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  • Precisamos falar sobre a morte: guia do luto em tempos de coronavírus

    Precisamos falar sobre a morte: guia do luto em tempos de coronavírus

    Com reportagem de Flávia Martinelli e Ariane Silva, do blog MULHERIAS 

    O número de mortos pelo novo coronavírus no Brasil é um soco no estômago todos os dias. As notícias nos atualizam: uma, dez, 100 vítimas, 300 e agora mais de 600 pessoas morreram apenas nas últimas 24 horas. No momento em que esse texto é escrito somam-se 8.685 vidas levadas pela pandemia. Nessa semana, chegamos ao trágico patamar de terceiro país com maior índice de óbitos do mundo. Não dá tempo de sequer processar tanta informação.

    Mas, ainda que seja óbvio, é preciso lembrar o que dados revelam: além da irresponsabilidade e incompetência dos nossos governantes, cada número deve mostrar que TODA vida importa. Nesse momento de dor e sofrimento, o blog Mulherias, sempre atento às belas iniciativas das mulheres periféricas, tem a obrigação de fugir de sua pauta para falar sobre luto. Publicamos aqui o “Guia para pessoas que perdem um ente querido em tempos de coronavírus“, elaborado por uma rede espanhola de psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e terapeutas especializados no assunto.

    O livro foi traduzido para o português por voluntários do Memorial das Vítimas do Coronavírus no Brasil e pela Rede de Apoio às Famílias que, por sua vez, reúne mais de 60 organizações solidárias à dor dos que sofrem o luto. “São orientações para ajudar a lidar com esses momentos difíceis de isolamento e incerteza, oferecendo outras maneiras que atendem à necessidade de compartilhar e expressar a dor com os outros e, ao mesmo tempo, permitir honrar a memória de nossos entes queridos falecidos”, diz o coordenador da iniciativa, o historiador Danilo Cesar.

    Danilo é taxativo sobre a situação que estamos vivendo: “os esforços para garantir a vida da população não estão sendo suficientes e a doença hoje castiga mais a população negra, pobre e periférica, cujas mortes sempre foram banalizadas.” Em uma live que foi ao ar no último sábado, do coletivo Jornalistas Livres, parceira da Rede, ele também lembrou da situação das populações indígena e carcerária, que estão sendo gravemente afetadas.

    Velórios rápidos sem ver o rosto do familiar

    Como se não bastasse a dor das perdas em si, as despedidas, em muitas cidades do país, estão com medidas de restrição por questões sanitárias. Em São Paulo, por exemplo, a prefeitura está restringindo a duração dos velórios a no máximo uma hora. Somente dez pessoas podem estar na sala ao mesmo tempo. O caixão é recoberto de papelão e fechado para a cerimônia. “É muito difícil. E ainda temos um presidente que insulta a população com o seu ‘e daí?’; o que agrava ainda mais essa sensação de isolamento no luto”, completa Danilo.

    De acordo com o Guia, os rituais de despedida são atos simbólicos que nos ajudam a expressar nossos sentimentos ante uma perda, colocar um pouco de ordem em nosso estado emocional caótico, estabelecer uma diretriz simbólica para os eventos da vida e nos permitir a construção social de significados compartilhados. “Eles abrem a porta para que tomemos consciência do processo de luto.”

    Covid-19 e as novas formas de lidar com o sofrimento

    A internet, por conta do isolamento social, é uma ferramenta útil para lidar com a perda de alguém nesse momento. Vale uma reunião virtual com família, amigos ou com a participação de um guia religioso. “Vale escrever um texto expressando as lembranças e sentimentos direcionados à pessoa falecida, acender uma vela enquanto diz algumas palavras para a pessoa ausente. Deixe um minuto de silêncio para expressar amor, perdão e gratidão”, recomenda o manual.

    Publicar homenagem em redes sociais sobre o legado de vida que aquela pessoa deixou é saudável. “E assim, compartilhando-o, dará aos seus contatos a oportunidade de expressar suas condolências e apoio, acompanhando-o através de palavras, músicas e imagens.”

    O recurso foi usado pela família da pastora Sandra Cristina da Silva, de Barueri (SP), que tinha apenas 41 anos. Seus parentes não puderam prestar homenagens como gostariam no dia do sepultamento. Sem poder se reunir, compartilhar histórias e abraços, as condolências estão registradas página do Facebook do Memorial, um espaço virtual criado para reunir e compartilhar manifestações de afeto a quem quem partiu. “Continua aí de cima cuidando de nós”, escreveu a mãe de Sandra, Margarida, em mensagem na rede social. O marido, Silvio, agradeceu pelos anos que dividiu com a mulher e relembrou da alegria e companheirismo dela.

    “A impossibilidade de velar e acompanhar o enterro é uma violência para os familiares e amigos”, afirma a jornalista Malu Oliveira, 63, ativista e pesquisadora que faz parte do coletivo Segura a Onda, plataforma colaborativa surgida na Espanha que conecta os grupos de apoio às vítimas da Covid-19. No Brasil, a entidade também faz parte da Rede que elaborou o guia e organizou em seu site uma galeria online para registro de memória das vítimas. “Estas famílias ainda sofreram muito por falta de acesso a hospitais ou durante a internação de seus parentes sem receber visitas. Nada vai substituir o abraço confortador, o ombro amigo na hora da dor. Mas o ritual virtual pode ajudar a diminuir a solidão do luto nesta situação de emergência.”

    Outra voluntária do projeto, a historiadora Elisiana Castro, de 44 anos, destaca a importância de buscar novas formas de viver o luto durante o isolamento social. “O luto não vai parar, a dor da perda não é banida, a pessoa não deixa de sentir, ou de precisar de amparo por que nós estamos num momento de pandemia”, explica ela, presidente da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), que reúne estudiosos, pesquisadores e especialistas sobre o morrer. “Toda a sociedade deve apoiar as famílias no sentido de reconhecemos sua dor. Apesar de não ter recebido um funeral adequado e respeitoso, a pessoa querida não é apenas um número nesta soma macabra. Toda morte importa, cada número tem nome, idade, profissão e família.”

    Segundo os organizadores do Memorial e da Rede de Apoio, parentes e amigos não tratam apenas de comunicar a morte nas redes sociais e espaços virtuais, mas compartilham amor, afeto, abraços. “É esse abraço distanciado, mas real. Até me emociono quando falo porque é muito difícil reconhecer o quanto as pessoas estão desamparadas diante de uma dor tão grande como a da perda”, diz Elisiana, ciente de que a compaixão nos conecta como seres humanos. Mesmo que isso não dê conta, mesmo que não seja suficiente, enfim, estamos juntos.

