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Tag: Chile

  • O Chile despertou!

    O Chile despertou!

     

     

    Liss Fernández

    Há 12 dias ninguém ia imaginar que Chile mudaria para sempre. Tudo começou com o aumento das passagens do metrô. Os estudantes se juntaram e saíram para protestar pulando as catracas em grande parte nas estações do metrô de Santiago. Simultaneamente, os cidadãos foram chamados para o famoso “cacerolazo” (bater panela). Eram nove horas da noite e já dava para escutar o som do que seria o início da revolução por todas as ruas da capital.

    A mídia, como era de supor, começou a difundir o pânico na população, falava-se de mercados saqueados e queimados, de falta de abastecimento e, inclusive, de vandalismo e assaltos a propriedades privadas. Mas a realidade era outra: armazéns e pequenos estabelecimentos comerciais não demostravam o Chile que estava sendo transmitido pela televisão. Feiras, alguns mercados e inclusive restaurantes funcionavam com total normalidade. E foi nesse momento que o Estado decidiu apagar o fogo com gasolina decretando “toque de recolher” em Santiago, militares nas ruas e helicópteros de madrugada “velando” pela segurança.

    A “doutrina do choque” começou a se espalhar pela capital e, não contentes com isso, essas políticas foram implementadas nas outras regiões do país. Após dez dias do início das manifestações, o governo propôs vagas soluções para tranquilizar o povo, mas os chilenos, descontentes não aceitaram. As ruas estão manchadas de sangue inocente, as redes sociais explodindo com vídeos que mostravam abusos por parte da polícia e das forças armadas do Chile.

    O governo se apropriou do maior protesto da nossa história, um milhão de pessoas marchando de forma pacífica, quando, na realidade, a gente já estava fazendo isso há dez dias. O Chile está cansado dessas políticas neoliberais, não queremos uma aposentadoria miserável, não queremos ter o primeiro lugar em suicídios de idosos na América Latina, não queremos um sistema de saúde no qual você morre esperando para ser atendido e ainda ter que pagar por isso, não queremos nos endividar para conseguir estudar, não queremos que sigam matando e destruindo nossos povos indígenas e, acima de tudo não queremos continuar com uma Constituição feita durante a ditadura militar. Nossos avós foram reprimidos com metralhadoras e não vamos aceitar que isso se repita. Tudo isso ficou conhecido no estrangeiro como ‘o protesto dos $30 pesos’, porém, a gente prefere dizer: CHILE DESPERTÓ.

  • Domingo de eleições aumenta isolamento de Bolsonaro na América do Sul

    Domingo de eleições aumenta isolamento de Bolsonaro na América do Sul

    Com eleições presidenciais em Argentina e Uruguai e eleições regionais na Colombia, o último domingo (27) foi decisivo para o futuro político da América do Sul. Em disputa, estiveram representantes da recente “onda azul”, que reconduziu a direita ao poder em diversos países na região, representantes dos governos progressistas que prevaleceram nos primeiros anos 2000 e alguns movimentos de renovação política.

    Na Argentina, principal parceiro econômico do Brasil no continente, o presidente Maurício Macri, da conservadora Juntos pela Mudança, assistiu a uma ampla rejeição de suas políticas neoliberais e de sua guinada à direita ao estilo bolsonarista durante a campanha, quando defendeu jargões como a “família tradicional” e abusou da denúncia de um “perigo vermelho” para enfraquecer seus adversários. Com mais de 95% das urnas apuradas, já era certo que ele tinha perdido a eleição em primeiro turno por uma diferença de 8 pontos para Alberto Fernandez, o ex-chefe de gabinete da ex-presidenta Cristina Kirchner, que também voltará ao poder na condição de vice-presidenta pelo partido peronista. Das 23 províncias do país, Macri só não perdeu em 5. Sendo que uma de suas derrotas foi na província de Buenos Aires, a mais populosa do país, onde a governadora Eugenia Vidal foi amplamente preterida pelo ex-ministro da fazenda de Cristina, Axel Kicilof.

