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  • Decisão da Justiça Federal trava atenção primária de saúde em todo Brasil

    Decisão da Justiça Federal trava atenção primária de saúde em todo Brasil

    Márcio Anastacio para os Jornalistas Livres

    Um juiz da 20ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, suspendeu a solicitação de exames por enfermeiros em todo o Brasil. A ação foi pedida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

    Essa decisão gera impacto imediato na atenção básica em todo o país, visto que os enfermeiros se tornam impedidos, por exemplo, de realizar um simples teste rápido de gravidez ou de diagnóstico de doenças como a sífilis ou o HIV, bem como solicitar exames de rotina pré-natal, para hipertensos e diabéticos.
    O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), nesta sexta-feira (6), emitiu comunicado determinando que os enfermeiros brasileiros não peçam qualquer exame por estarem impedidos judicialmente. O Cofen apresentou um pedido de reconsideração da decisão da Justiça Federal para salvaguardar o atendimento de Enfermagem à população.

    Na prática, a medida expõe a enormes riscos o conjunto da população brasileira.
    A medida, provocada por ação judicial do Conselho Federal de Medicina, é combatida, inclusive, pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.

    No Rio de Janeiro, segundo ativistas da Saúde pública da cidade, a atenção primária nesta sexta-feira (6), praticamente parou em alguns postos onde os enfermeiros e enfermeiras garantem o atendimento mesmo com falta de médicos. Isso aconteceu na Casa de Parto de Realengo, na zona oeste do Rio e em outros tantos pontos de atendimento espalhados pelo Brasil.

  • Lira Ribas e Valdineia Soriano, as melhores atrizes do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2016 e 2017)

    Lira Ribas e Valdineia Soriano, as melhores atrizes do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2016 e 2017)

    A mineira Lira Ribas foi premiada pela atuação em “Estado itinerante”, filme da conterrânea Ana Carolina Soares, que também foi escolhido como melhor curta e recebeu o prêmio Canal Brasil na 49ª edição do Festival. Entre outras premiações foi também eleito o melhor curta do ano (2016) pela ANCINE.

    A baiana Valdineia Soriano foi condecorada como melhor atriz em longa-metragem por sua atuação no filme “Café com canela”, da Rozsa Filmes, dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa. O filme venceu também no quesito melhor roteiro (Ary Rosa) e melhor filme.

    Melhor filme!!! “Café com canela”. Isso é o que deve ter doído muito no cocuruto de gente bacana e indignada do mundo do cinema. Como assim? Um bando de nordestinos. Nordestinos pretos, onde já se viu? Vieram de onde? Da UFRB, formaram-se lá. O que é UFRB? Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Ah… uma universidade do Lula. Só podia ser. Petralhas!

    Se observarmos o currículo de Valdineia Soriano, veremos que suas realizações são locais, soteropolitanas, baianas, e sua rede de contatos e extensões gravita em torno da Bahia. Uma pena para o Brasil, que demorou 30 anos para descobri-la, reconhecê-la e premiá-la.

    Ao mesmo tempo, que maravilha esses novos realizadores negros que inscrevem seus filmes em mostras competitivas nacionais (e internacionais) e assim são vistos pelo mundo. Que se insurgem como aquele piloto de Fórmula I desconhecido ou pouco creditado que aperta aqueles outros pilotos talhados para serem os campeões antes mesmo da corrida e gritam com o pé no acelerador: daqui não saio. Você pode até passar por cima de mim, mas esse é meu lugar e daqui eu não saio. Compreendeu?

    Quando vi a notícia da vitória de Valdineia Soriano, a quem tive o prazer de encontrar em São Félix (Recôncavo da Bahia), radiante pela gravação de filme  “interessantíssimo”, como caracterizou o “Café com canela”, prospectei ver uma manchete assim: “Pelo segundo ano consecutivo, uma triz negra é a melhor atriz do Festival de Brasília”.

    Imaginei pequenas biografias de Lira Ribas (melhor atriz de curtas em 2016, como já disse) e Valdineia Soriano (melhor atriz de longa-metragem de 2017), que destacassem as diferentes trajetórias de ambas, as convicções políticas, as reflexões sobre cinema negro, teatro negro, pessoas negras no cinema e no teatro, como realizadoras, protagonistas, críticas, etc. Não vi nada disso. Aparentemente, ninguém sabia quem era Lira Ribas, tampouco que ela foi premiada na 49ª edição do Festival de Brasília.

    Temos problemas aí. Nós mesmos não nos vemos e perdemos a chance de emplacar a manchete “Pelo segundo ano consecutivo, uma triz negra é a melhor atriz do Festival de Brasília”. Porque, afinal, estamos em processo e na crescente, conforme lembrou o cineasta Joelzito Araújo em postagem recente em redes sociais: “Em agosto de 2017, o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul (10ª edição, Rio de Janeiro) apresentou 66 filmes produzidos e dirigidos por afro-brasileirxs, selecionados de 110 inscrições. Um número 100% maior que na edição anterior. Quatro deles foram selecionados por Brasília. Todos foram premiados”.

    O discurso político feito por Valdineia Soriano no momento da comemoração da vitória, entre companheiros do filme e veiculado pela cineasta carioca Yasmin Thayná em vídeo, é fundamental para situar do que falamos e o simbolismo dos prêmios conquistados pelo “Café com canela”. Aliás, a própria Yasmin escreveu texto elucidativo sobre o que pegou para a moçadinha que acha os pretinhos massa, desde que calados e não-competitivos e vitoriosos.

