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  • O massacre que a TV não mostrou em Suzano

    O massacre que a TV não mostrou em Suzano

    Estarrecido, o país parou nessa quarta-feira, 13 de março de 2019, para entender o que houve na Escola Raul Brasil em Suzano. O massacre, que resultou em dez mortes e ao menos 11 feridos, exigiu cobertura ao vivo. As TVs escalaram seus repórteres, suas câmeras de alta resolução, seus helicópteros, seus carros com satélites de link para transmissões diretamente do local do crime. O arsenal estava todo lá. Mas acompanhar a chegada das informações pelas emissoras foi mais um espetáculo de horrores da mídia nacional.

    Das cenas de pânico e horror dos alunos e funcionários aos corpos dos mortos no chão, vimos tudo em detalhes. Menos o essencial: o massacre do ensino público e o desamparo das escolas, professores, alunos e de toda uma população vulnerável à falta de políticas públicas capazes de promover o diálogo entre educação, assistência social e saúde ANTES de uma tragédia acontecer. Uma tragédia anunciada, por sinal, pelas mãos de um governante que banaliza a morte ao brincar de empunhar armas de fogo enquanto reduz ainda mais as verbas para a pasta de educação.

    O fato é que nenhuma emissora se preocupou com isso tudo quando passou horas a fio reproduzindo os gritos, o medo e o pânico de uma escola inteira diante um revólver de verdade. O apresentador Datena, por exemplo, não poupou ninguém em horário livre para crianças: colocou ao vivo e em câmera lenta as cenas brutais de violência que registraram o massacre pelo circuito interno da escola. Diretamente de Suzano, um repórter de seu programa ainda foi capaz de encurralar a mãe dependente química de um dos assassinos. A TV Globo, por sua vez, não hesitou em mostrar o endereço da casa dos familiares dos atiradores no Jornal Nacional. Se a mãe, pai, avô ou os quatro irmãos de um deles virarem eternos reféns de um crime que não cometeram, o problema não é da emissora.

    O choro convulsivo de crianças e os endereços dos sites de fanáticos por violência também foram oferecidos ao público por diferentes programas de TV. Não houve limites para a irresponsabilidade, a covardia e sanha por audiência minuto a minuto.

    Passamos o dia ouvindo dezenas de entrevistas de porta-vozes de forças policiais, cenas oficiais de João Doria que omitiram a grande vaia que ele recebeu no local, e nenhuma entrevista com educadores e professores analisando o caso a partir do fato de que aqueles atiradores poderiam, sim, ser um dos seus alunos.

    Pelo contrário, ao mencionar que os assassinos foram alunos da escola, os jornalistas imediatamente reiteravam que Luiz Henrique Castro, de 25 anos, já havia concluído o curso, e o outro, Guilherme Taucci, de 17 anos, era “evadido”, ou seja, termo usado para designar o aluno convidado a se retirar ou que simplesmente saiu do colégio e nunca mais voltou. Nada se questionou sobre esse sistema de abandono escolar que, sabe-se, é assunto delicado.

    Atualmente existem cerca de 10 milhões de crianças e adolescentes excluídos do sistema de ensino ou em situação de atraso escolar, de acordo com Censo Escolar e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O assunto é a prioridade dos programas da agência brasileira da Unicef, o Fundo Internacional de Emergência para a Infância das Nações Unidas. O órgão de defesa de direitos da infância sabe que, infelizmente, existe uma cultura disseminada nas escolas públicas brasileiras de rotular as crianças e adolescentes com atraso, problemas familiares e afins, como incapazes de aprender e superar suas condições.

    Mas a TV não polemizou nem ao vivo ou em estúdio essa questão. Apenas ignorou o tema que deve ser compreendido como parte de uma complexa desconexão entre a rede educacional, de assistência social, de saúde e de apoio por profissionais especializados em gerenciamento de conflitos.

    A televisão preferiu dar voz sem críticas ou embate de opiniões às declarações de um parlamentar que afirmou que professores armados teriam evitado o massacre. Os jornais também passaram batido por um dos principais temas a serem abordados no momento: a política de ampliação de posse e porte de armas que embasou a campanha do atual presidente e sua influência no comportamento da população, particularmente, entre os jovens.

    Ao final da cobertura do dia, muito se mostrou do crime e do horror. Acontece que a violência nas escolas não é apenas uma questão do noticiário policial. É assunto para as editorias de educação, saúde e política.

    A escola, vamos lembrar, é aquele espaço onde crianças e adolescentes passam boa parte do tempo para estudar. Esses alunos carregam na mochila seu histórico familiar, eventos traumáticos, estresse crônico, abusos e todo tipo de experiências fora dos muros. A escola também representa a última fronteira entre esses jovens e uma série de tragédias a que estão vulneráveis: do tráfico de drogas à marginalização, subemprego ou desemprego. E nelas estão professores mal remunerados, desmotivados, assustados e adoecidos. É nelas que mães e pais confiam seus filhos enquanto saem para trabalhar – ou vão à procura de emprego.

