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Categoria: Transfobia

  • MARCHA MUNDOS DE MULHERES: Aliança feminista internacional avança contra machismo e retirada de direitos

    MARCHA MUNDOS DE MULHERES: Aliança feminista internacional avança contra machismo e retirada de direitos

    Enquanto a denúncia contra os crimes de corrupção do presidente ilegítimo era covardemente rejeitada no Congresso Federal, em Florianópolis, um pelotão gigante de mulheres de todo o país e de várias partes do mundo marchava no final do dia 2 de agosto pela cidade aos gritos de “Fora Temer” e exigindo o fim da violência machista e a retirada de direitos sociais. A cidade tremeu ao rufar dos tambores da Banda Cores de Aidê, formada só por mulheres, como se sacudida por um terremoto colorido pela explosão de cordões das minorias políticas pelas ruas. Não foram sete, nem oito mil, como eram as expectativas das organizadoras: foram 10 mil, segundo a coordenadora do Movimento de Mulheres Urbanas de Santa Catarina, Shirley Azevedo, apoiada no cálculo de especialistas com base no número de pessoas por metro quadrado.

    Um exército feminino aguerrido ocupou as ruas principais da cidade desde o início da tarde até passadas as 20 horas. A Marcha Internacional Mundos de Mulheres por Direitos integrou a programação das duas maiores assembleias acadêmicas da humanidade sobre relações de gênero: o 13º Congresso Mundo de Mulheres por Direitos e o 11º Seminário Internacional Fazendo Gênero, que este ano acontecem simultaneamente no campus da Universidade Federal de Santa Catarina, de 31 de julho a 4 de agosto. O ato mostrou que lugar de intelectual, sobretudo em tempos de opressão, é também as ruas. “Não existe essa separação entre a academia e a militância. Nós todas estamos entrelaçadas nesta luta”, defendeu a presidente da Comissão de Mulheres na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, Marielle Franco, vereadora pelo PSol, que veio a Florianópolis participar das mesas de debates e do protesto de rua.

    Vídeos: Raquel Wandelli

    Aproveitando a presença de 8.600 pesquisadoras e ativistas sociais inscritos nos dois eventos, a rede de entidades reunidas em torno da Tenda dos Movimentos Sociais do Mundo de Mulheres começou a articular a manifestação junto com o movimento sindical. O trabalho começou já no ano passado, para que houvesse tempo de mobilizar caravanas de todo o país e de preparar apresentações artísticas, cartazes, faixas, refrões, performances teatrais. Foi assim que tornou-se realidade o sonho coletivo dessas lideranças de colocar as acadêmicas nas ruas para militar junto com as trabalhadoras, camponesas, mulheres dos povos tradicionais em luta e todas as minorias políticas organizadas.

    Fotos: Rosane Lima

    A concentração partiu às 17 h pelas principais ruas de Florianópolis, provocando um impacto estridente com o rufar dos tambores da Banda Cores de Aidê

    O resultado ultrapassou as expectativas dos organizadores, como afirma Shirley Azevedo. E o feminismo provou definitivamente que é o movimento mais potente deste milênio, como já haviam previsto as sociólogas do século XX. “E é só o começo. Ainda vamos incomodar muito esses golpistas que querem esmagar nossos direitos”, avisa ela. “São meninas e jovens que vêm junto para a luta, têm garra e sabem muito bem o que defendem”. O caminho do feminismo após o pedido de investigação de Temer ter sido barrado no Congresso Federal é, conforme Shirley, a unidade na América Latina e em todo o mundo. “O que acontece no Brasil não é isolado, é uma ação global de violência e de retirada de direitos das mulheres e das minorias, contra a qual temos que dar uma resposta também mundializada”. No encerramento dos congressos, na sexta-feira (04/07), será aprovado um manifesto do 8M pela unificação mundial da luta feminista.

    Dez mil mulheres marcharam sobre Florianópolis forjando uma poderosa aliança de minorias

    Uma faixa pedindo “Demarcação Já” sobreposta à faixa do “Congresso Multimulheres”, como também é chamado, deu o grito de guerra que unificou não só indígenas e quilombolas, mas todos os coletivos que integram a diversidade do movimento feminista. Atrás dessa composição de faixas, que ficou como um emblema do grande ato, formou-se uma barreira de solidariedade. São mulheres brancas, quilombolas, camponesas, trabalhadoras urbanas, indígenas, negras, ativistas dos grupos LGBTTTQI, gordas, mulheres com deficiência, sindicalistas e muitos homens que incentivam o movimento feminista por considerarem que o machismo oprime todos os seres humanos.

