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  • Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

    Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

    A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.

    Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

    No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.

    Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes. 

    A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.

    Nova Constituição: chance de o Chile renascer - @delight_lab_oficial
    Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial

    A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.  

    “Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.

    Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.  

    O novo ciclo

    A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.

    O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.

    Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.

    A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.

    Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.

    Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.

    O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes - Bárbara Carvajal (@barvajal)
    O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)

  • Fotógrafa perde 80% da visão de um olho em violência gratuita da polícia Chilena

    Fotógrafa perde 80% da visão de um olho em violência gratuita da polícia Chilena

    Por Nicole Kram, em sua rede social

     

    Quero denunciar algo completamente criminoso e que me gerou muita dor na virada do ano novo.

     

    Estávamos andando pelas ruas da “Alameda” em Santiago, felizes com uns amigos e colegas, estávamos indo para a Praça da dignidade, logo depois de um jantar maravilhoso. Quando estávamos passando de frente ao monumento da polícia do Chile avistamos de longe vários policiais entre a praça e as cercas de proteção, alguns deles estavam jogando pedras nas pessoas, na hora começamos a andar mais rápido, quando sem aviso prévio, senti um golpe muito forte no meu olho esquerdo, o ataque veio de onde estava este grupo de policiais. O golpe foi tão forte que me derrubou no chão, me descompensou por inteira, na hora começou a sangrar. Pensei no pior. Foi traumático e desesperador, @s voluntari@s de saúde cobriram meu olho e minha cabeça, me subiram na maca e por incrível que parece a polícia continuava disparando, o paramédico teve que por um escudo na minha frente para me tirar do local, no chão haviam bolinhas de aço, de vidro e várias pedras. Ps: Estava tudo tranquilo, sem manifestações.

    Passei a noite inteira com o médico e enfermeiras no GAM. Estive na emergência de traumas oculares no hospital de “Salvador”, eles fizeram todo o possível para salvar meu olho (minha ferramenta de trabalho. Sou audiovisual e repórter gráfica). Tenho um trauma ocular grave e vejo tudo embaçado, mas não perdí o globo ocular.  

    Até quando vamos continuar sofrendo com esses criminosos?

    No 31 de dezembro aconteceu comigo, fiquei espantada frente a tanta agressividade policial, eu entrevistava pessoas com perda da visão nas manifestações, hoje foi minha vez. 

    Hoje fiquei sabendo de outro companheiro que também levou um impacto no olho, uma cápsula de gás lacrimogêneo direto no rosto, mas ao contrário do que aconteceu comigo, os médicos não conseguiram salvar sua visão. Te mando muita força e amor.

    Estou angustiada, sinto muita impotência, não podemos permitir essas agressões só por andar nas ruas! Meu único erro foi passar na frente deles, são uns psicopatas, não tem outro nome.

    Renuncia Guevara, renuncia Rozas, Blumel, renuncia Piñera. Chega de mutilações!

    Muito obrigada à equipe médica que foi um grande suporte e à meus amig@s pelo apoio. Justiça e dignidade!

    @nicolekramm (ig)

     

    AQUI NO BRASIL, um dos casos emblebáticos deste tipo de agressão é do fotógrafo Sergio Silva.
    Leia em:

    https://jornalistaslivres.org/tag/perda-de-um-olho/

     

    Justiça de SP culpa vítima de bala de borracha pela perda do próprio olho

  • CHILE: Os abusos dos carabineros ao usar seu arsenal contra protestos

    CHILE: Os abusos dos carabineros ao usar seu arsenal contra protestos

    Por José Tomás Tenorio, jornalista chileno

    Com mais de 3.400 pessoas feridas e pelo menos cinco falecidas em mãos das forças de segurança depois de mais de dois meses de protestos no Chile, duras críticas tem surgido desde diversos setores da sociedade e do mundo político local pela atuação dos “carabineros”, a polícia chilena, que tem sido acusada de uma série de abusos e violações aos Direitos Humanos contra os manifestantes.

