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    O economista ímpar

    Resenha do livro: Diários Intermitentes de Celso Furtado (1937-2002)

    Organização Rosa Freire D’Aguiar

    Editora: Cia das Letras, 2019

    446 páginas

           

    Por Márcia Mendes de Almeida especial para os Jornalistas Livres

              São agradáveis de ler os Diários Intermitentes  de Celso Furtado. Com tudo bem explicado por Rosa Freire D’Aguiar. Abrangem um tempo (1937-2002 ) em que o Brasil – e o mundo talvez – mesmo para poucos e bons entendedores, não escapavam à compreensão.

           Nos diários poucos são os fragmentos – engraçados ou acabrunhados – da infância e adolescência em João Pessoa e Recife. Em 1945 dizia: 

    “O pai fora praticamente um estranho. Um gesto interessado e humano seu não ficara na memória (…) Mamãe nunca exteriorizou afeto (…) Eu acredito ter sido uma criança inferior (…) era o mais feio, com uma grande cabeça, um pescoço fino e um corpo ossudo (…)não tinha espírito, era zangado (…) A consciência do abandono (…) de ser o mais preto (sic) da família perdurou em mim durante toda a infância (…) Bebi leite de jumenta para me criar”. 

           Foi também criado até um ano e meio pela negra Francisca, que se foi bruscamente. Celso Furtado se pergunta: “Seria Francisca afetuosa ?”. Faz pois sentido ele, em 1971, ainda buscar o que chamava de autêntica comunicação: “não me sendo possível comunicar-me com aquela  pessoa ali próxima de mim, buscava uma maneira de comunicar-me com todas  as pessoas”.

           Em 1947, após a segunda guerra e em Paris, padeceu bastante com o frio e mais, a língua foi mesmo se tornando a sua pátria: “Outro sofrimento é não poder nunca falar a própria língua”. Não é acaso Celso Furtado escrever bem. Aos 22 anos tinha para o futuro seu “programa de vida”, levando a sério o exercício de educação da vontade (dizia), dedicando-se aos estudos e em viajar para aprender. Não se percebe imodéstia neste economista ímpar, frente à óbvias vitórias. Após defender sua tese de doutorado em Paris (1948) apenas observou: “atravessei o boulevard Saint- Michel, hoje, montado numa nuvem”. Não derramou no diário onisciência, como é hábito de alguns de nossos economistas de província. Objetou não ser exatamente um economista, em 1959, pois buscava na economia  “um instrumento de análise a mais para compreender a história”. 

    Miguel Arrais, João Goulart, Celso Furtado e Darci Ribeiro reunidos na Sudene, em julho de 1962

    AS MUITAS VOLTAS AO BRASIL

           Chegando ao Brasil em 1974 percebeu que “as burocracias andam sozinhas, se inventam um destino, fazem da miséria dos outros a sua grandeza”. Solertes economistas daqui ambicionavam independência total, superestimando sua capacidade de mudar acontecimentos imperceptíveis aos leigos. Para sobreviver neste “mundo absurdo”, predizia Celso Furtado, era necessária a utopia segundo a qual, mesmo com as contradições se agravando – caso do Brasil – o futuro seria, sem dúvida, “necessariamente melhor que o presente”.

           O profundo ceticismo dos homens temperado pela constância das ideias tornou-se característica sua em 1945. Foi quando deu alento a um  “estado de fuga maior ou menor organizado” submetendo-se ao programa de estudo dizia ele, cuja  “rigidez e amplitude levar-me-ia a um permanente esforço de extroversão e disciplina”. Cumpriu este programa que reputava ser sua salvação. Em 46 continha-se ao encontrar o Brasil com uma pífia  “organização nacional” (…) “continua-se com a esdrúxula separação de poderes, não se aborda a reforma agrária, não se fere a ordem econômica” (…). Os que legislam “estão desinteressados ou divorciados da realidade brasileira. Discute-se e briga-se em torno de mesquinhos interesses de paróquias eleitorais”.