    À frente desse pelotão heterogêneo, ocorreu a cena mais tocante da marcha, que selou o pacto de solidariedade entre as minorias: depois de dançarem ao som do seu batuque eletrizante, as ativistas da Banda Cores de Aidê, na maioria negras, foram retribuídas com a dança e a música das mulheres indígenas de cerca de 15 aldeias de diferentes etnias, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. “Fiquei muito emocionada porque estava acostumada a fazer nossas coreografias para as outras mulheres, mas ainda não tinha visto as indígenas cantarem e dançarem com a gente”, diz com a voz embargada Nattana Marques, integrante do Cores de Aidê. Com essa troca arrepiante de rituais étnicos, a banda nascida no Morro do Quilombo, em Florianópolis, completou dois anos de criação. “Nós fazemos da arte um espaço de luta e empoderamento das mulheres tratadas como minorias”, explica a cantora e percussionista Dandara Manoela.

    Pertubador do início ao fim, o ato transformou a imprevisível Ilha de Santa Catarina, ora conservadora, ora vanguardista, na capital internacional do feminismo. A concentração iniciou às 16 horas, no Terminal de Integração do Centro (Ticen) e partiu às 17 horas pelas principais ruas de Florianópolis, provocando um impacto estridente com os tambores, os jograis, as coreografias, as performances teatrais as palavras de ordem contra as reformas trabalhistas e da Previdência Social, que penitenciam sobretudo as mulheres. O Grupo de Teatro do Oprimido encenou a violência física e simbólica contra as mulheres pela estrutura patriarcal do Estado.

    Ao partir do Ticen, as manifestante saíram em disparada pela avenida Paulo Fontes, ecoando o grito de guerra das mulheres árabes. A imagem estremecedora encenou uma grande corrida de milhares de mulheres avançando para o front de guerra. Antes, às 15 horas, uma concentração prévia já acontecia na UFSC, de onde um pelotão de cinco mil pessoas percorreu, com faixas e cartazes, cerca de 10 quilômetros para se encontrar com os manifestantes reunidos no Ticen. O Nome de Ricardo Nascimento, Rafael Braga, Cláudio Ferreira e outros negros e pobres vítimas da exclusão étnica e social foram muitas vezes lembrados.

    Mulheres camponesa vieram em caravanas do Oeste de Santa Catarina para dizer não à retirada de direitos

    Mostrar a capacidade de articulação e de aliança das causas feministas às lutas específicas de outros grupos foi o grande mérito desse movimento que surpreendeu Florianópolis e o país. “Nós lutamos pela libertação de todos os que lutam contra um mundo regido pelo patriarcado capitalista, racista, homofóbico e fundamentalista religioso”, diz o manifesto da marcha. “Protestamos contra a perda de direitos, a lesbofobia, o racismo, o governo machista este governo corrupto que aí está”, explica Maria de Lourdes Mina, que fez a chamada pública de todos os nomes de mulheres negras e quilombolas assassinadas pela polícia ou perseguidas pelo sistema judiciário, como Maria da Graça Jesus, a Gracinha. Presente na manifestação, a mãe do quilombo da Toca luta há dois anos para reaver a guarda das duas filhas. Um ônibus com 40 mulheres de várias etnias indígenas do Rio Grande do Sul engrossou a passeata, que também recebeu caravanas do Movimento de Mulheres Camponesas vindas de ao menos dez municípios do Oeste do Estado.

    Professora de educação indígena da etnia Kaingang, no Rio Grande do Sul, Jocélia Daniza conta que as lideranças do seu povo fizeram uma coleta com amigos para poder financiar a vinda de um ônibus com 40 mulheres para o evento. “Foi muito importante vir para que a gente pudesse expor nossa cultura, falar de nossos problemas de saúde e de educação, da violência sexual imposta por homens brancos nas aldeias e da nossa árdua luta por território, enfim, para mostrar que existimos”, afirma ela, que é mestre em Antropologia pela UFSC e doutoranda em Memória Social e Patrimônio pela Universidade de Pelotas.