    No texto “Algumas coisas que aprendemos com o Festival de Cinema de Brasília” (Nexo, 02/10/2017), Yasmin Thayná analisa: “Um episódio que marcou a história do cinema brasileiro aconteceu algumas semanas atrás.  No 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, realizadores negros levaram oito dos prêmios da mostra competitiva de longa e curta-metragem. Isso causou um rebuliço, muita gente não curtiu isso, não. Eu acho muito engraçado. Tem um pessoal do cinema, que se diz aliado, celebra, fala até que adora as nossas movimentações, os nossos filmes, a nova cena surgindo de novos cineastas brasileiros, no caso, os que são negros e de periferias brasileiras. Aí essa cena vai e ganha prêmios no Festival de Brasília. E aí esse pessoal não gosta, esculacha o festival, os curadores, os jurados, começa a fazer piadinha. Quer dizer: vocês são maravilhosos. Mas quando a gente perde, vocês deixam de ser. Eu acho isso muito engraçado porque muitos desses gostam de gritar “Fora, Temer” no tapete vermelho, mas não gostam de ver preto ganhando prêmios importantes”.

    Outra cineasta, a baiana Viviane Ferreira, no artigo “O assombro que vaza da simples existência”… (Portal Geledés, 05/10/2017), comenta criticamente o artigo de Daniela Thomas em defesa do próprio filme (Vazante), não premiado como melhor longa-metragem no Festival de Brasília, e nos ensina: “O assombro, que vaza de nossa existência e desloca a branquitude do seu histórico lugar de conforto, é a incompreensão dos não-negros de como é possível uma coletividade historicamente açoitada, de forma requintada e com aprimoramentos estéticos e tecnológicos, insistir em seguir simplesmente existindo.  Mas não há segredos no que nos faz seguir e existir, sonhamos em ser velhas(os), em termos cabelos brancos e pele reluzente como a noite; é em nome de nossos sonhos, que não aplaudimos imagens acríticas de  execuções de corpos negros. Nossa existência cheira a “café com canela” e NADA nos fará desistir de nós mesmos. E que sigam assombrados com a nossa presença; ela é real, não é ficção”.

    Mas, insisto, nos falta reconhecer as muitas Lira Ribas, como nos faltou compreender que o professor Milton Santos não precisava utilizar a terminologia população negra, para sabermos que ele falava sobre nós e para utilizarmos seus estudos a nosso favor.

    É preciso fortalecer a convicção (consubstanciada por inúmeras provas) de que pessoas e produções negras em destaque, em posição protagonista de quem dirige a própria existência, significam rompimento do pacto civilizatório que adjetiva o Brasil como democracia racial. E isso é inadmissível para a branquitude de plantão.

    O caso é que o piloto desacreditado não sairá da pista. Não haverá abalroada que o tire de cena.

  • UM GRITO POR DIGNIDADE: CONHEÇA A OCUPAÇÃO POVO SEM MEDO – SÃO BERNARDO DO CAMPO

    UM GRITO POR DIGNIDADE: CONHEÇA A OCUPAÇÃO POVO SEM MEDO – SÃO BERNARDO DO CAMPO

    Por Taís Di Crisci – Socióloga / GICA TV para os Jornalistas Livres

    O Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) unido a centenas de famílias ocupam um grande terreno em São Bernardo do Campo em busca do compromisso do governo com a construção de moradias populares. As pessoas que constroem o acampamento não possuem condições financeiras para comprar uma moradia própria e estão demonstrando com muita força de vontade e organização que a ocupação é uma forma de luta capaz de pressionar o poder público e ainda desenvolver a coletividade e o senso de democracia.

    Durante as últimas semanas a GICA TV tem tido a honra de participar como apoiadora da Ocupação Povo Sem Medo em São Bernardo do Campo, uma luta organizada pelo MTST para que no terreno com 60 mil metros quadrados, que está vazio há cerca de 40 anos, sejam construídos prédios pelo programa ‘Minha Casa Minha Vida’ faixa 1, dando oportunidade de moradia própria para as tantas famílias carentes que fazem parte do acampamento.

    A ocupação, que é a segunda maior do MTST e já conta com mais de 8 mil participantes, vem sofrendo ataques da mídia e da população que relacionam o movimento com apropriação indevida, “baderna” e reforçam o discurso de marginalização das pessoas envolvidas. Com os moradores vizinhos a tensão tem sido grande, os acampantes foram acusados sem provas de uso de drogas, roubo, sofrem agressões verbais ao serem chamados de “vermes” e “gafanhotos” e a situação se agravou quando tiros foram disparados contra a ocupação no dia 17 de setembro.

    Quem convive dentro do acampamento ou o visita é capaz de perceber sem dificuldades que essas acusações são indevidas e injustas, a realidade dos ocupantes é bem diferente do estereótipo divulgado. O acampamento conta com uma organização bem articulada, um estatuto com regras de convivência que garante a segurança dos acampados e muito trabalho em equipe. O clima é de colaboração mútua, respeito ao próximo e acima de tudo esperança de uma vida melhor. Mas quem são essas pessoas, como funcionam essas regras e por que estão ali? São essas perguntas que a GICA TV se propôs a responder, respeitando a veracidade dos depoimentos que recebemos e agradecendo a receptividade.

    A ocupação começou no dia 2 de setembro, quando cerca de 500 pessoas do MTST, após saberem da situação ociosa do terreno, montaram os primeiros barracos. Desde então centenas de famílias procuraram o acampamento para se juntar a ele e tentar a oportunidade de uma moradia própria. Essas pessoas estavam alocadas anteriormente em São Bernardo do Campo e cidades vizinhas como Diadema, dentre elas muitas pessoas que migraram da região Nordeste para o estado de São Paulo.

    Talvez um dos questionamentos mais pertinentes seja se todas essas pessoas eram moradores de rua, e a resposta é não, nem todos, mas existe sim uma parcela de acampados que não tem outro lugar para morar. Outros tem, dentre os relatos que escutamos estão pessoas que moram com familiares, amigos, que tem casa alugada mas estão desempregadas ou não ganham o suficiente para pagar o aluguel e despesas básicas como alimentação. Uma parcela significativa também é a de mães solo, mulheres que carregam sozinhas a responsabilidade de sustentar os filhos e outros familiares.