    PARA SABER MAIS:

    • A Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais do Covid-19 no Brasil oferece apoio jurídico, psicológico e orientações sobre velórios, sepultamentos e rituais de despedida. A iniciativa faz também o monitoramento das mortes com jornalistas e cientistas sociais levantando informações sobre os casos. A rede pode ser contactada por Whatsapp ou Telegram no número (11) 93011-3281 e por e-mail em memorialcoronabrasil@gmail.com, e também pelo chat da página do Memorial no Facebook.
    • Outro projeto que registra por textos a memória sobre quem se foi, com mensagens de amigos e familiares, é o projeto Inumeráveis, que possui sitepágina no Facebook e Instagram. Por meio de um formulário é possível cadastrar novas histórias ou pedir ajuda de jornalistas voluntários para escrever um relato.
    • O Memorial das Vítimas do Coronavírus no Brasil monitora e compartilha relatos no Facebook e registra de forma mais permanente as histórias de vida na galeria do coletivo Segura a Onda. Todos os domingos, sempre às 20hs, o grupo convida a todos a acender uma vela, levar o celular ou bater palmas nas janelas em memória às vítimas. Abaixo, segue o vídeo-convite comovente que traz fotos de quem partiu.

     

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  • Bar da Rosinha socorre mais de 400 famílias que o governo federal ignora 

    Bar da Rosinha socorre mais de 400 famílias que o governo federal ignora 

    Segunda-feira, 10 horas da manhã. No Bar da Rosinha, que fica bairro Jardim Monte Cristo, na periferia de Campinas (SP), alguns usam máscaras de proteção. Para tocar o pequeno comércio, a líder comunitária conta com Orlando, seu marido, e ambos moram na casa dos fundos. Caixas de cervejas ficam empilhadas ao lado da sala.

    O casal vive ali há 23 anos. Seu Orlando participou da ocupação do complexo Monte Cristo/Oziel/Gleba B desde o início. Naqueles cerca de 1.500.000 m2 antes sem função social e em dívidas com o governo hoje residem mais de 6 mil famílias, cerca de 60 mil pessoas, segundo dados da Prefeitura de  Campinas. O território é símbolo de uma batalha fundiária encampada de forma maciça nos anos 1990 por movimentos sem terra e sem teto e foi considerado uma das maiores ocupações da América Latina.

    Cestas básicas com orgânicos em parceria com o MST  (Foto: Fabiana Ribeiro)

    O Bar da Rosinha é “point” antigo. Ali, moradores comemoram aniversários e o local faz vezes de “buffet”. É Rosinha mesmo quem faz o bolo por encomenda. O local também é ponto de encontro de lideranças da luta por moradia. Mesmo pequeno, em torno de 3×5 metros, o bar acolhe todo mundo. 

    Por volta das 10h30, uma caminhonete simples, de modelo antigo e com pequenos amassados na lataria, estaciona silenciosamente na porta do bar. Não existem ali carros de luxo, buzinas, gritos e ninguém se fantasia de verde e amarelo com camiseta de CBF. É tudo silencioso, sereno e focado.

    Gilmar e Tiririca mal saem do veículo e já encontram com o homem de cerca de 60 anos, vestido com a jaqueta de petroleiro. Outros ali paramentados com luvas e máscaras começam a retirar as 90 sacolas da carroceria lotada. São cestas básicas destinadas às famílias que precisam, e muito, daquelas doações. Em estado de vulnerabilidade social e impactadas pela crise da pandemia do novo coronavírus, aguardam pelos alimentos.

    ALIMENTOS ORGÂNICOS DO MST

    As cestas que trazem alface, chicória, mandioca, limão, mamão, abacate  e limão são frutos da parceria do Sindicato dos Petroleiros de Campinas com a ocupação. Segundo o representante do sindicato, a categoria se cotizou para comprar alimentos orgânicos numa parceria com o assentamento do MST Milton Santos, em Americana (SP).

    A ação é realizada pela Central Única das Favela (CUFA) de Campinas que desenvolve dois projetos: CUFA contra o Vírus e Mães da Periferia. A ponte com a ocupação foi feita pela filha do casal Rosinha e Orlando, a ativista de movimentos culturais e sociais Andrea Mendes. Nesse momento em que a pandemia avança pelas periferias, ela é mais uma voluntária na luta contra o desdém do poder público e em busca de políticas públicas.

    No Monte Cristo não há creches suficientes nem transporte. Falta programa de moradia e de segurança capaz de atender minimamente a população. Falta água, programa de moradia e de segurança. E vale ressaltar: ali a movimentação de pessoas é grande.

    FAMÍLIAS INTEIRAS EM DOIS CÔMODOS

    Boa parte dos trabalhadores atuam nos serviços essenciais em atividade. São motoboys, motoristas do transporte coletivo, equipes de limpeza, operadores de caixas em mercados. Ou seja, além de estarem inseridos num quadro de alta vulnerabilidade social – pela falta de água,  alimentação precária -, estão suscetíveis a serem vetores de transmissão do coronavírus dentro da comunidade.

    Há também os que foram dispensados e se somam aos desempregados, como terceirizados de funções variadas, balconistas de pequenos comércios, manicures, diaristas e informais que não estava inscritos em programas sociais. Historicamente segregados, com a pandemia, suas vulnerabilidades ficaram ainda mais agravadas.

    Fora isso, na maioria das casas é impossível manter ou fazer qualquer tipo de isolamento em caso de alguém estar contaminado. Famílias inteiras residem em apenas dois cômodos.

    Cristiane recebe de Andrea, filha de Rosinha, cesta básica e leite doados pela CUFA: na região, moradores lindam com a falta de moradia, saneamento básico, água, emprego, comida, acesso à informação e, claro, a celular com app para solicitar o moroso auxílio emergencial de R$ 600 (Foto: Fabiana Ribeiro)

    Por conhecer e vivenciar essa realidade, em sua busca por ajuda Andrea encontrou com o presidente da CUFA Campinas, Henry Paulino,  que levou para o território o projeto Mães da Favela com o acréscimo da distribuição de cestas básicas e kits de limpeza.

    A iniciativa atende 480 famílias na região e a ação faz parte das atividades nacionais da CUFA que, até abril, já distribuiu mais de 461.000 cestas pelo Brasil. No estado de São Paulo, foram cerca de 81.000, além de 8.400 “vales-mãe”, ou seja, a assistência imediata de R$ 120 para complementos das cestas básicas. Em geral, o dinheiro é gasto com gás e remédios.

    QUEM SÃO OS ESQUECIDOS?

