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  • O Brasil inventou o indigenismo neoliberal-ruralista

    O Brasil inventou o indigenismo neoliberal-ruralista

     

    por Ricardo Verdum*

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Independentemente do destino que a Funai vier a ter durante o governo de Jair Bolsonaro, um fato é certo: há pelo menos três anos as decisões políticas para os povos indígenas do País já estão diretamente ligadas aos interesses da aliança entre setores do agronegócio, da mineração e da indústria de infraestrutura. Tanto é assim que ela indicou os últimos quatro presidentes da Funai.

     

    Essa aliança vem atuando diretamente no órgão indigenista de forma coordenada e sistemática – além de truculenta – visando à mudança da legislação relativa aos direitos territoriais dos indígenas e o desmonte da rede de atores sociais a eles solidários.

     

    O “trabalho” tem sido feito por meio de insinuações e acusações fraudulentas, argumentos jurídicos tendenciosos, procedimentos que aparentam normalidade institucional, troca de favores e corrupção. A CPI da Funai/Incra (2015-2017) foi um exemplo disso.

    Com a escassez de recursos orçamentários e de pessoal na Funai, uma “nova” forma de pensar os territórios indígenas passou a ganhar espaço em meio ao indigenismo oficial e até no próprio movimento indígena. Ressurgiram narrativas que questionam o porquê de os indígenas não poderem ser empresários de si mesmos; nem arrendarem porções de suas terras ou estabelecer acordos comerciais; nem endividarem-se com o setor financeiro para alavancar seus projetos.

     

    Tais narrativas encontram eco em um tipo de indigenismo que chamarei de agroextrativista neoliberal. Um indigenismo que questiona e resiste a qualquer nova ação de demarcação oficial de terras indígenas, ao mesmo tempo em que estimula e apoia (nas comunidades com terras já demarcadas) maneiras de pensar, agir e organizar a vida que abrem as portas aos negócios da terra.

     

    Se não bastasse, o direito dos indígenas à terra está nas mãos do Ministério da Agricultura, controlado por ruralistas.

    Em 2017, emergiu no caldeirão da política nacional uma curiosa agremiação: o Grupo Agricultores Indígenas de Base, que veio a público tutelada por parlamentares ruralistas e notórios anti-indígenas e reverberou um discurso confuso e ressentido semelhante ao da extrema direita brasileira.

     

    Eles pedem mudanças no órgão indigenista e nas políticas públicas e também medidas que limitem a atuação de organizações não-governamentais que chamam de “comunistas” e “bolivarianas”.

     

    É cada dia mais urgente problematizar o tema agricultura indígena. Ao mesmo tempo em que temos sistemas tradicionais agrícolas se desenvolvendo em associação à conservação da floresta e à geração de agrobiodiversidade, há comunidades indígenas no Sul, Centro-Oeste e na Amazônia que, por incentivo e sem alternativa melhor, incorporaram a proposta de produzir commodities agrícolas em suas terras, e hoje delas dependem.

     

    Isso tem gerado efeitos nocivos à saúde humana e ambiental, assim como tensões e conflitos no interior das comunidades. No RS e em SC, “parcelas” de territórios indígenas foram arrendadas a agropecuaristas, que procuraram agências do Banco do Brasil para obter crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar em nome dos indígenas.

     

    Se as atuais políticas e a predominância dessa tutela conservadora forem adiante, a condição de subordinação dos povos indígenas e a descaracterização radical de territórios transformados em produtores de commodities, com certeza, se agravarão.

    Isso para não falar do acirramento dos conflitos, com vidas perdidas, o êxodo de indígenas de suas comunidades, e famílias e povos desconstituídos. Para enfrentar tudo isso, é preciso haver politização, articulação e mobilização pública que seja democrática, plural e igualitária.

     

     

     

     

     

     

    * Antropólogo social e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e sócio efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). É autor dos livros “Povos Indígenas, meio ambiente e políticas públicas” (2017) e “Desenvolvimento, utopias e indigenismo latino-americano” (2018).

     

    • imagens por Helio Carlos Mello©
  • Produção e meios de produção indígenas

    Produção e meios de produção indígenas

    É como se Elis Regina cantasse Dois Pra Lá, Dois Pra Cá, o falso brilhante a inebriar com falsas promessas, rompendo de vez os laços com a terra.

    A incrível imagem da semana, do fotógrafo indígena Kamikia Kisedje, no Pólo Wawi & aldeia Khĩkatxi do povo Khĩsetjê, TI Wawi-MT, fala da aldeia, nas franjas do agronegócio que avança, voraz.