    Equipadas com um grande arsenal de equipamentos anti-motim, que inclui, entre outras coisas, bengalas, escudos, gás lacrimogêneo e carros que lançam jatos de água e de gás, as Forças Especiais acumulam críticas pelo uso de espingardas carregadas com cartuchos de 12 tiros de borracha, os chamados pellets, uma arma que é considerada como a principal causa da “epidemia” de lesões oculares que atualmente vive o Chile. De acordo com o relatório mais recente do Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH), 351 pessoas resultaram com lesões oculares nas manifestações, relatando-se dezenas de casos nos quais perderam 100% da visão em um dos olhos devido ao impacto dos pellets da Polícia.

    Segundo o protocolo da instituição, as espingardas devem ser utilizadas somente como último recurso frente a manifestantes violentos, tomando precauções para que a distância do disparo não coloque em perigo quem receba o impacto, e evitando disparar contra idosos e menores de idade. Porém, em reiteradas ocasiões pode-se ver as Forças Especiais de carabineros utilizando esta arma como uma das suas principais ferramentas para dispersar grandes grupos de pessoas, sem importar a distância nem considerar se a manifestação era pacífica. Inclusive, foi revelado o caso de dois estudantes escolares do Liceo 7 de meninas de Santiago que foram feridas pelos pellets depois de que um agente da polícia disparou contra elas no interior do colégio.

    Além disso, um estudo da Universidade do Chile —uma das instituições mais prestigiosas do país— concluiu que somente 20% do material dos pellets utilizados pelos carabineros corresponde a borracha, enquanto o 80% restante corresponde a silício, sulfato de bário e chumbo.

    Manifestante ferido por “bala de borracha”

    Raio X mostra Projétil de metal encravado na perna de homem que foi atingido por uma suposta bala de borracha
    Raio X mostra projétil de metal encravado na perna de homem atingido por suposta bala de borracha

    E, apesar de que inicialmente o comando dos carabineros negou este estudo, em novembro o diretor geral Mario Rozas afirmou que, depois de investigações realizadas pela própria instituição com respeito às munições anti-motim, as espingardas com pellets “só poderão ser utilizadas, assim como as armas de fogo, como uma medida extrema e exclusivamente para a legítima defesa” dos agentes.

    Outro dos elementos questionados quanto à sua utilização nos protestos tem sido o gás lacrimogêneo, que os carabineros usam de três formas diferentes: mediante granadas de mão, espingardas que lançam granadas e carros que lançam gases, conhecidos popularmente como “zorrillos” (gambás). As principais críticas apontam ao uso indiscriminado deste elemento para dispersar aos manifestantes, além dos potenciais riscos para a saúde que este representa.

    Afogamento

     

    O composto utilizado pelas forças policiais é o clorobenzilideno malomonitrilo, ou gás CS que, ao entrar em contato com uma pessoa, produz de maneira imediata irritação e sensação de ardor nos olhos, no nariz, na boca, na pele e nas vias respiratórias, além de uma tosse contínua e uma sensação de afogamento. Em ocasiões, ante exposições mais severas, as pessoas podem experimentar vômitos devido a esse gás.

     

    Para evitar complicações à saúde dos afetados pelo gás, o protocolo dos carabineros indica que as bombas de gás lacrimogêneo devem ser lançadas depois de tentar convencer os manifestantes a deixar uma zona determinada, e depois de avisar de que as granadas serão utilizadas, além de se ter em conta que na zona de utilização do gás —que pode ser dos 60 aos 300 metros quadrados— não haja menores de idade, idosos nem mulheres grávidas presentes.

     

