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  • Lei Emergencial da Cultura: um país sem cultura é um país sem história

    Lei Emergencial da Cultura: um país sem cultura é um país sem história

    Valmir Assunção¹

    Marcos Rezende²

    O setor cultural foi o primeiro a suspender suas atividades em virtude da pandemia e será o último a retomá-las. Assim sendo, é preciso garantir a sobrevivência de trabalhadores e espaços que vivem da arte e da cultura. Para além do sentido simbólico que é preservar a cultura na figura de seus agentes, que envolve preservar nossa identidade cultural, nossos modos de ser, fazer e estar no mundo, é necessário agir para garantir o aspecto social e econômico do setor cultural.

    Dados apontam que 5 milhões de pessoas trabalham no setor cultural em nosso país. A cultura como um todo é responsável por cerca de 2,64% do PIB (produto interno bruto) brasileiro, economia que está sendo afetada com a crise mundial que vivemos, gerando perdas de receitas no setor cultural da ordem de R$ 46,5 bilhões, com uma redução de 24% em sua participação no PIB, o bolo da produção econômica nacional.

    O cenário da cultura é ainda mais urgente quando pensamos que as relaçõess trabalhistas são quase totalmente informais e temporárias, com estudos revelando que 44% dos trabalhadores da cultura se encontram na condição de autônomos. Nesse cenário é preciso garantir que as trabalhadoras e trabalhadores da cultura não morram de fome em um contexto de pandemia no qual aglomerações de pessoas têm de ser evitadas, pois o ofício do artista é o público.

    Nações como a França e o Reino Unido tomaram medidas para garantir a continuidade dos fomentos culturais através de ações que promovessem a chegada de recursos financeiros nas mãos dos agentes culturais. Sem o auxílio do Estado, perderemos um setor produtivo inteiro, deixando à míngua e à própria sorte milhares de famílias brasileiras. É dever do poder público garantir a segurança e a vida das pessoas do setor cultural, além de impulsionar a geração de empregos e renda através de subsídios para as instituições culturais. Profissionais da cultura não são menos profissionais.

    A Câmara dos Deputados vem debatendo a forma mais justa e real de salvar o campo da cultura no Brasil. E o Projeto de Lei n.1075/2020 traz soluções fundamentais para garantir isso. Esse PL propõe o valor de R$ 3,6 bilhões destinados a ações emergenciais, para todo o país, descentralizando recursos para Estados, Distrito Federal e Municípios, por meio de renda emergencial aos trabalhadores da cultura; subsídios para manutenção física de espaços artísticos e culturais, empresas, cooperativas, instituições e organizações culturais que tiveram as suas atividades interrompidas pelo isolamento social; assim como prevê a existência de editais, a aquisição de bens e serviços relacionados ao setor cultural, a produção e transmissão de bens culturais através das plataformas digitais e garante a prorrogação de prazos de editais já em andamento, propondo, nesse conjunto de ações, a manutenção das redes que compõem a economia da cultura.

    É importante destacar que o PL prevê que os recursos da Lei de Emergência Cultural virão do superávit do Fundo Nacional de Cultura, avaliado em R$ 2,9 bilhões. Uma parcela bem inferior, R$ 700 milhões, viriam de dotações orçamentárias da União, observados os termos da chamada PEC da Guerra. O PL 1075 também segue os critérios econômicos e sociais do público-alvo utilizados para a Lei do Auxílio Emergencial.

    Se existem recursos destinado a manutenção da Cultura, esse é o momento de usá-los.
    Dessa forma, faço um apelo aos meus colegas deputados, deputadas, senadores e senadoras, para que eles e elas não se anulem de apoiar um projeto de lei que vai salvar a cultura de nosso país: VOTEM A FAVOR DO PL 1075 DE 2020!

    Um país sem cultura é uma país sem história!

    E um país sem conhecimento é uma nação sem futuro!

     

    Valmir Assunção é deputado federal pela Bahia, coordenador da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara dos Deputados e militante do MST (Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadores Rurais Sem-Terra)

    Marcos Rezende é historiador, mestre em gestão e desenvolvimento social pela Faculdade de Administração da UFBA, fundador do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e Ogan de Ewá e OjuObá do Ilê Oxumarê Asè Araká Ogodô.

     

    [youtube https://www.youtube.com/watch?v=8kAfF3n3DnE]

  • Terror Colorido: a intolerância contra LGBTs ontem e hoje

    Terror Colorido: a intolerância contra LGBTs ontem e hoje

    Texto de Ivanilda Figueiredo, professora de direito e pensamento político da UERJ, advogada, coordenadora do GT contra a intolerância da CDH/OAB-RJ, exclusivo para os Jornalistas Livres 

    O terror lilás foi uma política de perseguição a homens gays e mulheres lésbicas, que proibia sua contratação pelo governo dos Estados Unidos e gerou a demissão de mais de 5 mil pessoas suspeitas de serem homossexuais, estabelecida em 1953 e revogada oficialmente apenas em 1995. Naquele período a demissão não gerava apenas a perda do emprego, a vida de muitas dessas pessoas se tornava insuportável após a exposição pública de sua homossexualidade com o afastamento de familiares e amigos. Centenas cometeram suicídio. À época, a Associação de Psiquiatria dos EUA e a Organização Mundial de Saúde (OMS) tratavam a homossexualidade como um transtorno mental. Vejam que naquele período sequer se falava em pessoas trans, pois a marginalização era tão intensa que elas sequer conseguiam tornarem-se servidoras públicas.

    Conhecer essas histórias torna-se um modo de valorizar as conquistas das pessoas LGBTs nos últimos anos tanto lá quanto aqui e vai além, pois ela representa exatamente o que precisamos ter em mente hoje, Dia Mundial de Combate a LGBTfobia: (1) a data representa o dia em que a OMS deixou de considerar a homossexualidade uma doença; (2) argumentos e razões muito similares as lá usadas embasam a perseguição as pessoas LGBT no Brasil pelo atual presidente.

    Fonte: O Jornal, 26 de março de 1952. Disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional

    A ordem emitida pelo presidente Dwight D. Eisenhower previa a demissão das pessoas que praticassem perversidade sexual, mas não só, por meio dela eram investigadas todas as pessoas suspeitas de serem contrárias aos interesses nacionais (como seriam os comunistas). Na lógica da época, por terem medo de serem expostas, as pessoas LGBTs estariam mais suscetíveis a chantagem e a colocarem em risco a segurança do país. Até hoje, não foi identificado pelo FBI nenhum caso em que essa suposição se mostrou verdadeira e obviamente não eram demitidas apenas pessoas com acesso a segredos de estado, mas qualquer sob suspeita de ser homossexual.

    “Não digo que todo homossexual é um subversivo e não digo que todo subversivo é um homossexual (…) mas um homem de baixa moral é uma ameaça no governo, qualquer que seja ele é, e todos estão unidos”, dizia o senador Kenneth Wherry, à época.