    As mais 6 mil famílias da região Monte Cristo – Parque Oziel – Gleba B estão inseridas entre os 13,6 milhões de pessoas que moram em comunidades periféricas e movimentam cerca de R$ 119,8 bilhões por ano. Essa população, que á base da pirâmide social, forma a massa trabalhadora que dá a sustentação aos serviços considerados fundamentais e que permanecem funcionando durante o isolamento social da pandemia da covid-19. 

    Favelas movimentam um volume de renda maior que 20 dos 27 Estados do Brasil. Os dados são da pesquisa “Economia das Favelas – Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”, desenvolvida pelos institutos Data Favela e Locomotiva e encomendada pela Comunidade Door.  

    Desse imenso contigente, 50% é formado por trabalhadores informais, que não têm renda nenhuma nesse momento. Historicamente segregados e apartados de seus direitos sociais, com a pandemia, suas vulnerabilidades ficaram ainda mais explícitas e agravas.

    Isolamento Coronavirus abril 2020 Foto: Fabiana Ribeiro

    FOMENTO À ECONOMIA LOCAL

    Existem duas modalidades de cestas e ambas são entregues duas vezes na semana. Às segundas-feiras, a comunidade recebe  hortifrutis. Às quintas, macarrão, arroz, feijão, café, farinha, bolacha, óleo, molho de tomate, pacote de papel higiênico, água sanitária e sabão em pó.

    Em Campinas, pensando também no fortalecimento da economia local, a CUFA estabeleceu parceria com um supermercado da região  – o Generoso – que fica localizado no bairro. Facilidade para os doadores, que podem acertar o pagamento da doação diretamente com o estabelecimento, faz o dinheiro circular na comunidade.

    “ESTADO DE MISÉRIA” 

    Naquela segunda-feira, após descarregar as cestas da caminhonete, a equipe de voluntários recheou o carro de Andrea. O golzinho branco, com mais de 20 anos de rodagem, teve seu encosto do banco traseiro retirado para comportar as cestas das famílias. De tão lotado, sobrou só a vaga da motorista e de um voluntário. Frutas, verduras e legumes orgânicos, além de leite e alimentos, seguiram para a distribuição.

    O primeiro destino foi a Gleba B, na rua José Fidélis Filho, estreita e sem asfalto. Cerca de 50 das 300 famílias moradoras “estavam em estado de miséria”. A confidência vem de Néia, liderança comunitária local que sabe o destino de cada cesta e conhece a história de cada família mapeada e cadastrada por voluntários no começo do projeto.

    “São pintores, pedreiros que estão sem trabalho”, conta ela. Ou seja, são aqueles que estão 40% da população do Brasil em 21 Estados, cujo trabalho informal é a principal ocupação e fonte de renda, como apontam dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de fevereiro de 2020.

    “Agradeço muito a doação, porque aqui sou eu sozinha e Deus fazendo como dá”, diz Néia que, na prática, testemunha outro dado importante: em 2019, houve o aumento da informalidade, que atingiu 41,1%, seu maior nível desde 2016, e bateu recorde em 19 estados e no Distrito Federal

    ƒESTADO SEM ROSTO OU SORRISO

    Diante da casa número 1853, são levadas três cestas: uma  básicas e duas orgânicas. Da fachada de cimento e portão com ferrugem sai uma jovem de 20 e poucos anos. Gabriela, grávida, atende com um sorriso. Troca algumas palavras, recebe as doações e conta que o marido não está porque saiu em busca de um “bico”.

    Mais à frente na rua de terra, em outra casa no cimento e partes inacabadas da construção, uma senhora, Maria Aparecida, de cerca de 70 anos e cabelos grisalhos presos em um coque, também sorri aos voluntários. “Muito agradecida”, disse ao receber a doação.

    De volta ao carro, outra mulher aguarda Andrea, que a reconhece de outro encontro, antes da pandemia, quando a recomendou ir ao Posto de Saúde diante da reclamação sobre fraqueza e cansaço. “Lá no Postinho disseram que a dor no estômago era da alimentação, que eu precisava comer mais”, conta, já com a cesta recebida em mãos. E assim segue o dia…

    Rua José Fidélis Filho

    Interessante lembrar que o poder público costuma não ter rosto. A atuação, na maioria das vezes, ocorre a partir de contatos afastados e impessoais. Se muito, a relação  é “terceirizada” via  ONG’s, uma vez que essas entidades  fazem a ponte entre população e Estado – acarretado um total distanciamento entre as gestões públicas e as populações das periferias. Essa política de Apartheid, no fundo, nega direitos e discrimina. A pandemia do coronavírus só deixou tudo muito mais evidente. 

    Quando o gol branco segue para outra região da Gleba B, uma ladeira abrupta marca o ponto de entrega para outras famílias. Diante de um barraco feito de madeira e coberto com lonas, está Seu Oscar. Na casa, vive com a filha Cristiane, que participa do projeto “Mães da Periferia”, e o neto de  2 anos. A moça tenta, no celular emprestado da vizinha, fazer o cadastramento do pai para recebimento do auxílio emergencial de R$ 600 do governo. Ela e Seu Oscar estão desempregados e não tem celular para fazer o cadastro. “Meu pai arrumou um bico mas até ontem estava parado”.

    A inscrição no projeto “Mães de Família“ foi bem mais simples. Bastou um dos voluntários da ação pegar seu nome, endereço, o número do CPF e fazer uma foto dela. Os dados foram enviados para a central da CUFA e logo depois o recurso de R$ 120 reais foi liberado.

    “MÃES DA FAVELA” ANTES DA PREFEITURA

    Para chegar à casa com três cômodos onde vive o casal  Gleiciane e Marcio com seus sete filhos é preciso fazer o  trajeto a pé. Carros não conseguem acessar o terreno íngreme e sem asfalto. Com a sacola de alimentos e as pranchetas, os voluntários descem a ladeira esburacada com cuidado para não tropeçar entre as pedras.

    Gleiciane e seu marido são trabalhadores informais que vivem de pequenos serviços temporários e não possuem renda fixa. Contam que o custo de vida aumentou porque, com o isolamento social, as crianças não estão indo à escola municipal desde o dia 23 de março. A merenda faz falta, é preciso mais comida na mesa. As dificuldades não param por ai. Como acompanhar aula “on line”? A família só tem um celular “que está  no conserto”, lembra Gleiciane.

    Custo de vida aumentou com as crianças em casa e o programa municipal ainda não redirecionou a merenda escolar para a família de Gleiciane (Foto: Fabiana Ribeiro)

    Campinas lançou o Programa de Segurança Alimentar e Nutricional, “NutrirCampinas”, mas noticiou a distribuição a partir do dia 17 de abril. A família de Gleiciane ainda não foi contemplada e, antes disso, ela foi incluída no “Mães da Favela”.

