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Tag: cidade linda

  • Tristes Trópicos

    Tristes Trópicos

    O rapaz gritava ajoelhado: pegaram até meus documentos! Ao lado, uma adolescente ninava uma boneca abrigada do choro da chuva num posto de gasolina junto a outros 300 seres humanos varridos de sua própria existência. Quando um ser humano sofre, todos sofrem.

     

    fotos TIAGO MACAMBIRA
    Imagens do desmonte da cracolândia, dia 21/5/2017, na região da Luz em São Paulo


    É tristeza de doer os ossos.

     


    “De um lado esse carnaval, do outro a fome total”; num domingo chuvoso de uma virada cultural, os versos de Gil ornam com aquele território.

    fotos TIAGO MACAMBIRA
    Imagens do desmonte da cracolândia, dia 21/5/2017, na região da Luz em São Paulo

    Uma criança, sabe-se lá que idade tinha, saiu ressabiada da multidão munida de um cachimbo de crack, de sua curiosidade e incumbida de uma missão: saber quem eu era. Mostrei as fotos, mas ele queria ver minha cara, meus olhos. Ali, mais vale sua intenção impressa em sua postura, seus gestos, seu olhar, do que seu discurso. Então vc é dos Diretos Humanos, afirmou a criança já voltando à multidão. Aquela autoridade portadora de duas câmeras fotográficas já não era uma ameaça pra eles.

    fotos TIAGO MACAMBIRA
    Imagens do desmonte da cracolândia, dia 21/5/2017, na região da Luz em São Paulo


    Sandálias, óculos, colchões, bolsas, bíblia, broches, toucas, cabides, sofás, estantes, pratos… a casa de todos espalhada pela sarjeta depois do tsunami “apolítico”, que não se manifestava desde 2012.

     


    -Olha o que eu achei, a adolescente mostra uma bala de revolver recolhida a pouco; e completou: revolver ninguém perde, né?
    O Largo Coração de Jesus era um vazio molhado cheio de restos.
    O colega fotógrafo francês que surgiu ao meu lado na chuva resumiu aquela cena trava-linguas: Tristes… Tristes… Tristes Trópicos*.

    fotos TIAGO MACAMBIRA Imagens do desmonte da cracolândia, dia 21/5/2017, na região da Luz em São Paulo

    *Livro do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss escrito na década de 1930 após sua viagem ao Brasil. Mas também podia ser a música de Itamar Assumpção:

    “O trópico tropica
    Emaranhado no trambique
    A treta frutifica
    E tritura todo o pique
    A trapaça trina e troa
    E extrapola cada dique
    O tratado é intrincado
    Destratado é truque chique
    O grito atravancado
    Tranca até que eu petrifique
    Tristes gregos e troianos
    Desbragado piquenique”

     

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  • João Doria pode apagar o grafite, mas não pode apagar Basquiat

    João Doria pode apagar o grafite, mas não pode apagar Basquiat

    Nas últimas semanas, o prefeito de São Paulo, João Doria, começou a cumprir uma de suas promessas de campanha mais polêmicas: o programa batizado Cidade Linda, que visa apagar murais de grafite e/ou pichações não considerados “aceitáveis” pela administração. A intervenção mais notável do programa do prefeito até agora foi na Avenida 23 de Maio, onde se localizava o maior mural de grafite da América Latina, contendo trabalho de mais de 200 artistas, dos mais reconhecidos (OsGêmeos, Nina Pandolfo) aos anônimos.

    O prefeito manteve apenas oito painéis de grafite, argumentando que os outros estavam “envelhecidos”, ou “infelizmente mutilados por pichadores”. Tinta cinza cobriu grande parte dos painéis já no primeiro dia, e ainda que as paredes tenham amanhecido com mensagens críticas à ação do governo, o Cidade Linda não dá sinais de parada. “Se eles pensam que com ataques, com pichações, vão inibir a ação do prefeito, ao contrário, a perseverança só aumenta para defender a cidade”, disse Doria em entrevista.

    O contrário da declaração do prefeito, no entanto, também pode ser dito. Se João Doria pensa que cobrir murais de grafite vai inibir artistas de rua a continuarem passando suas mensagens, é melhor ele comprar mais tinta. É definitivamente deprimente ver trabalhos belos sendo encobertos por uma cor da qual a cidade de São Paulo não precisa de mais, no entanto é também óbvio que encobrir a arte não encobre o artista. Não o verdadeiro artista, com alma de artista, pelo menos.

    Jeffrey Wright em Basquiat (1996)

    A criança radiante

    Jean-Michel Basquiat nasceu em 22 de dezembro de 1960, de uma mãe porto-riquenha e um pai haitiano. Quando o garoto tinha 13 anos, a mãe foi internada em um sanatório, onde passou o restante da vida, e os conflitos de Basquiat com o pai implodiram até ele fugir de casa, aos 15 anos, desistir da escola tradicional e passar a viver de favor na casa de amigos (e, eventualmente, nas ruas de Nova York). A história de como a vida de Basquiat mudou a partir de pichações e, mais tarde, grafites e pinturas, está documentada no filme que leva seu nome, de 1996, com Jeffrey Wright entregando uma atuação arrasadora no papel do artista.

