Jornalistas Livres

Categoria: Tragédia

  • Protestos se intensificam contra o assassinato de George Floyd

    Protestos se intensificam contra o assassinato de George Floyd

    Em Miami, Florida, os protestos contra o assassinato de George Floyd por policiais em Minneapolis, estado de Minnesota, continuaram neste fim de semana. Milhares de pessoas sairam às ruas no centro da cidade. Em Coral Gables, periferia de Miami, policiais também participaram dos protestos, se ajoelhando e rezando junto a manifestantes. Brancos e negros carregavam cartazes e gritavam palavras de ordem se levantando contra o racismo e o genocídio negro.

    Coral Gables
    Policiais se unem a protestos
    Coral Gables
    Policiais se unem a protestos

    No sábado e domingo, grandes protestos aconteceram nas ruas de Nova York, Filadélfia, Dallas, Las Vegas, Seattle, Des Moines, Memphis, Los Angeles, Atlanta, Portland, Chicago e Washington D.C, além de Miami.

     

    Camila Quaresma, ambientalista brasileira radicada em Miami há mais de 20 anos, faz um relato sobre a manifestação:

     

    “Se não existe movimentação, nada muda. Assim foi a organização de todos os protestos nos Estados Unidos. Ontem, em Miami, a mensagem era única entre participantes de diferentes cores, crenças, raças e idades: “Enough is enough!”, algo como “Chega!”, “Basta!”, “Passaram dos limites!”.

     

    O que aconteceu com George Floyd foi assassinato. Ponto. E não foi o primeiro… São muitos exemplos: Breonna Taylor, Ahmaud Arbery, Tamir Rice, Trayvon Martin, Oscar Grant, Eric Garner, Philandro Castile, Samuel Dubose, Sandra Bland, Walter Scott, Terence Crutcher… Até quando os negros não se sentirão seguros por serem negros? Até quando a cor da pele, ou as diferenças entre culturas justificam racismo? “Enough is enough.”

    Acho que o mais importante de tudo é continuar a ecoar  essa mensagem tão importante, e com isso, pressionar por mudanças mais drásticas não só no treinamento policial, mas também nas consequências a policiais que não cumprem com seu próprio dever.

     

    Importantíssimo que isso não seja esquecido com as distrações do vandalismo que aconteceu depois. Está errado, mas também não podemos esquecer que tal vandalismo vem de várias fontes: pessoas que querem que a mensagem não seja esquecida, ou pessoas que querem ser ouvidas mas a raiva da injustiça é tao grande que não conseguem gritar, pois o grito está preso na garganta. Errado, mas o buraco é mais embaixo.

     

    Enquanto isso, eu foco na lembrança do arrepio que senti na espinha ao estar cercada de tanta gente diferente com uma energia tão unificada em conquistar o bem. Das centenas de pessoas que estavam comigo na tarde de ontem, brancos, negros, latinos, e tantas outras raças e culturas que dão o significado tão maravilhoso de se viver em Miami: vamos voltar às ruas, gritar mais alto, lutar pelo que é nosso direito e tentar assim, fazer a diferença!

    Protestos em Miami

    Fotos de Coral Gables: @SJPeace/Twitter

    Fotos de Miami: Camila Quaresma

  • Ativista morre durante resgate de famílias soterradas

    Ativista morre durante resgate de famílias soterradas

    As águas de março que são cantadas em prosa e verso e romantizam um período do Brasil onde as chuvas caem com mais força e continuamente. A baixada santista sofreu no início do mês com as águas não romantizadas que derrubaram casas e no último domingo, 8 de março foi confirmada a notícia de que Rafael Rodrigues, ativista, mestre capoeirista, produtor cultural e humanista estava entre as vítimas dos desmoronamentos que atingiram o Guarujá (litoral de São Paulo), e  hoje, se encontra no Orun.

    Mas antes de falar do Rafa o que mais choca é o descaso, e a apatia de quem deveria estar ali segurando a mão de Rafael. Sim, o governo deve sim por em sua conta as vidas que se foram e as famílias que perderam suas casas.

    Cadê o poder público? 

    O Prof. Anderson de Almeida Costa é formado em Administração de Empresas pela Universidade Santa Cecília dos Bandeirantes; Pós graduado em Marketing de Serviços, na UNAERP; fez Matemática, na mesma instituição. É professor da rede estadual do Estado de São Paulo há 24 anos; ex-Professor da FABE, em Bertioga/SP e professor do Cursinho Pré Vestibular Afrosan (Associação dos Afrodescendentes da Baixada Santista – Santos), falou ao Empoderado

    “A pergunta que não quer calar é: a Prefeitura, mesmo sabendo que no verão há incidências de chuvas, acarretando escorregamento ou deslizamento de terras nas encostas dos Morros de Santos e região, não investiu recursos, muito menos estudos para ajudar a evitar esta catástrofe. Fica claro e evidente que o descuido foi de tal maneira que, segundo o conceito acima, digo, sobre Ética, as Prefeituras de Santos, Guarujá, São Vicente e, principalmente o Governo do Estado de São Paulo, foram no mínimo, “omissos e irresponsáveis” por não planejarem o “evitável”.