    “SOMOS ESQUECIDOS”

    Seguindo pela comunidade, os voluntários acessaram um outro grupo de famílias aglomeradas em barracos de madeiras. Para chegar até lá, passaram por becos tão estreitos que uma única pessoa é capaz de passar por vez. Ali não há saneamento básico, energia elétrica individual, água encanada e muito menos acesso às mídias digitais para se cadastrar nos programas sociais ou fazer o cadastro do auxílio do governo. O índice de instrução é mínimo – alguns só assinam o nome – e a dificuldade de acesso à tecnologias é uma enorme muralha.

    Becos estreitos: passagem para apenas uma pessoa por vez (Foto: Fabiana Ribeiro)

    Adriana, de cerca de 30 anos, afirma que naquele canto estão os esquecidos por todos. “As famílias estão passando fome. Minha vizinha está amamentando e não tinha nada para comer. Eu tinha um pouco de arroz e dei à ela”. O programa de cestas básicas é questão de sobrevivência. Depois de improvisar uma cesta de hortifruti e leite, os voluntários solicitaram a ela uma lista das pessoas necessitadas naquela área.

    Antônio já estava na lista. Trabalhava como pedreiro em uma construção de mais um barraco na viela estreita, mas redobrado em cuidados. Fez questão de manter a distância entre pessoas e deixou claro que cuida de sua saúde e do próximo. “Eu tenho que pensar no outro porque não estamos sozinhos no mundo. E temos que fazer o certo para todos.” O pagamento de R$ 400, ele contou, só iria receber daqui  a 30 dias. “Mas o importava é estar trabalhando.” Antônio também não está inscrito em nenhum programa social.”

     

     

    Seu Antônio: importância do distanciamento e de não estar sozinho no mundo (Foto: Fabiana Ribeiro)

    Para colaborar:
    Acesse a CUFA Campinas ou o projeto ReExistência é Viver, focado no auxílio complementar de doação de kits de higiene e máscaras para 100 famílias de uma das comunidades da região, a favela da Matinha, além de painéis informativos sobre como evitar a exposição ao coronavírus. #Mãesdefavela #cufacontraovirus #cufa
     

     

    Fotos: Fabiana Ribeiro

  • Contra vírus, filantropa se une a líder sem-teto: “Juntas conseguimos mais”

    Contra vírus, filantropa se une a líder sem-teto: “Juntas conseguimos mais”

    Por Flávia Martinelli, do blog MULHERIAS


    Em meio à pandemia do coronavírus, duas mulheres estão preocupadas. É preciso agir com urgência. Cada uma a seu modo, então, começa a articular as próprias redes de contatos. Ouvem ideias, buscam dados, sugerem e recebem propostas. Os dias, as horas e os minutos frenéticos de cada uma são ocupados por questões muito mais pontuais do que com as polêmicas do presidente sem rumo. O número de infectados aumenta, o confinamento exige condições de sobrevivência, há pessoas sem trabalho, sem comida, com filhos espremidos entre idosos em cômodos apertados ou simplesmente sem ter para onde ir ou a quem recorrer. Por diferentes vias e vivências, ambas sabem: a fome tem pressa.

    E assim nasce o Comitê Popular de Combate ao Covid-19, plataforma criada por um grupo diverso, com a participação de instituições privadas e lideranças de movimentos comunitários que, em menos de uma semana, mapeou os locais onde a crise se mostra mais aguda em São Paulo. Nesse meio-tempo, também captou R$ 3.037.000,00 (três milhões e 37 mil reais) para atender as demandas das populações mais vulneráveis da cidade.

    Em apenas dois dias de atividades, só na região central e arredores, mais de 3 mil famílias, cerca de 10 mil pessoas, receberam cestas básicas ou marmitas. No mesmo fim de semana, uma rede de oficinas de costura começou a confeccionar máscaras de pano para as comunidades.

     

    Os kits de alimentos e higiene, que em geral duram duas semanas para quatro pessoas, são comprados nas regiões onde vivem os moradores para o fomento da economia dos bairros. Cerca de 27 mil famílias serão assistidas, uma ação que atinge 110 mil pessoas que congregam bairros do Centro, Heliópolis,  Cumbica, Cidade Tiradentes, Sapopemba e Jardim Colombo, São Remo, Vila Guaraciaba e Jardim Keralux. Há ainda um núcleo na favela da Maré, no Rio de Janeiro.

    Nos próximos 15 dias, a meta é levantar um total de R$ 8.190.000,00 para ampliar o número de atendimentos e manter a constância de fornecimento e outras necessidades que surgem, botijões de gás e alcool gel, ao longo do período de isolamento social. 

    As duas mulheres, no entanto, continuam preocupadas. A mineira Marisa Moreira Salles e a baiana Carmen Silva, sabem que é preciso muito mais.

    Marisa é editora, redatora, designer e empresária do setor de livros na BEI Editora, que significa “um pouco mais” em tupi. Tem uma longa carreira no universo das artes, arquitetura, literatura e educação.

    Carmen é corretora de planos de saúde e há mais de 20 anos fundou o Movimento Sem-Teto do Centro, que já tirou quase 3 mil pessoas de moradias insalubres, de viadutos ou de aluguéis impraticáveis ao promover inclusão social e promoção do bem-estar em prédios abandonados da cidade.

    “Ela me deixa de queixo caído com as soluções que encontra para os problemas urbanísticos e do dia-a-dia das ocupações”, diz Marisa sobre Carmen. A editora costuma ouvir as aulas da líder sem-teto como professora convidada no Insper, o Instituto de Ensino e Pesquisa, onde Marisa é conselheira.

    A entidade oferece cursos de gradução e pós em administração, economia, direito e engenharia e conta com o Núcleo de Mulheres e Território em seu Laboratório de Cidades, um programa interdisciplinar voltado para ações transformadoras de gestão urbana. “Quando a empatia, o olho no olho, a solidariedade e a educação são valores sólidos, independentemente de educação formal, informal ou das ‘caixinhas’ onde nos colocam, surgem soluções inovadoras.”

    Marisa Moreira Salles, Carmen Silva e Tomas Alvim: em ação emergencial de combate ao coronavírus. “Carmen é da minha rede de confiança, minha amiga, com ela descobri que podemos trabalhar junto para conseguir algo melhor para a sociedade como um todo”, diz Marisa. A líder sem-teto completa: “sozinha não sou ninguém”, e Tomas reitera: “a tecnologia para lidar com crises e urgências já está estruturada nas organizações comunitárias” (Foto: acervo pessoal)

    Sem rodeios, Marisa defende que é preciso aproximar a sabedoria e a tecnologia das ruas às politicas públicas, academia e instituições públicas e privadas. “São inteligências diferentes. Devemos estar juntos como nunca agora. E se estivéssemos há mais tempo, já teríamos propostas mais próximas das necessidades humanas, de como as pessoas querem viver. E tudo isso ainda estaria normatizado pelas leis que o país nos oferece.” Numa mesa de decisões, ela sugere, sempre devem estar representantes da sociedade civil, Estado, instituições e comunidade. “Se falta algum, vai faltar eficácia.”

