Foi realizado neste sábado, 18 de janeiro de 2020, a PASSARELA-MANIFESTO DASPU para celebrar a (r)existência de putas, kengas, travestis e trans na luta pela garantia de direitos e liberdades. A passarela manifesto foi realizada dentro da programação do Festival Verão Sem Censura, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura.
PUTA PASSARELA DE LUTA!
À meia noite, após exibição do filme Bruna Surfistinha, filme usado pelo atual presidente do Brasil como bode expiatório para controlar e vigiar os direitos culturais e as liberdades, aconteceu o desfile-performance da Daspu numa transa inédita com a marca Ken-gá Bitchwear. Duas marcas que enchem a boca para expressar a palavra PUTA como arma de luta contra todas opressões e violências que vivem as mulheres, principalmente, por escaparem às normas sexuais e de gênero. Com peças icônicas dos seus acervos, Daspu e Ken-gá se uniram para mostrar quão poderoso é ser uma PUTA.
A alegria foi a mola-propulsora do desfile. A ousadia, o posicionamento, a força, o reconhecimento e o desbunde estiveram em cada passo e dança reveladas na passarela. A plateia urrou e dançou junto. PUTA (r)esistência.
Celebração às putas, kengas, travestis e trans na passarela.
Celebração às putas, kengas, travestis e trans na passarela.
Celebração às putas, kengas, travestis e trans na passarela.
Celebração às putas, kengas, travestis e trans na passarela.
Celebração às putas, kengas, travestis e trans na passarela.
Celebração às putas, kengas, travestis e trans na passarela.
Renata Carvalho abriu o desfile trazendo um fragmento cênico da peça “O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu”, da qual foi protagonista e que sofreu vários ataques e atos de censura desde a sua estreia em 2016. Erika Hilton, deputada estadual da bancada ativista e as atrizes Leona Jhovs e Veronica Valentino também ocuparam essa passarela de luta. A artista Fabiana Faleiros, conhecida como Lady Incentivo, fez uma performance para homenagear a madrinha das putas, Elke Maravilha, que participou de inúmeros desfiles da Daspu.
Daspu e Ken-gá
A Daspu foi criada em 2005 por Gabriela Leite, ativista e fundadora do movimento de prostitutas no Brasil. Criou a Daspu para dar visibilidade ao movimento e sustentabilidade às ações da organização Davida, fundada na década de 1990. Com a repercussão e o afeto gerado pela sua proposição, a marca acabou se tornando um dispositivo artístico-cultural que dialoga com as questões relacionadas ao corpo no embate com as normas sexuais e de gênero, movimentando essa puta passarela de lutas feministas e LGBTQI+. Quem está à frente da marca é Elaine Bortolanza, produtora cultural e ativista do movimento brasileiro de prostitutas.
facebook @daspudavida instagram @daspubrasil
A Ken-gá, marca lançada em 2016, faz parte da luta pelo empoderamento feminino, com muito bom humor, tendo o máximo respeito pela diversidade de corpos e pregando as liberdades dos desejos. Todes podem ser o que quiser. Criamos o termo bitchwear para dissociar a ideia negativa da mulher considerada vagabunda, puta, kenga ou bitch, apontada dessa forma por ser autêntica, ter coragem, não ser normativa , não ocupar o lugar que dão pra nós mulheres, a submissão ou o slut-shaming,Ken-gá vem pra mostrar o quão poderoso é ser uma BITCH.
Instagram @kengawear
As modelos se preparam para o desfile-manifesto das putas, kengas, travestis e trans na luta.
As modelos se preparam para o desfile-manifesto das putas, kengas,
Lorena Vicente, do extremo sul de São Paulo, uma jovem negra trans que tentava sobreviver, em meio ao ódio e insegurança oriundos dos preconceitos e hipocrisias de uma considerável parcela do povo brasileiro. Essa história pode parecer tirada de um enredo comum, mas não é.