           Daí em diante suas antecipações impressionam, – parecendo  agora – que no Brasil quase nada muda e tudo se agrava. Em 1974 diagnosticou: “Implantou-se um sistema de poder que é essencialmente uma aliança do grande capital, sediado em São Paulo e com fortes vinculações externas, com as chamadas Forças Armadas, mistura de burocracia, partido político e sistema de repressão” (…). “A ‘estatização’ é um fantasma que está em toda parte para assustar os capitalistas locais, particularmente aqueles que sempre viveram de favores do estado”. O que Celso Furtado enxergava como inédita era a “considerável expansão da classe média e seu enraizamento nos hábitos de consumo dos países capitalistas ricos”. Tais novos e amplos setores privilegiados cavariam suas  “trincheiras de defesa do status quo  social”. O país estava longe a seu ver de ter amadurecido politicamente. Celso Furtado não reconhecia o tenebroso poder político das organizações Globo, mas registrava: 

    “A velha classe política emergiu com os seus cacoetes e a opinião pública tende a afastar-se, predominando o cinismo e o ceticismo”  (…) “ O centro da cena está ocupado por militares ignorantes ou maquiavélicos e por tecnocratas travestidos de estadistas (…) Engana-se o povo da maneira  mais descarada”. 

           O débil ensaio do PMDB na política econômica-financeira – um vôo de galinha “social-democrata”  – durante o governo Sarney, com o Plano Cruzado e os subsequentes, só fizeram crescer a maquinação dos interesses financeiros – e seus prestimosos aliados aqui – para restabelecer o status quo ante. Celso Furtado, experiente e abalizado, não contemporizava com o PMDB. Mesmo o “dr. Ulisses”, em 1988, revelou  uma imperícia palmar. Sem tanta paciência, ponderou : “Ele se empenha em salvar o PMDB como sigla, independentemente daquilo que contém. Imagina que chegará a ser candidato a presidente com esta sigla. É a ideia da  ‘vaca leiteira’ que produz votos”. Sabia ser compassivo e  sarcástico quanto ao Plano Cruzado, “uma mistura de coragem e ingenuidade de Funaro, com arrogância e esperteza de rapazes que ganharam notoriedade e dali saltaram para ocupar bons empregos ”, salvando-se da implosão.

           Tem mais, muito mais nestes diários para melhorar o entendimento e a turva visão dos moços ou nem tanto (os com  mais de cinquenta) neste fim de ano bolsoignaro, de maus presságios.

           Celso Furtado era desabrido e irônico quanto à inépcia da esquerda desde 1959 “confundindo seus ingênuos desejos com a realidade”, desencorajada que foi desde cedo ao estudo do real e a ter um pensamento crítico eficaz. Sempre teve na política seus passos cortados desde a luta na Sudene a partir também de 59. No PMDB e, claro, no governo Sarney, seu nome foi solapado por inoportuno para ocupar espaços cabíveis – ministérios da Fazenda ou Planejamento. Não queria se ver  na cena política “como uma das dezenas de ‘líderes‘ se esforçando para ter um papel num drama que carece de sentido para todos”. Forças implacáveis, resistentes à mudança (1985) eram o bastante para O PMDB logo providenciar a entrega de sua cabeça. Além disso, o partido não sancionou formalmente as ideias que ele defendia e o economista ímpar e mordaz guardava o devido decoro, não teria “ lutado para ficar com  ‘alguma coisa‘ na hora do frigir dos ovos”.

    As figuras de sua época

           Finalmente – mas não insignificantes – nestes diários são os perfis  e instantâneos (alguns primorosos) de muitas figuras: Juscelino Kubitschek, José Sarney, “dr. Ulisses ”, marechal Lott, Josué de Castro, Roberto Campos, Bresser Pereira, Maílson da Nóbrega, Raúl Prebisch, José Serra.

           Já em 1985, convicto de que no setor econômico-financeiro nada podia ser feito, conjecturava que o essencial naquele momento era a consolidação das vitórias da redemocratização. Sem esmorecer, pensava:
    “O que me cabe fazer é continuar pensando os problemas  globais”, com  “o sentimento de que a vida foi bem aproveitada”. Já não se sentia um “transeunte, sempre preparado para partir, tentar algo de novo”. 


    Marcia Mendes de Almeida é jornalista e resenhista, tendo colaborado com a revista Senhor, o Jornal da Tarde e com a Carta Capital.
    O projeto de resenhas de livros para os Jornalistas Livres vai incluir não apenas lançamentos, mas também livros interessantes disponíveis em sebos virtuais.

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    Lançamento dos Diários de Celso Furtado #SP

  • Lançamento dos Diários de Celso Furtado #SP

    Lançamento dos Diários de Celso Furtado #SP

    A Cia das Letras está lançando desde outubro Diários Intermitentes 1937-2002 de Celso Furtado, organizado por Rosa Freire D’Aguiar, viúva de Celso.