    O pior de tudo, tentam calar a voz dos mais desvalidos com a “fortuna” de R$ 250,00 cedida pelo Governo do Estado de São Paulo e R$ 250,00 cedido pelas Prefeituras para auxílio moradia aos diretamente afetados. Além desta vultuosa quantia, o governo do Estado da mais Rica Unidade Federal, concedeu o benefício aos desabrigados de fazer as refeições no Bom Prato. Isto é, terão direito ao café da manhã e almoço durante 15 (quinze dias). Como se tudo resolvesse em 15 (quinze) dias.

    Estes auxílios caracterizam e evidenciam como o Sistema é Falido e, de que forma somos assistidos. Quanto aos valores, creio que soam como um “cala boca.” Ora senhores, com esta fortuna, os moradores irão para uma outra região que também é área de risco. Onde estão as Políticas Públicas (Municipal/Estadual) de Moradia e Habitação? Será que não temos técnicos, geógrafos, geólogos, engenheiros nas prefeituras para evitar, ou, diminuir catástrofes como estas? Por que os R$ 50 milhões não vieram antes, se já existiam? Desta, para o próximo verão, os que não foram atingidos por este flagelo, podem perder o pouco que construíram.”

    O descaso não tem limites e ataca em todos locais. Entramos em contato com o prefeito de São Vicente devido aos problemas da Ponte dos Barreiros, – ela está perto de cair devido a má administração. O Empoderado entrou em contato com o atual gestor da cidade, Pedro Gouvêa (MDB), através de sua assessoria/secretaria e ele não respondeu (Prefeito). Faz mais de 2 meses.

    Ou seja, Pedro Gouveia, não achou importante responder para a população sobre o absurdo caso da Ponte que tem menos de 50 anos e está caindo. Uma arquitetura que faz corar um estagiário de engenharia, pois até estaca de madeira tem. Será que o poder público está esperando a ponte cair para responder para a população?

    Principal acesso da população mais carente de São Vicente para o centro está a um passo de cair
    Principal acesso da população mais carente de São Vicente para o centro está a um passo de cair

    Quem foi o Rafael Rodrigues?

    Enquanto se vê neste artigo o descaso do poder público, existe um ativista que literalmente deu a vida ao próximo. Bruna De Oliveira, sua irmã fala sobre o irmão:“Meu irmão desde pequeno quis ajudar o próximo início sua vida na capoeira, assim tendo mais forças pra lutar, sofreu 2 acidentes com amigos de capoeira presente, quando resolveu trabalhar (ainda sendo menor de idade) com crianças carentes assim montando o projeto roda de capoeira onde mais pra frente veio a ser o Afroketu, onde começaram as lutas diárias e constantes.

    Rafael com as sobrinhas Catarina (vermelho/direita), Iasmin (vestido colorido/esquerda) e sua amiga!

    Ele é afro religioso, filho do maravilhoso rei Xangô, onde pra ele lutas sempre eram diárias, mesmo assim jamais desistiu. Fez aliança com militantes de outras religiões, sofreu várias perseguições… Ou seja, (Rafael) lutou, gritou, sofreu tanto!”

    Bruna fez uma tatuagem para que o mundo leia quem foi seu herói!

    Rafael falando sobre africanidade na Associação Cultural de Capoeira Roda Grande: Núcleo Monitora Eli, no dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra (2019).

    Familia Afroketu e para saber mais clique aqui!

    “Antes de conhecer o Rafael conheci o Afroketu, conheci a dança afro, a capoeira e o maculelê que ele ensinava para seus alunos. Conheci primeiro seu trabalho, seus alunos para depois conhecer o mestre que punha em destaques crianças e adolescentes pretos e periféricos.

    Sempre com orgulho de pertencer so candomblé, Rafael não escondia sua religião e ensinava a todos como ela deve ser respeitada. E se não a respeitasse ele sabia como se defender do racismo religioso.