Em meio aos dados de expectativa de vida dessa população que é de 35 anos, Lorena “já” havia chegado aos 23 anos de vida, mas não a deixaram passar da segunda década de vivências, quando foi cruelmente assassinada. A psicanálise tenta explicar essa motivação: motores de ódio ligados a questões íntimas do agressor ou assassino.
A jovem trans estava prestes se formar neste ano. Ela fazia o 3o ano do ensino médio no EJA, Ensino de Jovens e Adultos, na escola E.E. Reverendo Jacque,s no Jardim São Luís, e ao contrário de ser um corpo indesejável no prédio da escola, ali, talvez, fosse o único lugar público, onde realmente Lorena era querida por alunos e professores. Sua família a acolhia, a defendia. Tanto é que, dois anos antes, Lorena perdera um irmão, a motivação: o rapaz tentou defende-la de bulliyng com horríveis xingamentos e foi espancado por um homem, na sua frente, até ser morto, na sua frente. Segundo seu professor de História, Severino Honorato, “ela carregava essa culpa, essa dor, essa tragédia”.
Foto: arquivo pessoal
Dentro de uma realidade completamente absurda como essa, o que resta para pessoas trans e travestis? Muitas acabam se envolvendo com drogas e jogadas às violências das noites das cidades. Daí, o dado de expectativa de vida dessas pessoas ser tão absurdo: apenas 35 anos, ou seja, metade do tempo de vida da média nacional, segundo divulgacão da Agência Senado.
Somente ações de sobrevivência mudam essa realidade. E essas movimentações não são poucas. A população trans tem estado cada dia mais presente nos espaços, seja no Parlamento, com por exemplo, a deputada estadual Érica Malunguinho (PSOL/SP), a primeira mulher trans a ser eleita parlamentar na Alesp, seja nos esportes, no campo do Direito e em outros territórios. Ainda assim, essa realidade não abraça a maioria, mas têm sido muito importante para a qualificação do debate entre iguais e diferentes, mas sobretudo, no reconhecimento de que todos têm direito à vida. Mas o Brasil, ainda é o líder mundial de violência contra transgêneros.
Entre janeiro de 2008 e dezembro de 2014, foram registrados 1.731 homicídios, dado divulgado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, durante um julgamento de caso de violência contra trans em 2015. Lorena é mais uma pessoa trans que infelizmente, se soma ao dado divulgado pelo ministro Barroso.
No último dia 14 de outubro, por volta de 15h, numa praça pública, próximo de sua casa, Lorena tentava amparar a sobrinha de seu assassino, que passava mal pelo uso de entorpecentes. Segundo a tia, Janete, no momento em que ajudava a jovem, Lorena foi surpreendida por Paulo Alves, tio da menina que passava mal e que ao ver a cena, acusou a jovem trans de ser a responsável pela entrega de entorpecentes a sua sobrinha.
Em seguida as agressões começaram. Muitos golpes na cabeça, até que Lorena caiu e no chão permaneceu inconsciente. Ainda assim, as agressões continuaram. Levada desacordada para o Hospital do Campo Limpo, ficou na unidade de terapia intensiva. Lorena faleceu na madrugada de 15 de outubro, dia dos professores. A causa da morte, na declaração de óbito: infarto agudo e edema cerebral. O ódio e as questões íntimas de maldade do assassino, que continua foragido, nunca morrerão
Por Francisco Alves, especial para os Jornalistas Livres
O maior concurso transformista do estado de Mato Grosso aconteceu domingo passado, dia 16 de Dezembro, na capital Cuiabá – MT, no Teatro do Cerrado Zulmira Canavarros – o maior teatro da cidade. Trata-se do concurso de beleza Miss Mato Grosso Gay 2019 (@missmtgay2019), sob coordenação do Caio Cesar Bandeira e com abertura do cantor Hedson Santana, que fez uma retrospectiva musical da sua carreira.