    Rosa reiterou, no evento de 04.11.2019, na Livraria da Vila em Pinheiros (São Paulo) que os cerca de 13.000 livros da biblioteca de Celso (7 toneladas por sinal), estão a caminho do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), para se tornarem parte deste acervo público. 

    Além do lançamento, estão acontecendo palestras sobre Celso Furtado, um bom prenúncio da comemoração dos 100 anos de nascimento do autor em 2020.

    O lançamento desta segunda-feira em São Paulo, contou com a participação de Rubens Ricupero (jurista, historiador e economista  que foi ministro do governo de Itamar Franco) e de Luiz Felipe de Alencastro (historiador e cientista político). 

    Lançamento do livro, Diários Intermitentes 1937-2002, de Celso Furtado, com a presenças de Luiz Felipe de Alencastro (á esq.), Rosa Freire D’Aguiar e Rubens Ricupero (á dir), em #SP.

    Rosa explica que o título Diários Intermitentes, reflete o fato de que Celso Furtado os escrevia em alguns momentos com mais intensidade do que em outros. Ela  definiu alguns como desabafo e outros como testemunhos históricos. Exemplos : quando voltou ao Brasil depois da segunda guerra, ou quando trabalhou na implantação da Sudene no Nordeste durante o governo Juscelino Kubitscheck, e em períodos do exílio. 

    Mesmo sendo o livro uma importante fonte de pesquisa histórica, como afirmou Rubens Ricupero, ele não contém tantas revelações de bastidores e fofocas, como é comum neste gênero de livro, disse Rosa. Mas tanto ela como Rubens, citaram algumas  importantes passagens, revelações mesmo, durante o período da Constituinte (1988), no governo de José Sarney.

    Os diários

    Rosa destacou a qualidade literária dos diários, assim como as reflexões intelectuais de Celso. Contou também que ele tinha o hábito de fazer balanços anuais, e alguns dos textos do livro oferecem esta oportunidade, assim como os perfis de personalidades com as quais o autor conviveu, ou que são muito simbólicas do seu tempo. O livro também contém três trechos que seriam esboços de romances do autor. 

    É importante destacar que Celso Furtado foi um  economista e intelectual brasileiro, que se propôs a executar o desenvolvimento com suas ideia concretas, e por isso foi extremamente perseguido. 

    Sua participação na implantação da Sudene Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, que criou em 1959, no governo de Juscelino Kubitschek, incomodou profundamente as oligarquias do Nordeste e seus coronéis. assim como sua participação como ministro do Planejamento em 1962, no governo de João Goulart. O nome de Celso Furtado era o número 20 na lista de cassação do AI-1, no golpe militar de 1964. Segundo Luiz Felipe de Alencastro, nem o embaixador americano Lincoln Gordon, figura crucial no golpe de 1964, concordava com essa cassação, já que ele não era ligado a nenhum partido, nem organização e tinha certa visibilidade internacional na época.

    Ricupero falou da falta que ele faz no Brasil de hoje. Celso furtado morreu em 2004. Por sua visão crítica às “doutrinas do norte” e neoliberais, e pela sua capacidade visionária, Celso é “o símbolo de um outro Brasil, que acreditava em si mesmo”,  “o último gigante do desenvolvimento”, afirmou Ricupero.

    Rosa comentou duas situações que considera bem simbólicas no que se refere a destruição da memória de Celso Furtado. Primeiro a mudança do nome do centro acadêmico da Universidade Federal de Santa Catarina, que curiosamente homenageava Celso Furtado, e foi rebatizado como Centro Acadêmico Roberto Campos , opositor ideológico de Celso. E segundo, a atitude da Petrobrás, sob o comando do atual governo, que resolveu rebatizar as termoelétricas, que no governo Lula tinham recebido  nomes de esquerda, entre elas Celso Furtado, Luiz Carlos Preste, Leonel Brizola.

    Rosa, além deste livro, é responsável pela edição de diversas obras de Celso Furtado, entre elas a coleção temática Arquivos do Celso Furtado, e também é responsável pela organização do Banco de Artigos de Celso Furtado, que podem ser acessado por este NESTE LINK. 