    Todos esses assuntos subestimados nos noticiários viraram destaque na conversa de um grupo de professores que estava na porta da Escola Raul Brasil no dia do massacre. Educadores de escolas da região de Suzano e representantes da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), estavam ali para oferecer apoio aos educadores e alunos da Raul Brasil, e também se dispuseram a conversar com a imprensa na terça-feira. Estavam ali prontos para as entrevistas mas pouco foram abordados.

    Em entrevista aos Jornalistas Livres, porém, esclareceram didaticamente: o massacre de Suzano foi fruto desse entroncado e complexo sistema de sucateamento de diferentes políticas públicas cujas mazelas escoam, diariamente, nas mais de cinco mil escolas públicas do país.

    A professora Angela Talassa, que dá aulas na Escola Estadual Professor Carlos Molteni, a apenas dois quilômetros da Raul Brasil, chama atenção para a precariedade de o sistema de ensino lidar com os conflitos dos jovens sob intensa exposição à violência. “Agora, neste momento, estamos com esse grande movimento de psicólogos, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, funcionários da área de saúde da prefeitura prestando socorro aos familiares e à escola. Mas é preciso dizer que precisamos dessa atenção multidisciplinar ANTES de uma tragédia acontecer. Amanhã, quando os corpos esfriarem e os jornalistas desaparecerem, estaremos sozinhos como sempre?”

    Angela conta que identifica na sala de aula, facilmente, os alunos que estão sofrendo de depressão, diversos tipos de síndromes emocionais e transtornos. “Eu mesma já tirei carta de suicídio de bolsa de aluna”. Mas ela não tem a quem recorrer. “Pedimos encaminhamentos que acabam nunca acontecendo. Os estudantes são orientados a ir à Universidade de Mogi das Cruzes para atendimento psicológico e a maioria não tem condições de sequer chegar até lá”, desabafa.

    “Os adolescentes, então, ficam sem tratamento remoendo todos os seus problemas: os que são próprios da idade e os que são fruto dessa tragédia social que o país vive. Isso não pode ser ignorado.”

    Ao lado dela, o educador Richard Araújo, da Apeoesp, concorda: “Há muitos anos temos observado esse fenômeno crescente de violência nas escolas e o governo não toma providências. Quem acredita que militarizar as escolas ou armar a população vai resolver o problema da violência não compreende a complexidade da crise social que existe no nosso pais e como essa crise adentra os muros da escola!”

    A solução, diz o educador, existe, sim, e passa por investimentos: “Desde investimento em infraestrutura em escolas que não têm nem biblioteca ou laboratório, como em profissionais, psicólogos, assistentes sociais e em toda a rede de acolhimento.” Vale não só para os alunos, lembra Angela: “Vejo professores vivendo sob doses de calmantes. Eles não conseguem dar continuidade ao seu trabalho nas péssimas condições de trabalho e situação de pressão social que vivem. Atacar isso é cuidar da educação para evitar essas tragédias.”

    Outro educador, Sérgio Pereira, acrescenta que as escolas precisam de profissionais que vão além da grade clássica de professores, coordenador pedagógico e diretor: “Precisamos de mediadores de conflito especializados e políticas de assistência social interligadas na escola. São mecanismos que garantem uma rede de proteção às crianças também fora dos muros.” Para isso, mais uma vez, é necessário investimento – em vez de cortes e congelamento de verbas em educação por 20 anos, como foi instituído pelo ex-presidente Michel Temer e mantido pelo atual Bolsonaro.

    A banalização do discurso da violência usada durante a campanha do presidente foi questionada na roda de educadores: “Estamos no auge de uma violência construída nos últimos anos por meio de uma rede discursiva gigante que mostra arminhas com a mão como se isso fosse uma brincadeira. Não é brincadeira”, acentua Pereira. “A violência da sociedade está no cotidiano da escola publica. Vai desde o problema do time A conta o time B e passa por questões de gênero, étnicos-raciais, por tudo! Se um lado da sociedade banaliza uma arma apontada, o ápice disso são esses corpos caídos no chão, mortos, aqui!”, completa.

    Diante disso, a professora Angela conclui: “Todas as escolas estão vulneráveis, estamos todos abandonados. E para onde os governantes e a imprensa sinalizam? Para a privatização do ensino! Mas isso não é saída, é exclusão.” A professora, então, deixa sua pauta: “Amanhã, os repórteres vão embora e o que será feito? Seremos ouvidos como professores ou criminalizados e culpados pelas péssimas condições de ensino que enfrentamos?”.