     

    “O Brasil não pode ser o país do turismo gay, temos famílias”;” Prefiro que meu filho morra num acidente do q apareça com um bigodudo por aí”; “As minorias têm de se adequar as maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem” são frase ditas nos últimos anos pelo atual presidente. Ele também chegou a ir no jornal televisivo noturno de maior audiência na época de campanha com um livro sobre sexualidade em mãos, dizendo que ele havia sido distribuído pelo Ministério da Educação e ensinaria as crianças a serem homossexuais. Não só o livro nunca havia sido distribuído como também é um livro voltado a adolescentes e voltado quase exclusivamente para instruir sobre sexualidade com base numa visão heterossexual. Recentemente, a OMS também foi acusada por ele de incentivar a homossexualidade de crianças. Toda a ideia de que existe um interesse em converter crianças está por traz do pânico moral contra LGBTs que hoje se organiza contra a falsa ideia de uma tal “ideologia de gênero” e embasa projetos de lei para proibir debates sobre gênero e sexualidade nas escolas e a perseguição professores. O Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional leis estaduais e municipais neste sentido, mas a ameaça não se detém.

    Esse pânico moral voltado às pessoas LGBTS, infelizmente, funciona e, por isso, é tão perigoso. Estimula a violência física, fomenta a LGBTfobia no seio das famílias, legitima inúmeras expressões de discriminação e elege muitas pessoas com base na retórica de que a um inimigo a combater e o inimigo somos nós. Fomos alçados á inimigos pelos regimes fascistas do início do século XX, assim como somos hoje na Hungria e no Brasil, pois há uma base política reacionária que enxerga o potencial emancipatório de nossas lutas. Se nos atacam é porque somos relevantes. Mas nossa luta não pode ser enclausurada, para ser capaz de movimentar as estruturas ela precisa estar unida as pautas feministas, antirracistas, a favor de uma educação pública, laica e de qualidade, pelo direito à saúde e contra todas as demais formas de opressão e intolerância.

    Ivanilda Figueiredo, professora de direito e pensamento político da UERJ, advogada, coordenadora do GT contra a intolerância da CDH/OAB-RJ e ativista do Movimento Unificado pela Diversidade (Mudi).

  • Diversos países declaram apoio à Venezuela em relação a expulsão de diplomatas

    Diversos países declaram apoio à Venezuela em relação a expulsão de diplomatas

    Por conta da pandemia do coronavírus, o ato em solidariedade ao povo venezuelano organizado pelos Comitês General Abreu e Lima, de Brasília, Cabano Bolivariano, do Pará, Solidariedade a Revolução Bolivariana, do Rio de Janeiro, e Comunicação Nacional Zequinha Barbosa, aconteceu on-line. Com a participação de representantes do Uruguai, Argentina, República Dominicana, Venezuela e de diversos estados brasileiros, o ato durou quase 3 horas.

    A manifestação marcou o fim do prazo determinado pelo governo Bolsonaro para que o corpo diplomático venezuelano deixasse o Brasil. No último dia 30, um documento assinado por Wellington Alberto Silva Mendes, Comandante em Exercício do Comando de Policiamento Regional Metropolitano II da Policial Militar do Distrito Federal, determinou que caso não se retirassem, os diplomatas seriam considerados “persona non grata” pelo Estado brasileiro e que teriam o prazo de 48 horas, até dia 04, para que saíssem do país. Segundo ele o documento foi redigido seguindo as decisões de Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores, e André Mendonça, novo Ministro da Justiça.

    Já na noite do dia 01 a Polícia Militar colocou uma viatura em frente a Embaixada da Venezuela em Brasília. A ordem é que os policiais permaneçam no local até segunda-feira.

    Também participaram do ato os deputados Paulo Pimenta, do Brasil, e Omarlena Abreu, do MET, Estado de Miranda, da Venezuela.

     

    Entenda o caso

    Na última terça-feira, o Itamaraty enviou um ofício à Embaixada da Venezuela para pressionar a saída dos diplomatas até o próximo dia 02 de maio, amanhã. Mas a saída não deve ocorrer no dia 02, e já que o prazo é de 48h horas após a notificação, que ainda não aconteceu. Segundo o documento, quem permanecer no país, será considerada “persona non grata” e perderá os direitos diplomáticos.

    A determinação vem dois meses após Jair Bolsonaro declarar que todos os diplomatas e funcionários do governo venezuelano deveriam deixar o Brasil, e, curiosamente, vem, também, de encontro com os crimes que Trump e os Estados Unidos tramam contra a Venezuela. Todos os diplomatas brasileiros que trabalhavam na Venezuela retornaram para solo brasileiro em 17 de março por determinação de Bolsonaro.

    Na tarde da última quinta-feira, 30, o governo da Venezuela se negou a abaixar a cabeça à determinação sem-sentido para retirar o corpo diplomático do Brasil. Em nota denunciou que Jair Bolsonaro faz “pressões desnecessárias” e que as supostas “negociações prévias” entre os dois países, ditas pelo governo brasileiro, nunca aconteceram de fato.

    Para agradar Trump Bolsonaro diz que expulsará diplomatas da Venezuela

    “O corpo diplomático e consular da Venezuela no Brasil não abandonará suas funções sob artifícios fora dos parâmetros do direito internacional”, diz um trecho do texto, que também acusa Bolsonaro de ser “abertamente subordinado” aos Estados Unidos. O texto também exemplifica a crueldade bolsonarista que irá aumentar, com uma manobra para fechar os escritórios consulares da Venezuela, a negligência com comunidade venezuelana no Brasil.

    De forma covarde, o governo brasileiro reconhece Juan Guaidó, presidente autoproclamando que vive de selfie, e não Nicolás Maduro, presidente eleito pelo povo.

    O ofício documento do Comando da Polícia Militar prevê que o corpo diplomático, caso se recuse sair, seja expulso.

    O texto pede “reforço de policiamento (em ambas extremidades da Embaixada) e apoio das tropas especializadas para estarem em condições de atuar a partir da madrugada do dia 03 para o dia 04 de maio de 2020, até que a embaixada seja desocupada”. E informa que já foi feita uma “ordem de serviço prevendo uma viatura fixa do dia 01 ao dia 04/05/2020” mas reclama que “apenas uma viatura no portão frontal da Embaixada pode não ser suficiente para evitar a entrada de manifestantes e movimentos sociais pró-Maduro, em especial na madrugada de Domingo (03/05) para Segunda-feira (04/05) e manhã desta, a qual pode também vir a ocorrer paulatinamente e pelo portão de pedestres de trás da Embaixada”.