    Porém, assim como no caso dos pellets, em várias ocasiões as Forças Especiais deixaram de lado o protocolo e dispararam bombas lacrimogêneas contra grupos pacíficos, sem avisar os participantes dos protestos, e disparando as granadas de forma horizontal e não em um ângulo de 45º, o que pode provocar fortes impactos na cabeça dos presentes. Nesse sentido, um dos casos mais escandalosos ocorreu no dia 6 de novembro, quando, depois de um protesto nos arredores do Costanera Center, os carabineros utilizaram grandes quantidades do gás CS, sem considerar que perto desse shopping se encontra o Hospital Metropolitano, que possui uma grande sala de neonatologia (especializada em recém-nascidos).
    Outro caso muito criticado ocorreu no dia 27 de novembro, quando uma mulher de 36 anos perdeu a vista de ambos os olhos depois de sofrer o impacto no rosto por uma bomba lacrimogênea lançada pelos carabineros. A mulher estava indo para o trabalho quando, ao passar perto de um protesto, foi alcançada pelo projétil que lhe gerou sérios danos no crânio, incluindo os dois globos oculares.
    E se bem que, nas redes sociais, várias pessoas têm dito que alguns dos lacrimogêneos utilizados pelas autoridades estão vencidos —o que poderia levar a que estes contenham cianeto no seu interior—, diversos estudos internacionais dizem que nas condições que este material é utilizado, o composto de gás CS não deveria produzir quantidades letais de cianeto, inclusive se as granadas estão vencidas há muito tempo. Ainda assim, ao ser consultado sobre isso, o coronel dos carabineros Óscar Alarcón disse em uma de suas polêmicas declarações que a exposição a gás lacrimogêneo vencido “não tem nenhum efeito, é como tomar um iogurte que venceu há cinco dias. Funciona igual, está bom igual”.
    No começo de dezembro, e depois de mais de 40 dias da explosão social, o jornal “La Tercera” informou que os carabineros utilizaram um total de 98.223 bombas lacrimogêneas. Devido a isto, a instituição realizou uma rápida compra de mais granadas deste tipo do Brasil.
    As denúncias contra a ação policial também apontam ao uso dos seus veículos rádio-patrulhas, os carros que lançam água e os “zorrillos”.
    Desde o começo dos protestos, foram registrados vários casos de atropelamentos de manifestantes por parte dos carabineros, inclusive em ocasiões de protestos pacíficos. Além disso, na metade de novembro os agentes foram acusados de ter atuado diretamente na morte de um jovem de 29 anos que faleceu depois de sofrer uma parada cardiorrespiratória na Praça Itália, no centro de Santiago.
    Naquela ocasião, um carro lança-água próximo ao lugar, e que se encontrava com a visibilidade reduzida por raios laser e por manchas de tinta nos seus vidros, disparou um jato de água aos paramédicos que tentavam socorrer o jovem em parada cardiorrespiratória, o que dificultou a ação dos médicos e o traslado da pessoa até uma ambulância próxima do lugar.
    Apesar de todas as críticas, e dos relatórios de Anistia Internacional, Human Rights Watch e da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, que tem denunciado violações aos direitos humanos cometidas pelos carabineros desde o começo dos protestos (18 de outubro), a instituição tem rejeitado as críticas que apontam para um problema maior e o alto mando tem se limitado a se referir aos acontecimentos de abuso como casos isolados.
    Além disso, o ministério do Interior tem dito que o Estado chileno está avaliando dotar os carabineros de Dispositivos Acústicos de Longo Alcance, uma arma não-letal capaz de emitir sons acima dos 100 decibéis. Porém, em resposta ao anúncio, os departamentos de Fonoaudiólogos da Universidade do Chile e da Universidade de Valparaíso alertaram sobre os efeitos nocivos para a saúde que estas ferramentas podem ter para a população e que, em casos extremos, poderia deixar os afetados com danos auditivos irreversíveis.

    Leia mais sobre os protestos no Chile em:

     

    Chile: falsa normalidade

    https://jornalistaslivres.org/o-chile-despertou/
    https://jornalistaslivres.org/negro-matapacos-o-revolucionario/
  • Apoie a campanha dos Jornalistas Livres para a América Latina!

    Apoie a campanha dos Jornalistas Livres para a América Latina!

    A América Latina está sob ataque da extrema direita e do projeto neoliberal do capital financeiro de países como os Estados Unidos. Democracias como as da Bolívia e Equador estão sendo desestabilizadas pelas elites oligárquicas, altamente racistas e reacionárias. É o neofascismo de Bolsonaro, Camacho, Trump e outros atacando mulheres, indígenas, negros e LGBTs. Na Bolívia, após o golpe de estado sofrido por Evo Morales, legitimamente reeleito, a violenta repressão golpista está deixando mortos e muitos feridos. E isso pode piorar! A mídia tradicional, comprometida com os interesses do capital, não está mostrando a realidade. Nós, Jornalistas Livres, fomos até a Bolívia e Argentina cobrir as eleições desses países, mesmo sem ter os recursos suficientes. Queremos mostrar a verdade para nossos leitores, atuando in loco nos países em crise. Para isso, precisamos da ajuda de todos e todas, para que possamos enviar correspondentes com segurança, porque agora o momento é perigoso para a imprensa, especialmente na Bolívia. Ajude-nos a fazer o que a mídia tradicional não faz: mostrar os fatos!

