Jornalistas Livres

Tag: Banco Central

  • Sobre o veto de Dilma à auditoria da dívida

    Sobre o veto de Dilma à auditoria da dívida

    “Dilma renega uma das bandeiras mais caras às esquerdas: vetou a realização de uma auditoria da dívida pública com a participação de entidades da sociedade civil.”

    Dessa forma reagiram diversas pessoas e setores da sociedade. Não estou certo de que essa história deva ser assim narrada.

    Ouço falar de auditoria na dívida pública brasileira desde quando Delfim Netto era ministro,  nos anos 1970, muito antes de se pensar em redemocratização do país. Sempre fui ardoroso defensor de sua realização. No entanto, a proposta que agora volta às manchetes, por conta do veto da presidenta, me deixa extremamente reticente. A dúvida não advém somente da auditoria em si, mas do momento político e da composição atual do Congresso.

     

    Das dificuldades para se apurar malfeitos no mercado financeiro

    Vamos tentar um exemplo. No sábado (16/01/2016) às 11h, havia na feira livre da Rua Mourato Coelho, em Pinheiros, São Paulo, tomates sendo vendidos de R$ 8 até R$ 14 o quilo. Imagine que o funcionário federal decidiu comprar aquele de R$ 10, por considerar adequado seu custo benefício. Daqui a 20 anos, 16/01/2036, vem um deputado federal auditar a compra para saber se foi legítima, dentro dos padrões de mercado. Qual é a chance do resultado ser minimamente confiável? Da mesma forma que o preço do tomate na feira, as taxas de juros variam com o dia, com o horário, com o lugar e com a qualidade imaginada do tomador de recursos. É quase impossível concluir, depois de algum tempo, se a compra foi razoável ou não.

    Claro que a dívida não é composta por tomates. Mas imaginemos julgar a legitimidade e a aderência aos preços de mercado de uma venda, que ocorreu em16/01/1986 às 11hs00, com deságio de 5,5% de Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, com rendimento nominal de correção monetária mais juros de 6% ao ano. Cabe novamente a pergunta: qual é a chance do resultado da auditoria ser minimamente confiável? Mesmo que o auditor saiba o que é deságio e como o calcula, saiba o que era uma Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional e como se calculava, saiba o que é a taxa nominal e a correção monetária e seu cálculo, ele precisará saber como estava o mercado naquela data e naquele horário. Precisará saber, também, como o crédito ao governo estava sendo avaliado naquele momento. Só então poderá avaliar se a venda foi feita a preço justo.

    Gustavo Henrique de Barroso Franco foi presidente do Banco Central do Brasil de 20/08/1997 a 04/03/1999, na gestão de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Sob comando de Franco, em 31/10/1997, o BC dobrou a taxa Selic de 20,69% para 41,20. Hoje, quase vinte anos depois, tentaremos avaliar se o aumento foi legítimo, benéfico ou danoso à economia ou se privilegiou bancos ou outros grupos privados e, especialmente, se alguém tinha a informação privilegiada de que a taxa subiria. O resultado de nossa avaliação será insuspeito?

    Pedro Sampaio Malan foi o negociador da reestruturação da dívida externa brasileira, sob a presidência de Fernando Collor de Mello. Em julho de 1992, o Brasil e 19 bancos internacionais assinaram o acordo, chamado de plano Brady, para reescalonar a dívida externa brasileira, que era superior a 130 bilhões de dólares. Qual é a referência que se usará para saber se as taxas, os deságios, os prazos foram acordados no melhor interesse do Brasil?

    É verdade que podemos pegar casos mais recentes, como os contratos de swap cambial. Espere um pouco, vamos ficar nos governos de Lula e Dilma? Como tem feito um ilustre juiz do Paraná?

     

    Da falta de conhecimento sobre o mercado financeiro

    Outra dificuldade para a realização de uma auditoria eficiente é que quase todas as pessoas que entendem com profundidade o funcionamento do mercado financeiro ou trabalham nele ou no Banco Central. Há muito pouco conhecimento fora do mercado financeiro. Como se audita algo que não se conhece?

    Edmilson Rodrigues, o deputado do PSOL que propôs a emenda da auditoria da dívida, diz que “o endividamento tem crescido fortemente, devido a mecanismos obscuros como a incidência de juros sobre juros, […].” Todo mercado financeiro, em todo lugar do mundo trabalha com juros sobre juros, também conhecido como juros compostos. Desculpe, deputado, não há nada de obscuro nisso.