    Até a lotação do terreno qualquer pessoa pode chegar ao acampamento e pedir um espaço, não existe distinção nem preferências, quando a liberação dos prédios for conquistada ficará a cargo da Caixa Econômica Federal realizar verificações de renda e documentação. No acampamento são designados 2 metros quadrados por pessoa para a construção do barraco, logo famílias têm espaço maior e cada um é responsável pelos materiais e pela montagem, porém tudo acaba acontecendo com solidariedade entre os ocupantes. É importante ressaltar que como o acampamento é provisório e luta pela construção de prédios naquele terreno não são permitidas construções permanentes.

    Os acampados são divididos em grupos para possibilitar a organização inclusive territorial, cada grupo possui banheiro e cozinha que utilizam coletivamente. Existe também o barracão onde fica a organização e um palco onde acontecem as assembleias gerais. As construções dos espaços de convivência, a alimentação e todas as tarefas coletivas do acampamento são realizadas por multirões, cada participante se coloca voluntariamente na tarefa que mais se sente à vontade. A alimentação vem em sua maioria de doações de apoiadores e dos próprios acampados quando tem condições. Uma horta coletiva já foi plantada para ajudar com alimentos frescos.
    Para a segurança dos ocupantes e que tudo ocorra em harmonia, existem regras de convivência, um estatuto que define horário de silêncio, a proibição do consumo de álcool e drogas dentro do acampamento e outras colocações que garantem o bem estar de todos os envolvidos. O desrespeito ao estatuto gera dois caminhos dependendo da gravidade da situação, a maioria dos casos é tratada com empatia e acolhimento mas dureza na vigilância do problema, porém se o caso for grave ou de reincidência a pessoa perde a oportunidade de fazer parte do acampamento.

    As assembleias são os principais meios de organização dos acampantes e acontecem de forma geral, com todos os participantes, em datas mais espaçadas e diariamente nos grupos. Nelas são tomadas as decisões referentes ao futuro do movimento, ações, estrutura e todos os aspectos pertinentes a ocupação. A presença nas assembleias é obrigatória, os participantes assinam listas diárias de presença para comprovar a atividade dentro do movimento e que estão cientes das decisões tomadas. Cada grupo também possui um grupo de WhatsApp com a maioria dos participantes para garantir a comunicação. A troca de informações entre grupos fica a cargo dos coordenadores, acampados representantes de cada grupo cuja a tarefa é a organização, ser coordenador não imprime poder ao acampado, o movimento é horizontal.

    Na ocupação também acontecem atividades culturais e educativas, um espaço está sendo construído para atender às crianças e proporcionar brincadeiras e aulas públicas. Profissionais de diversas áreas se envolvem no movimento e doam seu tempo de trabalho para estar lá trocando conhecimentos, dentre os ocupantes e apoiadores. O mesmo acontece em relação aos cuidados com a saúde, acampados que possuem formação na área prestam os primeiros socorros quando necessário, uma agente de saúde apoiadora orienta e acompanha os doentes e a coordenação possui um telefone disponível para chamar uma ambulância em caso de emergência.

    A situação de vida no acampamento é precária principalmente pela falta de saneamento e estrutura, porém o que percebemos é que a precariedade não é diferente da rotina dessas pessoas. Os acampados que estão ali contam, a quem estiver disposto a escutar, suas histórias que demonstram o quanto a casa própria é fundamental para que as possibilidades de qualidade de vida comecem a surgir. O principal foco da maioria dos acampados é dar aos filhos a chance de uma realidade diferente e com menos dificuldades. As pessoas que estão ali necessitam dessa moradia para continuar sobrevivendo.

    A reivindicação dos ocupantes é por moradia popular, mas como eles repetem com orgulho, ninguém quer nada de graça. Os apartamentos, quando estiverem prontos, serão comprados pelos ocupantes, porém com valores acessíveis e parcelas que não comprometam o orçamento familiar. O programa ‘Minha Casa Minha Vida’ funciona por faixas de renda familiar, a faixa 1, que é a reivindicação do movimento, atende famílias que têm renda bruta de até R$1800. O terreno reivindicado pelo MTST pertence a construtora MZM, que teve o pedido de reintegração de posse negado. O espaço está em situação ilegal pois não está cumprindo sua função social determinada por lei, o que o torna um bom local para a construção por programas sociais de moradia.

    Caso o terreno não seja adquirido pela prefeitura para a construção dos prédios populares, o MTST se propõe a negociar com os governantes a inclusão dos acampados em programas sociais que diminuam as dificuldades pelas quais eles passam. Em caso de decisão positiva, onde a prefeitura se responsabilize pela construção dos prédios, os acampados se realocam temporariamente em seus locais de origem até a conclusão das obras. Quanto aos acampados desempregados o MTST negocia com a construtora a contratação dessas pessoas durante o período de obras.

    Mesmo com todas as dificuldades e incertezas, a esperança é o sentimento mais forte presente no acampamento. Pessoas de fé, trabalhadores, mães e pais de famílias e crianças são um resumo dos acampantes que fazem da ocupação um grito de socorro por dignidade. Agradecemos a cada uma dessas pessoas que nos receberam de coração aberto e compartilharam conosco suas histórias, agradecimentos especiais a organização pelo convite, e todo o movimento MTST/Povo Sem Medo pela parceria.

     

  • E SE A UMBANDA FOSSE A ÚNICA RELIGIÃO ENSINADA NAS ESCOLAS?

    E SE A UMBANDA FOSSE A ÚNICA RELIGIÃO ENSINADA NAS ESCOLAS?

    O Estado laico, mas nem tanto; o preâmbulo da Constituição diz “sob a proteção de Deus”. Permite ensino religioso nas escolas, mas nem tanto; existe a previsão de ensino religiosa facultativo em escolas de ensino fundamental (Art. 210, §1º da Constituição Federal). O Supremo Tribunal Federal foi chamado a dar uma [e não “a”] interpretação constitucional à questão do ensino religioso nas escolas. Nestes tempos em que o Brasil se consolidou como o “paraíso” dos conservadores e o “inferno” das minorias, escolheu a pior interpretação possível.