    Sentirei muita falta dele, mas sei que ele cumpriu seu ori. E para nós que ficamos aqui resta continuar seu trabalho. Pondo sempre em destaque as crianças e adolescentes pretos e periféricos. Assim como esse grande mestre fez.” – Andreia Kelly (Professora e ativista da Educafro, da Baixada Santista)

    “Fim dos anos 2000 andavam pela terra Santamarense jovens que se inquietavam com a violência policial e a falta de acesso para Comunidade Negra. O resultado dessa inquietação juvenil fez surgir uma inspiradora reunião de mentes que fervilham a participação popular e o enfrentamento a burocracia racista e machista.

    Longe de ser um movimento, essa força da natureza política de adolescentes fez despontar nomes como o de Rafael Rodrigues. Copeirista e Candombecista Raiz, mestre da Cultura Popular Negra, pesquisador e arqueólogo autodidata, os adjetivos e competências são pouco para descrever a complexa e comprometida atitude habilidosa com a qual se apresentava esse militante negro. A sua morte prematura pode ser relacionada a um homicídio provocado pela falta de política pública de organização da defesa civil e da omissão para melhora de moradias subnormais do Morro do Macaco Molhado em Guarujá, na chuvarada mais intensa ocorrida no litoral paulista no início de março de 2020.

    Em 10 de março de 1928, após  chuva intensa o Monte Serrat desbarrancou e cerca de 2 milhões de metros cúbicos de terra caíram sobre a Santa Casa de Misericórdia de Santos, hospital fundado em 1543. A tragédia deixou pelo menos 81 mortos, segundo os dados oficiais. A chuva e os deslizamentos que atingiram a Baixada Santista na madrugada de terça 3/3/2020 são recorrentes na região, que, mesmo assim, permitiu invasões ao longo do tempo em áreas de risco. 

    Por isso, o Rafael do Afroketu, grupo que preserva e difunde a Cultura de Tradições e Salvaguarda da Ancestralidade Negra, morreu por omissão dos poderes constituídos em tomar precauções e agir de modo técnico para resgatar pessoas em Favelas que estejam desbarrancando. 

    Obrigado por sua luz Rafael Rodrigues, e prometo ser mais um disponível e em pé para que seu legado permaneça por anos, com ações e resultados afirmativos. Homenagem a toda gente de Guarujá e Baixada Santista.”

    Renato Azevedo, militante da causa Negra, combatente contra o Racismo

    Eu vou tentar ser um pouquinho do que o mestre sempre me falava: “Sol minha presidenta. Seja firme. Seja forte e eu estarei sempre aqui quando precisar. Não desanime que a nossa causa é de todos e juntos somos fortes (Rafael Rodrigues)”. Por Sol Praia, da AFROPAZ (Bertioga) 

    Felipe Ferreira, dos Instituto Novos Sonhos falou sobre o amigo: “foi um aliado, parceiro e combatente. Alguém que deveria escrever um livro para ter deixado todo seu conhecimento ancestral, para a humanidade. (Felipe) como já chorei pelo Rafael esta semana, como já xinguei o poder público. Foi uma pena, foi lamentável.”

    “(Rafael de Oliveira Rodrigues ) é um cara  humilde e honesto com único objetivo: ajudar o próximo não  importando quem fosse. Ele era um verdadeiro pai, irmão, amigo pra tudo.

    Foi um cara que tudo que ele aprendia ele fazia questão de ensinar ao próximo. Tem uma frase que ele sempre falava: “conhecimento e pra se passa não leva para um caixão”.E assim ele ensinou a todos que tiveram o prazer de conhecê-lo.

    O que tenho que falar dele é que foi um guerreiro e lutador pelos seus sonhos. A felicidade dele era o grupo que ele lutou para estar de pé: Afroketu. A capoeira era o amor da vida dele.”Daniel de Moura (Biel) era afilhado e aluno do Contramestre Rafael.

    Afrojetu faz uma homenagem ao mestre!

    Foram as águas de março que levaram Rafael, mas a luta continua porque sabemos que toda vez que chover na baixada é o Rafa que chora pelo abandono ao povo que ele sempre lutou. Contudo essas serão lágrimas que só serão cicatrizadas quando cada um fizer um pouco mais por este país e como ele disse em sua última publicação em sua mídia social:“deixarem de politicagem”.