    A questão é a taxa acordada, as formas de cálculo são padronizadas mundo afora. O problema é que o Brasil é, há muito tempo, o campeão mundial das taxas de juros reais. Real, nesse sentido, significa taxa acima da inflação. E esse mecanismo é o mais poderoso concentrador de renda do país: paga-se parcela enorme do orçamento federal para quem acumulou dinheiro de algum modo. É verdade.

    Gostaria muito de ver especialistas em mercado financeiro que fossem independentes de bancos e do Banco Central, que soubessem e tivessem mandato para avaliar as taxas praticadas em todas as transações entre governo e mercado privado, seja na venda de títulos, seja nas recompras, seja em swaps cambiais, seja nas operações compromissadas. Especialistas em câmbio que nos dessem a certeza que o Banco Central opera estritamente a mercado, atuando com preços justos nas compras e vendas de moeda estrangeira. Especialistas também em mercado internacional para avaliar se nossas reservas estão sendo aplicadas no melhor interesse do país e que tomamos recursos externos, também em taxas e prazos compatíveis. Adoraria ver ex-diretores do Banco Central que não se tornassem funcionários dos bancos privados. Isso poderia significar que tornamos o Banco Central, de fato, independente do controle privado.

    Gostaria muito de ver membros da Receita Federal, do Tribunal de Contas da União, da Polícia Federal, da Controladoria Geral da União e do Congresso especializados em mercado financeiro e em igualdade de condições para discutir esses temas com os próprios operadores dos bancos.

     

    Dos interesses para que a taxa seja alta

    Suspeita-se que a confluência de interesses dos banqueiros com os industriais e comerciantes deriva do fato que todos têm interesse nos juros altos, pois ganham mais em suas operações financeiras do que no seu negócio propriamente dito. É bom saber também que a classe média, que aplica em fundos de investimentos, é dona de parcela da dívida pública, é credora do governo: os fundos de investimento aplicam grande parte dos recursos que captam em títulos públicos. Até quem tem um pouquinho de dinheiro na poupança reclama quando a taxa cai. Sem perceber o quanto paga ao comprar a prazo e o quanto é “desviado” do orçamento federal para bolsos mais gorduchos.

    As discussões sobre a dívida pública, certamente, deixarão de cabelos em pé a classe média, os banqueiros, os industriais, os comerciantes. Todos se voltarão contra a presidenta e a acusarão de querer mexer em contratos estabelecidos desde o império e assim por diante. As agências de avaliação de risco dirão que não tão seguro investir em títulos de um país que está questionando os contratos. Bem, já temos dois problemas que complicam seriamente a realização da auditoria: a dificuldade de se auditar o passado e o interesse que a elite e a classe média têm na dívida pública. Agreguemos um terceiro complicador.

     

    Do apoio e ambiente político

    Há, em curso, uma tentativa não desprezível de depor a presidenta. No exato momento em que ela parecia sintonizar a prioridade da economia com os interesses de quem a elegeu e que seu principal algoz parecia perder força por denúncias e mais denúncias, aparece essa aprovação de uma auditoria da dívida reunindo apoios conservadores e à esquerda. É muito difícil não imaginar que tal apoio visa simplesmente debilitar a presidenta ao limite. É muito plausível supor que quem apóia essa auditoria, não a queira de fato, mas a utilize para seus fins políticos.

    Escrevi em outro artigo que: “A tentativa, que foi bem sucedida temporariamente, de colocar a taxa de juros brasileira num nível semelhante ao resto do mundo foi feita pelo governo Dilma. Pela primeira vez, na história recente, assistimos a taxa Selic ficar próxima de 7% ao ano no final de 2012 e início de 2013. Muitos, como eu, acreditam que todos os eventos políticos, para inviabilizar o governo, que se iniciaram em 2013 e perduram até hoje, tem origem na queda da taxa de juros.”

     

    A auditoria transformada em circo, como uma CPI

    A dificuldade de se apurar eventuais desvios do passado mais distante, o interesse de parte influente da sociedade em juros altos e o fraco apoio político da presidenta levam-me a concluir que existe grande chance da auditoria da dívida se revelar um palanque, como as CPIs, por onde desfilam todos os que querem fazer sangrar a presidenta, com todo o eco garantido pelos meios tradicionais de comunicação.