    Atravessando uma pandemia que já matou mais de 6 mil pessoas só no Brasil, Bolsonaro assume agora que, além de não se importar com o povo brasileiro que dia a dia enterra seus entes queridos, também não se importa com os imigrantes. Ainda que a situação na Venezuela seja muito melhor para quem enfrenta o coronavírus – o país tem apenas 10 mortes, neste momento é impossível retornar ao país, uma vez que a fronteira está fechada e não há voos previstos entre Brasil e Venezuela.

    O procurador-geral da República, Augusto Aras, enviou um ofício nesta sexta-feira, 01, ao Ministério das Relações Exteriores pedindo que o Itamaraty suspenda a decisão que determinou a saída de diplomatas venezuelanos do país. No texto a PGR afirmar que a medida pode contrariar tratados e convenções internacionais diante da situação dos serviços de saúde na Venezuela em decorrência da pandemia do coronavírus.

    Bolsonaro, fazendo o papel que já era esperado dele diante de Trump, coloca em risco a vida de idosos, mulheres, homens e crianças para causar um factoide que, além de endossar as atrocidades propostas pelos Estados Unidos, ainda serve para tirar o foco do fiasco da política federal de contenção do coronavírus.

    Veja mais: Quem dera fôssemos a Venezuela – que tem 10 mortes por corona x Brasil 5.511

  • Mais de um trilhão de reais jogados ao vento pelo governo Bolsonaro

    Mais de um trilhão de reais jogados ao vento pelo governo Bolsonaro

    Não, o Estado Brasileiro não só não está falido como possui recursos para acabar com a pobreza, para sempre. A nauseante ideia de que não existe dinheiro, da necessidade de “ajuste fiscal”, de “teto de gastos”, de perigo do déficit etc é conversa para boi dormir. Sim, estamos sendo enganados (as), diariamente, ano após ano, pela mídia comercial, pelos grandes empresários e pelas principais autoridades políticas e governamentais, salvo raras exceções…Trata-se de um crime de lesa-pátria, solenemente ignorado e muito bem acobertado. Dívida

    Por Silmara Conchão* e Eduardo Magalhães Rodrigues**, especial para os Jornalistas Livres

    A pobreza e a miséria em nosso país não são causadas pela falta de riqueza, mas sim por sua extrema concentração. Dados da ONG Oxfam, apontam que apenas seis brasileiros possuem riqueza igual aos 100 milhões mais pobres, os 5% mais ricos têm a mesma renda que os 95% restantes e entre 2017 e 2018 o número de bilionários no Brasil passou de 31 para 43.

    Uma das formas mais eficazes de concentração, além da injustíssima tributação, está no Orçamento Federal, elaborado pelo Governo e aprovado pelo Congresso Nacional.

    Vejamos alguns números.

    O site auditoria cidadã da dívida” denuncia um dos maiores roubos na história brasileira. Roubo de nosso dinheiro, roubo da riqueza produzida pelos milhões de trabalhadores e trabalhadoras. Por exemplo, em 2019, o Governo federal desembolsou 2 trilhões e 711 bilhões. Quase 40% (38,27%) foi usado para quitar juros e amortizações da dívida pública federal. Ou seja, 1 trilhão e 38 bilhões de reais! Dívida esta suspeita e que deve ser investigada, mas até hoje nenhum governo ousou realizar auditoria.

    Ao mesmo tempo em que quase 40% foi usado para enriquecer ainda mais seus credores, a Saúde ficou com menos de 5% (4,21%), a Educação com menos de 4% (3,48%), a Assistência Social também com menos de 4% (3,42%), a Ciência e Tecnologia com menos de 1% (0,23%), Saneamento com ínfimos 0,02%, Cultura com 0,03%, Esporte 0,01% e Habitação com 0%! Isso as televisões, os jornais e seus comentaristas bajuladores não dizem. Continuam insistindo na cantilena de que o Estado Brasileiro está falido…

    Segundo dados do IBGE (2018 e 2019), havia no Brasil 13,5 milhões de miseráveis e 52,5 milhões de pobres, totalizando 66 milhões de pessoas sobrevivendo sem mínimas condições. Se os juros e amortizações da dívida pública federal não fossem pagos, a pobreza e a miséria acabariam para sempre no Brasil. Cada um dos 66 milhões citados receberia, mensalmente, R$ 1.310,60. Considerando 2 adultos e 2 crianças, o orçamento mensal dessas famílias passaria a ser de R$ 5.242,40, valor pouco maior do que deveria ser o salário-mínimo, de acordo com a Constituição Federal e calculado pelo Dieese: R$ 4.483,20. O efeito sobre a economia nacional, em pouco tempo, seria enorme. Essas pessoas passariam a consumir, o que geraria demanda para a indústria e o comércio; que por sua vez passariam a contratar um enorme contingente de trabalhadores e trabalhadoras, diminuindo ou acabando com o desemprego; os governos arrecadariam mais impostos, e assim teriam mais recursos para oferecer saúde, educação etc. Quer dizer, seria criado um ciclo virtuoso onde pobres e miseráveis se tornariam, em pouco tempo, cidadãos e cidadãs vivendo do próprio trabalho, sem depender da renda direta do Estado… Absurdo propor cancelamento da dívida pública se uma auditoria provar fraude? O próprio Papa Francisco apoia a ideia, afirmando que as dívidas públicas não devem ser “pagas com sacrifícios insuportáveis”.

    Outra grande mentira martelada cotidianamente, para tentar justificar reformas que tiram direitos do povo e do trabalhador (a), como a Reforma da Previdência, é o tamanho do Estado. Afirmam, seus defensores (as), que o Estado possui muitos servidores, que se gasta muito com a máquina estatal, que ela tem de ser diminuída, que os gastos públicos devem ser reduzidos etc. É claro que o patrimônio público deve ser administrado com todo cuidado, que se deve exigir eficiência, que não se deve pagar salários exorbitantes etc. Enfim, somente assim o povo poderia receber serviços públicos de qualidade. No entanto, como um exemplo, a administração e o judiciário federal consomem, juntos, 2,23% do orçamento da União.

    Mas quem são os credores da dívida pública federal?

    Conforme dados do Tesouro Nacional (2017), 22,3% são instituições financeiras; 25% fundos de investimento; 25,2% fundos de previdência; 12,6% são estrangeiros e o restante 14,9% fica com governo, seguradoras e outros. Apesar da falta de transparência sobre os nomes das pessoas e empresas credoras da dívida pública, não é difícil supor que seu controle cabe a poucos. Lamentavelmente, nenhum governo até o momento atreveu-se revelar essa informação básica.