     “É madeira de vento, tombo da ribanceira

    É o mistério profundo, é o queira ou não queira

    É o vento vetando, é o fim da ladeira

    É a viga, é o vão, festa da ciumeira

    É a chuva chovendo, é conversa ribeira

    Das águas de março, é o fim da canseira

    É o pé, é o chão, é a marcha estradeira

    Passarinho na mão, pedra de a tiradeira”

    Nota: matéria originalmente escrita no Jornal Empoderado:

    https://www.facebook.com/jornalempoderado/ 

    INSTAGRAM: jornalempoderado

    Twitter: @Jornalempodera2

  • Carta de Floresta, 06 de novembro de 2019

    Carta de Floresta, 06 de novembro de 2019

    Carta de Floresta

    Floresta, 06 de novembro de 2019

    A todas as pessoas de boa vontade,

    Às lideranças políticas do País, dos Estados da Bacia do Rio São Francisco

    E, mais precisamente, do Sertão de Itaparica

    “Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram” (Rm 12,15)

    Nós, bispos, presbíteros, diáconos, religiosas, leigos e leigas, representantes das comunidades quilombolas e de povos indígenas, pesquisadores e estudantes, reunidos em Floresta – PE nos dias 5 e 6 de novembro de 2019, chamados, como cristãos, a sermos solidários com toda criatura humana e com a natureza, e a fazer da nossa vida e da nossa fé um sinal e um instrumento do amor de Deus para com todas as suas criaturas, sentimo-nos impelidos a escutar o povo de Itacuruba e da região do Sertão de Itaparica a respeito das esperanças e dos temores suscitados pelo projeto de implantação de um complexo nuclear naquele município, à beira do rio São Francisco. Escutar para entender, para se informar, para solidarizar-se, escutar como estilo de caminhar juntos, a fim de que todos possam ser protagonistas das suas vidas e do seu futuro. Em tudo, fomos conduzidos e iluminados pela constatação de que progresso e desenvolvimento só são verdadeiros e reais quando promovem a vida, a partir da vida dos mais necessitados, e não a economia e o lucro de uma restrita elite.

    Nossa primeira preocupação é com a vida de quantos moram na região, com o trabalho, a cultura, o futuro, a possibilidade de um crescimento e de um desenvolvimento de acordo com as suas caraterísticas, tradições, possibilidades e aspirações.

    O povo que mora em Itacuruba e na região tem rosto e tem nome, história que fala de promessas não cumpridas, quando foi tirado de sua terra pela construção das barragens da hidrelétrica, de esperanças frustradas pela impossibilidade de continuar a trabalhar dignamente para a sua vida, de depressão, de suicídio entre os jovens que não aceitam ter uma vida fútil e sem sentido, reduzida ao consumismo. Sentimos, nas falas deste povo, o drama de quem desejaria mostrar suas forças e energias para o presente e o futuro, mas não tem perspectivas. Esse povo não sente a necessidade de usina nuclear, não acredita em promessas que já ouviu trinta anos atrás e que resultaram na situação problemática em que hoje vive.

    Progresso não pode ser palavra bonita, mas vazia, não pode significar imposição de um modelo de vida baseado no ter e que acarreta problemáticas sociais muito fortes. Com quais instrumentos de conhecimento, com quais estruturas sociais o povo de Itacuruba e região irá enfrentar a transformação decorrente da chegada de muitas pessoas na sua terra? Quais serão as possibilidades de desenvolver harmoniosamente a sua vida no futuro próximo? Temos, de fato, uma grande responsabilidade também com as próximas gerações, pois as nossas escolhas, ainda mais em casos como este, sempre vão gerar consequências importantes. Diz o Papa Francisco na sua Encíclica Laudato Sí: “Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão crescendo? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores… se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras questões muito diretas: Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Por isso, já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo” (LS 160). Por toda esta série de considerações, denunciamos os erros do passado e pensamos que eles deveriam nos ajudar a refletir melhor para que não sejam repetidos e, sobretudo, a não tomar decisões sem escutar os interessados.

    Projeção da Eletronuclear, feita em 2011, para a usina em Itacuruba, com seis reatores

    A saúde do rio São Francisco também nos preocupa, porque, dele e com ele, o nosso povo vive e cresce, e não pode ser considerado como um instrumento de lucro por uma técnica que sabe fazer muitas coisas, mas que, até agora, raramente foi colocada a serviço da vida plena da nossa casa comum.

    Todos aceitam com entusiasmo a possibilidade de uma vida melhor, mas isso significa acesso à educação e à saúde, possibilidade de um trabalho real e contínuo, justiça social e defesa das culturas; significa, sobretudo, unir a população e vislumbrar outros modelos de desenvolvimento pautados no princípio da dignidade da vida humana. É esse o tipo de desenvolvimento de que estamos precisando, algo que faça do povo de Itacuruba e região não pessoas que recebem uma “recompensa” por hospedar um complexo nuclear difícil de aceitar, mas que poderão afirmar sua plena pertença a um País e contribuir para o crescimento dele com humildade e ousadia.

    Conclamamos todos os homens e mulheres de boa vontade, independentemente de suas convicções político-ideológicas, a conhecerem os estudos técnicos e sócio-antropológicos relativos à temática, e a se comprometerem com a defesa e a promoção da vida dos povos, do Rio São Francisco e do meio ambiente como um todo, a fim de que “todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10).