     

    Por que temem o jeito de viver dos povos originários? Minha alma pergunta em dia de Páscoa. É o verde que assusta, é a onça no mato, é o alimento limpo da terra entre água pura?

     

    Comem a alma da gente.

     

    O poder desses dias quer ver o índio que planta soja, exalta determinada etnia em seu lado empresarial, mesmo que isso nada diga do saber indígena, mas dá essa mensagem o governo aos povos: ganhem dinheiro, muito dinheiro.

     

    Para que invadir mais terras, tantas já estão ao aro das ferramentas, é necessário ocupar mais a terra já tão usada no Brasil?

     

    Creem que terra livre é terra sem árvores, sem abelhas que mordem, sem esse assunto de trânsito livre em rios para os peixes. Querem ordenar o meio ambiente.

     

    Se enganam. Terra Livre é encontro de indígenas de todos os cantos.

     

    Eu, do que sei de índio, índio que vejo e abraço, e são tantos, sempre produziram, e tanto, e tanta mandioca em roçados livres na terra, que se recupera rápido, tanto peixe alegre nas beiras, tantos caldos quentes e suas especiarias. Fruta do mato, mamão da roça, óleos variados.

     

    Fico pensando no que alegra ao poder pensar em índio dirigindo tratores, batendo o laço na calça jeans ou dando ordens nos campos.

     

    Confuso esses tempos, em que a diversidade e diferenças pelo mundo possam a tão poucos ameaçar e amedrontar antigos hábitos de usura.

     

    O universo pop agro desconhece que é junto com a floresta que se faz bom alimento, teme a água pura cheia de matas a abraçarem o trabalho em roça.

     

    É roçado que alimenta a carne da gente, brasileiro, nos rincões, veredas, sertões. O agro quer dividendos, índio faz trabalho, cuida dos seus e de nós.

     

     

    Ciso, ardo.

  • O bem que se colhe e o mal que se planta

    O bem que se colhe e o mal que se planta

     

     

    Comi comida de índio e seu gosto era puro, de terra limpa. Indago se é a língua ou a mão do homem que colhe e planta entre a mata, fazendo da vontade a fome vencida, seu sabor. Algo rompeu o elo de corrente ou nó de corda, na necessidade diária de alimento, quando o mercado invadiu o campo e as grandes lavouras ocuparam a paisagem, a monocultura de latifúndios.

    Já não é mais o pé de banana, a mandioca, o pé de milho e uns ramos de coentro que importam aos labores da terra. Os poucos homens do campo que mandam e definem os rumos da agricultura, querem tudo que  podem colher e fazer renda, produzir milhões de toneladas e abastecer o mercado do mundo. Agro é a indústria da riqueza para quem, pergunta minha aorta.

    Todos têm fome, e saúde plena depende de alimento limpo, por mais que neguem ou inventem remédios e novos arranjos genéticos. Denomina-se ingestão diária aceitável (IDA) o veneno que ingerimos dia a dia, e consentido pela agência nacional de vigilância.

     

     

    Mulheres indígenas Kawaiweté removem a terra limpa sobre o forno de pedras quentes, onde por horas assaram as batatas doces, colhidas na roça entre as matas da Terra Indígena do Xingu.

     

    É a vitória da insanidade. Milhões de abelhas morrem todos os dias ou outros tantos milhões de insetos são exterminados, anunciando a vida em desequilíbrio. 

    Os consumidores, em lugares incertos no futuro, não terão meio ambiente algum e a natureza selvagem que nos resta será conhecida nas velhas fotografias. A fome será sanada pela Basf, Bayer, Dow, Dupont, Monsanto e Syngenta, os cavaleiros do apocalipse. Envolvem os alimentos com herbicidas, pesticidas, hormônios e adubos químicos. Expõem a humanidade aos danos da contaminação, engordam contas bancárias, enquanto a humanidade, vulnerável, adoece. Nos dão o ovo da serpente.

     

     

    O Brasil é o maior importador de agrotóxicos do planeta e permite o consumo de substâncias que já são proibidas em vários países e banidas de seus ares e cursos d’água.  Superávits exterminam o cerrado, engolem a Amazônia. 

     

     

    Há novas concessões permitidas pelo novo governo, venenos possíveis ao abismo de nossos pés, tão desejáveis aos negócios do agro sob nova direção.

    Por mais absurdo que seja nesse momento e assunto, recordo-me de Cartola, quando falava do amor e que o mundo é um moinho, aquilo que quando notarmos estaremos à beira do abismo. 