    Portanto, quando você ouvir que o Estado Brasileiro não possui recursos, entenda que ele não possui recursos para você, para os moradores (as) das favelas, para os (as) que morrem nas filas dos hospitais, para os moradores (as) de rua, para as crianças e adolescentes que esmolam nos faróis, para os pequenos e médios comerciantes e industriais, para os desempregados (as) …para a pequena elite a história é outra…Esses estão muito satisfeitos com a política colonial do coronel de plantão. Se você não está no topo da pirâmide e continua exaltando o “mito”, lembre-se que o Covid-19 não se mata com tiro. Esta pode ser sua última chance de se arrepender…

    Não existe oposição entre saúde e economia, mas sim complementaridade. Desconcentrar a riqueza melhoraria a qualidade de vida em todos seus aspectos, incluindo educação, moradia, segurança, meio-ambiente, emprego, renda, alimentação e…saúde. O inverso também é verdadeiro: quanto maior a concentração da riqueza, pior para a saúde.

    O Brasil continua sendo uma mega fazenda escravocrata, uma máquina de moer gente administrada por senhores de engenho e seus jagunços. Sucupira segue impassível refém do paranoico Bolsorico Paraguaçu e seus milicianos.

    23 de abril de 2020.

    *Silmara Conchão – Socióloga, feminista e professora universitária da Faculdade de Medicina do ABC. Mestra em Sociologia e Doutora em Ciências da Saúde.

    **Eduardo Magalhães Rodrigues – Sociólogo e pesquisador da Universidade Federal do ABC. Mestre em Relações Internacionais e Doutor em Planejamento e Gestão do Território.

     

    Veja mais: Mandetta se finge de bom-moço pra rifar SUS e ganhar eleição futura

     

     

  • Estado suicidário, covid-19 e Black Brecht: os planos de emergência do teatro negro

    Estado suicidário, covid-19 e Black Brecht: os planos de emergência do teatro negro

    por Rosane Borges, especial para os Jornalistas Livres 

    Fotos: Cristina Maranhão 

    Em tempos de estado suicidário, expressão cunhada por Paul Virillo, onde o investimento se desloca dos meios de produção para os meios de destruição, é preciso “imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise do coronavírus”, conforme afirmou em texto recente Bruno Latour, renomado filósofo da ciência.

    De acordo com Paul Virillo o que define o fascismo não é o Estado totalitário, mas a noção de Estado suicidário: “a guerra dita total aparece aí menos como empreendimento de um Estado do que de uma máquina de guerra que se apropria do Estado, fazendo passar através dele o fluxo de guerra absoluta que não terá outra saída senão o suicídio do próprio Estado”.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Bolsonaro e Paulo Guedes são operadores dessa máquina de guerra, e eles lutam incessantemente contra o país, o Estado e a Nação, já que não a querem perdida. Em meio ao desespero, remasterizam a velha máxima de Hitler: “se a guerra está perdida que pereça a Nação.”

    A pandemia da covid-19 reatualiza a guerra que alcança escala inaudita em tempos de globalização, atingindo em um só golpe o planeta (as pandemias anteriores, a gripe espanhola e a peste negra, por exemplo, ocorreram em épocas onde “o mundo era pequeno porque terra era grande, hoje o mundo é muito grande, porque terra é pequena”, como nos ensina poeticamente Gilberto Gil).

    Mas uma advertência se impõe: a guerra reatualizada pela pandemia não é necessariamente contra o vírus, até porque tecnicamente não há um exercito, não há invasão do território de um país, não existem dois agentes humanos em combate, não há estratégias. O termo guerra só ganha legitimidade se considerarmos que ela é de outra ordem e segue quase sempre o mesmo curso. É a guerra entre os holofotes do poder, os defensores da globalização financeirizada, e os pequenos vaga-lumes, que lutam por outro mundo, os destituídos de poder. (Holofotes e vaga-lumes integram a linda metáfora do crítico de arte George Didi-Huberman).

    Seguindo o fio da argumentação de Latour, talvez estejamos frente a uma oportunidade única de mudança radical do nosso modo de vida. Todas as tentativas de correção de rota, de consolidação de propostas que visam a construção de outros paradigmas, como as enunciadas pelos vaga-lumes, nomeadamente os ecologistas, as feministas, especialmente as mulheres negras, os povos originários, os trabalhadores espoliados,  foram severamente criticadas e bloqueadas sob a justificativa de que o mundo não podia parar, pois o dinheiro que circulava livremente pelo globo na velocidade da luz  tinha que se manter livre sem nenhum bloqueio.

    Só que o mundo parou! E se é possível parar o mundo por força de um vírus microscópico, é igualmente possível mudar não apenas as atitudes, mas o enquadre, a moldura que as torna possíveis. Como estamos sentindo na pele, o vírus nos empurra para uma realidade irreversível, árida, mas os desdobramentos dessa realidade podem ter as nossas digitais se concebermos o tempo presente como o tempo da decisão, como bem disse o papa Francisco em seu belo discurso da benção.

    É preciso, assim, que se expresse a vontade de revolver o sistema de produção globalizado, de propor outros paradigmas. Trata-se de uma urgência e emergência, visto que ainda são altissonantes as vozes daqueles que aproveitam a ocasião para sepultar o pouco do que restou do Estado de bem-estar social, rasgar a rede de proteção de direitos dos mais vulneráveis e tentar, de todas as formas, se livrar de “gente improdutiva, feia, pobre, inútil que povoa o planeta”.

    Costuma-se dizer que as pandemias favorecem momentos efusivos a mudanças. Medo, sobressaltos, angústia paralisante são sentimentos que tipificam a nossa travessia da quarentena, mas nela se vê também brechas, fendas, que nos franqueiam o exercício da imaginação.

    E nada mais propício para tal exercício do que a arte, onde se pode desenhar um futuro no presente e, assim, projetar horizontes do possível. O espetáculo “Black Brecht: e se Brecht fosse negro?” é um belo exemplar de como a construção do porvir, em aliança com a experiência do passado e do presente, mostra-se como um plano de emergência inescapável para a ascensão de fundamentos e matrizes quase sempre ignorados, silenciados, subalternizados.

     

     

     

    Culturas e artes: a insurreição de corpos em prol de novas matrizes  

    O canto fúnebre que se elevou para o campo da cultura e das artes não conseguiu silenciar o coro de múltiplas vozes que laboram para a sobrevida daquilo que os donos do poder, os operadores do Estado suicidário, querem morto ou inerte no nosso país.

    Para quem vinha acompanhando a nossa cena cultural no estágio pré-confinamento, sentia lufadas de oxigênio advindas do renascimento do teatro, que se mostrou com extraordinária vitalidade. Sem sombra de dúvidas, as artes cênicas estão no epicentro de transformações estruturais que não apenas resistem às tentativas de embalsamento operadas por um governo que nasce morto, mas, num movimento duplo, põem também em xeque as tradicionais formas de fazer teatro. Pela resistência, persegue-se a instauração do novo.

    O pesquisador Luiz Fernando Ramos refere-se à essa renovação assinalando a  febre criativa que vem contagiando grupos de diversas procedências em todas as regiões do Brasil: “o teatro brasileiro perfez um ciclo virtuoso nas duas primeiras décadas do século 21. Os 20 anos de governos social-democratas apoiaram a cultura e as artes, e a cena teatral se fortaleceu, tanto na produção artística como teórica, pelo menos nas universidades públicas. Programas de apoio à criação e pesquisa de longo prazo permitiram que centenas de grupos novos, operando em direções várias, se estabelecessem e passassem a viver de teatro. Experiências proliferaram por todo país, e um novo público passou a frequentá-las.”