     

  • É a ambição do capital que não cabe no orçamento do governo

    É a ambição do capital que não cabe no orçamento do governo

     

    A Constituição de um país protege seus cidadãos ao determinar as normas, que a maioria escolheu, para funcionamento de sua sociedade. Nossa Constituição de 1988 conferiu alguns direitos ao povo brasileiro, especialmente aos mais pobres, que antes não existiam. Por isso é chamada de Constituição cidadã. Converteu em cidadãos e cidadãs e acolheu inúmeros brasileiros antes relegados à sua própria sorte.

    Os governos dos Fernandos, Collor e Henrique, relutaram em fazer cumprir tudo aquilo que a Constituição determinava. Alegavam que o Congresso deveria regulamentar certos direitos à população. O capítulo, por exemplo, da assistência social, que determinava que deficientes e idosos em condição de pobreza têm direito a um salário mínimo mensal, só foi realmente implantado em toda sua dimensão a partir do governo Lula.

    Os constituintes, sabendo que o governo gastaria mais com esses direitos, buscaram formas de arrecadação para que houvesse dinheiro para custeá-los. A COFINS – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social, entre outras contribuições e impostos, foi criada exatamente para carrear recursos para os benefícios da Assistência Social e da Previdência Social.

    Mas acontece que recursos com destinação prevista na Constituição muitas vezes são desviados para outros fins.

    É isso que promove a recém aprovada DRU – Desvinculação de Receitas da União. E somos obrigados a ouvir o tempo todo, nos meios tradicionais de comunicação, que o déficit da previdência é enorme. Ao passo que se somarmos todos os recursos destinados à Seguridade Social, como determina a Constituição de 1988, sem desviar nenhum recurso para outro fim, concluiremos que a Previdência é superavitária.

    Aprovar uma emenda constitucional que reduz os gastos com saúde e educação, equivale a anular todas as lutas populares, desde a ditadura até agora, para estabelecer regras na Constituição para uso do dinheiro do povo. E, pior, quem está tentando anular as conquistas do povo brasileiro, não têm a legitimidade do voto para proceder essas mudança.

    Os eleitores brasileiros nunca votariam nos cortes de direitos que os golpistas estão tramando. Não há hipótese de isso acontecer. Só há dois modos de um governo brasileiro destroçar a Constituição de 1988: os eleitores serem enganados ou, através de um golpe, retirar o direito de povo brasileiro de eleger seus governantes. E é isso que estamos assistindo. Um programa econômico e social que não recebeu os votos dos brasileiros está sendo implantado.

    Não devemos nos iludir, o que não cabe no orçamento do governo federal é a ambição do capital, a ambição da elite empresarial e política desse país. Os direitos à saúde, à educação, à seguridade social cabem muito bem.

    Todos especialistas sérios afirmam que a saúde no Brasil é subfinanciada, mais recursos são necessários para subir a qualidade do SUS – Sistema Único de Saúde. Cortar recursos, como determina a PEC 241, representa que bilhões de reais passarão a ser destinados a hospitais e a planos de saúde privados. O SUS, que tem defeitos, é, mesmo assim, exemplo para muitos países. Especialmente para a população mais pobre, a diminuição de recursos púbicos destinados a saúde vai representar, simplesmente, a perda do direito à saúde. Os recursos, que antes financiavam a saúde, serão desviados para bolsos privados. E dane-se a saúde da população mais pobre.

    As escolas privadas, tanto nacionais quanto estrangeiras que aqui atuam, adorariam ver a destruição progressiva da escola pública. Alunos das escolas públicas gratuitas terão que passar a pagar para as escolas privadas se quiserem se educar. A destruição da educação pública, do mesmo modo que a destruição da saúde pública encherá bolsos privados.

    A deixar por sua própria conta, o capital sempre buscará seu crescimento desenfreado, tirando atribuições do governo e privatizando tudo quando for possível privatizar.

    E agora, o governo golpista de Temer e Meirelles, com eco pelos vários economistas que representam os interesses da elite e da finança, vem dizer que a Constituição 1988 não cabe no orçamento da União.

    Ora, o que cabe ou não no orçamento do país, não é um dado econômico, nem um dado da natureza. É fruto da vontade política da maioria de seu povo.

    Se a maioria decidiu que o país deve cuidar melhor de seus pobres, de sua população mais carente, é assim que deve ser. Se a maioria decidiu que devemos ter saúde pública e educação pública, é assim que deve ser. E a luta deve sempre ser por melhorar a qualidade desses serviços e não o contrário.

    O que não cabe no orçamento do país é a vontade de um bando que toma o poder por um golpe e se julga representante do povo brasileiro, para cortar, em seu nome, recursos que têm servido para resgatar séculos de injustiça contra os mais pobres, para conferir um mínimo de cidadania aos seus filhos.

    A Constituição de 1988 cabe sim no orçamento da União, o que não cabe é a ambição do capital.