    Querida natureza reduzida a pó, em pouco tempo não serás mais o que és.

     

     

    *imagens por Helio Carlos Mello©

  • Decolonize! Terra Brasilis: o agro não é pop

    Decolonize! Terra Brasilis: o agro não é pop

    Por Arthur Imbassahy para os Jornalistas Livres

    Na exposição Terra Brasilis: o Agro não é pop! de Denilson Baniwa, o artista apresenta a luta em um país cortado pelo colonialismo: o latifúndio em oposição aos povos indígenas que há séculos continuam resistindo e existindo apesar de todos os ataques. A exposição começa com duas pinturas, como se por escolha dos curadores esse conflito ficasse mais evidente. De um lado, um jovem índio com cruzes e grafismos na pele. Frases em nheengatu evocam o longo processo de silenciamento que indígenas viveram por toda América nas reduções jesuíticas e continuam vivendo até os dias de hoje com as missões evangélicas. As pinturas seguintes neste lado da exposição fazem uma crítica contundente ao agronegócio. Denilson Baniwa situa a monocultura do agronegócio junto com outros frutos do colonialismo, que também tentam exterminar a diversidade para a afirmar uma só espécie, um só Deus, uma só língua. Do lado contrário, a prova que o colonialismo não conseguiu silenciar a língua e a criatividade de um povo. Na pintura chamada Waferinaipe ou os antigos heróis do universo que abriram o umbigo do mundo, Denilson Baniwa torna presente uma cena fundante: a origem da humanidade.

    O Minotauro ou Mánhene (O veneno do mundo)

    Na legenda desta imagem, o artista conta que só mesmo um golpe publicitário conseguiria fazer o agronegócio (latifúndio modernizado, o que há de mais velho no Brasil) passar por pop. Também formado em publicidade, Denilson Baniwa revela o que se esconde por trás dos slogans: o minotauro, tal como o agronegócio, prende o Brasil em seu labirinto de suposta salvação econômica. Enquanto isso o devora. O deserto verde de um campo de soja aparece em outra pintura como uma “terra envenenada com odor de morte”, plantas crescendo com agrotóxico sobre um cemitério de floresta. Mas a resistência se faz presente. Em uma Amazônia cada vez mais destruída, as terras demarcadas são um oásis. Denilson Baniwa presta uma homenagem a todos ativistas indígenas que lutam para reverter a situação e garantir o direito à terra, como fez a liderança guarani Marçal Tupã até ser assassinado em 1983 no Mato Grosso do Sul.

    Waferinaipe ou Os antigos heróis do universo que abriram o umbigo do mundo

    Já no outro lado da entrada, a obra Waferinaipe mostra que cinco séculos de colonização não foram capazes de silenciar as expressões cosmológicas de um povo e a criatividade de um artista. Talvez seja esta a obra de maior força da exposição, uma força capaz de afirmar outra origem para o mundo. Denilson Baniwa é um dos principais nomes de uma geração de artistas que afirmam a diferença no mundo da arte. Posições minoritárias que sempre existiram, mas como disse o poeta, ensaísta e tradutor Haroldo de Campos foram “objeto de sequestro” pela historiografia oficial. Este resgate feito por Denilson Baniwa, também realizado pela Rádio Yandê da qual é um dos coordenadores, se aproxima de uma estratégia bastante usada no Brasil ao longo do século XX, por nomes como o próprio Haroldo de Campos. Trata-se de incorporar o que pode ser positivo no Ocidente (suas tecnologias de comunicação, por exemplo), negar seus aspectos negativo (neste caso o agronegócio), e a partir daí afirmar uma outra posição, mas desta vez bem armado. Tudo isto, é claro, afirmando a contemporaneidade dos povos indígenas. No vídeo do Instituto Socioambiental, “#menospreconceitomaisíndio, uma voz baniwa se pergunta: se tudo mudou desde 1500 e o homem branco continua branco, por que os indígenas não podem mudar e continuar indígenas?

    awá uyuká kisé irumu, ta uyuká kurí aé kisé irü (quem com ferro(faca) fere, com ferro(faca) será ferido)]

    A exposição Terra Brasilis: o agro não é pop! de Denilson Baniwa com curadoria de Wallace de Deus e Pedro Gradella vai até terça-feira (01/05, até as 22h) e é parte do projeto Brasil: a Margem, que aconteceu no mês de abril no Centro de Artes da UFF, Niterói – RJ. O projeto também contou com uma apresentação de Nelson Sargento, a exibição do filme Híbridos, a exposição Devotos, e um debate sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro, dentre outras atividades.