    Ramos apresenta a diversidade do espectro: nele cabem o Teatro Oficina, o Grupo Vertigem, a Cia. do Latão, a Armazém e a Vértice, o Galpão e encenadores como José Fernando Azevedo, atrizes e diretoras do quilate de Grace Passô. No âmbito da escrita dramática, o pesquisador arrola nomes como Alexandre Dal Farra, Dione Carlos, a dramaturga de Black Brecht: e se Brecht fosse negro?. Menciona ainda, nas artes performáticas, a companhia de dança de Lia Rodrigues e o improviso poético de Roberta Estrela D´Alva.

    Não à toa, pinça desse oceano várias gotas da presença negra. O que essa renovação, com participação expressiva de realizadores negros e negras, aporta para o momento presente? Cogito que o teatro negro, em geral, e o espetáculo Black Brecht: e se Brecht fosse negro?, em particular, se constituem numa espécie de laboratório, de incubadora de um futuro em que se barra as experiências que subalternizam as humanidades postas à margem da distribuição da riqueza desse sistema frenético.

    A cena teatral negra nos lega um ensinamento precioso para esses tempos: o que é considerado a boa rotina do mundo, realidade imutável sobre a qual não temos ingerência, tal como o levantar do sol, deve ser examinado sob a lente do espanto e da indignação. Faz poucos dias que a Attac France,  associação independente francesa que mobiliza a sociedade por justiça social e ecológica, publicou um texto analítico do mundo pós-epidemia do coronavírus. Neste texto, a associação afirma categoricamente que não devemos desejar um retorno à normalidade, “porque a normalidade neoliberal e produtivista é o problema”.

     

     

     

     

    Black Brecht: corporeidades insurgentes que rompem com a normalidade

    Em linhas gerais, podemos afirmar que “Black Brecht: e se Brecht fosse negro?” é filho legítimo da profícua renovação posta em destaque por Luis Fernando Ramos. Dirigido por Eugênio Lima e sob a escrita dramatúrgica de Dione Carlos, profissionais de talento descomunal, o espetáculo é uma adaptação livre do julgamento de Luculus, de Bertolt Brecht.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Perante o Supremo Tribunal do Reino das Sombras apresenta-se Luculus Brasilis, o general civilizador, que precisa prestar contas da sua existência na Terra para saber se é digno de adentrar no Reino dos Bem-Aventurados. “Sob a presidência do juiz dos Mortos, cinco jurados participam do julgamento: um professor, uma peixeira, um coveiro, uma ama de leite e um não-nascido. Estão sentados em cadeiras altas, sem mãos para segurar nem bocas para comer, e os olhos há muito apagados. Incorruptíveis.”

    As bases conceituais que sustentam o espetáculo repousam nas categorias de afrotopia, afropolitanismo e afrofuturismo, que, juntas, retratam como o futuro foi sempre  subtraído das vidas negras de diversas maneiras (a falta de tratamento adequado para o coronavírus aos habitantes da borda, em sua maioria pessoas negras, é uma delas). Inevitavelmente, ao falar de futuro, Black Brecht retorna ao passado para recolher o que foi deixado para trás, como reza a filosofia africana dos povos Acã.

    A pergunta e se Brecht fosse negro? elimina qualquer fragmento de dúvida quanto à força pedagógica do espetáculo em tempo de pandemia. Embora faça uma crítica mordaz, ácida, desestabilizadora, Black Brecht não flerta com a destruição apocalíptica que não abre espaço ao porvir; ao contrário, oferta, generosamente, possibilidades outras manufaturadas pelos condenados da terra, expressão do pensador negro Frantz Fanon, mencionado à mancheia no espetáculo.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    A escolha do dramaturgo alemão não podia ser melhor. Bertolt Brecht foi um contraponto na ambiência efervescente das vanguardas artísticas, reconhecidas por alimentarem o franco desejo de destruir a instituição arte. Brecht, diferentemente, consegue desenvolver o conceito de refuncionalização para transformar radicalmente, e não destruir, o teatro da burguesia culta. O dramaturgo alemão alcançou o equilíbrio entre a destruição e a adesão, sintetizada nos posicionamentos dos filósofos Theodor Adorno e de Georg Lukács, cravando sua contribuição particular para a dita arte moderna.

    A título de lembrete, para Lukács, a arte vanguardista não tinha caráter de protesto, era desprovida de perspectiva histórica, mostrava-se indiferente às forças reais de oposição que se engajavam na superação do capitalismo. Já segundo Adorno, as vanguardas expressavam o protesto radical de oposição à toda e qualquer falsa reconciliação com a arte existente, o que fazia delas,  das vanguardas, a única forma de arte historicamente legítima.

    Como se vê, o espetáculo Black Brecht assume as soluções encontradas por Brecht, transformando-as no presente em sua continuidade histórica. Institui-se, assim, como mais um empreendimento da gente negra em prol da refuncionalização da instituição teatro. Mas vai além: mostra-se como um inventário de possibilidades com potência para restituir algumas matrizes políticas e romper com outras.

    Recuperando o que diz Bruno Latour, quando postulamos a ideia de que devemos brecar a produção do sistema capitalista pré-crise da pandemia, não se trata de imaginar ingenuamente que passaremos a viver de brisa, mas de “abandonar a produção como o único princípio de relação com o mundo. É antes uma dissolução, do que uma revolução.”

    Black Brecht dissolve as cadeias que devemos romper e nos brinda com um futuro em que todos os corpos, por serem humanos, devem importar. Ao ultrapassar o umbral da revolta (contra o extermínio da população negra, ontem e hoje, contra as injustiças raciais, contra as desigualdades sociais…) restitui a humanidade à população negra.