    Carmen, por sua vez, tem como mantra a frase “sozinha eu não sou ninguém”. As cinco ocupações do MSTC são famosas pelas portas abertas aos excluídos dos sistemas de moradia digna e a todo tipo de apoio e colaboração externa dos que vivem outras realidades. Pelos prédios ocupados já passam dezenas de especialistas, professores, estudantes de artes, gestão, urbanismo, arquitetura, paisagismo, engenharia, jornalismo, saúde pública, gastronomia, moda e até equipes de cinema e documentários.

    Quem passa pela Ocupação 9 de Julho sempre aprende sobre a logística da recuperação do imóvel que já foi um depósito de 50 toneladas de lixo e fedentina. Também vê de perto como funcionam os núcleos de autogestão de moradores e voluntários que desenvolvem programas de cuidados coletivos, sustentabilidade e, principalmente, cidadania.

    Sem Teto foram eleitos para ocupar o conselho tutelar da região e para a gestão do Parque Augusta, estão presentes em diversos conselhos participativos do governo, associações de bairros e campanhas para melhorias de espaços públicos.

    “A luta por moradia tem essa característica: é um ‘guarda-chuva’ de muitas negligências à população mas mostra, de maneira coletiva e organizada, como é possível atuar de maneira ativa na gestão da cidade como um todo”, ensina Carmen. Ela conta que, para além de sanar o problema imediato da falta de comida, a omissão das omissões, o objetivo da operação é prevenir o contágio do coronavírus entre os mais fragilizados e, claro, em toda a cidade.

    Cadastramento de moradores (Foto: Elton/Casa Verbo)

    “Sabemos quem vive na rua ou em lugar insalubre, como cortiços que não permitem isolamento e ainda compartilham banheiros, casos de idosos que dividem espaços com crianças que são comprovadamente vetores e ainda as situações de famílias que não têm renda nenhuma”, conta a consultora em políticas públicas Márcia Terlizzi, voluntária do projeto com experiência de 30 anos de carreira na Secretaria de Habitação do Município.

    Márcia acompanhou a gestão de dez prefeitos diferentes como gestora de conflitos entre a prefeitura e movimentos sociais. Na operação atual, também está na retaguarda das prestações de contas e transparência das atividades.

    “As pessoas precisam ter comida na mesa já, agora. Estamos falando de prevenção”, lembra Carmen, ressaltando a dificuldade de as populações de baixa renda ou sem renda manterem a quarentena. “Houve demissões em massa e todos estão impedidos de fazer seus corres como ambulantes ou no mercado informal.” Sem reservas econômicas, é uma questão humanitária a liberação, já aprovada pelo Congresso, do auxílio de R$ 600 ou R$ 1200 para as famílias.

    Tem gente com fome!

    A agilidade da Operação Povo Sem Fome acontece a partir do contato entre redes de apoio que se conversam e trocam boas práticas e saberes. “É a única maneira de chegarmos nas mesas das pontas da cidade e descobrir as reais necessidades das pessoas.” A ação conta com a participação de outras cinco líderes comunitárias e de movimentos por moradia da cidade.

    Tomas Alvim, braço direito e sócio de Marisa na BEI Editora, explica que a maneira mais ágil para alcançar o objetivo foi destinar a verba das doações diretamente a essas lideranças. “Estamos falando de mulheres que são especialistas em situações de crise desde sempre! Elas sabem dos lugares de maior vulnerabilidade de seus territórios como a palma da mão e conhecem pelo nome quem são as pessoas que passam por dificuldades.”

    A líderes comunitárias se tornaram, assim, as responsáveis pela logística de distribuição dos donativos. “Elas permitem que a ação tenha o alcance e a capilaridade necessária e de maneira rápida porque essa tecnologia já está estruturada nas organizações delas”, diz Alvim, que também é parceiro de Marisa na criação da plataforma ArqFuturo, que congrega arquitetos, economistas e empresários mais influentes do país e do mundo para debater soluções de desenvolvimento urbano com a participação popular.

    “Essas pessoas e organizações às quais encaminharemos os recursos arrecadados há anos se dedicam ao apoio das comunidades vulneráveis de São Paulo, e é com absoluta confiança que nos colocamos ao lado delas neste momento de grande apreensão para todos”, reitera Marisa, fazendo questão de citar, além de Carmen Silva (à esquerda da foto acima), a presidente da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região, a UNAS, Cleide Alves; Ester Carro que preside a União Esportiva e Educacional do Jardim Colombo; Evaniza Rodrigues, diretora da União dos Movimentos de Moradia (UMM); Marília De Santis, gestora do CEU Professora Arlete Persoli, de Heliópololis e Eliana Silva, diretora das Redes da Maré, que também está organizando ações locais no Rio de Janeiro (Foto: acervo pessoal)

    “Talvez o grande motivo de a gente escolher se aglomerar numa cidade como São Paulo num país, assim, tão grande como o nosso seja a oportunidade de ter contato com as diferenças”, conta Marisa no vídeo (abaixo), sobre suas inquietações como moradora de São Paulo. “Vivemos diferenças de idades, de raças, de culturas, de gostos, enfim, uma variedade de coisas que te provocam e que te fazem crescer, pensar, mudar.”

    Para ela, esse contato, frente a frente, é o que pode gerar inovação, crescimento, desenvolvimento e se pergunta: “Por que que sendo esse o motivo que nos faz ficar numa cidade como São Paulo a gente continua se fechando atrás de muros? Não se preocupando com os espaços públicos e nossas calçadas? Sempre preocupados apenas com o nosso quintal e não na cidade como um espaço de encontro? E por que pessoas inteligentes ainda continuam fazendo políticas urbanas tão insensatas?” E revela que essa, talvez, seja sua maior inquietação.

    Quanto a Carmen, vale a pena assistir sua fala histórica momentos depois do resultados das últimas eleições presidenciais. “Nós iremos fazer a nossa resistência como nós sempre fizemos. A resistência não é com armas, é com a voz, com o canto, com amor. Nós somos uma família. Uma família que se ama e que independe de classe, cor e sexualidade. Somos nós.”