    Sem querer absolver os ministros de seus pecados, sejamos francos: a Constituição Federal de 1988 é a melhor que já tivemos, mas não a melhor que poderíamos ter. Tem diversos problemas, mas ainda temos, ingenuamente ou não, alguma fé na Carta Magna. A questão religiosa está latente na Constituição, direta ou indiretamente. Diretamente quando é promulgada “sob a proteção de Deus”; indiretamente quando textualmente reconhece união estável segundo padrões de heteronormatividade.

    Não devemos negar influência religiosa no âmbito legal e estatal, mas enfrentá-la criticamente, e o STF tem possibilidade de fazer isto. Tomando o exemplo do reconhecimento da união estável entre homem e mulher (Art. 226, §3º). Não é porque o texto diz “homem e mulher” que não se deva reconhecer união estável e casamento de casais homoafetivos, já que há própria Constituição positiva o direito à igualdade entre todos (e não só heterossexuais). É necessário garantir a existência digna a todos, numa perspectiva de ampliar direitos. Não estamos mais em 1988, mas isto não significa que não vale mais nada. Calma lá, irmão, nem tão ao Céu e nem tão à Terra!
    Não é descabido lembrar o que reza a Constituição:

    Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
    VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
    VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
    VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
    Mais alguns artigos adiante, diz:
    Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
    I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

    Pelo amor de Deus, a intepretação do STF foi farisaica. Primeiro por não levar em conta que, ao permitir que apenas uma religião seja ensinada numa escola, discrimina negativamente todas outras crianças que, por convicção ou imposição, têm outra religião. Se ensinar catolicismo ou protestantismo não viola a liberdade de consciência da criança umbandista, então o que, em nome de Jesus, o que é violação de consciência e crença, nos termos do inciso VI do Art. 5º? O Art. 205, que trata da educação, diz que esta deve visar o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, ressaltando sua integração com o espaço público (cidadania) e social (trabalho), mas não tão estritamente privados como é o caso da religião. O Artigo, 206, inciso III, coloca como princípio o “pluralismo de ideias”. A criança tem direito a esta pluralidade, e esta não pode ser privada por motivos religiosos. Pois ensinar que “macumba” é do Diabo é racismo; que ser gay é pecado, é homofobia e que mulher deve ser submissa ao homem, é machismo. Machismo, racismo e homofobia não são compatíveis com o modelo constitucional de educação.

    No mais, voltando ao art. 19, o professor ou a professora podem ser representantes religiosos. Não sejamos ingênuos, quanto a isto. É normal e saudável, mas na vida privada de cada um deles. Se um professor ensina uma doutrina com base na interpretação dada pela instituição religiosa a qual é ligado, age como representante de uma religião.

    O estado não pode se tornar o anexo de uma Igreja (em que pese já ter inúmeras características eclesiásticas). Mas se nenhum destes argumentos bastar para que um moralista se “converta” em defensor das liberdades, deixo a pergunta:
    E se as escolas públicas só pudessem ensinar o Candomblé para as crianças, como os ministros do STF e milhões de pais cristão reagiriam?

    Hermínio Porto para os Jornalistas Livres

  • Pajés, médicos, corpos e espíritos

    Pajés, médicos, corpos e espíritos

    O médico Douglas Rodrigues em trabalho de campo no Xingu, 1991.

    Nasci em São Paulo, na Vila Maria, que em 1955 compunha a periferia da zona norte da capital, neto de imigrantes
    portugueses e espanhóis. Meus avós e tias maternas ajudaram Dona Mercedes, minha mãe, a me criar, pois muito cedo
    perdi meu pai para o alcoolismo e para a intolerância.

    Resolvi ser médico aos 18 anos, possivelmente motivado pelas idas constantes ao Hospital das Clínicas da Faculdade de
    Medicina da USP (HC), onde minha mãe era acompanhada desde a juventude, quando teve febre reumática, na época
    que Flemming descobria a penicilina ao pesquisar aspectos do vírus da gripe. A doença deixou-lhe sequelas graves nas
    válvulas do coração, que a obrigavam a comparecer quinzenalmente no ambulatório de cardiologia do HC.

    Eu a perdi aos 19 anos, em meu primeiro ano como aluno da Escola Paulista de Medicina. Quase desisti do curso,
    porém alguma coisa me fez seguir em frente.

    Conheci o Projeto Xingu lá pelo quarto ano de medicina, por volta de 1977. Fiquei instigado, mas minhas energias,
    naquela época, estavam voltadas para minha sobrevivência, já que tinha que trabalhar para me sustentar, ajudado pelos
    meus avós. O tempo que restava era dedicado ao movimento estudantil, que lutava pelo fim do regime militar.

    Em 1981 encontrava-me no primeiro ao de residência, na Clínica Médica, quando soube que o Departamento de
    Medicina Preventiva, que viria a ser a área de concentração de minha residência, procurava um médico para passar
    cerca de 10 dias no Parque do Xingu, colaborando com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) no combate a uma
    epidemia de coqueluche que, somada à malária, estava ceifando muitas vidas, especialmente de crianças e gestantes
    indígenas.

    Era junho de 1981 quando desci de um avião Bandeirantes da FUNAI numa pista de terra ao lado da rodovia, também
    de terra, BR – 80, também conhecida como Transgarimpeira, por ligar diferentes regiões de garimpos de ouro, entre o
    Mato Grosso e o Pará.

    Daquela pista, após duas horas subindo o rio Xingu, chegamos à aldeia Kretire, da etnia Metyktire, do grupo
    Mebengokre, também conhecido como Kaiapó. Havia poucas pessoas na aldeia. A maioria estava no mato, acampados
    entre as árvores, do outro lado do rio, fugindo da doença-feitiço, que estava atacando a todos na aldeia. Não entendia a
    lógica daquela situação, pois na aldeia havia casas que, embora feitas de troncos sob o chão batido e cobertas com
    folhas de palmeiras e bananeira brava, eram, no meu olhar de jovem médico, mais adequadas para os doentes do que
    sua permanência ao relento, no meio da floresta. Sem saber a língua indígena e com apenas um ou dois rapazes que
    dominavam parcamente o português como “tradutores”, não tive outra opção senão ir encontrá-los na mata.