    O diretor Eugenio Lima afirma que o espetáculo “é para, por e com a memória de nossos ancestrais. Um grito poético que diz querer a sua matriz de volta”. Esse grito poético se contrapõe à matriz reinante financeirizada, globalista que quer a todo custo manter as suas engrenagens funcionando à custa de corpos que não importam. Por outras matrizes e outros fundamentos, ouçamos as vozes desses corpos insurgentes que ultrapassam as paredes da cena teatral e, se ressoadas no mundo ordinário, promoverão a suspensão da normalidade. Aproveitemos a quarentena para comunicar aos donos do poder que quando o isolamento passar não mais aceitaremos as regras do jogo. Desobedeçamos. É possível, o vírus provou que é.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Quem faz Black Brecht 

    Direção: Eugênio Lima
    Dramaturgia: Dione Carlos
    Intervenção Dramatúrgica: Legítima Defesa
    Elenco: Eugênio Lima, Walter Balthazar, Luz Ribeiro, Jhonas Araújo, Palomaris Mathias, Tatiana Rodrigues Ribeiro, Fernando Lufer, Luiz Felipe Lucas, Luan Charles, Marcial Macome e Gilberto Costa.
    Produção Executiva: Iramaia Gongora
    Direção Musical: Eugênio Lima e Neo Muyanga
    Música: Luan Charles, Eugênio Lima, Neo Muyanga, Roberta Estrela D’Alva, Dropê Selva, Suyá Nascimento, Atila F. Silva, Everton Martins, Danilo Rocha, Thiago Bernardes e Pedro Teixeira
    Cenário: Renato Bolelli
    Iluminação: Matheus Brant
    Fotografia: Cristina Maranhão
    Vídeointervenção: Bianca Turner
    Vídeodocumentário e Filme: Ana Júlia Travia
    Trilha do Filme: letra Azagaia, voz Roberta Estrela D’alva, música Eugenio Lima
    Figurino: Claudia Schapira

     

     

     

     

     

    Rosane Borges é jornalista, pesquisadora do Colabor (ECA-USP), integrante da CORE (Comunidade Reiventando a Educação), autores de diversos livros, entre eles: Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012) e Esboços de um tempo presente (2016).

    E se Black fosse Brecht, Negro seria
    Eu derrubo qualquer Eugenia
    Palavra Negra é a minha magia 
    Dione Carlos, Black Brecht

  • Covid-19, 100 dias que mudarão o mundo?

    Covid-19, 100 dias que mudarão o mundo?

     

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

    2ª parte

    Quando interrompemos a primeira parte deste texto, estava claro que os brasileiros entrariam em isolamento para enfrentar a pandemia. Sem mais comentários, retomemos a nossa crônica-diário. (Para quem ainda não leu a primeira parte basta acessar aqui: https://jornalistaslivres.org/covid-19-100-dias-que-mudarao-o-mundo/)

    77o dia – 16 de março, segunda-feira. No dia anterior Mateus voltava de sua viagem de estudos de seis meses em Bolonha, na Itália, estávamos ansiosos para nos reencontrar. O Brasil tem 15 casos de Sars-Covid-19. A imprensa cobre o ato contra o STF e o Congresso Nacional, realizado no domingo, com a presença de Bolsonaro, apesar dos riscos de contaminação. Desde o dia 11 de março repercute as contaminações de membros da comitiva da viagem do presidente aos Estados Unidos, tendo o primeiro caso sido confirmado já no dia 12. Até agora Bolsonaro não divulgou os exames que confirmariam que ele mesmo não teria sido contaminado. Ou teria o presidente se contaminado, mas se curado com o tratamento da hidroxicloroquina, por entre tantos fakes, como saber? Nesse dia, disse a respeito da pandemia, em sua peculiar linguagem fragmentada: “Foi surpreendente o que aconteceu na rua até com esse superdimensionamento. Que vai ter problema vai ter, quem é idoso, [quem] está com problema, [quem tem] alguma deficiência, mas não é tudo isso que dizem. Até a China já praticamente está acabando.”

    78o dia – 17 de março. A Europa responde por 74% dos novos casos. À noite, no Brasil, pode-se ouvir o primeiro “panelaço” contra o governo de Jair Bolsonaro. Ficava pronto o livro organizado por nós (e por Bruna Stutz): “Do Fake ao fato: desatualizando Bolsonaro”. Ainda acreditávamos que faríamos lançamentos presenciais. Era uma só uma ilusão. 

    79o dia – 18 de março. Os jornais noticiam a primeira morte pelo vírus em São Paulo. O presidente do Senado e dois ministros de Bolsonaro testaram positivo para a Covid-19. Reportagem do site Outras Palavras perguntava: “Coronavírus impulsionará impeachment?”. Uma brasileira, diretora-assistente da OMS,  afirma que os brasileiros estavam minimizando o risco do coronavírus. Médico que tratou o primeiro paciente morto no Brasil faz apelo para que pessoas fiquem em casa. O site Intercept noticia que a empresa Riachuelo mantinha funcionários em escritório mesmo com casos de coronavírus confirmados. De noite, mais panelaços contra o governo. Eles são vistos pelos autores com esperança. Reportagem do ConJur afirma que corte de jornada e salários proposto pelo governo divide advogados.

    80o dia – 19 de março. Nas esquerdas aumenta a preocupação com as periferias e os mais vulneráveis durante a epidemia. A Embaixada da China no Brasil responde o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) e filho do presidente, que acusou, no dia anterior, o país asiático de omitir informações sobre a pandemia: “As suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Não deixam de ser uma imitação dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando a amizades entre os nossos povos”. Economistas apontavam para o risco de depressão e do aumento da pobreza em função da pandemia. Alguns argumentos diziam que o Brasil estava a cerca de dez dias atrás da Itália no ritmo da epidemia.

    83o dia – 22 de março.  No dia anterior marcamos um churrasco para nos encontrarmos, isto depois de muito debate, Valdei tem histórico de asma e não sabe ainda se está no grupo risco. Na manhã deste domingo Mateus acorda com tosse, fadiga e febre: churrasco e reencontro adiados sem data. De noite, após ter áudio de conversa em Whastsup vazada em que chamava de histéricas as preocupações com a epidemia, o empresário Roberto Justus sofre com protestos no Twitter e em outras redes sociais. Alinha-se com outros empresários bolsonaristas que argumentavam na mesma direção, como os donos da Madero, Havan e Riachuelo.

    84o dia – 23 de março, segunda-feira. Boris Johnson reconhece a gravidade da crise no Reino Unido e muda o discurso e as ações que vinha adotando. Em 3 de março, em entrevista, se gabava de continuar a apertar as mãos da vítimas da Covid-19.

    85o dia – 24 de março. Ao mesmo tempo que Bolsonaro recua na medida provisória sobre o corte de salários, o Banco Central libera mais de 1 trilhão de reais para os bancos. Reportagens denunciam que o empresário, dono da Madeiro, afirma que a economia não pode parar em função de 5 ou 7 mil mortes. Renda Familiar de Emergência era anunciada na Argentina. Bolsonaro fez um pronunciamento que difere em substância de seus dois anteriores, nos dias 6 e 12 de março. No fatídico discurso de 24 de março, o presidente minimiza a doença, criticando as medidas de isolamento. Apesar de breves elogios ao ministro da Saúde, faz apelos para que as pessoas voltem à normalidade, contrariando o próprio ministro. Critica o que ele denominou de histeria da imprensa, argumentando que o caso da Itália só seguiu os rumos que conhecemos, pelo elevado número de idosos do país, além do seu clima frio, e que, portanto, não poderia servir de exemplo ao Brasil. Questiona o fechamento de escolas e sugere que apenas pessoas do grupo de risco deviam se confinar. Critica duramente os governadores de estados, os quais acusa de estarem levando a economia ao colapso. Nomeia os efeitos do Coronavírus de “gripezinha”, se vangloria de seu histórico de atleta e ainda especula sobre o tratamento com a hidroxicloroquina. Mais panelaços durante o pronunciamento. E muitas reações imediatas, inclusive do presidente do Senado, que pede liderança séria para lidar com a crise. O premiê do Japão pede o adiamento dos jogos olímpicos de Tóquio por um ano. Médica e enfermeira do SUS de Ouro Preto faz visita domiciliar a Mateus para avaliar se o caso era suspeito de Covid-19. OMS vê potencial para que os EUA se tornem o novo epicentro da crise.