Candidatas se preparam para o desfile. Foto Francisco Alves
Foram premiadas as candidatas Miss Simpatia – escolhida na hora entre os próprios concorrentes, e a Miss MT Gay 2019, Jennifer Lizz, representante do município de Poconé, que tem deficiência auditiva. Além de garantir uma vaga na etapa nacional do concurso, o Miss Brasil Gay, será realizado em agosto do ano que vem, em Juiz de Fora (MG), a vencedora do concurso também recebeu um prêmio de R$ 2 mil em dinheiro e procedimentos estéticos para o rosto. Lizz precisou recorrer a uma tradutora de Libras para fazer o discurso de vitória, o que emocionou ainda mais os presentes.
A vencedora, Jennifer Lizz, da cidade de Poconé, MT
O Miss MT Gay avaliou 16 candidatas, cada uma de um município ou distrito de Mato Grosso e teve como finalidade dar visibilidade à causa LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans, queers e outras identidades sexuais), de forma a tornar a sociedade mais inclusiva. Agora é torcer por Lizz no concurso nacional!
Por Josué Gomes, com colaboração de Helvio Caldeira, para Jornalistas Livres
Já é possível perceber que a figura do “desconstruído” das pautas identitárias foi absorvida por um mercado que vende através da sensibilização, onde a visibilidade se disfarça de representatividade e uma onda de silenciamento arrasta para trás das telas e palcos a oportunidade de minorias poderem falar por si.
Em 27 de dezembro de 2017, foi anunciado que o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte receberia a peça de teatro Gisberta, espetáculo que conta a história de vida da artista transexual Gisberta Salce, símbolo LGBT que viveu nas fronteiras entre o Brasil, França e Portugal e foi assassinada de forma brutal em 2006. Se, por um lado, a peça tem sido elogiada desde sua estreia em outros estados, o mesmo não pode ser dito sobre a vinda do evento para BH: em tempos onde a sombra do conservadorismo se espalha pelo país, era de esperar que uma grande quantidade de frequentadores do CCBB reagisse de forma intolerante à sua divulgação, semeando palavras de ódio sobre as peças publicitárias e o suposto “incentivo” a uma agenda trans.
Porém, para além das reações de intolerância à diversidade, os posts divulgados pelo CCBB serviram para reacender outro debate: afinal, por que uma peça que retrata a história de uma mulher trans está sendo representada por um homem cis? Nessa linha, diversos comentários evidenciaram o incômodo da população, em sua maioria LGBTQ, com a controvérsia. “Quem tem consciência, não vai assistir e vai pedir também que uma pessoa trans faça o papel da Gisberta, ganhando tão bem quanto este ator está ganhando!”. Outra internauta também mencionou o tema em seu comentário. “Uma mulher transexual que viveu em prol de uma luta, sua morte se torna marco para as discussões de acessibilidade da população trans em todos, TODOS os meios sociais, inclusive da arte e quem vai dar vida a ela nos palcos e um artista homem cisgênero! Enquanto a classe artística não reconhecer seu lugar de fala não podemos nos calar para esses silenciamentos”.
Mais uma vez a discussão sobre o local de fala foi retomada. Afinal, um espetáculo em memória de uma mulher trans não deveria em primeiro lugar se preocupar em representar e agradar a população T?
Gisberta: um nome, um símbolo
Foto: .Blastingnews
Assim como a da maioria das pessoas trans, a vida de Gisberta Salce não foi simples. Nascida no bairro de Casa Verde, em São Paulo, Gis – como era chamada pelos mais próximos – passou pelos desafios de ser uma criança que não correspondia às expectativas da sociedade por seu sexo biológico. Dócil, apaixonada por divas da música e já com tendências para o mundo artístico, logo chamou a atenção dos familiares: era diferente. Na época ainda Gisberto, foi amparada pelas mulheres da família, principalmente a mãe e as irmãs, que a auxiliaram no processo de entender quem realmente era. Os pais e os irmãos, por sua vez, assumiram a postura oposta (o que é comum nestes casos): duros e intolerantes, exigiam a todo custo que a garota se comportasse como um “homem de verdade”. O terreno da masculinidade, porém, não era para ela.