    Foto destaque: CPT

     

  • De azul ou de rosa, crianças negras na linha de tiro do Estado genocida

    De azul ou de rosa, crianças negras na linha de tiro do Estado genocida

    Qualquer pessoa que tenha perdido uma criança na família sabe que não existe nada comparável à dor dos pais. Nada que seja equivalente à dor sentida pela mãe, que pode também ser a tia, a avó que cria, quase sempre uma mulher. Por isso não vou falar de dor, reservo às mães e aos pais essa prerrogativa.
    A gente sente ódio, impotência, medo, fracasso como ser humano. A gente pode chorar em solidariedade às mães e pais das crianças mortas na guerra às pessoas negras, faveladas e de periferia. A gente deve gritar porque a dor de perdas tão brutais cala a voz de quem gerou ou de quem cria essas crianças assassinadas. Por isso devoto tanto respeito e admiração às Mães de Maio e a outros coletivos de mães que, a despeito da dor imensurável da perda de filhos para a violência de Estado, conseguem erguer a voz para que não sejam esquecidos.
    O que sinto é um torpor que de alguma forma venço pela escrita. À revelia da letargia, ligo o computador, mas ao invés de abrir um arquivo, clico no ícone que desliga a máquina. Mesmo que o inconsciente não queira, preciso me reconectar a mais uma das inumeráveis e imensuráveis perdas dessa gente miúda que não é morta por acidente, por incidente colateral da guerra, mas como alvo de guerra.
    As mortes não doem igualmente, não repercutem da mesma forma e o assassinato de Ágatha Félix, uma menina de oito anos, no Complexo do Alemão, dentro do transporte da favela, acompanhada pela mãe, nos deixa em estado de desamparo absoluto. Ela estava protegida pela mãe – lembrem-se de que criamos a ilusão de que nos momentos que somos cuidados pela mãe, nada de mal nos acontecerá. Não foi assim, o tiro de fuzil do Estado não deu tempo para a mãe jogar-se sobre o corpo da filha e talvez receber o tiro em seu lugar.
    Entendem porque não há nada que se aproxime da dor sentida pela mãe dessa criança?
    Parece que a matança dos meninos negros já não nos sensibiliza tanto, talvez, naquele fundo da gente, bem escondido, procuremos explicações para o inexplicável, por exemplo, uma vida dupla, de manhã na escola e à tarde no tráfico; ou, más companhias; ou, o fascínio exercido pela figura do bandido todo-poderoso nos pequenos.
    O certo é que nos acostumamos a ver meninos negros como miniaturas de homens negros, alvo prioritário da perseguição racista. Lembro-me de um cortejo de Congada que acompanhei em Belo Horizonte e um garotinho negro de quatro anos no máximo, evoluía graciosamente com chocalhos nos pés. Uma adolescente branca à minha frente o observava, tão encantada quanto eu, quando chamou a atenção da mãe para o menino, ouviu este comentário como resposta: “bonitinho mesmo, pena que cresce”.
    Mas, dessa vez, mataram uma menina que “fazia inglês e balé”, como esbravejou o avô em desespero, acompanhada da mãe, dentro do transporte privado que serve à favela. Não dá para dizer que ela estava “solta” na rua, brincando. Não dá para criminaliza-la como suposta “amante” de traficante, como insinuam sobre as meninas de onze, doze anos, também assassinadas por balas de direção certa. Ágatha Félix era o ideal de criança de oito anos: saudável, bem cuidada e protegida pela família, estudiosa, alegre. Uma menina que se vestia de Mulher-maravilha, devia ter planos de poder e força.
    Alguém disse que Ágatha não teve tempo de ser Marielle. O velho e bom Steve Biko nos lembra que estamos por nossa própria conta, como sempre estivemos.
  • A formidável (e assustadora) biografia do ano passado

    A formidável (e assustadora) biografia do ano passado

    Por Walter Falceta, especial para os Jornalistas Livres

     

     

     

    Por Walter Falceta, especial para os Jornalistas Livres

     

    Atribui-se ao 32º presidente estadunidense, Franklin Delano Roosevelt, a perturbadora frase: “leva-se um bom tempo para trazer o passado ao presente”.

    De fato, corre tempo demais até compreendermos o porquê das pequenas e grandes tragédias cotidianas. Roosevelt pensava, por exemplo, nos equívocos e desvarios econômicos e financeiros que haviam conduzido seu país à Grande Depressão.

    O desprezo pelo passado frequentemente nos conduz ao horror e ao sofrimento, fenômeno que se apresenta aos olhos dos historiadores no período entre as duas devastadoras guerras mundiais que marcaram o Século 20.

