotos em diversas revistas, jornais e livros nacionais e internacionais.
Carina Iglecias, 1980. Vive e trabalha em São Paulo. É cantora, locutora, musicista, performer e técnica de som direto. Trabalha com o Teatro Oficina desde 2011, atuando em mais de dez espetáculos. Participou como performer da “VB50”, trabalho da artista italiana Vanessa Beecroft na 25 ̊ Bienal Internacional de São Paulo.
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Projeto Mulheres em Quarentena
Insuflação de Uma Morte Crônica faz parte do projeto Mulheres em Quarentena.
Diretoras, roteiristas, produtoras, montadoras, atrizes, pesquisadoras, iluminadoras, performers. Mulheres trabalhadoras cujos ofícios também foram prejudicados por conta da pandemia.
Diante da atual conjuntura, buscam formas para – além de seguir com nosso trabalho e nossa vida [pagar aluguel, energia e água, cuidar das crias, fazer feira] – responder o que vem acontecendo, decorrente da Covid-19 e da política brasileira.
Para isso, criaram o projeto “Mulheres Em Quarentena”, que teve início no mês de julho.
Para viabilizar as performances, estão com uma campanha de financiamento coletivo e chamam a todas e todos para somar na iniciativa.
No dia das mães, o Marcinho me ligou pra me dizer belezas sobre a maternidade, me cumprimentar pelo filho e pela poesia no mundo. O cara tinha perdido há um mês o filho lindo, Hugo. Um menino de ouro. Sensível, excelente DJ e exímio professor de dança de salão, com apenas 25 anos! Isso ainda era abril e a Covid-19, com o nosso alerta concentrado nos velhos, levou o jovem saudável, para desespero desse pai e dessa família. Acompanhei tudo, o estado dele, a evolução da doença, a resistente esperança até o último momento. Na penúltima mensagem antes da fatídica notícia definitiva, Marcim ainda dizia animado: “O médico mandou chamar a gente no hospital, só pode ser boa notícia.” Nada. Voltou dali viúvo de filho, órfão de filho, sei lá que nome se dá… voltou de lá golpeado inúmeras vezes no mesmo lugar, perdido, sem o rumo da existência do filho, sem o rumo que a existência de um filho dá. Pois esse ser humano, senhor Marcos Nascimento Silva, a menos de um mês da morte do filho, ainda arrumou dose de amor em seu peito para me cumprimentar pelo dia das mães?! Como assim? Fiquei tão comovida que imediatamente liguei pra ele: Meu amigo querido, que raridade generosa de ser humano é você! Como pode arranjar palavras doces pra me dizer no dia das mães, em meio a esse amargor da ausência de seu fruto?
—Minha amiga, cada vez vou compreendendo mais a honra de ter sido pai dessa pessoa por 25 anos. Tá difícil a saudade imensa mas estou de pé! Fora isso, a única coisa que me tira do sério nesse momento, que tá me tirando a paz, é o roubo da nossa bandeira, Elisa. Eles fazem manifestações debochando das mortes, indiferentes ao luto. Usam a bandeira, se vestem com a bandeira brasileira enquanto zombam dos mortos, das vítimas dessa terrível pandemia. O presidente ri da nossa dor. Debocha da “gripezinha” que matou meu filho. Mas o pior é estarem esses todos, que não valorizam a vida povo, vestidos de verde e amarelo. São minhas cores, do meu país. Eu sou verde amarelo também e me recuso a botar uma arma no meio do azul da nossa bandeira. No céu da minha bandeira não tem bala perdida nem bala achada, bala de propósito. O verde é mata. E a mata não mata indígena, pelo contrário, o protege. Tá tudo torto. Quando eu falo em Deus, na minha fé não cabe gatilho, munição. Não, tá tudo torto. Tá tudo torto. O governo fala que é pela família, mas da minha família ele se esqueceu e das que ficaram sem leitos e as centenas que morreram sem poder respirar. Eu gosto daquela camisa, meu coração veste essas cores e não é a favor da violência. A bandeira é minha também. Só isso que me tira a paz hoje.