Foi somente após a morte do pai que Gisberto se tornou Gisberta de fato. Aos quatorze anos, iniciou a vida em casas noturnas e não parou mais. Nos dezoito, já era um nome conhecido na maioria das boates de São Paulo. Assim como suas apresentações precoces, a transfobia lhe foi apresentada cedo: em uma onda de violência contra pessoas LGBT da região, seus dois melhores amigos foram mortos. Após o episódio, Gis se viu destinada a deixar o país como forma de segurança, o que a levou para os solos franceses.
E não parou por aí: da França, foi para Portugal, e se fez presente na cena LGBTQ local. Apresentou-se em boates, passou por dificuldades, mas não cogitou voltar para o Brasil. Por fim, cedeu à prostituição. A descoberta do HIV veio depois, assim como o desemprego e a falta de dinheiro para pagar as contas. Acabou encontrando abrigo em um edifício abandonado de Porto e por ali ficou. O lugar improvisado e deteriorado, logo depois, deu lugar ao que seria a cena de seu assassinato: por três dias, Gisberta foi agredida, abusada sexualmente com o uso de objetos e queimada por cigarros. Inconsciente, foi embalada em um pano e arremessada ao fosso do prédio pelos agressores, todos menores de idade. O mais velho dos assassinos tinha dezesseis anos.
O crime foi tratado como uma ‘brincadeira de mau gosto’ pelas autoridades e o único penalizado foi condenado a oito meses de prisão. Até mesmo após a sua morte Gisberta foi tratada pela imprensa portuguesa como Gisberto, o travesti.
Silenciamento trans na arte (e por que precisamos falar sobre isso)
Mais do que nunca, parece óbvio que contar as dores de uma mulher que passou por tanto seria mais interessante se feito por uma pessoa também trans. Assim, além do artista poder ocupar seu local de fala, este também ocuparia o lugar que muitos jamais conseguem chegar: as luzes de um holofote. Pensando nisso, o movimento trans de BH organizou uma manifestação no dia da estreia do espetáculo na porta do CCBB. O objetivo do evento, boicotado diversas vezes no Facebook, era não questionar apenas se um ator cis poderia interpretar um trans (visto que esse também é o papel da arte), mas chamar atenção para a dificuldade que pessoas trans enfrentam para conseguir interpretar papéis nos produtos televisivos, teatrais e cinematográficos.
Justamente no mês da Visibilidade Trans, uma peça sobre trans sem uma pessoa trans na produção sequer parece ainda mais estranho, para não dizer problemático. “Por que temos que aceitar que atores e atrizes cis interpretem personagens trans? Estamos na moda, na crista da onda. Quer ser moderno no teatro, cinema ou televisão? Coloque entre os personagens uma pessoa trans. É tão moderno um grupo dar visibilidade ao tema, não? Que autora maravilhosa falando sobre nós, você viu? Que filme contemporâneo com essa história, hein? Mas quando vão escolher alguém para representar um personagem trans quem é contratado? Um ator ou atriz cis…” destacaram, em nota, os constituintes do movimento. “Por que não tem atores cis interpretando as heroínas das histórias? Ou atrizes cis fazendo papel de galã? Não faz sentido, né? Então por que, quando se trata de personagens trans, convidam pessoas cis para os papéis? É liberdade artística? E sobre o ator não ter sexo? Nós artistas trans gostaríamos de conhecer de perto essa tal liberdade artística.”
Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres
Durante o ato na porta do CCBB, que reuniu cerca de 30 pessoas, mensagens de resistência foram entoadas pelos artistas trans de Belo Horizonte. Duda Salabert, presidente da ONG TransVest, fez um discurso contextual e pontuou, ainda, a falta de empregabilidade para os T. “Nós, pessoas travestis e trans, queremos protagonizar nossa própria história e questionar algumas estruturas que nos excluem. Quantas pessoas travestis e trans trabalham no CCBB? E na peça? Nenhuma. Se a peça estivesse realmente preocupada com a causa, que nos contratassem”. Também para o ator Rodrigo Carizu, o problema nunca foi a história, mas todo o sistema excludente. “Já é difícil para as pessoas chegarem no meio da arte, para os trans e travestis chegarem ao teatro. Nossa história precisa ser contada sim, mas precisa ser contada por nós. O problema não é um ator cis interpretar uma trans: o problema é que isso [a possibilidade] só funciona para quem é cis. O trans não tem espaço nem para fazer o trans, imagina só fazer o outro”, destacou.