    Em seu discurso da vitória, Alberto Fernandez defendeu a adoção de políticas econômicas que priorizem a geração de empregos e, ainda, pediu pela libertação de Lula.

    No Uruguai, outro membro do Mercosul que votou para presidente, Daniel Martínez, da Frente Ampla, o partido do ex-presidente Pepe Mujica, também teve cerca de 40% dos votos, largando bem a frente do direitista Luis Lacalle Pou, que teve 28%. Os dois agora disputarão um segundo turno onde serão decisivos os votos dos demais candidatos. Um dos destaques foi a boa performance da frente esquerdista na capital Montevideo, que concentra boa parte da população uruguaia, em contraste com boas votações dos opositores nas áreas mais rurais do país.

    Na Colômbia, depois de cerca de 1 ano e meio das eleições presidenciais que terminaram com a vitória de Ivan Duque, aliado do ex-presidente Alvaro Uribe, representantes da direita de linha dura, a oposição ganhou espaço e venceu nas três principais cidades, Bogotá, Medelín e Cali. Na capital, cuja adminsitração é considerada a segunda mais importante no país, seguida do cargo de presidente, a centro-esquerdista Claudia López, da Aliança Verde, fez história ao se tornar a primeira mulher eleita para o cargo e a primeira pessoa assumidamente LGBT. Sua sigla agora é considerada a principal opositora do presidente, que no geral amargou derrotas em quase todos os departamentos do país. Outro destaque foi a eleição do primeiro ex-guerrilheiro das FARC, Guillermo Torres, conhecido como Julián Conrado, na cidade de Turbaco (Bolívar).

    Os resultados evidenciam o isolamento do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que chegou a dar declarações hostis contra o peronismo, na Argentina, e que agora assiste líderes que adotam políticas econômicas como as suas sofrerem duras derrotas. Até em países onde a direita continua no poder, como é o caso do Chile e da Colômbia, os mandatários têm procurado manter distância de Bolsonaro, que é reconhecido pelos eleitores locais como um extremista que gerou resultados pífios na economia e rápida deterioração de indicadores sociais. As recentes declarações que deu com simpatia pelas ditaduras de Alfredo Strossner e Augusto Pinhochet, em Paraguai e Chile, também contribuíram para péssima imagem na região, causando enorme constrangimento nesses países onde não há espaço para defesa dos regimes militares.

    Se confirmado o favoritismo de Martínez, no Uruguai, Bolsonaro passará a estar obrigado a conviver com um Mercosul majoritariamente de esquerda e que reconhece Lula como um preso político e, no geral, com uma América do Sul em que nem mesmo a direita deseja fazer fotografias e ter seus partidos associados a seu nome.

    Rodrigo Veloso – Bacharel em Relações Internacionais e militante da esquerda fluminense

  • OS ALIENÍGENAS CHILENOS

    OS ALIENÍGENAS CHILENOS

     

     

     

    Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes

    Profa. Dra. María Verónica Secreto

    do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense

     

             Os protestos no Chile seguem intensos e com resposta violenta do governo. De acordo com números oficiais, foram registradas 17 mortes. As manifestações começaram após o aumento das tarifas de metrô, fato que excitou a memória de muitos brasileiros em relação a junho de 2013. As semelhanças, contudo, não vão muito além. A efervescência chilena não é tributária apenas do aumento no preço dos transportes, mas da aventura liberal que há décadas sufoca o país e que ampliou significativamente o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres.

             Um áudio vazado oferece a perfeita metáfora para essa distância. Cecilia Morel, esposa do presidente Sebastián Piñera, de centro-direita, teve uma conversa captada a partir de um áudio enviado a uma amiga. Nele, mostra não apenas o desespero que tomou conta do governo, mas a sensação de absoluta impotência diante do levante popular que, a confiar em seu próprio prognóstico, tende a piorar nos próximos dias. Segundo as informações que dispõe – ou das suposições que julgou seguro fazer – a primeira-dama denuncia que o próximo passo dos manifestantes é interromper toda cadeia de abastecimento, incluindo água e alimentos. Diz estar surpreendida, como se diante de “uma invasão estrangeira, alienígena”; mais do que isso, ou precisamente por isso, não teriam “ferramentas para combatê-la”. 

              Os manifestantes não chegaram de outro planeta, mas há certa razão nessa fala se se adota a perspectiva de Cecilia Morel. É preciso admitir que ricos e pobres realmente não vivem no mesmo mundo, ainda que partilhem algumas vezes os mesmos espaços. Para os pobres, ensinados a nutrir expectativas inalcançáveis que se colocam nos apelos cada vez mais agressivos ao consumo, os ricos não vivem em um lugar insólito, afastado de toda civilização conhecida: eles estão onde a maioria gostaria de estar. O contrário, contudo, não é verdadeiro, não só porque a pobreza não é acalentada por ninguém, mas porque a perda de privilégios parece ser bem mais difícil do que a conquista. Os alienígenas, contudo, não são exatamente, ou tão somente, os pobres chilenos, mas a juventude que se insurge contra esse seleto grupelho de poderosos. Os jovens, com sua potência revitalizadora, não querem para seu futuro o presente tenebroso em que vivem seus pais e avós.

             Em 2013, o Chile era o país mais desigual do mundo, sobretudo por causa da privatização do sistema de seguridade social realizado durante o governo ditatorial de Pinochet. Na prática, quase metade dos chilenos não dispõe de benefícios quando param de trabalhar. O sistema de previdência é de capitalização individual, em mãos das AFP (Administradoras de Fundos de Pensão). Quando o sistema previsionário foi reformado na década de 1980, os Carabineros e as Forças Armadas não foram atingidos. Não sem razão, o Chile possui o maior índice de suicídio de idosos na América Latina. Aproximadamente 74% das famílias estão endividadas. Os serviços públicos são escassos e não há alternativa privada com preços acessíveis à maioria da população. Todas essas questões contribuem para a vulnerabilidade da maioria, tornando-os estrangeiros em sua própria terra.

    A mídia dominante sempre coloca o Chile como modelo, como a ovelha branca entre ovelhas negras. É a terra fértil onde a escola de Chicago conseguiu se enraizar. O próprio Paulo Guedes desembarcou no Chile, onde viveu na década de 1980 e conheceu de perto a política econômica que ele tanto admira e luta ferozmente para implementar no Brasil. Em fevereiro deste ano, em uma entrevista ao Financial Times, o atual ministro da Economia disse que Pinochet fez do Chile uma Suíça. Hoje o país está em chamas, inflamado por esse fetichismo rentista que afaga banqueiros e ignora o povo.

    O modelo econômico desenhado na década de 1970, durante a ditadura militar, teve continuidade no período democrático. Devemos lembrar que o processo de democratização no Chile começou com limitações: Pinochet continuou como comandante em chefe do Exército (1990-1994) e foi senador vitalício até 1998.  As “verdades liberais” passaram a ser inquestionadas. Chile é hoje o país da América Latina que tem a maior renda per capita e também o pior índice de distribuição da riqueza. As duas coisas num mesmo espaço. Ricos, demasiado ricos; pobres, demasiado pobres. 

    Enquanto na América Latina eram presidentes Lula, Evo Morales, Kirchner, Correa e Chávez, as economias cresciam e eram implementadas políticas públicas de distribuição de renda e riqueza. Ao mesmo tempo, o Chile era enaltecido como modelo da modernidade econômica com seu Estado mínimo, minúsculo, que tinha funções exíguas para transferir ao mercado o poder de intermediar todas as relações e transações.

    A mídia tradicional começou a última semana buscando as razões que motivaram esses “loucos” a sair do paraíso. Descobriram que os serviços consomem parte importante dos salários e que a educação é das mais caras da América Latina. O estopim nada desprezível foi o preço do transporte, que consome 30% do salário dos trabalhadores e trabalhadoras, mas por trás dele se escondia um sem-fim de privações que a imprensa muito se esforça para ignorar. O “modelo” neoliberal está povoado de privações.