    Um exército feminino infindável ocupou as ruas principais da cidade desde o início da tarde até passadas as 20 horas

    Depois do término da passeata, as congressistas se concentraram no vão do Mercado Público de Florianópolis, onde as manifestações políticas continuaram noite adentro, com coros de Fora Temer cortando a todo instante a falsa normalidade pública no dia em que o país foi violentado pela legitimação da corrupção e do golpe. A quinta-feira à tarde foi o dia das lésbicas, dos gays, travestis, transformistas, transexuais LesGaysBiTiniques fazerem sua revolução contra a ditadura do padrão.

    DEPOIMENTOS:

    “Ser mulher indígena é já nascer guerreira. Tá no sangue, tá na alma”, diz o refrão da música criada pelas compositoras e músicas Guarani do Morro dos Cavalos, em Florianópolis, e interpretada por indígenas de várias etnias especialmente para a marcha. A doutoranda e professora Kaingang Jocélia Daniza explica o sentido desta letra: “Ser mulher indígena, nascer num povo indígena é ser guerreira desde o momento que a tua mãe te concebe. É poder se empoderar e saber que no teu sangue vai correr sangue de um povo que foi massacrado, que continua sendo humilhado, que continua sendo retirado do seu território e expropriado ainda em 2017”.

    Levando na garupa a pequena Dora, de dois anos, e ainda sustentando dois cartazes e um celular para gravar a marcha, Laura Denise Castilho, enfermeira, explica porque a filha a acompanha na manifestação. “Nós somos mulheres feministas mostro pra minha filha aquilo que eu mais acredito que é gostar de mim mesma e defender os meus direitos. Trabalho com obstetrícia, com saúde pública, defendo o direito de todos e também os meus.  Todos os dias eu atendo alguém que foi vítima do machismo.

    Ela vem do Oeste do Estado, numa carava de ônibus junto com outros 30 camponesas. “Estamos participando dessa marcha e do congresso, denunciando toda violência praticada contra mulheres, opressão, dominação, exploração e também contra este governo antidemocrático que tira os direitos de trabalhadores, principalmente das mulheres e das camponesas”,  manifesta-se Zenaide Coleto do Movimento de Mulheres Camponesas. “Estamos aqui somando por que esta luta é dos trabalhadores e das trabalhadoras da roça e da cidade”.

    Um dia de igualdade na diversidade para todos os que fogem à ditadura do padrão (Walderes, à direita da foto)

    Algumas integrantes da marcha se emocionaram com a participação marcante das indígenas que costumam fazer uma resistência mais silenciosa e discreta, mas neste evento expuseram com mais exuberância sua arte. Como foi essa decisão? “Na verdade não somos quietas. É que dificilmente temos oportunidade de falar. Então hoje nós abraçamos essa oportunidade”, afirma Walderes Priprá, professora indígena da aldeia LaklãNõ Xocleng, do município de José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí. “Foi muito gratificante ter participado deste evento porque pudemos mostrar um pouco da história do nosso povo e da nossa luta. Sem palavras, foi incrível, todas nós estamos felizes.  Para o seu povo, a dança e a música são os rituais que alimentam a vida.

    No dia seguinte à Marcha, choveu torrencialmente em Florianópolis. A antropóloga Miriam Grossi, coordenadora geral do Congresso Multimulheres e uma das idealizadoras do Seminário Fazendo Gênero, que começou em 1994 como uma atividade restrita ao Curso de Letras da UFSC e logo ganhou proporções internacionais, deixou este depoimento em sua página: “Ontem as deusas nos protegeram até da chuva na Marcha das Mulheres por Direitos, que reuniu 10 mil mulheres no centro de Florianópolis. Foi tão lindo, intenso, perturbador e emocionante estar ao lado de uma multidão de jovens (e algumas mais velhas) mulheres lutando pelas bandeiras feministas pelas quais lutamos há décadas, que nem fotos fiz. Após três dias de muito sol e calor, hoje o dia amanheceu chovendo… E vamos para o quarto dia do 13º Mundo de Mulheres/11º Fazendo Gênero que depois de centenas de atividades fechará com a conferencia de Clare Hemings. Todas lá, companheiras de luta!”

    “Foi lindo, intenso, perturbador”, escreve Miriam Grossi (de roxo), coordenadora do Mundo de Mulheres, que encerra nesta sexta (Foto: arquivo pessoal)

    #MarchamosJutasPorNenhumaAmenosAtéQueTodasSejamosLivres!