Entre os presentes na manifestação, o diretor de cinema Ricardo Targino, autor de Quase Samba – filme com a temática trans – fez questão de explicar que o ato não era, de forma alguma, uma censura à liberdade artística. “Acho que em todas as falas dos envolvidos, isso está bem claro. Ser a favor da liberdade artística e, ao mesmo tempo, reivindicar o lugar do trans na arte não são questões excludentes. Só que a arte hoje só existe para os cis e as pessoas que conservam seus privilégios: as pessoas brancas e bem nascidas. Isso aqui para mim é significativo”, concluiu.
Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres
No fim da peça, os manifestantes também fizeram um ato de protesto em silêncio. Nus e levantando bandeiras nas cores azul, rosa e branco, os sujeitos permaneceram de pé, chamando atenção da plateia. “Prazer, eu sou uma verdadeira Gisberta”, eles se apresentaram ao público.
“Para os que são como eu, existir é sinônimo de resistência”
Foto: Divulgação
É com esses dizeres que Luis Lobianco, ator que apresenta o monólogo, destaca as dificuldades e desafios de ser um indivíduo trans num mundo heteronormativo. Com texto de Rafael Souza-Ribeiro, direção de Renato Carrera e produção de Cláudia Marques, o profissional coloca em cena diversos personagens que tiveram contato com Gisberta ao longo de sua vida. Das idas ao psicólogo na infância até os terríveis últimos dias de vida, o espectador acompanha uma tia, a irmã, o médico, um colega de trabalho, um admirador da moça e o juiz responsável pelo caso. Entre jogos de luz e efeitos musicais, Lobianco até interage com a plateia fora do personagem. A história de dor, por vezes, dá brecha para momentos engraçados entre o ator e os que o assistem. “Quem aí já foi criança viada? Anda, gente, levanta a mão!”.
Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres
Não reconhecer que o espetáculo está lindo seria injusto. No decorrer das cenas pude sentir a tristeza de ver uma vida ser tirada de forma tão cruel, a esperança de ouvir que Gisberta também foi feliz, dar risadas nos momentos de descontração e ouvir clássicos da MPB. A história contada de forma tão detalhista se empenha para que o publico entenda a realidade da vida das pessoas trans, as suas alegrias, orgulhos, dores e dificuldades. Para quem está inserido ou não no universo da questão LBGTQ a peça oferece uma viagem que faz compreender que dentro de números e estatísticas existem sonhos, vidas, humanidade e infelizmente sangue.
Mas você pode estar pensando: então ele não interpreta a Gisberta? “Menos mal”. Será? Embora o ator e toda a produção da peça diga que a primeira escolha feita foi a de não interpretá-la, durante muitos momentos entre cenas podemos perceber que naquele palco há uma presença simbólica de Gisberta que fala e que canta mesmo que essa não seja a intenção. Em especial a cena final, onde há uma performance musical, entra-se em um conflito de pensamentos: é ela? Impossível não imaginar o quanto seria mais fidedigno, justo, lógico e ético se naquele momento de intensa fruição soubéssemos que no trabalho diante de nossos olhos há as mãos de pessoas que são como Gisberta.