    Era um grupo de cerca de 60 pessoas, a maioria velhos, mulheres e crianças, com vários doentes, com muita febre e
    tosse. Uma cena gravada até hoje com nitidez em minhas lembranças.

    Após dois ou três dias a situação foi ficando cada vez mais complicada no mato. Finalmente, talvez por ter pouca
    comida no acampamento, o grupo decidiu voltar para a aldeia, o que para mim foi um alívio.

    Acabei ficando pelo Xingu por mais tempo que o previsto. Voltei para São Paulo, para o grande hospital da Escola
    Paulista de Medicina, para continuar minha residência médica, mas alguma coisa ali me atraiu muito, mexeu muito
    comigo. Eu iria descobrir isso, aos poucos.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Meus dois últimos anos de residência, já no Departamento de Medicina Preventiva, facilitaram meu acesso ao Xingu e
    eu comecei a viajar freqüentemente a campo, para períodos maiores de permanência, atendendo as pessoas doentes e,
    cada vez mais, entrando nesse mundo da saúde e da doença, dos feitiços e das regras de comportamento, dos médicos
    tradicionais como os pajés, rezadores e raizeiros.

    Aos poucos fui conhecendo cada um dos 16 povos que habitam o Parque do Xingu. Percebendo as diferenças entre as
    culturas xinguanas, mas também as semelhanças, especialmente na relação com a natureza e na profunda
    espiritualidade que permeia sua visão de mundo e conseqüentemente suas praticas tradicionais de cura e de manutenção
    da saúde.

    Um misto de respeito, curiosidade, humildade e solidariedade, fez com que uma aproximação com os médicos da terra,
    fosse acontecendo de forma espontânea, natural, recheada de vivências intensas de trabalhos compartilhados. O tempo
    de convívio se aliou à vontade de conhecer aquele mundo novo e maravilhoso, tão diferente do que eu conhecera até
    então.

    Os xinguanos possuem, em suas diferentes culturas, um mundo em que atuam forças invisíveis e poderosas, que interferem diretamente na vida das pessoas e dos demais seres viventes. A necessidade de entender e explicar a vida é
    suprida pelos mitos e histórias de seus criadores: Mavutsini para os Kamaiurá, Aimeré para os Ikpeng, Tuiararé para os
    Kawaiweté e por aí vai. Todos são criadores, como Deus para a cultura judaico-cristã.

     

    A grande diferença é que tudo que é vivo, que se movimenta, as pessoas, os bichos, as árvores, a água, os ventos, os astros, tudo no Universo está ligado e, se tem vida, também tem morte e espírito (mamaé em Tupi). As diferenças físicas pouco tinham significado no passado. Nos mitos e histórias antigas, é comum o casamento entre humanos e animais como a abelha, a onça, o jacaré ou o gavião.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Os bichos, assim como as árvores e plantas, têm espíritos e são donos de conhecimentos transcendentais. Todos eles
    são, assim, potenciais aliados dos humanos, pois além de pertencerem ao mesmo universo e terem origem e substâncias
    comuns, podem ter o dom de curar e de conceder outros benefícios como facilitar uma pescaria, cuidar do
    desenvolvimento de uma roça, achar e trazer pessoas perdidas na mata.

    Demorei a entender as narrativas sobre as “roupas” ou “peles” de aves e animais que conferem poderes a seus donos e
    auxiliam no processo de tratamento e cura. Quem tem a roupa da águia, por exemplo, consegue deslocar-se,
    normalmente durante a noite, para lugares distantes, em busca de conhecimento, explicações ou curas.

    Pajé da etnia Wauja fuma cigarro tradicional.

    Pode-se dizer que os pajés, no Xingu, dependem da existência dos bichos, plantas e de seus espíritos. São por eles
    ajudados em seus trabalhos de cura. Transitam e ligam dimensões cosmológicas exclusivas do universo indígena do
    Xingu, conectando-as. Para contar com essa ajuda, entretanto, muitas regras e restrições devem ser observadas pelos
    pajés, sob o risco de seu desrespeito trazer doença e morte do curador ou do aprendiz de pajé.

    Conheci duas maneiras diferentes pelas quais uma pessoa comum pode se transformar num pajé. Uma se dá por obra
    dos próprios espíritos, que “escolhem" alguém que começa a sonhar freqüentemente com espíritos e, não raro, adoece.
    Quem identifica as manifestações de uma iniciação para a transformação em pajé, normalmente, é um outro pajé, mais
    experiente. A partir desse diagnóstico, o iniciado passa por longos períodos de tratamento que ao mesmo tempo é um
    treinamento, pois ajuda o futuro pajé a conhecer o mundo dos espíritos e com ele estabelecer relações, feita com o
    auxílio de determinado espírito, que passa a ser seu interlocutor principal com o mundo dos mamaé e com a natureza.

    Sua formação é longa e penosa, podendo durar muitos anos. Existem períodos freqüentes de reclusão e de restrições
    alimentares, sexuais e proibição de realizar determinados trabalhos. Em geral os pajés que foram escolhidos pelos
    espíritos têm um poder diferenciado, sendo mais respeitado.

    Também difícil é a formação do pajé por outro pajé, sem a intervenção direta dos espíritos. Nesses casos os espíritos
    agem por intermédio do pajé. Essa forma é também repleta de regras, reclusões e restrições e, normalmente, custa muito
    caro para o aprendiz, que deve pagar seus mestres com colares de caramujos e outros bens de valor, além de os
    ajudarem em seus trabalhos, na figura de aprendizes. Há uma hierarquia, que privilegia os pajés verdadeiros que são os
    primeiros, escolhidos diretamente pelos espíritos.