    Apenas 1% da população chilena concentra 26,5% da riqueza. Os números não são muito diferentes do Brasil e a tendência é que nossa situação se torne cada vez mais parelha, já que Paulo Guedes, manipulando seu fantoche Jair Bolsonaro, tenta implementar hoje o que foi feito no Chile, sobretudo na década de 1990. Sem luta, o Brasil produzirá ainda mais alienígenas em sua própria terra, tornando-a um território hostil em que só os ricos têm direito de viver.

    Cecilia Morel, quase no fim do áudio, reconhece o cerne do problema e diz: “Temos que diminuir nossos privilégios”. Esse arroubo de sinceridade, possível só pelo aspecto privado da mensagem, é o núcleo do problema que há muito as esquerdas sinalizam e que os interesses financeiros fazem questão de ignorar.

    Ontem, ao final do dia, Piñera, o mesmo que chamou o cidadão que protestava na rua de inimigo poderoso e implacável que tinha o único propósito de produzir o maior dano possível, avaliou o caos, refletiu e anunciou que se reformará o sistema de pensões, a saúde, a renda mínima e as tarifas elétricas. Uma agenda social que inclui maior carga impositiva para os mais ricos, redução dos salários dos parlamentares e de outras esferas da alta administração pública. Embora paliativas e não estruturais, vem pela frente um conjunto de medidas heterodoxas. Paulo Guedes deve estar decepcionado com o exemplo que tanto admirava, mas não há profilaxia possível: em algum momento a vida material grita, e quem está habituado ao silêncio corre realmente o risco de achar que se trata de um berro alienígena.

    Felizmente, são terráqueos como nós que estão lutando para romper esse nó górdio atado pelas privatizações. Os chilenos já ergueram a espada de Alexandre e deram um belíssimo exemplo para a América Latina.

     

  • Por dentro da rebelião popular no Chile

    Por dentro da rebelião popular no Chile

    Notícias do Chile
    Por Ota C Rojas

    Como muitos já estão acompanhando, há uma verdadeira rebelião popular em curso no Chile. O país que era o exemplo sul-americano de estabilidade e modernidade explodiu.

    Quero contar um pouco de como estão as coisas por aqui desde o início da rebelião.

    Na semana passada o governo anunciou um aumento da passagem dos ônibus e metrôs de Santiago. O aumento anunciado foi de 30 pesos, mais ou menos 4 centavos de dólar. Um valor irrisório, se não fosse só a ponta do iceberg. No entanto, o buraco é mais embaixo, como dizemos no Brasil.

    O Chile foi um dos berços ou laboratórios do que se conhece como neoliberalismo. Aqui, desde a ditadura de Pinochet, todo o plano econômico dos neoliberais da Escola de Chicago foi implementado desde fins da década de 1970. A maioria dos serviços públicos foi privatizada. As universidades públicas são todas pagas. No Brasil, temos a ideia de que algo público é gratuito, mas isso não é assim em vários países. No Chile, uma mensalidade em uma universidade pública pode custar mais do que em uma universidade privada. Como os salários das famílias são muito baixos (mais de 50% da população vive com menos de salário mínimo), as famílias não têm dinheiro para pagar as mensalidades. Isso gerou, há anos, um enorme problema de endividamento dos estudantes e de suas famílias. Aqui, um estudante que termina seu curso universitário e pode passar 10 ou 15 anos pagando os empréstimos que tomou.

    A saúde pública também é paga. Não existe um SUS. Os hospitais públicos são caóticos, todos os anos morrem milhares de pessoas nas filas de espera. Quem tem dinheiro para pagar um plano de saúde privado acaba comprometendo grande parte de sua renda nisso, já que os planos não cobrem todos os gastos de atendimento hospitalar, internações, cirurgias, etc. Se uma pessoa fica doente e se salva, seguramente sairá com uma enorme dívida que terá que pagar pelos próximos anos.