Houve diálogo com pessoas que passavam pela Praça da Liberdade Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres
De forma geral, a peça pode até arrancar lágrimas, mas é no momento em que as luzes se acendem que tudo fica claro: a plateia branca e padronizada parece ter saído de uma novela da rede Globo. Antes de comprarmos o ingresso é necessário pensar: como o espetáculo, colocado em um ambiente de luxo onde trans, negros e periféricos não se sentem acolhidos pode ajudar na luta contra a transfobia? Quantas pessoas serão tiradas da prostituição e da situação de rua devido a essa peça? Como esse trabalho valoriza o talento de pessoas trans? Após essa reflexão a decisão de assistir e financiar essa produção ultrapassa o campo do entretenimento e adentra a política. O comentário de um observador, sentado logo atrás deste que vos fala com o namorado, pareceu a última parte do quebra-cabeça. “Essa tribo, né, ela é meio exótica”.
Eles não aprenderam nada, Gis. Eles ainda não aprenderam.
“Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8,7)
Multiplicam-se os casos de censura sobre obras, artistas e manifestações culturais. Militares saem da ca(v)serna pela “volta dos bons costumes”. Como diz obra apreendida pela polícia: “O machismo mata, violenta, humilha”. Até quanto vamos permitir tal retrocesso?
#OFacismoAvança
#FascistasNÃOpassarão
A escalada fascista, iniciada ainda nos protestos de 2013 quando grupos batiam em manifestantes de esquerda gritando “SEM PARTIDO”, tem se acelerado de maneira incrível após a consolidação do golpe em 2016. Na sexta-feira, 15 de setembro, tivemos um general em loja maçônica pregando abertamente uma intervenção militar para “resolver o problema político”, (http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2017-09-17/intervencao-militar.html). Antes, o Museu de Arte de São Paulo – MASP já havia colocado cortinas negras sobre obras eróticas do pintor Pedro Correia de Araújo para “evitar a luz” (https://www.revistaforum.com.br/2017/09/16/masp-usa-pano-preto-sobre-tela-erotica-em-exposicao/)
Obra da mostra “Pedro Correia de Araújo – Erótica”. Panos negros sobre “a carne mais barato do mercado”.
Na quinta-feira passada, outra exposição de arte (a primeira foi a Queermuseu em Porto Alegre – https://jornalistaslivres.org/2017/09/fascistas-forcam-encerramento-de-exposicao-de-arte-em-porto-alegre/ – e dias depois o pré-candidato a presidente chamado de “mito” pelos seus seguidores acéfalos falou abertamente na gravação de um programa de TV que os “autores da exposição deveriam ser fuzilados”. Sim, ele diz que é “força de expressão” mas repete diversas vezes: FUZILADOS https://youtu.be/87lpZzgG38g) foi censurada em Campo Grande por pedido de deputados estaduais e teve um quadro APREENDIDO pela polícia por “incentivar a pedofilia”. Detalhe, a obra da artista de Uberlândia Alessandra Cunha, com o título Pedofilia, traz de maneira invertida (como que refletida no espelho em que um grande olho observa uma menina) por duas vezes a frase: “O machismo mata, violenta e humilha”. Veja a obra abaixo e matéria sobre a censura e apreensão em https://www.campograndenews.com.br/cidades/capital/policia-ve-incentivo-a-pedofilia-e-apreende-quadro-exposto-no-marco
Obra “Pedofilia”, de Alessandra Cunha . A frase “O machismo mata, violenta e humilha” é apologia a crime?
Enquanto isso, juiz atende a pedido da TFP (TE EFE PÊ!!! a velha Tradição, Família e Propriedade que liderou em 1964 e 2014 marchas que anteciparam dois golpes de estado – veja por exemplo a cobertura da versão 2014 em https://brasilmais40.wordpress.com/2014/03/26/a-volta-dos-que-nao-foram/) e proíbe exibição de peça de teatro que estava em cartaz há um ano em diversas cidades, festivais e espaços alternativos. Não sei se é 1964 ou 1968. Mas definitivamente não estamos em 2017, não é possível.
A atriz Renata Carvalho em cena da peça “Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”. Quem vai atirar a primeira pedra?