    Outra figura que povoa o mundo dos indígenas no Xingu é o feiticeiro, responsável pelo sofrimento e morte. O
    feiticeiro, assim como o pajé, é uma pessoa comum no cotidiano da aldeia, tem sua família, sua roça, tem que caçar,
    pescar e participar dos rituais. Os feiticeiros escondem suas verdadeiras habilidades e, quando descobertos, correm
    grande risco de vida. É freqüente o relato de mortes violentas de feiticeiros descobertos em seus atos nefastos.
    Feiticeiros podem ter habilidades e poderes semelhantes e por vezes maiores dos que os pajés. Nesses casos, é quase
    impossível reverter um feitiço e a morte é inevitável, sendo a maior tarefa do pajé a de descobrir os feiticeiros. Em geral
    a indicação de um feiticeiro está relacionada a uma disputa de poderes dentro ou fora da aldeia.

    As doenças em sua maioria, têm origem espiritual, na inobservância de regras sociais e de comportamento, quebras de
    tabus e em feitiços sendo esta última a causa mais temida. Assim a demanda pelo trabalho dos pajés é muito grande,
    cotidiana.

    Como médico, com formação em saúde pública, minha aproximação com os pajés foi quase instintiva. Havia relatos de
    que os pajés não gostavam de compartilhar seus “segredos” e conhecimentos. Isso, felizmente, não ocorreu comigo. Em
    muitas situações, quando era chamado por familiares para atender um parente, encontrava com os pajés em seu trabalho
    de cura ao redor da rede da pessoa doente. Sem saber como agir, perguntava sempre quando seria apropriado que eu me
    aproximasse do paciente para examiná-lo. Desta forma, orientado pelos familiares, aguardava a permissão dos pajés,
    que via de regra era dada em seguida. Após meu exame, com uma ou mais hipóteses diagnósticas em mente, na lógica
    de minha formação biomédica, era necessário estabelecer um tratamento. Muitas vezes, as minhas propostas de
    tratamento eram conflitantes com as orientações dos pajés. Situações que, em meu ponto de vista, seria necessária a
    remoção do doente para tratamento hospitalar na cidade, ou ainda a administração de medicamentos por via
    endovenosa, como soros e antibióticos, eram freqüentemente questionadas. Entretanto, a reconhecida eficácia dos
    remédios dos “brancos” e a disposição dos indígenas para o diálogo propiciavam o entendimento.

    Criança Kawaiwete é vacinada durante campanha de imunização, Pólo Diauarum, baixo Xingu.

    Certa vez, fui chamado para atender um jovem rapaz que se encontrava em reclusão em um canto da casa de uma aldeia do Alto Xingu. A reclusão faz parte do rito de passagem de criança para jovem guerreiro e, especialmente no caso dos rapazes, pode estender-se por longos períodos em que o rapaz fica recluso dentro de sua própria casa, num local para ele reservado. Nesses períodos sua alimentação é restrita a determinados tipos de alimentos e ele deve tomar infusões e vomitórios freqüentemente, assim como banhos com ervas após a escarificação do corpo com uma arranhadeira feita de
    dentes de peixe cachorro. Neste caso, o rapaz apresentava sinais de intoxicação representados por perda da força muscular e da sensibilidade nos membros inferiores. Essa perda de força, eu sabia por estudos anteriores de pesquisadores do Projeto Xingu, pode progredir e, ao atingir a musculatura do tórax e o diafragma, pode provocar a
    morte por falência respiratória. Toda a aldeia estava preocupada com o que estava acontecendo com o rapaz. Seus familiares, muito apreensivos, observavam o trabalho dos pajés, que haviam identificado tratar-se de feitiço, o que
    tornava o quadro ainda mais dramático.

    Por experiência com casos semelhantes, o melhor a fazer seria remover o rapaz para ambiente hospitalar. Do ponto de vista de meus conhecimentos médicos, o acesso a equipamentos para suporte respiratório e manutenção da vida,
    associado à suspensão do uso das substâncias intoxicantes contidas nas beberagens e banhos, era fundamental para salvar a vida do rapaz.

    Os familiares, entretanto, orientados pelos pajés, negavam-se a permitir a remoção do doente para a cidade. Angustiado, porém respeitando a decisão dos parentes, resolvi permanecer na casa, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos,
    buscando entender melhor as razões que me colocavam naquela situação. Foi possível assim, entender que na recusa dos pajés para a remoção do paciente não estava em jogo acreditar ou não nas minhas habilidades médicas ou nos
    hospitais dos brancos e sim na etiologia da doença-feitiço que estávamos enfrentando. Quem, no hospital entende desse tipo de doença, doutor?- perguntaram-me pajés e familiares. Se ele sair daqui do Xingu, onde os pajés podem cuidar
    dele, para ir até o hospital na cidade ele com certeza morrerá, porque lá não tem pajé. Se ele sair daqui da casa dele vai ficar mais fácil dos espíritos pegarem ele.

    Claro! Simples, claro e coerente. No segundo dia de acompanhamento e conversas, foi possível remover o doente, devidamente acompanhado de um pajé, para sua proteção na cidade. Mais difícil foi convencer a FUNAI, responsável pela remoção e pela internação num hospital de Brasília, da necessidade do acompanhamento pelo pajé.

    De outra feita fui chamado para atender uma menina de uns 9 anos de idade. Examinando a criança, conclui tratar-se de uma obstrução intestinal, possivelmente ocasionada por um “bolo de lombrigas”, ocorrência freqüente, dada a alta infestação das crianças por parasitas intestinais nas aldeias do Xingu. Iniciei o tratamento padrão com vermífugos e óleo mineral para ajudar a desfazer o bolo de lombrigas e de imediato o pajé retomou seu trabalho. Após um transe causado pelo uso do tabaco e pelo chamamento aos espíritos, o pajé e seus ajudantes saíram correndo em direção a mata. Passados cerca de 30 minutos, a menina deu um gemido mais forte e evacuou uma grande quantidade de sementes de um fruto chamado ingá, muito apreciado pelas crianças do Xingu. De imediato seu abdome voltou à normalidade, melhoraram os vômitos e as cólicas abdominais. Quase que ao mesmo tempo o pajé e seus ajudantes retornaram da
    mata, trazendo uma pequena trouxinha amarrada com embira, uma espécie de corda vegetal, que havia sido desenterrada pelo pajé justamente no pé de um grande ingazeiro. A explicação veio em seguida. Tratava-se de um sortilégio feito pelo espírito do veado, que gosta muito de comer ingá, com o intuito de castigar a ousadia da menina,
    que entrara na mata para apanhar seus frutos prediletos.