Fiquei muda. Imediatamente me lembrei que esse mesmo homem se valeu da força ancestral que lhe é devida para, dois dias depois de enterrar o filho, gravar um vídeo alertando a todos da gravidade que o abateu. Dizendo que o jovem era a menos provável vítima da doença. Com baixíssimo estoque de egoísmo, Marcim exubera empatia, força coletivista e amor ao próximo, seja ele quem for. Logo depois do acontecido, comecei a escrever esses pensamentos, mas aí enveredei para o roubo da bandeira dentro do qual também está o roubo das palavras que não pertencem à ideologia fascista. No entanto, os mesmos que se dizem defensores da família, de Deus e da pátria, são os que criam e distribuem fake news, praticam corrupções, concordam com o assassinato de indígenas, negros, e ofensas à natureza, se insurgem armados contra mulheres, gays, lésbicas, travestis, trans, enquanto afirmam que lutam pela liberdade. São estes que ateiam fogo no congresso, no supremo, e chamam este vandalismo de liberdade de expressão. Vestidos de verde e amarelo, dizem que é censura a proibição de divulgar mentiras oficialmente e até afirmam que o número verdadeiro de mortes pela doença é que é mentira, pois “não mata tanto assim”. Então, resvalei para esse lugar semiológico, em que muitas bandeiras do campo progressista são roubadas muitas vezes por forças de extrema direita. Um jogo de fazer confusão com as palavras está em jogo. Enfim, tudo isso estava dentro da mágoa verde e amarela do meu amigo e que também eu sentia, que acabei não terminando o texto que retomo agora. Neste ínterim, o nosso herói foi descoberto pela mídia ao protagonizar a bizarra cena em que um desses “cidadãos de bem” arranca as cruzes postas ali como memória, homenagem e protesto de quem perdeu seus amores para o vírus que associou rapidamente sua letalidade ao descaso público de um país sem Ministro da Saúde em plena turbulência sanitária. Foi Marcim quem recolocou cruz por cruz na areia e, se não me engano, ele não estava entre os pais que as puseram ali. Estava sim, com a mulher Jane, caminhando, de máscara, pelo calçadão, certamente levando a dor pra tomar um pouco de sol, quando viu a violência e o desrespeito com as cruzes in memorian, e corajosamente agiu.
Marcim mostra o retrato com o filho morto, depois de recolocar cruzes arrancadas por “cidadão de bem”
Só hoje retomo o texto. Tudo isso que digo agora desse ser humano da melhor qualidade combina muito com toda a linhagem de onde ele veio. Trata-se do famoso Quilombo da Sacopã. Marcim é deste clã especial. Quem foi no Samba lá sabe: Sua estirpe é de altíssima voltagem de bondade e espírito coletivista; ou seja, aquele que não encontra sossego enquanto seu irmão, que ele nem conhece, não tiver dignidade pra viver. Digo que nem conhece porque somos todos irmãos no mundo, somos da família mundo. E até quem não presta faz parte. Fomos vizinhos na Sacopã. Marcinho também é excelente professor de dança e me deu a honra de me apresentar a Hugo e de dançar com ele algumas vezes. Maravilhoso. Marcinho é meu herói de hoje. Sua grandeza é maior, muito maior que estas páginas. Quando me mudei para Copacabana, há pouco tempo, foi ele quem fez uma assessoria impecável de instalação de vários fios e iluminação pra mim. Numa conversa me disse, entre tomadas, martelos, pregos e parafusos:
—Eu tava pensando uma coisa aqui comigo. Quando vi a Jane, minha mulher, fazendo faculdade, eu achei ela corajosa. Depois quando ela fez mestrado eu achei muito mais ainda. Aí, veio a pós-graduação, e aí me deu em mim a injeção de fazer faculdade, fazer um concurso público, algo em que eu pudesse servir às pessoas da melhor maneira, e estudar bem pra isso. Agora, só agora, minha amiga, que eu percebi que o racismo fez eu pensar que eu só podia ter o curso técnico, no máximo.
Ontem mesmo em suas postagens ele ainda disse: são cem mil mortos porque erramos nas últimas eleições. Carismático professor de humanidades, o Marcim, como carinhosamente é chamado pelos que desfrutam de sua existência diretamente, é gente pra ser imitada, seguida. Um verdadeiro influenciador. Vou falar uma coisa por final: amo meu pai, amo o pai do meu filho e admiro muitos pais atuantes que conheço e com os quais vibro. Mas no dia de hoje, dia dos pais, o Márcio é a bola da vez! É o representante da importância da paternidade no mundo, seja ela exercida por quem for. O importante é que consiga encher de amor essa paternidade. Tudo que nos espantou, tudo que fez o cara ser notícia internacional e personagem principal da minha crônica, atende simplesmente pelo nome de amor. Foi o amor dele, sua alta dosagem, seu fundamento na filosofia Ubuntu é que provocou o espanto. Marcinho pai de Hugo, que é pai de Mateus, está metido nesse trançado etnológico amoroso que bate seu tambor contra o ódio. Sou do seu Quilombo, Marcinho, e nossa dinastia vencerá.
O novo coronavírus avança nos territórios quilombolas no Brasil, atingindo um número total de casos confirmados que supera as estatísticas de países inteiros. Segundo o boletim epidemiológico divulgado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (Conaq) nessa quarta (29), foram confirmados 3.798 casos de Covid-19 nas comunidades remanescentes de quilombos.