    EM TEMPO:
    Carmen Silva responde em liberdade a um processo que a acusa de prática de extorsão por “aluguéis” em ocupações. O caso é um desdobramento de uma investigação referente ao edifício Wilton Paes de Almeida, que era ocupado por sem-teto, e desabou depois de um incêndio ocorrido no dia 1º de maio de 2018. A filha de Carmen, a cantora Preta Ferreira e o filho, o educador Sidney Silva, chegaram a ser presos por três meses por acusações semelhantes. Hoje também respondem à Justiça em liberdade, depois de ampla reivindicação popular, de celebridades da mídia e de diferentes profissionais do Direito, da imprensa e das artes.

    Os chamados “aluguéis” do processo dizem respeito à contribuição mensal, acordada em assembleia com maioria dos moradores. No caso das ocupações do MSTC, essas contribuições são de R$ 200 por mês e por família. O valor é usado para reformas nas áreas comuns e para cumprir normas de segurança, como extintores de incêndio, corrimãos, instalações elétricas e hidráulicas dos edifícios.

    Em nenhum momento os ativistas tiveram relação com a ocupação do Wilton Paes, senão aquela estabelecida logo após o desabamento, quando comitês de ajuda organizados por Carmen prestaram auxílio às famílias desabrigadas.

    À época das prisões, Marisa Moreira Salles se pronunciou publicamente em defesa de Carmen. A empresária e editora, apesar de sua longa carreira e atividades, é muitas vezes citada na imprensa apenas como a esposa de Pedro Moreira Salles, presidente do conselho de administração do Itaú Unibanco. O banqueiro é um filantropo discreto de projetos culturais, artísticos e sociais. Cadeirante, entre os quatro irmãos da família, talvez seja o que mais tenha se dedicado aos negócios do banco criado pelo pai.

    Tanto Carmen como Marisa sabem que sempre serão julgadas tudo e por todos. Mas não estão preocupadas com isso no momento. Elas têm pressa. 

     

     

  • “A periferia não pode surtar. E a gente sabe que está ao Deus dará”

    “A periferia não pode surtar. E a gente sabe que está ao Deus dará”

    Com reportagem de Isabela Alves, especial para o blog MULHERIAS 

    A chegada do coronavírus no Brasil escancarou as várias faces da nossa desigualdade. A primeira geração de casos no país é, em geral, na classe média e alta, de pacientes que viajaram para a Europa. A segunda, não por acaso, é dos empregados do entorno dessa classe social – o que evidencia a construção histórica do trabalho escravizado da população negra e pobre que permanece em constante estado de emergência e precariedade de direitos.

    Até as orientações mais importantes dos especialistas em saúde pública para evitar o contágio do vírus – como higienizar as mãos com álcool gel, ficar em casa e evitar locais aglomerados – não levam em consideração as condições sociais de uma imensa parcela da população brasileira. Será que todas as famílias podem comprar álcool gel? Podem parar de trabalhar? Ter rendimentos em isolamento em casa? Com quem deixar os filhos fora da escola e sem merenda?

    O blog MULHERIAS entrevistou sete mulheres das quebradas para alertar as autoridades que vivemos num país que, no fundo, é uma gigantesca periferia cercada por pequenas ilhas de prosperidade e precisa, no mínimo, ser atendida em suas peculiaridades. E não se trata de nada extraordinário! É unânime entre as entrevistadas a necessidade de o poder público oferecer kits gratuitos de álcool gel, máscaras e acesso à alimentação, por exemplo. Tão óbvio, também, é o fato de a crise sanitária refletir o descaso com a população mais vulnerável do país.

    Elas mostram a real na periferia 

    “Estamos ao Deus dará”, resume a professora da periferia Ane, uma das entrevistadas de Osasco, na Grande São Paulo. Já Gisele, trancista de cabelos e cuidadora de idosos recém-demitida do interior do estado, compartilha a angústia de manter dentro de sua casa de dois cômodos os seus três filhos em idade escolar sem merenda “que comem o dia todo”. Ela sabe que vai faltar sustento, comida na mesa e o mínimo de paz. “Tem hora que não sei para onde correr”, desabafa.

    Rafaela também não. Atendente de telemarketing, ela cumpre jornada de trabalho “normalmente” no escritório lotado como terceirizada de uma grande empresa que, por sua vez, liberou seus “funcionários próprios” para home office. “Os nossos corpos periféricos são menos importantes que o da classe média”, analisa Rafaela, na mira.

    Confira ainda o relato da atendente de farmácia Daiane que testemunhou o aumento do preço do litro do  álcool gel direto de fornecedores. O produto saltou de R$ 14,90 para inacreditáveis R$ 49,90 em apenas uma semana. É hora também de ouvir a motorista de aplicativo das empresas bilionárias que a deixaram sem nenhuma garantia de sustento em caso de saúde. Apenas na doença haverá algum amparo ainda incerto por 14 dias.

    Sintomático também é o depoimento de duas moradoras do Capão Redondo, o bairro paulistano periférico famoso pelo rap, índices de violência dos anos 90 e, também, pelo emaranhado de moradias precárias dos trabalhadores que fazem o mecanismo da cidade rodar.

    É urgente, pra já, pra ontem: evitar o colapso na saúde é cuidar da engrenagem de todo o nosso sistema democrático. Ou seja, é cuidar das pessoas, não apenas da economia. É enfrentar a desigualdade, não apenas o coronavírus.

    “Mesmo quem está consciente da gravidade não tem como deixar de ganhar o sustento do mês!”

    Foto da laje da casa de Ana, na periferia de Osasco: " " (Foto: Acervo pessoal)
    Foto da laje da casa da professora Ane, na periferia de Osasco: “estou preocupada realmente com as famílias que não tem hábito de exigir seus direitos. A saúde é precária, a alimentação é precária, são problemas estruturais” (Acervo pessoal)

    “A gente não pode surtar, não podemos mesmo. Sabemos que estamos ao Deus dará”, resume a professora Ane Sariana, de 31 anos, professora de história da rede pública e moradora da periferia de Osasco. “As políticas públicas sempre chegam por último para nós e não está sendo diferente.” Ela deu aula até quarta-feira, dia 18, e com outros professores explicou aos alunos o tamanho do desafio. “Avisamos que não eram férias. Mas sei quanto é complexo. Há mães trabalhando porque não podem parar. E aí as crianças estão sozinhas ou sendo cuidadas por irmãos maiores ou adolescentes do bairro que a mãe paga para cuidar.” Outra questão: no bairro há casas de dois cômodos com nove pessoas. “Como deixar todos trancados? A rua está cheia de criança zanzando normalmente. ”

    Ane conta que nos bares vê senhores que conhece de seu dia-a-dia. “São homens que vivem de bico e estão parados, ficam no bar conversando, jogando carteado. Muitos são do grupo de risco, ou seja, mais velhos, fumantes, com pressão alta.” A professora acredita que informação sempre chega muito tarde na região. “E mesmo que a ficha tenha caído para muitos moradores, o fato é que mesmo quem está consciente da gravidade do vírus não tem como deixar de ganhar o sustento do mês!”