    86o dia – 25 de março. Outra enfermeira da cidade de Ouro Preto recolhe três amostras, nas narinas e na garganta de Mateus. O exame é enviado para a Fundação Ezequiel Dias em Belo Horizonte, Minas Gerais. Neste dia, 25 de março, a febre cede.

    87o dia – Em 26 de março, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos afirma que a ultra-direita fracassa no combate ao vírus. Ao mesmo tempo, pesquisa do instituto Gallup indica que a provação de Trump subia para o maior nível do seu mandato. Mais de 1.000 mortos nos EUA pelo coronavírus. A epidemia avança na Espanha, com mais de 4.000 mortos e 56 mil casos confirmados. Na América Latina, medidas rígidas são adotadas pela maiorias dos governos. Para Trump a Covid-19 ainda é como uma gripe e os casos nos EUA estavam caindo.

    88o dia – 27 de março. Bolsonaro lança campanha publicitária com o slogan #OBrasilNãoPodeParar e o site Intercep mostra que há certa adesão social a esse discurso. A OMS afirma que a evolução da pandemia na África é gravíssima. Nos chegam relatos de que em condomínios de luxo em bairros nobres de Vitória ( ES) os cuidados com o vírus são minuciosos, com funcionários, não dispensados, higienizando três vezes ao dia os espaços comuns. Na tarde dessa sexta-feira, alguns moradores desses prédios devem ter se juntado à carreata que no final da tarde pedia a reabertura do comércio em Vitória e Vila Velha, #OBrasilNãoPodeParar. O papa Francisco produz uma das imagens mais icônicas ao caminhar pela Praça de São Pedro vazia, levava consigo um crucifixo que a tradição diz ter salvado a cidade de Roma da peste negra em 1522.

    89o dia – 28 de março. A manchete de um jornal português sintetiza a preocupação do país com o alastramento do vírus: “Covid-19 em Portugal. A caminho do desconhecido e a tentar atrasar o passo”. Uma manchete, uma síntese, uma constatação: a de que vivemos um momento em que atrasar o passo pode ser mais prudente do que a chegada rápida a um certo futuro. Mas quem decide como e quanto atrasar? Quem paga a conta? Questões da boa e velha política.

    90o dia – 29 de março. A manchete da Folha afirma que moradores passam fome nas favelas e começam a sair às ruas. Trump agora refere-se “a gripe” como pandemia e prolonga o isolamento nos EUA. Ele se diz preocupado: “Eu só via essas coisas em países distantes, nunca no nosso”. Enquanto isso, Bolsonaro passeava pelas ruas do Distrito Federal estimulando as pessoas a irem às ruas. Em decisão inédita, as postagens com os vídeos do presidente foram removidos de sua conta pelo Twitter no mesmo dia. Nesse momento, as declarações de Bolsonaro passam a se distanciar um pouco das de Trump, embora o repertório comum seja vasto. Continua a se contrapor à maioria dos prefeitos e governadores do país, bem como ao seu ministro da Saúde, que reforçava as políticas de isolamento.

    91o dia – 30 de março, segunda-feira. O Parlamento Húngaro, sob justificativa de combater o coronavírus, dá poderes quase ilimitados ao primeiro-ministro Viktor Orbán, dentre eles, a possibilidade de censura.

     92o dia – 31 de março. Os ministros da Justiça e Economia se opõem a Bolsonaro e apoiam o ministro da Saúde. O isolamento social é respeitado por 60% das pessoas no Brasil, mostra software. Quinze estados brasileiros usam a tecnologia que mapeia comportamento individual através de sinais de dispositivo de rede sem fio. O site O antagonista resume o novo pronunciamento do presidente da seguinte forma: “Jair Murphy Bolsonaro. Se algo pode dar errado, é porque vai dar errado”. Vice-presidente exalta Ditadura Militar (1964-1985) no dia do aniversário do golpe de Estado de 31 de março de 1964. Os autores passam o dia envolvidos com a campanha #DitaduraNuncaMais. Mateus continua com febre e tosse. Ainda sem resultado do exame.

    93o dia – 01 de abril. Às 7h45 a Prefeitura de Mariana confirma a primeira morte pelo covid-19 na cidade, um homem de 44 anos, sem comorbidades e com provável contaminação local. Não sem alguma ironia, a Folha noticia que no pronunciamento do dia anterior o presidente teria mudado o tom buscando a conciliação. Dia da mentira? Ele e seu grupo político continuam a guerra de desinformação contra o seu próprio ministério da Saúde. O país já registra 42 mortes. Bolsonaro compartilha vídeo falso a fim de sugerir que o isolamento social pode gerar uma crise de desabastecimento. Depois que a farsa foi denunciada ele pede desculpas, gesto raríssimo que talvez demonstre o quanto se sente isolado. Como muitos estudiosos diziam: a luta é contra a pandemia e a infodemia, ao mesmo tempo. As notícias falsas e o vírus competem para ver quem viraliza mais, isto é, quem sofre mais mutações atualizantes.

    94o dia – 2 de abril. As notícias sobre subnotificação ganham as manchetes. Governo anuncia redução e suspensão de salários durante a pandemia. O jornal El País afirma que o Brasil tem sido preterido por fornecedores para obter material médico contra o coronavírus. Usar ou não usar as máscaras? Eis a questão?

    95o dia – 3 de abril. Os casos globais chegam a 1 milhão. No Brasil, Bolsonaro continua em rota de colisão com o seu ministro da Saúde. Equador entra em colapso sanitário. O país tem a oitava população do continente, mas já registrava o segundo maior número de mortes. Covid-19 acaba com 10 milhões de empregos nos EUA. Profissionais da saúde no Brasil denunciam a precarização das condições de trabalho em tempos de pandemia. O bolsonarismo dissemina diversas narrativas eficazes, em especial, entre a população evangélica. O ministro da Saúde, Mandetta, é o principal alvo das milícias digitais: Quantos são robôs? Quem financia? Qual o papel da leniência de Facebook, Twitter e Google com essas práticas? É divulgada uma pesquisa feita com dados do Twitter do dia 15 de março, quando a #BolsonaroDay subiu, apontando que 55% das postagem nessa hashtag haviam sido feitas por robôs. O Judiciário e o Legislativo assistem a tudo impassíveis: bilontras ou bestializados?