    A obra deste autor também pode ser acessada pelo em seu acervo online no Centro Internacional Celso Furtado NESTE LINK http://www.bibliotecacelsofurtado.org.br/

    Os Jornalistas Livres convidaram Márcia Mendes de Almeida para ser livre na coluna de resenhas, e ela escolheu esta obra.  Sua primeira colaboração que deve ser publicada em breve. Márcia fez resenhas de livros nas décadas de 80 e 90 principalmente, contribuiu na revista Senhor, no Jornal da Tarde, e para a Carta Capital, mais recentemente.

  • Contra a tirania do neoliberalismo

    Contra a tirania do neoliberalismo

    Querida Cynara Socialista Morena Menezes,

    Seu texto, Contra a tirania do econocentrismo, me instigou a escrever. Especialmente o primeiro parágrafo: “Por que dependemos tanto do humor das bolsas de valores? Por que temos de nos preocupar tanto com a balança comercial? Por que a economia está sempre à frente, dominando as decisões políticas? Não deveria ser o oposto, a política é quem deveria pautar a economia para fazê-la ir pelo caminho acertado, planejado, lógico? Seguir tudo o que a economia manda é justo ou, pelo contrário, aprofunda as desigualdades?”

    Há muitos economistas que defendem a “ciência econômica” como algo que flui da natureza, algo como a física ou a biologia. Chamam, por exemplo, de “taxa natural de juros” àquela exorbitância concentradora de renda praticada pelo Banco Central do Brasil. Julgam-na perfeitamente justificada, dada que é “natural”. Diria Brecht:

    Desconfiai do mais trivial,

    na aparência singelo.

    E examinai, sobretudo,

    o que parece habitual.”

    Outros a veem ciência social, indissociável da política. Outros ainda, como o professor Paul Singer, não a entendem como ciência, mas um pedaço de ciência: “Eu diria que ciência é a somatória das disciplinas. A somatória de Economia mais História, Sociologia, Política, etc. é que seria uma possível Ciência do Homem.”

    Assim sendo, as respostas às questões desse campo variam substancialmente, conforme a quem se pergunta. Ao questionarmos os economistas da corrente majoritária, hoje no Brasil e no mundo, sobre a dominância da economia sobre as decisões políticas, certamente, ouviremos que as leis econômicas são imutáveis e que, ao transgredí-las, obteremos resultados desastrosos. Mas, nem todos economistas responderão assim.

    Há economistas, que em geral não são ouvidos na mídia tradicional, que entendem que não há, na verdade, protagonismo da economia sobre a política e, sim, o inverso. As ditas “leis econômicas” se prestam a justificar posições ideológicas que ficaram escondidas na formulação das próprias “leis”. A decisão política sempre prevalece, dirão. Exemplificando, novamente com a questão da taxa de juros, Keynes e seus seguidores dirão que a taxa praticada por uma sociedade é um acordo, uma tradição. A tradição brasileira é praticar a taxa de juros mais alta do mundo e não há qualquer maldição, ou “lei econômica” que nos obrigue a isso, afirmarão.

    Não existem, para muitos economistas, decisões de política econômica certas ou erradas, mas decisões que se conformam a certos objetivos políticos de concentrar ou distribuir renda, fundamentalmente. Decisões que favorecem interesses e contrariam outros. Celso Furtado disse:

    “[…], pois a luta contra o subdesenvolvimento não se faz

    sem contrariar interesses e ferir preconceitos ideológicos”.

    Faço parte desse grupo que acredita que quando caminhamos para a perda de renda dos mais pobres, não estamos, simplesmente, diante de um efeito colateral de um política econômica “correta”. Estamos assistindo à decisão política de concentrar renda, tranvestida de lei econômica implacável.

    Ao estudarmos o período da guerra fria, nos anos que seguiram a II Grande Guerra, veremos que foi um período de grande aumento do bem-estar dos trabalhadores. As “leis” eram outras? O arranjo político era outro, penso. Arranjo que se desfez e é simbolizado pela subida de Thatcher e Reagan ao poder. Esse é o neoliberalismo que amargamos até hoje. Balançou com a crise dos subprimes, mas não caiu.

    Finalizo com mais um pedacinho de Brecht:

    Suplicamos expressamente:

    não aceitei o que é de hábito

    como coisa natural,

    pois em tempo de desordem sangrenta,

    de confusão organizada,

    de arbitrariedade consciente,

    de humanidade desumanizada,

    nada deve parecer natural,

    nada deve parecer impossível de mudar.”

    Um grande abraço.