    A descoberta e inativação do sortilégio pelo pajé, ajudada pelo óleo mineral por mim administrado, surtiram efeito. A família se tranquilizou, a menina adormeceu e fui, contente, embora da aldeia. Foram utilizados, de forma sinérgica, não
    competitiva, o saber médico científico e o conhecimento tradicional de cura.

    Nas culturas indígenas a doença e a cura partem de uma visão muito mais ampla do que a visão biomédica científica. A construção do corpo para os indígenas, para além do biológico, dá grande valor ao social e ao espiritual, representado pelas dietas, rituais e observância de regras de comportamento. Nessa forma particular de ver corpos e espíritos, é comum que as causas das doenças se localizem fora do ser biológico, fora do corpo do indivíduo. Essa é uma diferença marcante entre nossa medicina e a medicina indígena. Ainda que o campo da saúde coletiva venha valorizando cada vez mais o componente social na determinação das doenças, a biomedicina está, ainda, longe da compreensão holística que tem os indígenas sobre a vida, a saúde e a doença.

    O conhecimento e a prática médica estão cada vez mais fragmentados. A tecnologização e a superespecialização médica transforma o “paciente” e seu corpo em objetos. Falta espaço para a família e para o doente no processo de seu diagnóstico e tratamento. Os que deveriam ser sujeitos são transformados em recebedores de procedimentos e protocolos, seu corpo dividido em órgãos e sistemas que parecem ser independentes. Os especialistas cuidam de determinados “pedaços” dos corpos, como se as pessoas, suas relações sociais e afetivas, nada tivessem a ver com os processos de adoecimento.

    São inegáveis os avanços da medicina nos últimos 50 anos. O problema reside na substituição da relação entre médicos e pacientes pela tecnologia, pelos exames e pelas descobertas farmacêuticas, desumanizando a prática médica.

    Um pajé, ao trabalhar, fica ao lado do paciente e de seus familiares durante todo o processo de diagnóstico e cura, o que pode durar dias e dias. Seu cuidado é integral. Orientações dietéticas, de comportamento, para o paciente e familiares, fazem parte do tratamento, que pode ainda fazer uso concomitante de plantas medicinais, além do importante auxílio dos espíritos.

    A doença, nas culturas indígenas, não é apenas um conjunto de sintomas corporais mas também um processo subjetivo, no qual as disfunções corporais são mediadas pela cultura. Uma das implicações dessa forma de entender o processo saúde-doença entre os indígenas é a diferença como determinadas culturas e extratos sociais, mesmo nas sociedades ocidentais, reagem ao sintoma da dor. O parto, em algumas culturas, é envolvido pelo medo da dor e da morte. Em outras, de diferentes lugares e classes sociais, o parto é visto com tranquilidade e a dor é suportada sem maiores dramas. Faz parte da vida!

    Mais recentemente setores da biomedicina começam a questionar a divisão cartesiana entre corpo e espírito, tentando entender melhor os processos fisiológicos e psíquicos que envolvem saúde e doença. Nessa abordagem, a medicina científica passa a valorizar o contexto do sujeito em sofrimento para melhor entender os processos biológicos.

    Parteira Ayré Ikpeng. Os velhos trazem e guardam conhecimentos milenares de cuidado e saúde tradicionais.

    Reconhecida a importância dos contextos sócio-culturais e econômicos na determinação da doença e no processo de cura, é importante além da competência clínica e científica, os profissionais desenvolvam o que Kleinman chamou de competência cultural. Quando a escuta permite, os pacientes nos contam, explicam em suas narrativas, o significado da doença para eles e para seus familiares e amigos. A prática médica hegemônica normalmente filtra essas informações. O médico ouve apenas o que, em sua firmação científica, parece ser importante para o diagnóstico e tratamento da doença. Uma prática médica humanizada pressupõe a escuta atenciosa e a disposição de aprender com a narrativa dos pacientes.

    Para desenvolver essa escuta e examinar o sujeito que adoece podemos e devemos aprender com os pajés. Somente com a necessária mudança da prática, do modelo de atendimento médico, atingiremos o objetivo de nosso Sistema Único de Saúde, de que a saúde é direito de todos e deve ser provida, de forma adequada e humanizada, pelo Estado Brasileiro.

     

    • Fotografias de Helio Carlos Mello / Acervo Projeto Xingu – UNIFESP

    Para ler mais:

    Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978
    Kleinman AM. Culture, Illness anda Care: Clinical lessons for Anthropologic ans Cross-Cultural Research: Annals fo
    Internal Medicina 88: 2, 1978.
    Baruzzi R, Junqueira C. Parque Indígena do Xingu. Terra Virgem, 2005.

  • ATIRAR PEDRAS NOS PÁSSAROS

    ATIRAR PEDRAS NOS PÁSSAROS

    Na ordem natural das coisas o certo é ver um monte de planta vivendo juntas e a bicharada satisfeita andando pelo mato. A cada ano que passa vejo mais tudo sendo desterrado, animais desorientados correndo sozinhos e, onde se via floresta extensa, alguns anos atrás agora é verde campo vivo de soja com um horizonte sem fim e sem árvores, livre para os ventos e a insolação.

    Ah, os buritis que Burle Marx dizia serem a mais bela planta de nossos nichos, agora andam meio isolado buscado a água que sobra e empoça. O cerrado some e a mata torta fica plana, enfileirada, pequenos quadrados.