    96o dia –  4 de abril. Todas as chamadas da primeira página da Folha são dedicadas à pandemia, sem exceção. Chega em nosso Zap, enviado por uma amiga do Rio Grande do Norte, um áudio convocando para o jejum e oração do domingo que começava pedindo a “proibição e criminalização do socialismo, comunismo e marxismo cultura dentro do Brasil”. A atriz (?) continuava sua fala – com um sotaque nordestino genérico – pedindo a destruição do Foro de São Paulo, que estaria por trás da grande conspiração para quebrar o Brasil, e explicava: “A China comprou a Itália, com isso, no fim do ano a Itália ficou cheia de jovens chineses que cuspiam e tossiam em tudo para espalhar o vírus”. Continua: “A Itália tem 30% de velhos e é fria, por isso houve aquela matança generalizada. O vírus só gosta de frio, segundo, a cloroquina está sendo muito eficaz na cura da Covid-19, os governos estaduais de esquerda estão usando a quarentena para quebrar o Brasil, com o país parado, com demissões em massa, o povo vai ficar sem dinheiro e com fome, a Europa pode fazer quarentena por ter lastro da moeda em Ouro, a do Brasil não, esse é o plano dos comunistas para tomar o poder no Brasil, estão soltando presos. Tudo isso para levar ao impeachment de Bolsonaro, mas se ele cair, o Mourão não vai poder assumir, porque houve uma PEC37 em 2019 que vetaria, haveria nova eleição e Ciro Gomes – que está sendo financiado pelo governo Chinês, pois o país asiático quer comprar todas a empresas brasileiras a preço de banana. A assim, o Brasil se torna socialista”. Um certo desespero de professor: como se combate esse tipo de narrativa? Podemos descobrir a cura para a pandemia, mas a infodemia será o novo normal?

    97o dia – 5 de abril. Bolsonaro e apoiadores fazem jejum religioso contra o novo coronavírus – e o plano comunista para dominar o Brasil. Olavo de Carvalho, guru do presidente, defende em seu perfil no Facebook a demissão de Mandetta usando um desrespeitoso trocadilho: “Fora, ministro Punhetta”. O ministro seria o “exemplo típico  do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros ‘critérios técnicos’, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica”. O guro do governo ainda afirma que “tudo o que os comunistas mais desejam é que o adversário tente vencê-los fugindo da briga ideológica”.

    98o dia – 6 de abril, segunda-feira. A imprensa internacional anuncia o agravamento da situação de saúde de Boris Johnson, premier britânico da nova direita global que, inicialmente, fez coro com os que minimizam os efeitos da pandemia. O pensador indígena brasileiro, Ailton Krenak, afirma que “voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando”. O ministro Mandetta quase cai ao longo do dia. Um amigo envia um e-mail no fim da noite: “Estamos sendo atualizados no papel de transmissores passivos de vírus, sem alma e sem coração”. Em função da pressão de Bolsonaro, o Ministério da Saúde adotará na próxima semana a arriscada estratégia do distanciamento social ampliado, isto é, reduzir o isolamento em cidades e estados com 50% da capacidade de saúde vaga. Fato que, segundo o próprio Ministério, aumentará o número de infectados. Finalmente, a OMS divulga um documento sobre o uso das máscaras, que tinham ido do inferno ao céu, durante a pandemia. No mesmo dia, uma reportagem afirmava: “Mortes por coronavírus se concentram em poucas cidades no mundo: Nova York tem 29% dos mortos pela Covid-19 nos EUA e se tornou o epicentro da doença. São Paulo reúne 40% dos óbitos do Brasil”. São Paulo estará a caminho de ser um epicentro global?

    99o dia – 7 de abril. Estimativas apontam para o fato de que a pandemia iria elevar em até 22 mil as pessoas em condições de extrema pobreza na América Latina. Na África, os casos confirmados passam de 10 mil. A maioria dos 54 países já havia tido um caso. A África do Sul, o país mais atingido, já tinha 1.700 doentes. Brasil tem 114 mortes por coronavírus em 24h, a maior cifra em um dia. O total de mortes chega a 667. O Datafolha divulga pesquisa mostrando que 28% dos brasileiros não fazem isolamento, uma porcentagem parecida com o apoio quase incondicional do presidente: as narrativas do zap estariam funcionando? Ao mesmo tempo, a Folha afirma que o remédio defendido pelo governo pode não ser a salvação esperada por muitos bolsonaristas: “Taxa de mortes com cloroquina equivale à de quem não usa, diz estudo preliminar da Fiocruz”. O Whatsapp limita o envio de mensagens para combater a infodemia: todos se perguntam se o limite vale também para os robôs e empresas de impulsionamento? Morre de covid-19 o pastor norte-americano Landon Spradlin, que ficou famoso por chamar a pandemia de histeria. Nova York tem mais mortes por covid-19 do que no 11 de setembro. Os EUA lideram o número de casos no mundo, sendo que registraram o maior número de mortes por coronavírus em um único dia, com mais de 1.800 mortes. No Twitter, Trump ataca a OMS e a China. O site O antagonista registra que por razões econômicas o presidente da Turquia, “Erdogan, rejeita o isolamento, e o vírus avança na Turquia”. “Erdogan tem resistido aos apelos dos médicos e da oposição para que ordene às pessoas a permanência em casa – ele insiste que ‘as rodas da economia precisam continuar girando’”. No Twitter, Bolsonaro envia votos de recuperação a Boris Johnson. A CEF libera aplicativo para pedidos do apoio de 600 reais aprovado pelo Congresso.

    100o dia – Dia 8 de abril, agora. A cidade que foi o epicentro original, Wuhan, recebe de presente sua “liberdade”. Depois de 11 semanas, 76 dias, o bloqueio da cidade chega ao fim. Há receios, no entanto, de ondas de recontaminação na China. The Guardian: “Cidade chinesa de Wuhan reabre quando Boris Johnson passa a segunda noite em terapia intensiva”. Casos globais atingem 1,4 milhão de pessoas. O teste feito por Mateus ainda não está pronto, mas a recuperação é visível. Valdei segue em isolamento em Padre Viegas, distrito de Mariana, cidade em que as mineradoras não pararam suas atividades. A cada dia ônibus repletos de trabalhadores circulam entre as minas e os bairros e distritos. Quem pode imaginar como serão os próximos 100 dias? O Globo noticia que o pacote de 600 reais de ajuda exclui 21 milhöes de trabalhadores necessitados.

    Deixemos para a próxima coluna, para não nos alongar mais, a pausa reflexiva para pensarmos nas respostas às muitas perguntas que esses 100 dias deixam em aberto. Até breve! Fiquem em casa!

     

     

    [1] Professores de História na UFOP, em Mariana.