    Ane tem muitos amigos que trabalham em telemarketing e não foram dispensados também. São terceirizados que prestam serviços para grandes empresas. “Eu já trabalhei em lugar assim. É insalubre. São locais fechados com 200 pessoas trancadas com ar condicionado. E elas vão ao trabalho nos centros com transporte público. É muito perigoso.”

    A professora frisa outro temor: as medidas do governo do Estado para as periferias diante de uma situação caótica. “Se por acaso essa pandemia ficar grande demais, meu medo é eles não mandarem agentes de saúde mas, sim, a polícia!”  Tornar crime o não cumprimento de home office, por exemplo, ou estipular horários para se transitar nas ruas, pode gerar nas regiões periféricas violência policial. “Não vão chegar com informação, mas com cacete.”

    “A cada dia a gente percebe mais que s situação é grave. Estamos com medo, sim. E sabemos que vamos ter que nos juntar para nos ajudar”

    Numa comunidade do interior de São Paulo, na cidade de São José dos Campos, a trancista de cabelos, cuidadora de idosos e poeta de saraus Gisele Luciene, de 34 anos, se questiona: “sem a escola, como vou ficar em isolamento com três filhos numa casa de dois cômodos? Meus filhos têm 9, 10 e 13 anos. Estou em casa, confesso, surtando”.

    Desde o começo da semana, Gisele se desdobra para entreter os filhos diante do fechamento obrigatório das escolas públicas sem uma preparação prévia de quem são os alunos e famílias atingidas.  Sem nenhum tipo de apoio para lidar com a nova demanda, ela ainda buscar meios de conseguir alimento para a quarentena. “Já fui dispensada como cuidadora de uma idosa. E não tem trança marcada para fazer. Criança em casa come o tempo todo… E não é férias, né? O clima está tenso, eles estão tensos. Não tem o futebol que faziam todo dia, não tem parque, nada.”  

    Gisele conversa com vizinhas e outras mães do bairro para encontrar saídas. “Desabafamos. Muitas também se sentem sozinhas como eu. Tem as que estão perdidaças em tudo, não deixam ninguém colocar a cara na rua. Outras estão deixando as crianças no vai e volta na porta de casa e desinfectando depois. Mas como vai ser isso por meses?”, pergunta.

    Na comunidade, ela sabe que encontrará ajuda. “Aqui, todos sabem que será complicado, a gente vai se juntar, é o único jeito”, diz.

    “Meu trabalho no telemarketing continua ‘normal’. Parece que meu corpo periférico não é tão importante quando os da classe média”

    Na quinta-feira, dia 19, Rafaela foi trabalhar "normalmente" com funcionária de telemarketing terceirizada de uma empresa que liberou seus funcionários contratados para home office (Acervo pessoal)
    A trabalhadora periférica não importa? Na quinta-feira, dia 19, Rafaela cumpriu sua rotina “normalmente” como funcionária de telemarketing terceirizada que presta serviços para uma outra empresa que liberou seus “funcionários  próprios” para home office (Acervo pessoal)

    Para Rafaela Henrique, de 24 anos, a situação de alarme da classe média não contempla a periferia. Trabalhadora do telemarketing e moradora do Parque Santa Rita, na zona leste de São Paulo, ela se sente marginalizada. Nesta quinta-feira, dia 19, Rafaela conta que ela e outras profissionais do setor trabalharam como se fosse um dia de rotina “normal”. “A empresa para a qual prestamos serviços adotou aos seus funcionários próprios o home office. Nós, que somos terceirizados, não. ” A seletividade é evidente. “Nossos corpos periféricos, nossa saúde mental e física parece que não importam tanto.”

    “Trabalho em farmácia e vi o preço do fornecedor de um litro de álcool gel saltar de R$ 14,90 para R$ 49,90!!!”

    Daiane Novas, funcionária de uma farmácia: "o O capitalismo é um sistema de morte" (Foto: Acervo pessoal)
    Daiane Novaes, funcionária de uma farmácia: “o capitalismo é um sistema de morte” (Foto: Acervo pessoal)

    “Na semana passada o pessoal estava desdenhando, seguindo a onda do presidente de que o coronavírus era histeria, exagero, tava longe. Nessa semana mudou. A farmácia onde trabalho, numa região que atende a periferia, de frente para uma comunidade, não parou um minuto. Todos estão fazendo questão de ter álcool gel e máscara consigo”, conta a estudante e atendente de farmácia Daiane Novaes, de 38 anos. “Ainda assim, tem muita gente na rua, sabe? Mas o terrível agora, mesmo, foi ver o preço do fornecedor de álcool gel pular de R$ 14,90 para R$ 49,90. É um absurdo.”

    Os consumidores reclamaram. “Os fornecedores estão aumentando o valor diariamente e infelizmente as lojas acabam tendo que reajustar também. Dá dó. Eu sei da dificuldade que é ter essa nova despesa inesperada e sei também que a culpa não é da gente que está no balcão”, relata a atendente, que é mãe de um filho de 11 anos e não poderá se ausentar do trabalho nesse momento. “Farmácia não pode fechar, né?”

    Daiane mora na COHAB de Vila Prudente e conta que lá as crianças estão ficando com as avós. “Eu mesma, com o fechamento da escola, fui obrigada a deixar meu menino um dia com a minha mãe. Mas ela é paciente respiratória de alto risco e eu o levei para casa da outra avó, que mora mais longe, mas que não é idosa e tem boa saúde. Então, essa semana não estou vendo meu filho e ela está segurando as pontas”, conta, ainda sem saber se a situação poderá se estender por muito tempo. “Deixá-lo sozinho eu não posso, né? Por sorte tenho com quem contar. E quem não tem?”

    Para Daiane, um salário-mínimo deveria ser o básico para amparar a população numa situação como a do coronavírus. “A gente é tão desassistida de políticas públicas, creches, saúde básica… As farmácias que cumprem esse papel que seria do Estado, de instruir, fazer primeiros atendimentos. Mas diante de uma epidemia, deveria existir um fundo para pagar quarentena compulsória, sabe?” Ela defende que não se deve deixar o empresário escolher quem trabalha num contexto assim “porque ele vai escolher o lucro”.