    No Brasil, há quem ainda não tenha compreendido, por exemplo, a natureza do Golpe Militar de 1964, que ceifou vidas, esperanças e amores.

    Pior é a crença patológica em um passado edulcorado, no qual a farda supostamente garantiu aos brasileiros um tempo de ordem, progresso e segurança, de gestores públicos imaculados, jamais envolvidos em casos de corrupção.

    Se o passado é moldado pela construção e reprodução de narrativas particulares, faz-se necessário garantir que o pensamento da civilidade possa concorrer com aquele da barbárie.

    O livro “Sobre Lutas e Lágrimas – Uma Biografia de 2018” (Editora Record, R$ 44,90) escrito pelo jornalista Mário Magalhães, serve brilhantemente a esse propósito.

    A obra trata do pretérito recente, esse que ainda não tivemos tempo de processar, cuja análise atenta exibe uma fieira de ocorrências espantosas, absurdas ou mesmo inacreditáveis.

    A pena virtuosa do colega Mário nos choca ao narrar, por exemplo, os eventos de abril, quando o ex-presidente Lula deixou a resistente São Bernardo e rumou ao cárcere em Curitiba, vítima estoica das tramas lavajateiras.

    Ora, um recuo modesto no tempo, que seja a 2008, exibe um país governado pelo mesmo nordestino. A economia cresce e multiplica-se a oferta de empregos, o filho do porteiro ingressa na universidade e a fome vai desaparecendo do cotidiano das famílias mais humildes.

    Na época, poucos imaginavam que o ex-metalúrgico, mandatário colecionador de sucessos na gestão pública, pudesse cair vítima de um golpe articulado por procuradores reacionários em parceria com um magistrado de cultura limitada.

    Causa estranheza que, em 2018, nos tenha faltado tempo para compreender 1968, o famoso ano rebelde que não terminou. Vivemos o ano passado de forma vertiginosa, ocupados, procurando entender o mês anterior, o dia de ontem, a hora passada.

    Neste Brasil líquido, senão gasoso, como nos reconta o genial Mário, assistimos à caça de macacos, incriminados como transmissores da febre amarela. Se houve empoderamento das mulheres, multiplicaram-se os casos de feminicídio. O Doutor Bumbum revelou sua verdadeira índole. Caminhoneiros travaram o país, a intervenção militar amedrontou o Rio de Janeiro, a direita paranoica mobilizou-se contra a Ursal, índios e jovens recorreram ao suicídio para findar a aflição dos dias todos.

    O neofascismo brasileiro, associado aos neoliberais que se desencantaram com o PSDB e o DEM, viabilizou a candidatura do ex-capitão Jair Bolsonaro. Neste medieval ano de 2018, milhões de brasileiros foram enganados pelo “tiozão” do WhatsApp, que repassou notícias sobre a “mamadeira de piroca” do Haddad, o mesmo candidato vermelho que, segundo ele, pretendia legalizar a pedofilia.

    Na obra de Mário o que mais espanta, no entanto, é a celeridade nas mudanças de cenário. Nos textos escritos no início do segundo semestre, ele ainda cogita de uma candidatura de Lula e não descarta a vitória do ex-metalúrgico. Poucos meses adiante, o que se avalia é se Bolsonaro pode ou não vencer a eleição presidencial no primeiro turno.

    O autor rememora o episódio da reportagem de Patrícia Campos Mello, da Folha, sobre o esquema ilegal de disparo de conteúdos anti-PT nas redes, bancado por empresas. Mas não faz olho militante. Investiga na minúcia os personagens de seu 2018, um ano que se converte, ele próprio, em personagem.

    Na página 261, apresenta um rascunho do candidato presidencial de esquerda, Fernando Haddad:

    • Em piscada de olho para o centro, Haddad elogiou Sergio Moro (“ajudou” o Brasil, com “saldo positivo”), mas criticou a condenação de Lula. Errou ao endossar a acusação improcedente que atribuía tortura ao general Mourão, porém se corrigiu. Criticou decisões de correligionários, como a desmesurada renúncia fiscal do governo Dilma.

    Se nos adiantamos aqui, é bem possível que façamos um curioso spoiler daquilo tudo que já sabemos, ou julgamos saber.

    Quer colar no passado e trazê-lo para decifrar o presente? Embarque nessa leitura, no fascinante jogo das frescas reminiscências. São 330 páginas, mas que passam rapidinho, como aquelas 730 de “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, obra luminosa e reveladora do mesmo Mário.