  • A violência contra travestis e transexuais nas engrenagens do ambiente carcerário

    A violência contra travestis e transexuais nas engrenagens do ambiente carcerário

    Por Leo Moreira Sá, dos Jornalistas Livres

    Era uma roda de conversa em junho, dia 25. Discutia-se o “sistema penitenciário e população LGBT”, na Casa 1, centro de cultura e acolhimento de LGBTs. O evento foi parte do ato “30 Dias por Rafael Braga”, mês dedicado à denúncia da criminalização da juventude negra –que representa 60% das pessoas em privação de liberdade nos cárceres brasileiros.

    Rafael, um negro em situação de rua, foi o único manifestante da jornada de julho de 2013 a ser preso quando portava uma garrafa de pinho sol. Um mês depois da sua liberdade, em janeiro de 2016, foi preso novamente e condenado a mais de 11 anos de cadeia por tráfico de drogas. As únicas testemunhas do suposto crime foram os policiais que o prenderam. Não por acaso o debate sobre segurança pública acontecia na na Casa 1, cujos acolhidos em geral estão em situação de rua, muitos egressos do sistema prisional.

    A roda de conversa levantou uma discussão urgente: a violência contra travestis e transexuais no ambiente carcerário. Na mesa estavam o antropólogo Marcio Zamboni, que pesquisa sobre a diversidade sexual e gênero no sistema penitenciário, a representante do grupo mulher e diversidade da Pastoral Carcerária Anna Carolina Martins, a advogada Carolina Gerassi, criminalista atuante na defesa de pessoas trans, o ator e Jornalista Livre Leo Moreira Sá, além da maquiadora Veronica Bolina.

    Veronica Bolina na roda de conversa na Casa 1 durante evento que fez parte do ato “30 dias por Rafael Braga”: a pessoa negra e pobre é alvo primário da violência e é importante que a população LGBT se aproxime desse debate.

    Veronica é personagem de caso emblemático. Mulher transexual*, negra, depois de ser presa por agredir uma vizinha sofreu violência policial nas dependências de uma delegacia no centro de São Paulo em 2005. Ela foi colocada em celas com homens cisgêneros quando já existe legislação garantindo um espaço adequado pra pessoas trans. Depois de ser violentamente espancada, Veronica reagiu e mordeu a orelha de um agente. Após a agressões, os policiais divulgaram na internet fotos mostrando seu corpo semi nu e o seu rosto deformado pelo espancamento. Veronica, depois de dois anos presa, foi absolvida das agressões cometidas contra sua vizinha, foi absolvida das agressões cometidas contra sua vizinha, por ter sido considerada inimputável à data dos fatos. Atualmente, passa por acompanhamento psicológico.

    A repercussão do caso na grande mídia depois que as imagens foram divulgadas nas redes sociais e irradiadas pelos ativistas LGBTs deu visibilidade ao caso e garantiu a sua segurança e o tratamento condizente com sua identidade de gênero. No entanto, nenhum dos policiais agressores foram punidos porque a corregedoria da Polícia Militar não deu andamento à denúncia de tortura.

    O Ministério Público ainda está apurando o caso e as investigações continuam. A advogada de Veronica, Carolina Gerassi, está recolhendo provas para que esses policiais sejam punidos e afastados da corporação. Também luta para defender sua cliente da acusação de lesão grave ao carcereiro que, em seu entender, agiu em legítima defesa: “É uma total violação de direitos pegar uma pessoa que está visivelmente transtornada em surto e encarcerar em vez de levar pro hospital e dar o tratamento humanitário”. Veronica ficou 48hs em 2 delegacias onde foi espancada e torturada. De tanto apanhar, a prótese de silicone está deslocada. “Isso demonstra que a lesão causada no carcereiro foi de legítima defesa”, completa a advogada.

     

    A advogada lembra ainda que a resolução 11 da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SAP) , de 30/01/2014, teria como objetivo criar dispositivos de defesa à travestis, mulheres transexuais e homens trans dentro do sistema prisional Paulista. “Mas ela já nasceu transfóbica”, diz a especialista. Carolina cita o exemplo do artigo 3º da resolução, no qual existe imposição de procedimento cirúrgico de transgenitalização como requisito para inclusão da pessoa em “unidades prisionais do sexo correspondente”. Isso, por si, exclui a maior parte das pessoas trans que ou simplesmente não querem fazer as cirurgias ou por conta da fila de espera do SUS (Sistema Único de Saúde).