     

    A lua é um deserto, vejo sempre de longe em beira de lagoa ela brilhando cheia, linda sem vida em silêncio. Ouço que as plantas andam meio aflitas, há comentários entre elas, pois plantas falam quando o silêncio envolve durante a noite, dizem: parentes andam vagando sozinhas no campo em solidão profunda e os bichos de longe, todos os dias vão chegando para dentro da terra indígena, se refugiando, espalhando as últimas notícias. O mato é fogo, a fofoca corre solta, intactas no Mato Grosso restam as Terras Indígenas.

    Mas o fato é que o bicho corre solto no Mato Grosso, que tanto derrubou suas florestas nas últimas décadas, produzindo riqueza com árduo trabalho de famílias inteiras, é verdade, mas um caminho de destruição do ambiente e desenvolvimento do agronegócio. O Estado era rio e mato, vai se tornando vento e pó, terra vermelha e plantações verdes na chuva e palha dourada na seca.

    As famosas águas do rio Culuene e sagradas histórias para as etnias alto xinguanas vão se assoreando mais a cada ano. Com a construção da PCH de Paranatigna III durante o governo de Blairo, os peixes vão resmungando dia a dia

    Quando criança a palavra maggi me remetia às galinhas, cubinhos que mordia pelos cantos antes de minha mãe os colocarem na panela. Depois fui encontrando e entendendo que a galinha quadrada, bicho de cérebro pequeno e grande apetite, era caldo. Outro  Maggi era homem de grande sucesso nos negócios e na política. Blairo nasceu no extremo sul do Brasil, agrônomo estudado no Paraná e homem nomeado entre as dez famílias mais ricas do país e entre as maiores produtoras de soja do mundo, nos negócios e na política.

    Frango D`agua, vai se virando como pode para não virar a galinha nos caldos.

    Não sou economista ou fazendeiro, sou fotógrafo, e basta sobrevoar o Estado  de Mato Grosso e entender porque o agronegócio paga as contas dos governos há tempos, gerando grandes receitas na ocupação do território que era florestas e fauna diversa, pois tudo é alimento ou pode vir a ser, sabem bem os Maggi. Governador, senador, ministro e homem de confiança da esquerda e da direita. Só a história apura e depura, tal caldo em panela quente, o lugar de cada um, mas homem tão rico metido em notícias de benefícios e desvios de verbas públicas. Nunca entendi gente rica enrolada no desvio de vida pública, vida de fotógrafo se resolve nos click entre um trabalho e outro, indo assim índio arrancando mandioca. Vá entender a insanidade do poder. Nossa pobre mão segue limpa.

    Em poesia logro e louro é rima imprópria, choro que não dá samba. Tanta árvore morta, tanto bicho perdido, tanto dinheiro pra nada. Triste vai tornando-se fotografar Mato Grosso, tão bonito um dia, vai sugerindo em toda curva o grito raso, um desgosto, pele lunar. 

    Maggi nas manchetes ocasionais ao longo da década, leia mais:

    *O senador Blairo Maggi é o braço político de um império econômico de gigantescas proporções: o grupo André Maggi, sediado em Cuiabá, Mato Grosso, holding que controla quatro divisões de empresas ligadas ao chamado agronegócio. Os Maggi – André, patriarca e fundador do império, morreu em 2001; hoje quem tem a última palavra é a matriarca Lucia Borges Maggi, de 81 anos, coadjuvada pelos cinco filhos, sendo Blairo o único homem – fazem de praticamente tudo, dominando o setor: plantio, processamento e comércio de grãos, produção de sementes, reflorestamento, pecuária, venda de fertilizantes, geração de energia elétrica, administração portuária, transporte fluvial, exportação e importação. 2011 foi um grande ano para as empresas, que, juntas, faturaram US$ 3,78 bilhões, 60,8% a mais na comparação com a receita dos três anos anteriores. O faturamento no ano passado ficou em torno desses altos patamares e, para este, um ano mais difícil, espera-se o mesmohttp://ultimosegundo.ig.com.br/os-60-mais-poderosos/blairo-maggi/520bb7a73467948e7c000003.html

     

    *O Grupo André Maggi, uma empresa familiar sem nenhum plano de abrir o seu capital, é um dos maiores produtores individuais de soja do mundo. São mais de 400 mil toneladas colhidas por ano e cultivadas em 130 mil hectares na primeira safra. Juntando as culturas da segunda safra – milho, algodão e sementes – plantadas na mesma área da soja, a média de produção dos últimos anos tem sido de cerca de 700 mil toneladas. “A soja não é um movimento passageiro, e nunca será”, diz Bongiolo.

    Para entender o apetite do grupo pela oleaginosa, basta dar uma espiada nos planos da trading Amaggi, o braço importador e exportador de produtos agrícolas. No ano passado, a Amaggi comercializou 4,3 milhões de toneladas de soja entre produção própria e de terceiros, e 546 mil toneladas de milho entre grãos inteiros, óleos e farelos. “Nos próximos anos, vamos para sete milhões de toneladas de grãos, com a meta de 12 milhões de toneladas no médio prazo”, diz Loto. “Mas podemos crescer além desse volume, porque o País não sairá da rota de crescimento da produção de alimentos. E se tem espaço para multinacionais como Cargill e Bunge, também tem espaço para a Maggi.”

    Somente em Mato Grosso, o grupo administra 252,3 mil hectares de terras para agricultura, pecuária e reflorestamento. São 200,4 mil hectares em 19 fazendas próprias e 51,9 mil hectares arrendados do Grupo Itamarati, do empresário Olacyr de Moraes, em Campo Novo do Parecis. Os números são tão superlativos que duas de suas atividades, a pecuária e a extração de borracha natural – cujo porte é grande para os padrões nacionais –, são consideradas menores pelo grupo. Na pecuária são quatro mil bovinos criados. Na extração de borracha, eles já são os maiores do Brasil. São 11 mil hectares de seringueiras cultivadas em fazendas de Mato Grosso, compradas no ano passado do grupo francês Michelin e hoje arrendadas.  http://www.dinheirorural.com.br/secao/agronegocios/o-imperio-da-familia-maggi