    Os direitos trabalhistas foram destruídos pela ditadura. A jornada de trabalho é de 45 horas, as férias são de 15 dias, os trabalhadores têm meia hora de almoço. A maioria dos sindicatos não têm nenhum poder de negociação, já que dentro de uma mesma empresa é permitida a existência de muitos sindicatos do mesmo setor (dentro de uma mina, por exemplo, podem existir 20 ou 30 sindicatos). O resultado disso é que os patrões fazem o que querem. A possibilidade de reação dos trabalhadores é pequena. E quando há sindicatos fortes, estão na mão de burocratas que defendem mais os patrões do que os trabalhadores.

    Uma das heranças mais nefastas da ditadura é o sistema de aposentadorias. Todo o sistema é privado. A aposentadoria dos trabalhadores é administrada pelas AFPs, Administradoras dos Fundos de Pensão. São empresas privadas que utilizam a enorme quantidade de recursos que é descontada todos os meses dos salários dos trabalhadores para lucrar. O dinheiro das aposentadorias é utilizado para financiar os negócios dos próprios empresários, comprar ações de empresas, etc. Os próprios donos das AFPs, que também são donos de muitas outras empresas, bancos, seguradoras, etc., utilizam esse dinheiro para financiar, com baixíssimas taxas de juros, seus outros negócios. É uma mina de ouro. Esse é o modelo de capitalização individual que Bolsonaro e Guedes quiseram implementar já com essa Reforma da Previdência no Brasil. Ainda não conseguiram, mas o projeto virá logo mais. Trata-se de destruir o sistema público (INSS) para que as empresas privadas administrem o dinheiro acumulado pelos trabalhadores. A lógica das AFPs é nefasta. Essa enorme soma de recursos é investida no mercado. Se há ganhos, isso fica pros acionistas das AFPs, se há perdas, esse dinheiro é retirado da aposentadoria dos trabalhadores. E o pior, a maioria dos trabalhadores se aposenta com menos de 30% do que recebia antes. Isso explica em grande parte o enorme aumento do número de suicídios de idosos na última década.

    Nos últimos anos milhões de chilenos saíram às ruas de forma pacífica contra as AFPs e defendendo a volta de um sistema público de aposentadorias (como o nosso INSS). A resposta dos governos (de “esquerda” e de direita) foi fazer promessas e não mudar nenhuma vírgula. Agora, pior, o governo de Piñera (atual presidente) mandou ao Congresso uma reforma que entrega ainda mais dinheiro para as empresas.

    Nas principais empresas do país, a exploração é brutal. O Chile é o maior produtor de cobre do mundo. Os mineiros, com um longo histórico de lutas, e suas famílias, sofrem diariamente as consequências mais nefastas da mineração – as doenças pulmonares (como a silicose), doenças musculares, psicológicas, etc. Muitos mineiros trabalham longe de suas casas, em turnos de 10/10 (10 dias de trabalho, 10 de descanso), o que os leva a ter uma dinâmica familiar muito difícil e penosa.

    A situação do principal povo originário, os mapuches, é dramática. Há séculos esse povo vem resistindo às ofensivas dos empresários e do Estado para tomar suas terras, que se concentram principalmente na região sul (a mais fértil) do país. Há séculos há uma verdadeira guerra contra os mapuches.

    Dito tudo isso, agora podemos voltar ao aumento da passagem.

    Na semana passada, então, o governo decidiu aumentar o preço da passagem. Um trabalhador ou uma trabalhadora que toma dois metrôs por dia pode chegar a gastar em um mês, 1/6 do salário mínimo.

    O aumento, claro, não foi bem recebido. Nos dias seguintes ao anúncio, muitos estudantes secundaristas começaram a convocar “pulas-catracas” nos metrôs. O movimento se massificou. O governo respondeu dizendo que não ia diminuir o preço da passagem e colocou a polícia nas estações de metrô. Daí pra frente a coisa foi piorando. Muitos vídeos mostram a polícia jogando bombas de gás lacrimogênio dentro das estações, crianças vomitando, mães chorando, policiais empurrando estudantes pelas escadas. Obviamente o efeito dessas ações foi o aumento das manifestações.