    Aos seus olhos, todos os serviços que não são de assistência básica deveriam liberar as mulheres para ficar em casa, como nos casos em que a trabalhadora precisa ser afastada por motivo de doença. “Saúde não é só ausência da doença, é prevenção também. Por isso, em momentos como o nosso, começo a acreditar que esse descaso é uma agenda política mesmo, pra matar pobre, velho e criança pobre, que para esse Estado representam apenas gastos. O capitalismo é um sistema de morte.”

    “Como motorista de aplicativo, estou desprotegida em todos os sentidos”

    Tatiana recebeu das empresas milionárias mensagens com orientações para trabalhar no carro. "Desde então, faço tudo direitinho." Mas auxílio financeiro na falta de clientes não vai ter. Uma das empresas criou um fundo de emergência apenas para quem ficar doente (Foto: Acervo pessoal)
    Tatiana recebeu das empresas milionárias mensagens com orientações para trabalhar no carro. “Desde então, faço tudo direitinho.” Mas auxílio financeiro na falta de clientes não vai ter. Uma das empresas criou um fundo de emergência apenas para quem ficar doente (Foto: Acervo pessoal)

    “Ser motorista de aplicativo sempre foi correr risco de assaltada e ter que rodar no mínimo de 11 a 14 horas por dia para sobreviver pagando as contas, incluindo o carro alugado por mais de R$ 1500 por mês para trabalhar. Nunca foi fácil e agora piorou”, revela Tatiana Mendonça dos Santos, de 38 anos. Na última quarta-feira (18), em quatro corridas, ela ganhou R$ 34. “Não pagou nem o álcool. No dia seguinte não ganhei nem isso porque praticamente não tem mais chamados.”

    Com a chegada do coronavírus no Brasil, Tatiana recebeu das empresas milionárias mensagens com orientações para trabalhar no carro. “Desde então, faço tudo direitinho. Tenho meu kit completo de desinfecção no carro com álcool gel, água sanitária, lenços umedecidos. Pergunto aos passageiros se posso deixar os vidros abertos também e não pego corridas do aeroportos e rodoviárias.” Nessa semana, um dos apps mandou mensagem sobre a criação de um fundo para cobrir alguns custos por 14 dias para o caso de a motorista ser infectado. “Infelizmente não acho suficiente. Sabemos que teremos que nos virar sem respaldo.”

    Tatiana mora com o marido e sua mãe, de 62 anos, na periferia da Zona Norte de São Paulo e a família adotou o protocolo de ter tubo de álcool gel na parede perto da porta e deixar sapatos da rua por ali para só circular de chinelos na residência. Apesar de tudo isso, ela reconhece, corre riscos diários se sai para trabalhar.

    “Penso que mesmo com esse confinamento será preciso ter carro na rua. E mesmo se não sairmos para trabalhar seria importante se essas grandes empresas tomassem providências para não passarmos necessidades.” Ela sugere descontos nas locações de carro, bônus diários mesmo em caso de motoristas parados. “Trinta reais de crédito inicial já faria muita diferença para o motorista não ficar totalmente na mão enquanto está sem trabalho. Há muitas mães solo nesse ramo que dependem disso para alimentar os filhos.”

    “Moro com meu pai de 70 anos que sofre de asma. Estou tomando todos os cuidados. Mas aqui no bairro as pessoas vivem, literalmente, umas em cima das outras”

    A estudante Marianna Alves, moradora do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, reforçou os cuidados com a higiene mas sua preocupação vai além. “Se nos bairros ricos quem tem sintomas está sendo mandado pra casa sem cuidado no atendimento, a situação nas UBS’s de periferia será muito pior”  (Foto: Acervo pessoal)

    “Moro com meu pai, que tem 70 anos e sofre de bronquite asmática. Tenho muito medo de contrair o vírus e acabar passando pra ele, que com certeza ficaria muito vulnerável. O cuidado está sendo mais com relação à higiene, compramos álcool gel, reforçamos a limpeza dos espaços de uso comum.Mas em uma casa pequena todos os espaços acabam sendo divididos”, conta a estudante de letras Marianna Alves, de 22 anos.

    Ela traz o olhar crítico ao efeito vizinhança, ou seja, o favorecimento de transmissão do vírus pela proximidade e forma aglutinada de a periferia morar. “As pessoas vivem, literalmente, umas em cima das outras, irmãos dividem quartos entre cinco e até mais pessoas; o espaço é bastante limitado.”

    Se a coisa apertar e o surto chegar no seu pico, ela sabe que os bairros da quebrada também serão os mais afetados com desabastecimento de supermercados, fechamentos de comércios, falta de medicamentos. “Fora a dificuldade para obter atendimento médico. Se nos bairros ricos as pessoas que apresentam sintomas já estão sendo mandadas pra casa sem nenhum cuidado no atendimento, imagino que a situação nas UBS’s de bairro será ainda pior.”

    “Aqui no Capão não estão estocando comida, ainda bem. Mas está faltando álcool gel, máscaras! As pessoas estão engajadas em ficar em casa. Quem sai é porque não pode mesmo parar de trabalhar”

    A jovem Lavínea ressalta a necessidade do olhar atento do governo à população periférica, uma vez que estas pessoas são responsáveis pela manutenção da economia, por serviços básicos que atingem toda a sociedade (Foto: Acervo pessoal)
    A jovem Lavínea ressalta a necessidade do olhar atento do governo à população periférica, uma vez que estas pessoas são responsáveis pela manutenção da economia, por serviços básicos que atingem toda a sociedade (Foto: Acervo pessoal)

    “Se tem pão de manhã, se tem um ônibus funcionando e mercados abertos é porque a periferia acordou cedo pra que tudo isso acontecesse”, diz a estudante Lavínea Soares, de 17 anos, moradora do Capão Redondo, no extremo Sul de São Paulo. “Então, a gente merece e tem direito de pelo menos ter o básico, principalmente uma saúde digna, completa.

    Lavínea conta que em seu bairro as pessoas estão se cuidando, sim. “Eu tô vendo poucas pessoas sairem, principalmente senhores de idade. Como se nada tivesse acontecendo, não esta, não. É bem movimentado por aqui. Mas tem bastante gente que precisa sair para trabalhar como a minha mãe, que é analista de processos e precisa do transporte público, e o meu pai, que é vendedor de sacos de lixo, panos de prato, e precisa estar na rua. Não tem jeito”

    Ela reitera que não é possível parar os comércios, de imediato, uma vez que são fontes de renda de inúmeras pessoas. “Ainda bem que por aqui não vejo ninguém estocando comida. Pobre não tem como fazer isso. Porém, está faltando álcool, máscaras. Não pode…”

     

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