O número é 48,6% maior do que o total de casos registrados em Cuba, país que, entre os séculos 17 e 19, passou por um processo similar de formação de quilombos, conhecidos ali como palenques. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), até 29 de julho o país caribenho havia registrado 2.555 casos para uma população de 11,47 milhões de habitantes.
Não existem no Brasil dados oficiais sobre a população quilombola. A categoria seria incluída pela primeira vez no Censo 2020, adiado por conta da pandemia. Segundo estimativa da Fundação Cultural Palmares, as 3.212 comunidades certificadas até 2019 possuem 1,2 milhão de habitantes.
Estado com maior número de comunidades remanescentes de quilombos identificadas, o Pará também responde pela maioria dos casos de Covid-19, com 40,5%, seguido por Rio de Janeiro (22,2%), Maranhão (16,8%) e Amapá (8,9%).
O número total de casos nos quilombos brasileiros supera também o total de registros de Covid-19 da população inteira de países como Nicarágua, Líbia e Congo. E começa a se aproximar do total de casos do Paraguai.
O país caribenho mantém na página do Ministerio de Salud Pública (MSP) um boletim diário detalhando os casos de coronavírus no país, incluindo o perfil médico de cada um dos infectados. Sem novos óbitos há duas semanas, Cuba teve 87 mortos por Covid-19. Segundo o registro governamental, não houve óbitos de quilombolas cubanos.
Os descendentes dos africanos escravizados que se rebelaram para formar os palenques são chamados em Cuba de cimarrones. O termo é oriundo do espanhol cima, ou cimeira, uma referência às regiões montanhosas onde esses quilombos eram construídos.
Conforme narra Gabino La Rosa Corzo no livro “Los palenques del oriente de Cuba: resistencia e acoso“, as comunidades cimarronas se concentravam em grande parte na porção oriental da ilha, principal região de produção de cana-de-açúcar e para onde a maioria dos africanos eram levados. Ainda hoje, as províncias orientais de Santiago de Cuba e Guantánamo detêm a maior porcentagem de negros entre a população geral fora da capital: 14,2% e 12,8%, respectivamente. Muitos deles, descendentes de cimarrones.
Assim como o Brasil, Cuba foi um dos últimos países do continente a abolir a escravidão. Em 1880, o rei espanhol Afonso XII promulgou a Lei do Patronato, que proibia a compra e venda de escravos na colônia, mas permitia aos donos de escravos manter a mão-de-obra sob um regime de patronato que, na prática, pouco diferia da escravidão. A abolição total só viria em 1886, dois anos antes do Brasil.
Cuba guarda ainda outra semelhança com nosso país. A população negra cubana convive com índices de pobreza elevados e é alvo constante da violência policial. Em 27 de junho, o assassinato do jovem Hansel Ernesto Hernández Galiano por agentes da Polícia Nacional despertou uma onda de protestos em Havana, levando à prisão de ativistas.
De acordo com o boletim da Conaq, o número de mortes registradas nos territórios quilombolas do Brasil chegou a 138, cinco a mais que no último levantamento, de 13 de julho. A maior parte delas ocorreu na região Norte (44,2%), seguida do Sudeste (29,0%) Nordeste (23,9%) e Centro-Oeste (2,9%). O Pará ocupa o primeiro lugar também em número de mortos, 40. O Rio de Janeiro é o segundo estado com mais mortes (37), seguido do Amapá (19), Maranhão (12) e Pernambuco (9).
Descaso
“O aumento no números de casos nas comunidades quilombolas demonstra o descaso do poder público”, afirma Sandra Maria da Silva Andrade, diretora da Federação Quilombola do Estado de Minas Gerais e integrante da coordenação executiva da Conaq.
— Já não tínhamos assistência de saúde adequada antes da pandemia. Neste momento de expansão da doença, precisávamos de um olhar específico, um atendimento da população quilombola. Fomos descartados pelo governo!
Além da invasão dos territórios por grandes empreendimentos, o atraso no repasse do auxílio emergencial aos quilombolas faz as pessoas das comunidades terem de ir até a área urbana, ficando assim mais expostas ao contágio.
Líder da comunidade Carrapato da Tabatinga, em Bom Despacho (MG), Sandra alerta para a subnotificação. Com 2.226 habitantes, seu quilombo é um dos que ainda não recebeu testes.
“Temos casos de Covid-19, mas as autoridades não notificam”, diz ela. “Não estamos sendo contabilizados. As pessoas estão morrendo e os governos não fazem a notificação. Colocam qualquer coisa como causa da morte, mas não falam que é a Covid-19. A gente sabe que é. Mas eles não têm feito o teste nas pessoas”.
Foto principal (Governo de São Paulo): Testagem no quilombo Peropava, em Registro, interior paulista