    Outro artigo, o 6º, impõe que os procedimentos de ingresso na unidade prisional de visitantes transexuais e travestis devem ser “realizados por agente de segurança penitenciária conforme o sexo biológico”, excetuando-se esta regra apenas em caso de cirurgia de transgenitalização. Isso significa que travestis e mulheres transexuais não operadas terão que passar pela revista com agentes masculinos e homens trans, com agentes femininos. E há lacunas em toda a resolução SAP 11, que flexibiliza cada unidade prisional a adotar ou não os dispositivos. Ou seja, no artigo 2º, diz claramente que “as unidades prisionais podem implantar, após análise de viabilidade, cela ou ala específica para população de travestis e transexuais de modo a garantir sua dignidade, individualidade e adequado alojamento”.

    Homens trans são muito bem aceitos no sistema prisional feminino e não há, até o momento, nenhum relato de maus tratos. Mas são muitos os casos relatados de violência sexual contra pessoas trans em presídios masculinos. Um local separado do convívio com homens cisgêneros para a população de travestis e mulheres transexuais é fundamental para preservar sua integridade psicológica e física. Vale lembrar, ainda, que a polícia leva travestis e mulheres transexuais diretamente para o seguro onde são usadas como escravas sexuais e obrigadas a fazerem os trabalhos que são considerados “femininos” como limpar a cela e lavar roupa.

    Presente no evento, a ativista independente Neon Cunha, fez uma perspectiva histórica da violência contra travestis e transexuais no Brasil. Neon foi frequentadora da “boca do lixo” – região do centro de São Paulo no bairro da Luz, nas décadas de 80 e 90, e contou que a violência contra pessoas trans vem desde o regime militar. Ela presenciou e foi muitas vezes vítima de violência policial. Foi presa nos “arrastões” do delegado Ricchet (1982) e na “operação tarântula” (1987) que tinham um objetivo higienista muito parecido com a forma como os dependentes da cracolândia foram recentemente tratados.

    Neon lembrou que os policiais paravam os camburões nos guetos sociais LGBTs e todas as pessoas que estavam ali iam presas e libertadas depois de fichadas. As travestis e mulheres transexuais recebiam um tratamento mais cruel e eram frequentemente extorquidas nas delegacias. Elas costumavam se automutilarem com a lâminas de barbear que escondiam na gengiva: “você quebra a lâmina no meio e encaixa na gengiva com a parte cortante pra baixo… não machuca”, lembrou Neon. Os policiais não pegavam nas travestis machucadas com medo de contrair o vírus da AIDS.

    Todo esse histórico de violência contra a população trans reflete a desumanização e consequente criminalização de travestis, mulheres transexuais e homens trans no Brasil, o país campeão de crimes por transfobia no mundo. Até o momento a RedeTrans contabilizou 90 assassinatos e 38 tentativas de homicídio em 2017 e em 2016 foram 144 mortes por transfobia. A própria população não se comove com a crueldade com que travestis e transexuais são assassinadas e assassinados diariamente.

    A falta de acesso à uma moradia digna, à educação e ao mercado de trabalho formal empurra essa população para as margens sociais onde estão expostas a todo tipo de violência inclusive à violência policial. Se não são assassinadas e assassinados ficam expostas ao encarceramento como forma de higienizar uma sociedade construída sobre uma cultura misógina, racista e transfóbica.

    “Quando a gente passa a analisar as engrenagens do sistema prisional brasileiro, fica claro que opressões de raça e classe são a base de tudo, e é justamente por isso que a pessoa negra e pobre é alvo primário da violência gerada através desse processo. Então, é importante que a população LGBT se aproxime desse debate, porque até mesmo entre nós, a exemplo de Veronica Bolina e Luana Barbosa (mulher cisgênera lésbica que morreu após ser espancada por policiais em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo), é a pessoa LGBT negra quem esta mais vulnerável”, disse em discurso da abertura do evento Henrique Santana um dos organizadores da campanha “30 dias por Rafael Braga”. E como concluiu Neon: “esse país não chora por travestis e mulheres transexuais e em especial por negras e pobres”.

    *Embora tenha sido amplamente divulgado pela mídia que Veronica é uma travesti, ela na verdade se autodefine como mulher transexual. Ainda que exista uma luta política preocupada em desconstruir o estigma negativo que a palavra travesti carrega, é preciso também desconstruir o estereótipo de que mulher transexual é aquela que é branca, feminina, teve acesso à informação e fez ou quer fazer cirurgia de transgenitalização.