    A ascensão de Basquiat aconteceu durante o final dos anos 70, quando sua assinatura de pichações (“SAMO”) ficou conhecida no submundo da arte, e o início dos anos 80, quando ele trabalhou com artistas do naipe de Andy Warhol e Julian Schnabel, que mais tarde dirigiria o filme sobre a vida do amigo. Será que o nosso mundo, 30 anos depois, é mesmo um que entende menos a arte de Basquiat do que aquele no qual ele viveu, na Nova York pré-AIDS?

    O verdadeiro Jean-Michel Basquiat (à direita) ao lado de Andy Warhol

    Tal e qual seu ídolo e mentor Warhol, Basquiat apropriava estilos e “roubava” palavras e gestos de outros artistas para dizer o que só ele podia. O filme sobre sua vida, com David Bowie na pele de um Warhol deliciosamente divertido, é um testamento ao poder dessa arte que “suga” a cultura popular e “vomita” de volta uma mistura única e excitante, mesmo que você não a entenda completamente. Basquiat pintava em portas de geladeira, pneus, peças de decoração, janelas e, é claro, muros de Nova York. Ele dava vida à sua arte ao coloca-la dentro do ambiente, e não ao prendê-la em uma galeria, como a fama o fez fazer.

    Basquiat faleceu em 1988, aos 27 anos, após ficar muito abalado com a morte de Warhol e se afundar no vício em drogas, mas sua arte inspirou tanta coisa depois dele que fica difícil contar. Vamos nos concentrar no Brasil, no entanto, onde o final dos anos 80, com a chegada da cultura hip hop e a ascensão de ícones da música urbana, inspirou uma dupla de artistas, conhecida como OsGêmeos, a desenvolver uma estética que já começava a nascer nas ruas em um estilo próprio de grafite brasileiro.

    Ao lado de outros nomes da cena paulistana e de outras partes do Brasil, eles aos poucos ganharam reconhecimento nacional e internacional como artistas que legitimamente criaram um movimento e um estilo próprio, que se ramificou e modificou a partir deles. Tudo está bem registrado no documentário Cidade Cinza (2013), que mostra que mesmo antes de João Doria a cultura do grafite e da pichação já estava sendo combatida em São Paulo.

    Dupla de artistas plásticos brasileiros conhecidos como OsGêmeos

    Limpeza de quê?

    “Você nunca vai conseguir explicar para alguém que usa o dom de Deus para escravizar o fato de que você usou o dom de Deus para ser livre”, comenta o ensaísta Rene Ricard (Michael Wincott) em certo momento do filme sobre Basquiat. Tal e qual a pessoa que o inspirou, o filme de Julian Schnabel parece advogar por uma arte que invada agressivamente o cotidiano e encontre sua forma de se expressar longe, muito longe, das convenções e preconcepções do elitismo de determinados agentes.

    Talvez por isso seja tão claro que a iniciativa de João Doria ao apagar grafites e pichações dos muros de São Paulo é muito mais do que uma “limpeza” visual – é uma limpeza étnica, social e artística que não deve ser admitida. Diz o prefeito que a ideia é criar intervenções reguladas para grafiteiros, em pontos pré-estabelecidos da cidade e com artistas aprovados pela administração. Nada se diz sobre o critério da seleção desses artistas, ou se eles terão a liberdade para escolher (ou sequer sugerir) os lugares em que suas intervenções fariam mais sentido – afinal, parte fundamental do grafite e seu poder é sua localização geográfica.

    O Cidade Linda, portanto, não quer apagar o grafite, e sim a história dos grafiteiros – em pleno século XXI, em tempos de arte contemporânea, essas duas coisas são quase inseparáveis. Se há algo que se aprende, no entanto, quando se olha para a história da arte, é que a ela não sabe como andar para trás; especialmente uma arte urgente, cuja rebeldia, mesmo em espaço controlado de exibições e galerias, é inegável.

    As inspirações coloridas e ácidas dos artistas da 23 de maio e do resto de São Paulo seguirão brilhando para muito além da tinta cinza aplicada pelo prefeito, porque são a continuidade de uma linha do tempo que não sabe se dobrar e voltar para trás. É fácil apagar o grafite; difícil, mesmo 29 anos depois de sua morte, será apagar Jean-Michel Basquiat.

  • Dória em SP: por uma cidade cinza

    Dória em SP: por uma cidade cinza

    Como dói, Dória
    Ver essa parede cinza
    Onde antes havia alegria
    Como dói, Dória
    Lembrar da beleza
    Do que antes havia
    Como dói, Dória
    Pensar que se fosse o Guernica
    Você também o apagaria
    Pois a sua noção de beleza
    Jamais o entenderia


    Como dói, Dória
    Pensar que você
    prefere um dia cinza
    Que se pudesse
    Você apagaria o sol
    O céu azul
    E o arco-íris
    Que lhe desafia
    Como dói, Dória
    Pensar no tempo de vida
    Que alguém usou
    para pintar Aquela parede
    agora cinza
    E que pra você
    Esse tempo e essa vida
    Nada significa
    Como dói, Dória
    Imaginar quanto Mais de beleza
    Você não enxerga em São Paulo
    Como dói, Dória
    Pensar em tudo
    que você ainda vai apagar
    Deixando a cidade ainda mais cinza
    Como o ar poluído
    Como as águas sofridas
    Como o medo nas ruas
    Como dói, Dória
    Pensar que todo esse cinza
    Está dentro de você

     

    *Thedy Corrêa é músico e escritor