     

     

  • O massacre que a TV não mostrou em Suzano

    O massacre que a TV não mostrou em Suzano

    Estarrecido, o país parou nessa quarta-feira, 13 de março de 2019, para entender o que houve na Escola Raul Brasil em Suzano. O massacre, que resultou em dez mortes e ao menos 11 feridos, exigiu cobertura ao vivo. As TVs escalaram seus repórteres, suas câmeras de alta resolução, seus helicópteros, seus carros com satélites de link para transmissões diretamente do local do crime. O arsenal estava todo lá. Mas acompanhar a chegada das informações pelas emissoras foi mais um espetáculo de horrores da mídia nacional.

    Das cenas de pânico e horror dos alunos e funcionários aos corpos dos mortos no chão, vimos tudo em detalhes. Menos o essencial: o massacre do ensino público e o desamparo das escolas, professores, alunos e de toda uma população vulnerável à falta de políticas públicas capazes de promover o diálogo entre educação, assistência social e saúde ANTES de uma tragédia acontecer. Uma tragédia anunciada, por sinal, pelas mãos de um governante que banaliza a morte ao brincar de empunhar armas de fogo enquanto reduz ainda mais as verbas para a pasta de educação.

    O fato é que nenhuma emissora se preocupou com isso tudo quando passou horas a fio reproduzindo os gritos, o medo e o pânico de uma escola inteira diante um revólver de verdade. O apresentador Datena, por exemplo, não poupou ninguém em horário livre para crianças: colocou ao vivo e em câmera lenta as cenas brutais de violência que registraram o massacre pelo circuito interno da escola. Diretamente de Suzano, um repórter de seu programa ainda foi capaz de encurralar a mãe dependente química de um dos assassinos. A TV Globo, por sua vez, não hesitou em mostrar o endereço da casa dos familiares dos atiradores no Jornal Nacional. Se a mãe, pai, avô ou os quatro irmãos de um deles virarem eternos reféns de um crime que não cometeram, o problema não é da emissora.

    O choro convulsivo de crianças e os endereços dos sites de fanáticos por violência também foram oferecidos ao público por diferentes programas de TV. Não houve limites para a irresponsabilidade, a covardia e sanha por audiência minuto a minuto.

    Passamos o dia ouvindo dezenas de entrevistas de porta-vozes de forças policiais, cenas oficiais de João Doria que omitiram a grande vaia que ele recebeu no local, e nenhuma entrevista com educadores e professores analisando o caso a partir do fato de que aqueles atiradores poderiam, sim, ser um dos seus alunos.

    Pelo contrário, ao mencionar que os assassinos foram alunos da escola, os jornalistas imediatamente reiteravam que Luiz Henrique Castro, de 25 anos, já havia concluído o curso, e o outro, Guilherme Taucci, de 17 anos, era “evadido”, ou seja, termo usado para designar o aluno convidado a se retirar ou que simplesmente saiu do colégio e nunca mais voltou. Nada se questionou sobre esse sistema de abandono escolar que, sabe-se, é assunto delicado.

    Atualmente existem cerca de 10 milhões de crianças e adolescentes excluídos do sistema de ensino ou em situação de atraso escolar, de acordo com Censo Escolar e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O assunto é a prioridade dos programas da agência brasileira da Unicef, o Fundo Internacional de Emergência para a Infância das Nações Unidas. O órgão de defesa de direitos da infância sabe que, infelizmente, existe uma cultura disseminada nas escolas públicas brasileiras de rotular as crianças e adolescentes com atraso, problemas familiares e afins, como incapazes de aprender e superar suas condições.

    Mas a TV não polemizou nem ao vivo ou em estúdio essa questão. Apenas ignorou o tema que deve ser compreendido como parte de uma complexa desconexão entre a rede educacional, de assistência social, de saúde e de apoio por profissionais especializados em gerenciamento de conflitos.

    A televisão preferiu dar voz sem críticas ou embate de opiniões às declarações de um parlamentar que afirmou que professores armados teriam evitado o massacre. Os jornais também passaram batido por um dos principais temas a serem abordados no momento: a política de ampliação de posse e porte de armas que embasou a campanha do atual presidente e sua influência no comportamento da população, particularmente, entre os jovens.

    Ao final da cobertura do dia, muito se mostrou do crime e do horror. Acontece que a violência nas escolas não é apenas uma questão do noticiário policial. É assunto para as editorias de educação, saúde e política.

    A escola, vamos lembrar, é aquele espaço onde crianças e adolescentes passam boa parte do tempo para estudar. Esses alunos carregam na mochila seu histórico familiar, eventos traumáticos, estresse crônico, abusos e todo tipo de experiências fora dos muros. A escola também representa a última fronteira entre esses jovens e uma série de tragédias a que estão vulneráveis: do tráfico de drogas à marginalização, subemprego ou desemprego. E nelas estão professores mal remunerados, desmotivados, assustados e adoecidos. É nelas que mães e pais confiam seus filhos enquanto saem para trabalhar – ou vão à procura de emprego.