“Uma peça cuja sinopse prometia contar a história de “Jesus na pele de um travesti” foi cancelada por uma liminar, acusada de “crime contra o sentimento religioso”. O monólogo Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu seria apresentado no Sesc Jundiaí, em São Paulo. Segundo a produção, congregações religiosas, políticos e a organização Tradição, Família e Propriedade se articularam e fizeram o pedido, acolhido pela Justiça. Na liminar, obtida pela Bravo!, o juiz escreve que a peça é “atentatória à dignidade da fé cristã, na qual JESUS CRISTO não é uma imagem e muito menos um objetivo de adoração apenas, mas sim O FILHO DE DEUS”. As maiúsculas são do texto original.” https://medium.com/revista-bravo/liminar-veta-peça-com-jesus-trans-103e0b714028
No dia 18 de setembro, tivemos um juiz de primeira instância dando liminar para a volta da “cura gay” (http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/juiz-acaba-de-liberar-a-cura-gay-afinal-o-que-ha-de-tao-controverso-com-isso.phtml#.WcE47bzyuRs), contra a resolução de 1999 do Conselho Federal de Medicina que diz: “Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados’. E também: “os psicólogos não exercerão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Em 1981, o Conselho Europeu emitiu uma resolução exortando seus membros a descriminalizar a homossexualidade. Em 1990, a Organização Mundial de Saúde declarou que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. Três anos depois, a nova classificação entrou em vigor nos países-membros nas Nações Unidas. Ou seja, numa única canetada jurídica, o Brasil retrocede 27 anos!
No dia seguinte, 19 de outubro, outra obra foi censurada em uma exposição, dessa vez em Cuiabá, capital do Mato Grosso. O quadro que dizia “Crack is Wack”, que significa que o crack é ruim, pintado pelo artista Gervane de Paula, foi denunciado como impróprio por um cliente do Shopping Pantanal, onde há 20 dias fazia parte da mostra “Eu Amo Cuiabá” e imediatamente retirado da mostra pela direção do centro empresarial. De Paula e outros artistas da mostra ficaram indignados e podem retirar seus quadros da exibição. (https://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/tela-que-retrata-usuarios-de-droga-e-retirada-de-exposicao-em-cuiaba-apos-polemica.ghtml?utm_source=meio&utm_medium=email)
Onde em todas essas manifestações “pela família brasileira” estão os dois princípios máximos do cristianismo: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao PRÓXIMO COMO A TI MESMO”?
Mostra histórica de temática LGBT com 264 obras de artistas consagrados é acusada por grupos de extrema direita de ser apenas apologia a pedofilia, zoofilia e anti-cristã. Banco patrocinador aceita a censura com medo de boicote e conflitos.
“O Eu e o Tu”, de Lygia Clark. Exemplo de uma das 264 obras que estavam expostas em Porto Alegre. A imagem, aliás, foi retirada do anúncio de uma retrospectiva da artista no MOMA de Nova York, em 2010 – https://goo.gl/anm2TQ
Alguém consegue imaginar artistas como Volpi, Portinari e Lygia Clark como criminosos defensores da pedofilia que querem “destruir a família brasileira”? Alguém acha que um banco privado montaria uma exposição para implantar um “comunismo globalista”? Pois centenas de comentaristas de sites de extrema direita (e também de nossa página no Facebook e talvez aí embaixo daqui a pouco) parecem acreditar nisso. Devem ser as mesmas pessoas que concordam com Olavo de Carvalho quando ele diz que a Pepsi adoça seu refrigerante com fetos abortados (https://www.youtube.com/watch?v=AblcSjwIZbg), os que creem piamente que a Terra é plana (https://www.youtube.com/watch?v=eC4YRYsB0PQ) ou os que juram que o nazismo é uma ideologia de esquerda (https://www.youtube.com/watch?v=nmFAPqzaAz8). Pois é. Em mais um triste passo em direção ao obscurantismo e fascismo, essas mentes “brilhantes” resolveram voltar suas baterias e seu “vasto” conhecimento em história, política e arte contra uma exposição artística: a Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no Santander Cultural de Porto Alegre.