    Na sexta-feira (18) o governo militarizou completamente as estações, diante das convocatórias massivas dos estudantes. No horário de pico de saída dos trabalhadores, 18h-19h, o governo resolveu fechar as estações para evitar os pulas-catracas. Essa decisão fez com que milhares de trabalhadores não pudessem voltar às suas casas e tivessem que caminhar. Isso gerou manifestações espontâneas em várias partes da cidade. Na sexta a noite, os conflitos mais violentos começaram.

    Em todos os bairros começaram os protestos e confrontos com a polícia. De noite, a coisa já tinha se generalizado. Em todas os bairros da capital já havia protestos. As famílias se somaram à juventude. A polícia reprimiu e reprimiu. A revolta tomou um caráter mais violento. Nessa noite, 16 estações de metrô e um enorme edifício da empresa de energia Enel (localizado na principal avenida de Santiago) foram queimados, houve saques em alguns supermercados e barricadas por toda a cidade. A polícia já não conseguia mais controlar as manifestações.

    Na noite de sexta-feira, diante de uma enorme rebelião popular, o governo anuncia o Estado de Emergência na cidade, restringindo os direitos a manifestação e reuniões e passando o controle da cidade às mãos de um general. As Forças Armadas são autorizadas a ocupar a cidade. Mais de 300 pessoas são presas.

    A intervenção das Forças Armadas jogou ainda mais lenha na fogueira. Aqui há uma enorme raiva de amplos setores sociais contra as Forças Armadas pelo papel que tiveram na ditadura – os milhares de torturados, assassinados e desaparecidos. A maioria dos militares envolvidos nesses casos nunca foi punida.

    A noite de sexta-feira foi de conflitos e barricadas. Não sabíamos como iria amanhecer o dia seguinte. A presença das Forças Armadas seguramente intimidaria os manifestantes, pensava o governo. Nada mais equivocado.

    No sábado a cidade amanheceu com panelaços e conflitos em praticamente todos os setores populares e alguns bairros de classe-média. Os conflitos agora não eram só com os policiais, mas com as próprias Forças Armadas. Ontem (sábado), os protestos se expandiram para todo o país, de norte a sul, de Arica a Magallanes. O governo decretou estado de Emergência em Valparaíso (cidade portuária com longa trajetória de lutas) e Concepción (uma das principais cidades do sul). Em Santiago, muitos supermercados de grandes empresas (Wallmart, por exemplo) foram saqueados ou queimados. Em um dos incêndios, três pessoas morreram queimadas. Muitas farmácias e grandes lojas foram saqueadas. Sobre os saques, há cenas muito interessantes.

    Muitos deles foram protagonizados por famílias e pela população em geral. Em um vídeo que circula pela internet é possível ver um jovem lúmpen que sai carregando uma enorme televisão. Os trabalhadores que organizavam a barricada, ao ver o jovem saindo com a televisão, tomam-na de suas mãos e a atiram na fogueira da barricada. O televisor começa a arder em chamas. Os alimentos saqueados, em vários lugares, foram repartidos pelos trabalhadores presentes nas barricadas.

    O processo é totalmente espontâneo e sem direção. Os partidos tradicionais não conseguem controlá-lo. O governo está perdido. Ontem, teve que retroceder e declarou a revogação do aumento da passagem. Ao mesmo tempo, o general encarregado de Santiago, anunciou um toque de recolher a partir das 22h. Nada poderia enfurecer ainda mais a população, que saiu às ruas massivamente após o toque de recolher e passou a noite nas barricadas enfrentando-se com a polícia e o exército. Os protestos ganharam muito apoio popular, apesar da campanha dos grandes meios de comunicação para criminalizar os “vândalos” que estavam queimando os metrôs e saqueando os supermercados. Entre os trabalhadores se armou também um grande debate sobre as táticas que devem ser utilizadas no movimento, já que a destruição do transporte público ou outros espaços públicos seguramente acabará significando uma perda para a própria população. Mas a raiva foi incontrolável.

    Os vídeos da brutalidade policial e do exército circulam sem parar. Ontem, a cidade de Valparaíso, uma das mais combativas do país, foi completamente ocupada por tropas do exército. Os conflitos se estenderam por toda a noite de ontem. Muitos panelaços foram realizados de norte a sul do país.

    Hoje o dia amanheceu relativamente tranquilo. Alguns ônibus circulavam por Santiago. O aeroporto, no entanto, não funcionou. Muitos voos foram cancelados, o que está gerando um colapso. Logo no início da manhã começaram as concentrações nas praças e outros lugares públicos. Na emblemática Plaza Itália, o conflito com o exército e a polícia não pararam um minuto. Mais incêndios, mais saques, muitas barricadas. O governo novamente anunciou o toque de recolher para as 19h (há duas horas).

    Um novo fenômeno começou a aparecer. Grupos armados de traficantes ou relacionados com a própria polícia começam a assustar as populações mais combativas, atacar feiras e outros pequenos negócios. Há notícias de corte de água em vários lugares de Santiago. Os vídeos da brutalidade das Forças Armadas não param de circular. Se ainda não há nenhum assassinado pelas forças militares ou paramilitares, essa é uma possibilidade grande nas próximas horas ou dias.

    A fúria popular é enorme e não parece que diminuirá tão cedo. O governo não tem outra resposta além da repressão. Já são 9 mil militares distribuídos pelas cidades ocupadas.

    Enquanto escrevo essas linhas, escuto gritos, tiros e bombas ao lado de fora do lugar onde estou.

    Bem vindos ao Chile, um oásis de modernidade e estabilidade da América Latina.

  • PT condena repressão e brutalidade do governo chileno

    PT condena repressão e brutalidade do governo chileno

    Solidariedade ao povo do Chile: pelo diálogo democrático, contra repressão e estado de emergência

    Do site do PT

    O Partido dos Trabalhadores manifesta sua solidariedade ao povo do Chile, vítima da brutal repressão por parte do governo neoliberal de Sebastián Piñera, que colocou as Forças Armadas nas ruas contra a população, pela primeira vez desde a redemocratização do país em 1990.

    As grandes manifestações de protesto que vêm ocorrendo desde a semana passada nas principais cidades do Chile expressam a revolta da sociedade com o aprofundamento das medidas que prejudicam os trabalhadores, os estudantes, idosos e a população mais pobre.

    Desde a sangrenta ditadura de Pinochet o Chile foi transformado num laboratório das receitas neoliberais da escola de Chicago, e o país experimenta os efeitos nefastos da privatização dos bens e serviços públicos, da educação, dos transportes, do sistema de aposentadorias, junto com o desmonte das leis trabalhistas e o ataque aos sindicatos.

    É o modelo que levou o Chile a ter o mais injusto sistema de aposentadorias da América Latina e as mais altas mensalidades de ensino, inclusive nas escolas e universidades públicas, que tornou o sistema de saúde inacessível à imensa maioria e arrochou os salários dos trabalhadores.

    É contra os resultados acumulados do modelo econômico neoliberal que a população se rebela, e não só contra o aumento das tarifas de transporte. Em resposta, o neoliberalismo exibe sua face autoritária e repressiva, com a proibição de manifestações pacíficas, a violência da Polícia e das Forças Armadas, o estado de emergência e o toque de recolher.

    O que ocorre hoje no Chile é um alerta para todos os povos e países da América Latina em que o grande capital e as forças de extrema-direita tentam impor novamente o modelo neoliberal fracassado e criminoso, que já não esconde seu caráter antidemocrático, como estamos assistindo no Brasil.

    O Partido dos Trabalhadores, solidário ao povo do Chile, faz um chamado ao diálogo democrático, com a imediata suspensão das medidas de exceção, do estado de emergência e da violência contra as manifestações legítimas e pacíficas da população. Só a democracia e o respeito aos direitos podem trazer respostas efetivas aos dramáticos apelos dos trabalhadores e da sociedade chilena.

    Comissão Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores

    Fotos: Nicole Kramm

     

  • Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

    Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

    Enquanto um grande público aproveitava o maior festival de música e entretenimento do mundo, o Rock In Rio, realizado neste edição de 2019, no Rio de Janeiro, o jovem Enzo Valentino Oliva Tell, de 27 anos, viu o que deveria ser um final de semana de festa, virar uma sucessão de erros policiais e judiciários, no pior estilo de uma parcela da justiça injusta do país. O fato aconteceu no início do mês, no dia 4 de outubro, dia em que aconteceu um verdadeiro revival da primeira edição do Rock in Rio onde se repetiram shows de grandes bandas como Scorpions e Iron Maiden.
    Mas o foco dessa notícia absurda, nada tem a ver com festa, infelizmente ou banda de rock ou metal. A não ser o fato de episódios de injustiças como esses que vamos narrar agora, terem sido verdadeiros revivals no Brasil, infelizmente. De equidade com 1985, só a palavra revival mesmo.
    Enzo é engenheiro chileno da área de Tecnologia da Informação e pisou pela primeira vez no Brasil no dia anterior. De São Paulo seguiu com alguns amigos, de carro, até o Rio de Janeiro para o festival. O grupo de aproximadamente quinze pessoas, em um misto de brasileiros e chilenos, ficaria apenas para os shows do dia 4. Mas a viagem teve de ser prolongada quando Enzo foi preso, acusado de roubar um celular durante a madrugada.

    De acordo com seu advogado, Carlos Alberto Meireles Torres, Enzo contou que foi acusado de ter roubado o celular de uma mulher, durante uma confusão, em uma das áreas próximas aos palcos. A acusação o fez parar numa audiência na custódia, na mesma noite e na sequência, ser preso preventivamente.

    Enzo (de camiseta rosa, fazendo o símbolo com a mão) e o grupo de amigos, antes dos shows, já no Rio de Janeiro
    Os traços de Enzo, característicos da região andina, são similares ao padrão racista brasileiro de encarcerar: os culpados são sempre negros ou de pele “mais bronzeada”.
    Na audiência, a defesa de Enzo foi feita por uma defensora pública que declarou nos autos “esta Defensora não conseguiu realizar entrevista a contento a fim de obter informações acerca de sua versão e nem sobre qualificação, dados familiares ou endereço”.
    Vista aérea do público gigantesco do Rock in Rio no dia 4 de outubro

    Já a juíza do caso, Simone de Araujo Rolim, do Juizado do Torcedor e dos Grandes Eventos, justificou, no entanto, o motivo da prisão para preservar a “garantia da ordem pública” e assinalou que “até o momento não há comprovação de residência ou emprego lícito”. No documento é citada a necessidade de “ser comunicada sem tardar ‘sem demora’ ao Consulado”.

    Enzo, que trabalha e mora no Chile, foi levado do festival para uma carceragem e segue preso.
    Sua namorada, por meio de telefone comenta “ele é uma pessoa que gosta de ficar com a família e amigos. É claro para nós que é impossível que tenha roubado um celular, ele tem um celular caro, um Iphone”. O pai do jovem chegou no Brasil semana passada e tenta libertar o filho.
    No dia 08 de outubro, um desembargador do RJ concordou com a solicitação da defesa que pediu um Habeas Corpus, “ainda que a autoridade judiciária tenha conhecimento da língua do preso não lhe é lícita a conversa em seu idioma.  Para tanto a lei impõe a necessidade de intérprete. Está patenteada a ilegalidade da prisão pela imputação de crime de furto”.
    Mas como já havia um HC correndo na justiça, pedido pela defensoria, o desembargador entendeu não ter competência para o julgamento.
    Vamos continuar acompanhando a história que até o momento segue no viés da injustiça contra Enzo e esperamos que o jovem depois de recuperado desse trauma, possa, um dia voltar para conhecer um país melhor do que esse Brasil que lhe fora apresentado.