  • Chile: falsa normalidade

    Chile: falsa normalidade

    Desde o governo, no trabalho, em algumas instituições de ensino e inclusive em grupos familiares ou de amigos, nos pedem que depois de mais de 20 dias de manifestações no Chile voltemos à “normalidade”. Mas desde o momento em que acordo até a hora que vou dormir percebo que esse desejo de alguns é impossível de ser realizado. É, inclusive, violento o simples fato de ser solicitado.

    Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

    Como posso voltar à normalidade quando o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) relata diariamente sobre a quantidade de pessoas que foram vítimas da violência policial durante as manifestações e o número só aumenta?

    Até agora, sabemos que 23 pessoas perderam a vida durante a crise social. Oficialmente, cinco faleceram em mãos dos agentes do Estado e outras duas enquanto estavam detidas em delegacias. Mas também há outros casos até agora sem explicação, como o de Yoshua Osorio (17 anos), quem, segundo os documentos, morreu em um incêndio. Mas, de acordo com a autópsia do Instituto Médico Legal, o corpo possuía três orifícios na região do tórax.

    O INDH também informou que 1.915 pessoas foram feridas, 1.003 delas pelo disparo de diferentes tipos de balas, sendo as principais de chumbo e de borracha.

    Nesse período, o Chile quebrou um triste recorde: se transformou no país do mundo com mais pessoas com lesões por balas de borracha. 180 foram afetadas. 30% delas ficaram completamente cegas de um olho. Enquanto escrevo este texto, o jovem Gustavo Gatica (21 anos), quem perdeu a vista de um olho, está tendo o outro operado para não ficar completamente cego. Uma série de pessoas se manifestaram do lado de fora da clínica para apoiá-lo, mas foram reprimidos pela polícia.

    Em paralelo, 262 pessoas iniciaram uma ação judicial contra os organismos do Estado. 171 delas por torturas e maus-tratos.

    Não é possível voltar à normalidade para quem foi ferido, para quem perdeu a vista, para quem foi torturado. Para quem morreu.

    E apesar de tudo isto, o Presidente do país, Sebastián Piñera, propôs na sexta-feira um projeto de lei que dá mais poder aos policiais. O mandatário reconheceu situações de excessos. Mas negou que haja uma violação aos direitos humanos.

    Tampouco é possível pensar em normalidade quando caminho pelas ruas e vejo as mensagens deixadas nas paredes. “Estado assassino”; “Piñera, vai embora”; “esqueceram de nós”; “a polícia nos estupra”; “exigimos nova Constituição” (…) e alguns que despertam um sorriso “tenho mais medo da minha mãe do que de vocês” e o clássico de todos os tempos “faca amor, não faca a guerra”.

    Nas ruas, de domingo a domingo, há manifestações. Algumas pacíficas, outras, violentas. Mas todas, sem exceção, terminam com esse cheiro insuportável das lacrimogêneas e de gás pimenta. Esse odor que fica impregnado no nosso cabelo, em cada um dos nossos poros. Que dá a sensação de que não poderemos voltar a respirar ou a abrir os olhos. E logo, o fogo. As barricadas. O caminhar de um lado para o outro em um labirinto sem fim entre os encapuzados e os policiais. E o metrô não está aberto. Os ônibus não passam. Isto não é normal.

    De qual normalidade estão falando quando os meus colegas jornalistas denunciam que estão sendo censurados, ameaçados a não difundir as suas opiniões pessoas no Twitter ou Facebook? Como posso voltar à normalidade quando abro as redes sociais e já não sei distinguir o quê é verdadeiro do que é falso? Quando leio uma entrevista do Piñera alterando a sua própria declaração de que “estamos em guerra contra um inimigo violento” e tergiversando essa informação ao explicar que o que queria dizer é que “estamos em guerra contra a pobreza e a desigualdade”?