A mostra histórica sobre arte com temática LGBT, com 264 obras de diversos artistas consagrados, como a “O Eu e oTu”, de Lygia Clark, feita em 1967, foi encerrada hoje após manifestações de grupos reacionários. Além de Clark, há obras de outros 84 artistas como Adriana Varejão, Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Clóvis Graciano, Fabio Del Re, Flávio Cerqueira, Gilberto Perin, Sandro Ka, Yuri Firmesa e Leonilson. A mostra reunia pintura, gravura, fotografia, serigrafia, desenho, colagem, cerâmica, escultura e vídeo. Um painel amplo e diversificado da produção sobre a temática que segue outras mostras semelhantes como as cinco realizadas esse ano em Londres (https://www.out.com/art-books/2017/2/03/5-queer-art-exhibitions-see-spring-london), ou esta em Nova York (http://www.mcny.org/exhibition/gay-gotham) ou ainda essa em Paris (https://www.rencontres-arles.com/…/expositions/view/106/sin…).
Mas depois de quase um mês de sucesso de público e crítica no centro cultural de um banco na capital gaúcha, postagens coordenadas em páginas e grupos de extrema direita, incluindo um vereador de Porto Alegre eleito pelo PSDB mas com “selo MBL”, divulgaram que se tratava de uma mostra de “apologia à pedofilia” e contra “a moral e os bons costumes cristãos”.
Com isso, os que se auto-intitulam “libertários”, pediam a seus seguidores que pressionassem o banco privado (divina ironia) a fechar a exposição. Pior, estimularam seus adeptos a filmar, constranger e expor os visitantes do centro cultural. Desse modo, a segurança do banco foi obrigada a fechar as portas da mostra ontem para evitar confusões. Hoje, a direção lançou uma declaração de encerramento definitivo da exposição, que deveria permanecer aberta até 8 de outubro. Os relatos de agressões aos visitantes são bizarros, como pode se ver abaixo.
No Brasil de 2017, os “libertários” parecem preferir a destruição de obras de “comunistas” e “anti-cristãs” (basta ver os comentários nos posts), da mesma forma como Hitler liderou a queima de milhares de livros de autores comunistas e judeus em 1933. No mesmo lugar onde isso ocorreu, aliás, recentemente a artista argentina Marta Minujín erigiu uma imensa instalação, o Partenon dos Livros, uma obra em favor da liberdade artística, intelectual e de expressão.
Como bem lembrou Kiko Nogueira em artigo no DCM (http://www.diariodocentrodomundo.com.br/80-anos-depois-dos-nazistas-o-mbl-consegue-cancelar-mostra-de-arte-degenerada_por-kiko-nogueira/), “em junho de 1937, o ministro de Propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebbels, encarregou o presidente da Câmara de Artes Plásticas, Adolf Ziegler, de vasculhar todos os museus em busca de ‘arte decadente’. Milhares de peças produzidas depois de 1910, que não se adequavam ao ideal de beleza nazista, foram reunidas em Munique numa exposição chamada ‘Entartete Kunst’, ‘Arte Degenerada’. ‘Os senhores veem à nossa volta essas abominações da loucura, da insolência, da inépcia e da degeneração. O que os olhos percebem, nos causa, a nós todos, choque e repulsa’, falou Ziegler na abertura, antecipando a turma gaúcha. Expressionistas como Emil Nolde, Käthe Kollwitz e Ernst Barlach, alemães, foram jogados no lixo. Vassily Kandinsky, Marc Chagall e Pablo Picasso foram proibidos. ‘Praticamente não houve resistência’, escreveu a perita em história da arte Anja Tiedemann, da Universidade de Hamburgo. As obras que não foram destruídas acabaram vendidas no mercado negro para financiar o regime.”
Goebbels na exposição de “arte degenerada” em Munique. Reichsminister Dr. Goebbels auf der Ausstellung “Entartete Kunst” Am Sonntag mittag besuchte der Reichsminister die Ausstellung im “Haus der Kunst”. Rechts vom Reichsminister (mit Brille) der Ausstellungsleiter Pistauer. Fot.: Ste. 27.2.38