    Há uma infinidade de temas na dívida pública que eu adoraria ver com toda a claridade, sob a luz do Sol. Não há, no entanto, qualquer garantia de que uma auditoria da dívida, nesse momento, chegará a resultados minimamente confiáveis. Há, sim, muitos interesses que contrariados minarão o parco apoio político da presidenta. Está em curso um golpe para depô-la. Por essas razões, não sou favorável à auditoria proposta. Fosse Dilma, eu também a vetaria. Com tristeza.

  • A taxa de juros na origem da luta política de hoje

    A taxa de juros na origem da luta política de hoje

    “Não adianta choro, ô parceiro. Que nesse jogo só ganha o banqueiro.” (Zeca Pagodinho na composição de Nei Lopes e Sereno)

    A taxa de juros tem o poder de: (i) concentrar a renda, (ii) deteriorar as contas públicas e (iii) desestabilizar politicamente quem tenta corrigi-la. Apesar dessas características, a taxa de juros é muito pouco entendida e discutida. Esse texto contextualiza essas questões no Brasil atual.

    Mas vamos começar pelo começo.

    Quando falei juros, em que você pensou? Nos juros do cheque especial? Do cartão de crédito? Do crediário? Do financiamento do automóvel ou da casa própria? Bem, esses juros, se você não tomar cuidado, têm o poder de comprometer seu bolso e sua vida.

    Mas existe outra taxa de juros que é ainda mais potente. E o pior é que raramente nos damos conta dela e de seu poder de destruição. É a taxa de juros que o governo tem de pagar. Junto com os gastos com a educação, com a saúde, com os investimentos em infra-estrutura e assim por diante, estão os gastos com juros, que podem comprometer o bolso do governo e a sua vida e a minha vida e a vida de quase todos nós.

    Quando as pessoas ou as empresas ficam devendo dinheiro para um banco ou para um agiota são obrigadas a pagar juros. De forma semelhante, o governo brasileiro acumulou dívidas (aqui me refiro ao conjunto dos governos federal, estaduais e municipais) e é obrigado a pagar juros. A diferença é que, ao invés de fazer um empréstimo, o governo vende títulos para bancos, empresas, fundos de investimentos, pessoas físicas, etc. O governo, assim, paga juros para essas pessoas que compram seus títulos.

    Mas como são determinadas as taxas de juros dos títulos do governo?

    As taxas dos títulos do governo são calculadas a partir da taxa Selic. E esta é determinada pelo Banco Central, não é livremente definida pelo mercado. Aquela conversa dos economistas de oferta e procura por dinheiro não vale para a taxa Selic. O Banco Central determina a taxa de juros e ponto final. Ah, e o governo paga.

    Todas as taxas de juros da economia sobem quando o Banco Central sobe taxa Selic. Essa é a razão de chamarmos a taxa Selic de taxa básica da economia brasileira. Seus movimentos são acompanhados pelas taxas do cheque especial, do cartão de crédito, e todas as outras taxas. Da mesma forma que influencia as taxas que o governo tem de pagar para quem emprestou para ele, para quem comprou seus títulos.

    Para você ter um ideia se nossa taxa básica é alta ou baixa, vamos comparar nossa taxa atual de 14,15% ao ano com taxas vigentes em outros países em agosto de 2015.


    1-IRYn5_CT0vV8nS2anl1gJwPorque nossa taxa é tão alta?

    Há economistas que acreditam, ou pelo menos afirmam acreditar, que a taxa de juros é obra da natureza, qual uma semente de goiaba que brota, cresce e se torna uma árvore sem interferência humana. Para eles nada há a fazer senão lamentar que a natureza tenha sido tão cruel com os brasileiros para manter uma taxa “natural” de juros tão perniciosa. Outros, como eu, julgam que a taxa de juros é socialmente determinada, um acordo, uma convenção social. Talvez nem todos os brasileiros tenham sido chamados a opinar sobre esse acordo em torno do nível da taxa de juros, mas implicitamente a maioria está convencida de que, de fato, o Brasil merece sempre ter as taxas de juros mais altas do mundo. Isso torna o acordo viável, com juros demasiadamente onerosos, até o dia que a maioria entenda que a taxa de juros é um dos maiores entraves ao desenvolvimento econômico e social do nosso país.

    Por que os juros deterioram as contas públicas?