    As poucas tentativas de regressar à normalidade se viram frustradas. Na segunda-feira, a Pontificia Universidad Católica de Chile —a mais importante do país— abriu suas portas para uma jornada de reflexão e logo o começo das aulas. Os alunos votaram imediatamente por uma greve indefinida. Durante a tarde, alunos de um dos edifícios denunciaram a repressão policial dentro da universidade. De noite, um grupo invadiu a sede da PUC e roubou objetos para formar uma barricada. No dia seguinte, a universidade fechou novamente.
    E também existe outro lado. O das pessoas que temem a violência dos manifestantes. As que apóiam os protestos, mas que já não querem ver o comércio fechado, as ruas sujas, os edifícios prendendo fogo. As que demoram horas e horas para chegar a casa porque o transporte está interrompido. As que estão desesperadas para regressar ao trabalho porque senão lhes será impossível pagar as contas no fim do mês. Para elas também não é nada normal.

    E atualmente eu me pergunto, a qual normalidade querem regressar o governo, o trabalho, algumas instituições de ensino e inclusive alguns grupos familiares ou de amigos? A que existia antes já não é possível. Ou é a essa normalidade de um grupo de privilegiados que não sabia —ou fingia não saber— que o Chile é um país desigual? Ou essa normalidade “linda” que os turistas percebem quando visitam Santiago porque (surpresa!) todos os atrativos turísticos da cidade estão na parte mais bela e bem cuidada da cidade?

    “Normalidade”. Sempre estivemos vivendo uma anomalia. Se insistirmos em voltar a ela, talvez, com o tempo consigamos. Mas será falsa. E sabemos onde essa falsa normalidade nos levou.

  • PROTESTO NO CHILE: “Eles têm medo de nós porque não temos medo”

    PROTESTO NO CHILE: “Eles têm medo de nós porque não temos medo”

    Por Zarella Neto, especial para os Jornalistas Livres
    Com fotos de Antonio Brasiliano e Zarella Neto, de Santiago, Chile

     

     

    Milhares de pessoas tomam as ruas do centro de Santiago exigindo mais direitos em todos os parâmetros sociais, pedido principalmente uma nova Constituição e a queda do presidente Sebastian Piñera.

    Na última pesquisa realizada, 87 % da população apoiam os protestos e são contra a violenta repressão policial. Apersar disso, não se vê cobertura real das grandes mídias chilenas. Nos últimos três dias de protestos na praça Itália, palco principal e foco real de resistência dos manifestantes, não se viu uma só vez uma emissora de TV. Apenas cinegrafistas e fotógrafos independentes ou de grandes agências internacionais estavam presentes.

    A participação popular é linda e crescente, diferente do estado policial, que com seu gigantesco aparato de segurança reprime com muitas bombas de gás lacrimogêneo e jatos d’água misturados com algo que parece ser gás lacrimogêneo, com o qual fomos atingidos diversas vezes e que, quando em contato com a pele, queima como fogo.

    A repressão da polícia é de uma desumanidade sem tamanho. Um aparato com mais de dez carros-tanques de repressão é usado para atacar os manifestantes que muitas vezes estão isolados e em número pequeno. Nesta semana, enquanto ocorria uma manifestação pacífica, com músicos entoando canções de resistência, com artistas nus e corpos com pinturas que lembravam os que tombaram mortos nas manifestações passadas, a polícia interveio com um forte ataque. A desigualdade de forças era tal que parecia a luta entre elefante e formiga.

    Penso, porém, que o elefante não está preparado para lutar contra um formigueiro. Enquanto manifestantes olham para frente, outros se aglomeram por detrás e, com o apoio maciço das pessoas comuns que cercam a praça, gritando, explicam para os homens de farda que hoje são eles, manifestantes, que sofrem, mas que, amanhã, poderão ser a mãe ou os filhos de quem hoje reprime…

    O Chile hoje não é um país para amadores. Os manifestantes em sua maioria pertencem à classe média, classe que segundo eles não existe mais…

    Nas manifestações não existe uma bandeira única nem partidária… Ela é plural e igualitária. E sempre se vê a onipresente bandeira do povo originário mapuche.

    É difícil Piñera resistir. O Povo do Chile, como eles mesmo dizem, não tem mais medo, e canta alegremente: “Nos tienen miedo porque no tenemos miedo”.

    Como me disse uma senhora de 63 anos que viveu a ditadura de Augusto Pinochet e com quem conversei, “os jovens de hoje não se curvaram à intolerância”. Ela disse também que no Chile nasceu o neoliberalismo na América Latina e no Chile começou a sua queda.