    Todos esses assuntos subestimados nos noticiários viraram destaque na conversa de um grupo de professores que estava na porta da Escola Raul Brasil no dia do massacre. Educadores de escolas da região de Suzano e representantes da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), estavam ali para oferecer apoio aos educadores e alunos da Raul Brasil, e também se dispuseram a conversar com a imprensa na terça-feira. Estavam ali prontos para as entrevistas mas pouco foram abordados.

    Em entrevista aos Jornalistas Livres, porém, esclareceram didaticamente: o massacre de Suzano foi fruto desse entroncado e complexo sistema de sucateamento de diferentes políticas públicas cujas mazelas escoam, diariamente, nas mais de cinco mil escolas públicas do país.

    A professora Angela Talassa, que dá aulas na Escola Estadual Professor Carlos Molteni, a apenas dois quilômetros da Raul Brasil, chama atenção para a precariedade de o sistema de ensino lidar com os conflitos dos jovens sob intensa exposição à violência. “Agora, neste momento, estamos com esse grande movimento de psicólogos, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, funcionários da área de saúde da prefeitura prestando socorro aos familiares e à escola. Mas é preciso dizer que precisamos dessa atenção multidisciplinar ANTES de uma tragédia acontecer. Amanhã, quando os corpos esfriarem e os jornalistas desaparecerem, estaremos sozinhos como sempre?”

    Angela conta que identifica na sala de aula, facilmente, os alunos que estão sofrendo de depressão, diversos tipos de síndromes emocionais e transtornos. “Eu mesma já tirei carta de suicídio de bolsa de aluna”. Mas ela não tem a quem recorrer. “Pedimos encaminhamentos que acabam nunca acontecendo. Os estudantes são orientados a ir à Universidade de Mogi das Cruzes para atendimento psicológico e a maioria não tem condições de sequer chegar até lá”, desabafa.

    “Os adolescentes, então, ficam sem tratamento remoendo todos os seus problemas: os que são próprios da idade e os que são fruto dessa tragédia social que o país vive. Isso não pode ser ignorado.”

    Ao lado dela, o educador Richard Araújo, da Apeoesp, concorda: “Há muitos anos temos observado esse fenômeno crescente de violência nas escolas e o governo não toma providências. Quem acredita que militarizar as escolas ou armar a população vai resolver o problema da violência não compreende a complexidade da crise social que existe no nosso pais e como essa crise adentra os muros da escola!”

    A solução, diz o educador, existe, sim, e passa por investimentos: “Desde investimento em infraestrutura em escolas que não têm nem biblioteca ou laboratório, como em profissionais, psicólogos, assistentes sociais e em toda a rede de acolhimento.” Vale não só para os alunos, lembra Angela: “Vejo professores vivendo sob doses de calmantes. Eles não conseguem dar continuidade ao seu trabalho nas péssimas condições de trabalho e situação de pressão social que vivem. Atacar isso é cuidar da educação para evitar essas tragédias.”

    Outro educador, Sérgio Pereira, acrescenta que as escolas precisam de profissionais que vão além da grade clássica de professores, coordenador pedagógico e diretor: “Precisamos de mediadores de conflito especializados e políticas de assistência social interligadas na escola. São mecanismos que garantem uma rede de proteção às crianças também fora dos muros.” Para isso, mais uma vez, é necessário investimento – em vez de cortes e congelamento de verbas em educação por 20 anos, como foi instituído pelo ex-presidente Michel Temer e mantido pelo atual Bolsonaro.

    A banalização do discurso da violência usada durante a campanha do presidente foi questionada na roda de educadores: “Estamos no auge de uma violência construída nos últimos anos por meio de uma rede discursiva gigante que mostra arminhas com a mão como se isso fosse uma brincadeira. Não é brincadeira”, acentua Pereira. “A violência da sociedade está no cotidiano da escola publica. Vai desde o problema do time A conta o time B e passa por questões de gênero, étnicos-raciais, por tudo! Se um lado da sociedade banaliza uma arma apontada, o ápice disso são esses corpos caídos no chão, mortos, aqui!”, completa.

    Diante disso, a professora Angela conclui: “Todas as escolas estão vulneráveis, estamos todos abandonados. E para onde os governantes e a imprensa sinalizam? Para a privatização do ensino! Mas isso não é saída, é exclusão.” A professora, então, deixa sua pauta: “Amanhã, os repórteres vão embora e o que será feito? Seremos ouvidos como professores ou criminalizados e culpados pelas péssimas condições de ensino que enfrentamos?”.