    No ano de 2015 até agosto, o governo gastou R$1,1 bilhão a mais do que arrecadou, esse resultado é chamado de déficit primário porque ainda não somamos a despesa com os juros que o governo tem que pagar por conta de sua dívida. Os juros nesses oito meses acumularam R$338,3 bilhões. Somando os dois temos o que se chama de resultado nominal, que é o resultado primário mais os juros. Assim o déficit nominal, total, do governo nesse ano até agosto foi de R$ 339,4 bilhões. Em outras palavras, 99,7% do déficit de 2015 até agosto é o gasto do governo com juros.

    Você entendeu porque eu disse que os juros fazem um estrago danado nas contas públicas? Todo mundo fica falando que o governo gasta demais com salários, com programas sociais, até com a corrupção, mas o ralo mais evidente é a taxa de juros. E ninguém fala dela. Ou melhor, poucos falam dela. Certamente, você já ouviu muitas justificativas para a taxa de juros ser extremamente alta no Brasil. Mas já se ouviu algum economista afirmar que a dívida é alta porque a taxa de juros é alta?

    Porque a taxa de juros concentra renda?

    Já te assustei? Vou tentar piorar um pouco. Em doze meses, de setembro do ano passado até agosto desse ano, o governo gastou, com juros, R$484,4 bilhões. Esse gasto equivale a 8,45% do PIB. Ou seja, de tudo que o país produziu em um ano, que é o chamado Produto Interno Bruto, 8,45% foi usado para pagar juros para quem emprestou dinheiro para o governo.

    Estamos numa batalha doida para economizar, tentando gastar menos do que arrecadamos, e vemos um sorvedouro enorme sugando quase meio trilhão de reais por ano de todos os brasileiros em direção ao bolso de quem tem títulos do governo. O economista Márcio Pochmann estimou que cerca de 20 mil famílias investem em títulos do governo. Assim, dos impostos de 205 milhões de brasileiros que vão para o governo, cerca de meio trilhão de reais por ano voltam para 20 mil famílias na forma de juros, que tal?

    Além de altamente concentrador de renda o pagamento de juros causa outro problema para a economia do país. O dinheiro que vai para o bolso do trabalhador, por gasto social, por exemplo, volta para a economia porque ele consome o que ganha. Girando a economia, gerando impostos. Quando o recurso vai para os grandes investidores do mercado financeiro, na forma de juros, ele não é gasto, ele não entra novamente na economia para ajudá-la a girar, é acumulado, é esterilizado, no limite transforma-se em mais dívida, sem gerar impostos.

    Esse gráfico mostra a taxa básica de juros da economia brasileira, taxa Selic, de outubro de 1994, primeiro ano do plano real, quando era 60% ao ano, até 01/10/2015 quando estava em 14,15% ao ano. A menor taxa da série foi exatamente no governo Dilma quando chegou a 7,11% ao ano, no final de 2012 e início de 2013. Reclamamos da taxa de hoje, mas veja que já foi muito pior. Em 1995, por exemplo, a taxa Selic acumulou 53% para uma inflação de 22%, o que dá uma taxa real, acima da inflação, de 25% no ano. Um capital de R$ 1.000 engordou um quarto, em um ano, para R$ 1.250, em termos reais.


    1-Cn5TcL-Bm9-YKqOxRQaGQAPorque a taxa de juros desestabiliza politicamente quem tenta corrigi-la?

    A tentativa, que foi bem sucedida temporariamente, de colocar a taxa de juros brasileira num nível semelhante ao resto do mundo foi feita pelo governo Dilma. Pela primeira vez, na história recente, assistimos a taxa Selic ficar próxima de 7% ao ano no final de 2012 e início de 2013. Muitos, como eu, acreditam que todos os eventos políticos, para inviabilizar o governo, que se iniciaram em 2013 e perduram até hoje, tem origem na queda da taxa de juros.

    Os interesses contrariados com a queda dos juros são poderosos. A possibilidade de desconcentrar renda a partir daí era “assustadora”, pois a economia com os juros permitiria mais gastos sociais. O pacto de governabilidade com os bancos e empresários rompeu-se aí. A crise política de hoje tem origem nessa luta da elite para restabelecer a parcela que tradicionalmente recebe do governo e que tem na taxa de juros sua galinha dos ovos de ouro. Essa é a razão de eles defenderem um Banco Central independente.

    Os dados desse texto foram extraídos de http://www.bcb.gov.br , especialmente do relatório http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOLFISC