Jornalistas Livres

Categoria: Política

  • Professor é vaiado em formatura de jornalistas por apontar ataques do governo à imprensa

    Professor é vaiado em formatura de jornalistas por apontar ataques do governo à imprensa

    Fazer jornalismo no Brasil está cada vez mais perigoso. Ensinar como se faz bom jornalismo, também. E os ataques não vêm somente do governo que deveria respeitar a imprensa e as instituições democratas. Vêm também, incrivelmente, de familiares de jovens decididos a fazer jornalismo. Sua primeira batalha, portanto, será dentro de casa: mostrar aos parentes os FATOS e a importância desses fatos serem bem reportados a toda população.

    Felipe Boff certamente é um professor querido no curso de Jornalismo da  Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Não fosse assim, não teria sido convidado para ser o paraninfo da formatura, realizada na sexta-feira (7), em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Boff abriu seu discurso com um fato triste:

    A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade. Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa. É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados.

    A plateia, no entanto, não gostou dos fatos. Parentes dos formandos começaram a vaiar e xingar o professor. Aparentemente não compreenderam o que os próprios estudantes traziam escrito na camiseta:

    “Não existe democracia sem jornalismo”

     

     

    Conforme o professor seguia citando fatos, como os ataques com insinuações sexuais contra jornalistas mulheres e os xingamentos a cada pergunta incômoda na palhaçada literal que se tornaram as “coletivas” na frente do Palácio, mais parte da plateia reagia gritando histérica, certamente envergonhando alunos e parentes esclarecidos. Até nisso o discurso do Professor Boff foi preciso:

    Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece.

     

    No final, os seguranças da universidade acharam por bem escoltar o professor para fora do evento, evitando que agressões verbais de fascistas ignorantes pudessem se tornar físicas. A coordenação do Curso de Jornalismo emitiu depois uma nota em solidariedade ao professor. Nós, jornalistas ativistas pelos Direitos Humanos, também nos solidarizamos com o professor e com os agora jornalistas do curso da Unisinos que não compactuam com os fascistas na plateia, por mais que sejam parentes. Ouçamos, TODOS e TODAS a convocação do professor:

    Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez.

     

     

     

    Ainda na noite de sábado, o professor escreveu em sua página numa rede social:

    Hoje à noite, algumas pessoas pouco afeitas à liberdade de expressão e à democracia tentaram, aos gritos, me impedir de prosseguir com meu discurso de paraninfo na formatura da turma de Jornalismo da Unisinos. A virulência desse ataque – que fez até a instituição colocar seguranças para me acompanharem na saída do auditório – só reforçou a importância do que foi dito. Por isso, compartilho a seguir o discurso, que pôde ser proferido até o fim graças ao apoio de professores, formandos, alunos, ex-alunos e muitos mais.

    Confira o discurso completo do Professor Felipe Boff na cerimônia de formatura:

    A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade. Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa. É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados.

    No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada 3 dias.

    Querem exemplos? “É só você fazer cocô dia sim, dia não.” “Você está falando da tua mãe?” “Você tem uma cara de homossexual terrível.” “Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai.” É dessa forma chula e rasteira que o presidente da República, a maior autoridade do país, costuma responder aos jornalistas. Seus xingamentos tentam desviar a atenção das respostas que ele ainda deve à sociedade. Nos casos citados, explicações sobre o retrocesso da preservação ambiental no país, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da hoje primeira-dama, sobre o esquema da “rachadinha” de salários no gabinete do filho hoje senador, sobre o envolvimento da família presidencial com milicianos.

    O presidente das fake news, que bate na imprensa cada vez que ela informa um fato negativo sobre ele e seu governo, é o mesmo que deu 608 declarações falsas ou distorcidas – quase duas por dia – ao longo de 2019. O levantamento é da agência de checagem Aos Fatos. Querem exemplos? “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo.” “Leonardo Di Caprio tá dando dinheiro pra tacar fogo na Amazônia.” “O Brasil é o país que menos usa agrotóxicos.” “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira.” “Nunca teve ditadura no Brasil.”

    Em 2020, depois de completar um ano de mandato com resultados pífios na economia e desastrosos na educação, na cultura, na saúde e na assistência social, o presidente não serenou. Redobrou os ataques à imprensa. Aplicou o duplo sentido mais tosco à expressão jornalística “furo” para caluniar a repórter que denunciou a manipulação massiva do WhatsApp na campanha eleitoral. Atacou outra jornalista, mentindo descaradamente, para negar a revelação de que compartilhou vídeos insuflando manifestações contra o Congresso e o STF.

    E segue promovendo o boicote à imprensa, com exceção daqueles que aproveitam o negócio de ocasião para vender subserviência e silêncios estratégicos. Aos veículos que não se dobram ao seu despotismo, o presidente da República impinge pessoalmente retaliações financeiras diretas, pressão sobre anunciantes e difamação de seus profissionais. Pratica, enfim, toda sorte de manobras sórdidas para tentar asfixiar o jornalismo e alienar a população dos fatos. E já nem se preocupa em disfarçar suas intenções. Querem um último exemplo? Declaração de 6 de janeiro deste ano, dita pelo presidente aos jornalistas “Vocês são uma raça em extinção”.

    Não, presidente, não somos uma raça em extinção. Ao contrário. Somos uma raça cada dia mais forte, mais unida, mais corajosa, mais consciente. Basta olhar para estes 21 novos jornalistas que estamos formando hoje. Basta ler os dizeres na camiseta deles: “Não existe democracia sem jornalismo”.

    Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece.

    Para encerrar, gostaria de citar o exemplo e as palavras do grande escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh. Precursor da reportagem literária e investigativa e destemida voz contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado, Walsh pregava que “Ou o jornalismo é livre, ou é uma farsa, sem meios-termos”. Dizia também que “um intelectual que não compreende o que acontece no seu tempo e no seu país é uma contradição ambulante; e aquele que compreende e não age, terá lugar na antologia do pranto, não na história viva de sua terra”.

    Rodolfo Walsh foi sequestrado e assassinado pela ditadura argentina em 25 de março de 1977. Na véspera, publicara corajosamente uma “carta aberta à junta militar”, denunciando os crimes do sanguinário regime, que então completava apenas seu primeiro ano. Estas foram as últimas palavras que Walsh escreveu: “Sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi, há muito tempo, de dar testemunho em momentos difíceis”.

    Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez.

     

    Confira a nota da Coordenação do Curso de Jornalismo da Unisinos:

    Declaração de apoio e solidariedade ao professor e jornalista Felipe Boff

    Na noite de 7 de março, sábado, na cerimônia de formatura do curso de Jornalismo da Unisinos em São Leopoldo, pessoas da plateia, aos gritos e vaias, tentaram impedir o paraninfo, professor Felipe Boff, de prosseguir seu discurso. A virulência desse ataque foi tão grande que a instituição teve que colocar seguranças para o acompanharem na saída do auditório.

    Em sua fala corajosa e necessária, principalmente na ocasião em que jovens colegas chegam ao mercado de trabalho, Felipe, embasado em dados e exemplos, alertava para o que deveria ser óbvio: o presidente da República vem constantemente ofendendo e destratando jornalistas. “No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada três dias”, destacou o professor.

    Como também salientou o paraninfo, o atual presidente da República vem ameaçando não só o jornalismo: “Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem”. Esses que na formatura tentaram calar um jornalista por dizer o que é fato não enxergam que estão abrindo mão de um direito básico e constitucional de todos os cidadãos brasileiros: o de serem informados. Não existe democracia sem jornalismo livre. Jornalistas já foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados durante o período de ditadura militar no Brasil, como também lembrou Felipe.

    Mas não nos deixaremos intimidar com ameaças. Por isso, nós, jornalistas, professores e professoras de jornalismo abaixo assinados, declaramos total apoio e solidariedade ao professor e jornalista Felipe Boff, que conseguiu, em sua fala verdadeira, representar a todos e todas nós neste momento tão difícil que o país atravessa.. Também por nossos alunos e alunas, temos o dever de dizer: cada ataque nos tornará mais fortes. Por fim, reafirmamos o que o professor Felipe disse no encerramento de sua fala: “Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez”.

    Porto Alegre, 8 de março de 2020.

    Micael Vier Behs

    Coordenador Jornalismo São Leopoldo
    Coordenador Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, Artes e Tecnologias

     

  • Bolívia: Fazendo do abraço um ato político em solidariedade contra o Golpe de Estado

    Bolívia: Fazendo do abraço um ato político em solidariedade contra o Golpe de Estado

    Nos dias 8 e 9 de março de 2020, uma delegação plurinacional de feministas chegará à Bolívia com o objetivo de tornar o abraço um ato político de solidariedade.” Assim começa a afirmação daqueles que agem para sustentar a construção de feminismos sem fronteiras atingindo um território onde, desde 19 de novembro de 2019, as garantias constitucionais estão suspensas por um Golpe de Estado racista, patriarcal e fundamentalista. Uma interrupção da democracia comandada, não por coincidência, por uma mulher.
    Nas ruas de El Alto, onde ocorreu um dos massacres mais cruéis contra as populações indígena, camponesa e humilde das cidades que vieram para defender a democracia após o golpe, os muros falam. “Eles mataram meus irmãos com a Bíblia na mão,” contam algumas. Em outros lugares, a disputa com vistas às eleições de 3 de maio – que não estão garantidas – sugere que, apesar dos assassinatos, da repressão e da dor, o povo boliviano continua em pé. Jamais de joelhos, diante da intenção de um estado que se voltou contra as maiorias para restaurar a supremacia branca com o castigo das botas.
    “Historicamente, os feminismos da nossa região se unem contra a militarização e pelo direito à liberdade. Portanto, a resistência do povo boliviano em geral e de suas mulheres em particular representa hoje a imagem mais clara de uma resposta organizada ao racismo, ao fundamentalismo e ao patriarcado após a imposição de um Golpe de Estado,” diz o comunicado das feministas sem fronteiras. “Assim como nossas irmãs na Bolívia, e também no Chile, no Equador, na Colômbia e no Haiti, são as mulheres e os dissidentes que não apenas sofrem as consequências diretas, sistemáticas e disciplinadoras da violência estrutural em seus corpos e territórios, mas também quem responde de forma direta e organizada.”
    A delegação feminista plurinacional chegará à Bolívia para demonstrar sua solidariedade como um ato político. Ela participará das atividades no dia 8 de março, Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras, e o fará em conjunto com as feministas comunitárias e populares que se opõem ao Golpe de Estado. Assim o fazem porque as mulheres e as dissidências são os alvos preferenciais dos fundamentalismos. E porque somente organizadas poderão soltar um grito capaz de romper o cerco midiático que censura as notícias sobre as violações dos Direitos Humanos cometidas desde novembro passado.
    No ano passado, o Golpe de Estado que derrubou o governo de Manuel Zelaya em Honduras completou uma década. Desde então, os feminismos da região se unem contra ditaduras e fascismos entoando um slogan tão político quanto o ato de denunciar: “Nem Golpe de Estado, nem espancamento das mulheres.” Da América Central à do Sul, a demanda por democracia é para este movimento de libertação uma desculpa para exigir que eles não nos matem, não nos violem e que a soberania sobre nossos corpos e territórios seja respeitada.
    Na Bolívia, o golpe cívico, militar, religioso e patriarcal deflagrado por grupos fundamentalistas e fascistas foi imposto contra a escolha das maiorias. Evo Morales, o primeiro presidente indígena da história da região e vencedor das últimas eleições, foi forçado a renunciar após receber ameaças de grupos cívico-militares contra sua integridade, razão pela qual encontra-se exilado. Uma ocasião para observar as manobras intervencionistas de organismos internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), que denunciou fraude após a decisão popular.
    “Desde então, repressão, militarização, tortura, detenções arbitrárias e criminalização daqueles que resistem a essa imposição tornaram-se uma rotina diária. Os massacres de Sacaba, Cochabamba e Senkata, El Alto levados a cabo pelo governo de fato de Jeanine Añez durante os primeiros dias do golpe são evidências claras”, afirma o grupo no comunicado, avançando em sua caracterização do contexto: “evidenciam a relação do golpe com grupos conservadores e fascistas que não toleram que os indígenas tomem a palavra, manifestem seus costumes, organizem ou se tornem parte de governos. Como parte do mesmo plano, o cerco midiático e a perseguição de líderes políticos e sociais como práticas sistemáticas colocaram em funcionamento um dispositivo de impunidade e desinformação em vigor até hoje.”
    Os feminismos estão por todos os lados. Trata-se de um movimento sem fronteiras que não pode mais ser mantido à distância. Que ocupa seu lugar na história e assume a responsabilidade política de intervir diante das injustiças perpetuadas pelo sistema racista, patriarcal e capitalista. “Não podemos, nem queremos, separar nossas práticas feministas das lutas dos povos,” finaliza a declaração. A presença da delegação feminista plurinacional na Bolívia é a possibilidade de transformar o abraço em ato político.
    E vai continuar até que sejamos todas livres…
  • O fim anunciado da educação superior e da pesquisa no país

    O fim anunciado da educação superior e da pesquisa no país

    As incríveis trapalhadas que comprometeram a confiabilidade de 22 anos de um dos maiores sistemas de seleção e ingresso na educação superior em todo mundo, o ENEM, e a posse de um criacionista como presidente da principal agência de fomento de pesquisas e formação de professores universitários do país, a CAPES, abafaram a divulgação de outro ataque sem precedentes aos professores e pesquisadores nacionais: a Portaria MEC 2.227, de 31 de dezembro de 2019. Promulgada discretamente no último dia do ano e assinada pelo ministro substituto, já que o titular estava, novamente, de férias, a portaria pura e simplesmente proíbe a participação de mais de dois pesquisadores de uma mesma universidade federal em eventos científicos no Brasil e de um pesquisador em evento internacional, ainda que o profissional pague os custos de viagem, alimentação, hospedagem e inscrição do próprio bolso, como ocorre na maioria das vezes.

     Ora, diferente das universidades privadas, que nem sempre desenvolvem pesquisa e na maioria das vezes preparam profissionais para  “o mercado”, as universidades públicas formam para a cidadania e se baseiam no tripé ensino-PESQUISA-extensão. Nenhuma pesquisa científica é feita isoladamente. Todas as pesquisas sérias, seja para o desenvolvimento de vacinas, produtos, sistemas ou análises políticas e sociológicas, envolvem grupos de pesquisadores (normalmente professores e alunos) que precisam necessariamente mostrar suas hipóteses, metodologias e resultados para outros pesquisadores de modo a validar as descobertas e divulgar o conhecimento. Os eventos acadêmicos, nacionais e internacionais, são exatamente o espaço para essa troca indispensável para o progresso da ciência. As universidades públicas são responsáveis por mais de 80% da pesquisa científica desenvolvida no Brasil e as federais ocupam a maioria dos lugares no ranking das 20 melhores instituições de ensino superior do país, dividindo o topo apenas com as estaduais paulistas. 

    Proibir  pesquisadores e pesquisadoras de instituições federais de participarem de congressos, seminários e encontros é um tiro de canhão na pesquisa nacional. Aliás, o tiro de misericórdia num setor que vem tendo cortes cada vez mais profundos nas verbas desde o golpe que derrubou a ex-presidenta Dilma Rousseff. Nenhum país do mundo jamais admitiria que seu governo tomasse uma atitude dessas numa era em que conhecimento e informação são os ativos mais valiosos que uma nação possa ter. Sem pesquisa, sem inovação, sem desenvolvimento, a pátria voltará a ser unicamente uma exportadora de matérias-primas e recursos naturais, como era até 1808. Somente com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, fugindo do exército francês, é que foram permitidas atividades como ensino superior, além de impressão de jornais e tecelagem. É para uma era anterior à independência, quando nossa economia era baseada em cana de açúcar e trabalho escravo, que estamos voltando sob o silêncio cúmplice da elite e da mídia hegemônica.

    Semana que vem, os representantes dos professores das universidades federais que conseguirem autorização do MEC estarão em São Paulo debatendo os ataques à educação pública. As mentiras, calúnias, despreparo e arrogância imbecil do sinistro certamente serão alvo de discussões, assim como as antidemocráticas intervenções nas reitorias (empossando reitores que não foram escolhidos pela comunidade acadêmica), o malfadado projeto de privatização enganosamente chamado de Future-se, os cortes de verbas e programas, etc. Mas devido à urgência da portaria 2.227, o tema deve dominar as conversas.

    É passada a hora da comunidade acadêmica e da sociedade se unirem contra esse processo de terra arrasada do qual sobreviverão apenas as seis pessoas que sozinhas possuem o equivalente ao rendimento da metade mais pobre da população. Sem pesquisa, sem universidades, nem a iludida classe média alta que gerencia aqui os interesses do grande capital transnacional sairá impune. Se não brecarmos esse processo, em breve viveremos todos em um país distópico entre um fundamentalismo medieval e os mais caros serviços de acesso, por exemplo, à internet. Os poucos que não estiverem na miséria absoluta terão de enfrentar níveis cada vez maiores de violência, empobrecimento, doenças e falta de serviços públicos e proteção social. Preservar a pesquisa e o conhecimento nacionais é tão importante quanto preservar o meio-ambiente, o que, obviamente, também só se faz com ciência e tecnologia.

    Em evento sobre escolas militares, sinistro da educação mente para professoras municipais dizendo que seu salário é baixo porque os professores das universidades federais ganham muito e trabalham pouco. Foto: www.mediaquatro.com

    Veja abaixo a nota da principal entidade de pesquisa em comunicação no Brasil sobre o tema:

    Nota de Repúdio à Portaria MEC 2.227, de 31 de dezembro de 2019

     

    A Compós, por meio de sua diretoria e Conselho Geral, vem a público manifestar repúdio à publicação da Portaria MEC n° 2.277, de 31 de dezembro de 2019.

    O documento, assim como outras ações encaminhadas pelo atual governo, denota o completo desconhecimento dos processos de desenvolvimento da pesquisa e do fazer científico na medida em que restringe, conforme indicado no Art. 55 caput e parágrafo único, a participação de pesquisadores de uma mesma Unidade em eventos nacionais e internacionais.

    Travestida de interesse público, declara foco no controle e redução de gastos, mas opera via burocratização a restrição e o cerceamento da participação de pesquisadores em eventos mesmo em situações onde não há ônus para o erário.

    Conjugada com a Medida Provisória 914, de 24 de dezembro de 2019, que interfere nos processos de escolha de dirigentes das IFES, possibilitando o aparelhamento das instâncias superiores e ferindo o princípio da autonomia universitária, tal ação institucionaliza a censura na medida em que  determina a ampliação da participação “somente em caráter excepcional e quando houver necessidade devidamente justificada, por meio de exposição de motivos dos dirigentes das unidades, o número de participantes poderá ser ampliado mediante autorização prévia e expressa do Secretário-Executivo”.

    Mais do que isso, ao declarar que “a participação de servidores em feiras, fóruns, seminários, congressos, simpósios, grupos de trabalho e outros eventos será de, no máximo, dois representantes para eventos no país e um representante para eventos no exterior, por unidade, órgão singular ou entidade vinculada” demonstra não compreender que eventos científicos são espaços onde pesquisadores apresentam resultados de seus trabalhos, favorecendo trocas com seus pares e constituição de redes de pesquisa, nacionais e internacionais, denotando desconhecimento da capacidade e importância de nossos pesquisadores e suas pesquisas.

    Também repudiamos veementemente o desprezo com o debate e a transparência, denotados pela publicação de documentos de tamanha relevância sem diálogo prévio e na véspera de importantes feriados nacionais, aproveitando a desmobilização própria deste período.

    Diante deste quadro, conclamamos toda a comunidade acadêmica, em especial a vinculada aos Programas de Pós-graduação em Comunicação, a atuar junto às respectivas Pró-Reitorias no sentido de constituir pressão contrária a tais ações com vistas à suspensão de tais documentos.

    Informamos ainda que a Compós está atenta e alinhada às ações promovidas pela SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que busca medidas jurídicas e políticas para a suspensão e reversão dos perversos efeitos desta portaria.

    Diretoria e Conselho Geral da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação – Compós

  • Elisa LUCINDA: Aos filhos da Liberdade

    Elisa LUCINDA: Aos filhos da Liberdade

    Estação Primeira de Mangueira: Filhos da Liberdade
    Estação Primeira de Mangueira: Filhos da Liberdade

    Quando soube do novo enredo da Mangueira, gostei de cara. Nutriu minha esperança. É muito poderosa a força narrativa da Sapucaí. A festa tem impressão espetacular, grifando bem a etimologia da espetaculosa palavra. O carnavalesco Leandro Vieira sabe certamente da força educacional política de uma escola e não vem medindo esforços para mirar no esclarecimento do povo brasileiro sobre as questões que dominam seu cotidiano e em usar a arte popular do rei momo pedagogicamente. Pelo que entendo do que li do enredo, Jesus Cristo volta ao mundo, o encontra extremamente intolerante, e o que é pior, em seu nome. Isso o desagrada. É realmente perigosa, escandalosa e abismal a diferença da vida e do pensamento entre Jesus Cristo e o que se tornou a igreja católica e as neopentecostais.

    Chocante.

    Ele não era intolerante nem preconceituoso. Sabemos que Cristo não era branco nem pregava riqueza! Ao contrário, vivia entre pobres, hippies e putas, e não estava em seus planos ver um fiel aos seus princípios um dia dizer: “Agora encontrei Jesus e já tenho dois carros”. Tanto que, desde que chegou ao Vaticano , o valente papa Francisco atua seriamente na desconstrução de toda pompa de tal império da fé e de tudo mais que afasta a igreja dos verdadeiros fundamentos cristãos. Não é tarefa fácil. Tudo está muito torto.

    E o mundo está confuso. O Brasil numa maré de azar sem tamanho. Avançam as forças conservadoras numa miscelânea de ignorância radical e pregação de ideologias que não se assumem como ideologias, mentiras vestidas de verdades, e tudo isso leva nossa comunicação à beira do caos. Que confusão é essa?

    Mata-se indígena em nome do desenvolvimento, nudez é crime mesmo sendo o nosso figurino original, condena-se a sexualidade como se fosse pecado, enquanto as igrejas cometem há séculos a desfaçatez de terem templos espalhados pelo nosso país com categorias separatistas e nomeados como igrejas dos escravos ou dos pretos e ninguém repara? Destroem terreiros, atacam babalorixás e ialorixás, e tudo em nome da fé, do bem, da família. Fé em quem? Bem de quem? E de que família? Nessa febre insana que inclui moralistas, terra-planistas em pleno século XXI, temos um presidente desmatador do Brasil que imita o presidente americano que ama armas e guerras e de cuja performance o mundo tem vergonha, e ainda uma ministra da Secretaria especial da mulher que é contra o feminismo, que faz do seu gabinete uma sucursal de sua igreja, e que, agora, inventou de propor a não-vida sexual entre adolescentes e jovens.

    Socorro, “… o mundo está ao contrário e ninguém reparou?” Realmente Jesus vai ter muito com que se espantar com “isso daí”. E o enredo vai fazer muita gente refletir a partir da Sapucaí.

    Estamos todos atordoados. A cada porrada, uma ação judicial, a cada inconstitucionalidade uma reação imediata dos direitos humanos, uma busca desesperada da sociedade que ainda pode usar a Constituição como um escudo contra as barbaridades que estão levando nosso país ao seu pior lugar de evolução diante de todos os avanços que havíamos conseguido nas últimas décadas. Uma merda geral. As milícias no poder, o Ministro da justiça afundado na falta de ética, comprometendo a imagem geral dos juízes, e um governo despreparado para compreender a complexidade do Brasil de agora, que ainda tem coragem de afirmar, esquizofrenicamente, que a economia vai bem, quando nenhuma economia pode ir bem chafurdada na desigualdade, nas injustiças sociais, na violação dos Direitos Humanos no extermínio das populações indígena e negra. É como dizer: “A economia daquela casa vai muito bem, só estão todos desempregados, não têm como se sustentar, as crianças da casa não tem boa alimentação, educação e saúde pública de qualidade, o pai é preto e pobre, por isso pode ser assassinado a qualquer momento, um dos filhos é gay, lésbica ou trans e por isso pode ser assassinado a qualquer momento, a mãe sofre violência doméstica, por isso pode ser assassinada a qualquer momento. Mas a economia daquela casa vai muito bem”. Não sou economista mas sei que se trata de uma ciência que se relaciona com outros fatores definidores. Nossa economia vai mal, meus senhores. Milhões de desempregados circulam desesperados na espiral da falta de perspectivas. Se eu fosse nossa querida e competente Flavia Oliveira, teria mais argumentos aqui. Mas o pouco que sei diz que isso não está certo, que vamos mal sim.

    Porém, brilha uma luz no fim do túnel:

    O que insanos conservadores não perceberam é que não adianta uma determinação para que jovens não façam amor, agora uma ordem. Quem vai obedecer? É tarde demais. Ninguém vai querer parar de transar e quem ainda nunca, não vai querer mudar a regra do jogo logo na sua vez. Nos 35 anos que nos separam do fim da ditadura, desenvolvemos uma profunda revolução amorosa começada mundialmente em 1968, encabeçada por jovens exigindo a liberdade de sua sexualidade, na base do “faça amor, não faça guerra”. Desde então nossos jovens estão transando em casa, na casa dos seus namorados e namoradas, e os pais sabem, orientam, ensinam prevenções sem hipocrisia e com responsabilidade. Esta é a luz: a nova gente.

    Sou de uma geração que nasceu na ditadura e viu, e participou da luta pela restituição da liberdade e da democracia. Uma dura luta contra a censura e pela liberdade de expressão. Vi meu pai queimando livros no meio da noite no fundo do quintal. Temia ser descoberto como homem de pensamento livre, como amante da liberdade e igualdade para todos. Eu sou filha de quem lutou pela liberdade. Herdeira desta bandeira. Ter vivido essa história fez com que nós também lutássemos para que nossos filhos tivessem garantida a liberdade que um dia nos faltou .Vinte anos de ditadura fizeram muito mal ao país, creiam-me! Gênios, intelectuais, estudantes, artistas, professores, pensadores, pesquisadores, jornalistas, pessoas cujo único crime foi lutar pela liberdade, foram torturados e mortos. A ditadura insistia em ser chamada de revolução quando na verdade foi um duro golpe militar. Nesse tempo todos nos tornamos guardiões dessa liberdade e lutamos diuturnamente para preservá-la. Imagine o que farão então os que nunca viveram sem ela? Quem nasceu com esse grito –gozo da liberdade de expressão– solto não vai querer saber de outro rumo pra esta prosa e não vai se entregar assim .

    Greta Thumberg, esta menina ativista sueca que está puxando a orelha dos adultos pela bagunça climática no mundo, não é um caso isolado. Os jovens estão estudando sustentabilidade em todos os sentidos. Estão atentos à contemporaneidade, à diversidade de gênero e enquanto negros e indígenas estão se tornando antropólogos, sociólogos, filósofos, e estão de olho nas contradições do país que caminha trôpego sobre profunda desigualdade. Sabem que dessa injustiça não poderá brotar a paz.

    São os filhos da liberdade e não a entregarão com facilidade, nem imaginam o mundo onde não possam circular livres e expressarem sua opinião quando quiserem, à hora que quiserem e sobre o que quiserem. Não conhecem outro regime. Não estava nos seus planos. Os filhos da liberdade nasceram com o DNA de sua preservação. Seus pais lutaram pelas minorias e acharam maneiras alternativas para lhes prometer um mundo melhor. Lutaram por suas crenças, ervas e opiniões. Não será uma luta fácil, mas confio na força de quem nasceu numa casa onde a repressão deu lugar à uma educação sincera, verdadeira, informal e respeitosa.

    Claro que também há os “jovens de direita” (ó triste encontro de duas palavras tão antônimas), mas ainda assim eu acredito que, como diz o poeta Manoel de Barros, “A liberdade é como água, caça jeito”, acha um modo de escoar. Não vão nos levar tudo na mão grande, haverá luta. Há luta! E os filhos da liberdade não vão negociá-la nem medir esforços para honrá-la. O carnavalesco da Mangueira é um filho desta grandiosa prole. Na esteira destas batalhas para assegurar nossos direitos veio o direito ao nosso pensamento livre, o direito à homoafetividade e à transexualidade sem condenação, veio o anticoncepcional que fez com que pudéssemos decidir e programar gestações, veio a mulher no mercado no trabalho, veio o homem se reconfigurando e se despoluindo de seu machismo tóxico.

    Nosso grande quilombo misto somado aos que vieram depois de nós não é nada pequeno. Ou seja, estamos todos, os da tribo imensa da liberdade, dispostos a não perdê-la de modo algum. Confiemos nos frutos da liberdade e aí veremos que os filhos dela jamais fogem à luta.

    Elisa Lucinda, verão de 2020

     

     

     

    Leia outras colunas de Elisa Lucinda:

     

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    ELISA LUCINDA – “SÓ DE SACANAGEM, VOU EXPLICAR: LULA É INOCENTE, LIMPO”

    ELISA LUCINDA: QUERO A HISTÓRIA DO MEU NOME

    ELISA LUCINDA: CERCADINHO DE PALAVRAS

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  • A volta dos que não foram – Brasil redescobre os fascistas

    A volta dos que não foram – Brasil redescobre os fascistas

    Por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá – www.mediaquatro.com – especial para os Jornalistas Livres

    A mídia hegemônica e as redes sociais se espantaram essa semana ao “descobrir” que os fascistas brasileiros perderam totalmente a vergonha e resolveram mostrar suas atitudes e símbolos à luz do sol, em espaço público. Primeiro foi a retirada pela PM de uma faixa da torcida antifascista do Botafogo.

    Foto: reprodução Instagram

    Depois alguém flagrou um homem de meia idade sentado tranquilamente num bar de Unaí, Minas Gerais, com uma braçadeira de suástica nazista sobre a manga da camisa.

    Foto: reprodução Instagram

    E, finalmente, reportagem do tradicional jornal paulistano O Estado de São Paulo mostra que os Integralistas, versão brasileira do nazismo nos anos 1930, estão de volta à atividade em plena luz do dia.

    Captura de tela do site gratuito Press Reader de foto Hélvio Romero / Estadão – Fonte: https://www.pressreader.com/brazil/o-estado-de-s-paulo/20191215/283205855157928

    Para nós, que sempre fomos antifascistas e cobrimos as manifestações de rua no Brasil antes de virar modinha com as Jornadas de Junho de 2013, temos visto isso, fotografado, registrado, reportado e tentado alertar a esquerda, que infelizmente se achava invencível na política institucional e aparentemente até hoje não conseguiu se rearticular para barrar o processo de fascismo galopante que vivemos, e não somente no Brasil. 

    Barrar o fascismo é fundamental. Nem mesmo as ideologias de centro-direita, nem o liberalismo clássico podem fazer frente a um regime fascista, como explica nessa palestra em inglês o pesquisador Jason Stanley, escritor do livro Como o fascismo funciona: A política do “nós” e “eles” (um bom resumo didático em português pode ser visto no Meteoro.Doc, inclusive fazendo as referências corretas com o Brasil de Bolsonaro citado três vezes na palestra).

    Abaixo, reproduzimos na íntegra a reportagem de março de 2014 publicada originariamente no site Brasil+40 sobre a dita Marcha Com Deus e a Família Pela Liberdade, que além dos integralistas e “segurança” de supremacistas brancos, trazia TODOS os grupos e mesmo slogans em faixas que apareceriam em todas as TVs, revistas e jornais do Brasil a partir de março de 2015 na campanha pelo Golpe contra Dilma Roussef e depois no apoio a Bolsonaro.

    Não digam que não avisamos!

     

    A VOLTA DOS QUE NÃO FORAM

    Reedição da Marcha com Deus e a Família pede o retorno dos militares ao poder ignorando que a mentalidade militarista nunca deixou a polícia, os presídios ou a periferia

    Com o golpe de 2016, de fato consequiram “seu” país de volta. Essa e todas as fotos seguintes: Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá – www.mediaquatro.com

    Quando skinheads, integralistas, fanáticos religiosos e saudosistas do regime militar conclamam nas redes sociais a população brasileira a cerrar fileiras contra um golpe comunista e/ou gaysista (acuma?), a censura na internet (Marco Civil), os perigos à liberdade de expressão (dos discursos de ódio de “jornalistas” como a Rachel Sheherazade), a vinda de guerrilheiros/escravos disfarçados de médicos (de Cuba), as urnas eletrônicas (que fraudariam as eleições que eles não conseguiram ganhar) etc, a coisa pode até parecer piada ou alucinação. Mas quando mais de mil passeiam pelo centro de São Paulo gritando esses slogans e agredindo quem se coloca contra isso, aí já é vandalismo!

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    Brincadeiras à parte, o número de pessoas que saíram de suas cavernas e detrás das telas de computador onde estão relativamente protegidas para destilar toda sua falta de informação real e preconceito infelizmente não foi insignificante, como alguns jornais publicaram. Ao contrário disso, o fato de colocarem suas “ideias” na rua, de cara limpa, com propostas absurdas mas factíveis (como sempre diz a Professora Malena Contrera, os psicopatas são perfeitamente lógicos e coerentes em sua loucura) é muito significativo do momento que o Brasil e o mundo atravessam, além de ser resultado do processo histórico que vivemos entre 1964 e 1985, e no assim chamado período da redemocratização.

    Diferente de outros países como Chile e Argentina, onde os crimes das ditaduras foram abertos por comissões da verdade e os criminosos acusados, condenados e presos, no Brasil a Lei da Anistia de 1979 (recentemente reafirmada como juridicamente válida pelo STF, apesar dos acordos internacionais em contrário assinados pelo país e da Constituição de 1988) tem garantido a impunidade e preservado a identidade de torturadores e assassinos fardados, além de seus comparsas civis.

    Manifestante traz na camiseta o símbolo do DOPS - Departamento da Ordem Política e Social, usado durante da ditadura para perseguir, torturar e matar dissidentes

    Manifestante traz na camiseta o símbolo do DOPS – Departamento da Ordem Política e Social, usado durante da ditadura para perseguir, torturar e matar dissidentes

    Depois dos períodos ditatoriais no continente, presidentes envolvidos em grandes negociatas e esquemas de corrupção nas privatizações do ciclo neoliberal no Peru, Bolívia e Venezuela também foram julgados e detidos ou estão foragidos nos Estados Unidos. Por aqui, Sarney e Collor seguem sendo eleitos para o Senado e FHC não teme ser investigado pela venda por preço irrisório da maior empresa mineradora do mundo (a Vale), nem pelo sistema telefônico nacional e muito menos pela compra de votos para sua reeleição ou a brutal desvalorização do Real no segundo mandato que derrubou a menos da metade o valor das estatais vendidas.

    O CCC nos anos 1960 e 70 era o Comando de Caça aos Comunistas. Hoje dizem querer caçar corruptos mas atribuem a corrupção apenas à comunista Dilma

    O CCC nos anos 1960 e 70 era o Comando de Caça aos Comunistas. Hoje dizem querer caçar corruptos mas atribuem a corrupção apenas à comunista Dilma

    Para quem quiser conhecer a verdadeira origem da insegurança pública, da impunidade e da falta de qualidade nos sistemas públicos de saúde e educação no Brasil, um bom começo é estudar o que há disponível de história, antes que os revisionistas mudem os fatos, da ditadura civil-militar. Sim, civil! Afinal, jamais os militares teriam tomado o poder se não fosse o dinheiro grosso investido pelos Estados Unidos e por empresários nacionais no desmonte de serviços altamente lucrativos hoje como segurança, educação e saúde.

    Religião, civis, militares, ideologia e mídia em uma única foto

    Religião, civis, militares, ideologia e mídia em uma única foto

    Do mesmo modo, a violência no campo e o inchaço das periferias certamente seriam menores se as reformas de base, como a reforma agrária, propostas pelo PTB de João Goulart em 1961, não tivessem sido abortadas pelo golpe.

    Na linha de frente da marcha à ré, os skinheads

    Na linha de frente da marcha à ré, os skinheads

    Quem empunhou as cores da bandeira nacional no último sábado 22 de Março,via de regra, são aqueles que se beneficiaram e ainda se beneficiam dos frutos de 1964, enquanto a maior parte da população padece de uma herança maldita ainda presente na impunidade cotidiana de torturadores e assassinos pagos com os impostos de todos para manter os pobres longe da velha classe média e garantir o direito à propriedade de grandes latifundiários e especuladores, mesmo que sejam escravistas ou grileiros.

    Um dos únicos detidos na marcha. A polícia não informou o motivo.

    Um dos únicos detidos na marcha. A polícia não informou o motivo.

    Afinal, quem são os heróis, saudados aos gritos nas ruas, numa corporação militar que matou 111 presos em 1992, assassinou mais de 600 em 48 horas nas periferias em 2006, desalojou com bombas 1.600 famílias no Pinheirinho em 2012 e agrediu e deteve de forma totalmente ilegal mais de 800 manifestantes e jornalistas entre junho de 2013 e março de 2014, pra falar só de São Paulo? Pior, o que cada uma dessas ações recentes resultou em termos de melhorias na segurança, educação ou saúde?

    Segurança reforçada "do nosso lado" , como dizia o panfleto de convocação da marcha.

    Segurança reforçada “do nosso lado” , como dizia o panfleto de convocação da marcha.

    Prós versus Contras

    Importante lembrar, contudo, que protestos civis questionando o atual modelo de democracia representativa refém dos grandes capitais, como temos visto desde junho passado, não são exclusividade do Brasil. Mas, distintamente dos que pregam maior repressão aos movimentos populares, os jovens nas ruas de todo o mundo ainda não conseguem apontar um caminho para a sociedade e o resultado final é a participação cada vez menor nos processos eleitorais. Não é à toa que os reacionários, sem número para se contrapor à maioria da população, bombardeiam os programas sociais ao mesmo tempo em que pedem o fim do voto obrigatório. Na Espanha dos “indignados”, onde mais de um milhão foram às ruas contra as medidas de austeridade no último fim de semana, os franquistas voltaram ao poder há dois anos também por causa de uma abstenção recorde de 46%. Na Grécia, os neonazistas não ganharam por pouco (diferente dos adeptos ucranianos que tomaram o poder à força e com apoio estadunidense) e na França o partido de extrema-direita acaba de ganhar as eleições municipais no mesmo esquema de poucos votos, falta de organização e desânimo das esquerdas.

    Se Deus foi, não dá pra dizer, mas representantes da igreja, com certeza

    Se Deus foi, não dá pra dizer, mas representantes da igreja, com certeza

    Por aqui, tirando vitórias pontuais de movimentos específicos, como o MPL que conseguiu barrar o aumento das tarifas de transporte em várias cidades, a maior parte dos protestos mais à esquerda não trazem propostas afirmativas, apenas negativas. A própria manifestação de contraponto à Marcha de sábado trazia o título de ANTIfascista e apesar de reunir mais gente teve, obviamente, repercussão menor. Da mesma forma, o movimento mais forte nas ruas esse ano traz em destaque a expressão NÃO vai ter Copa. A outra parte do slogan (sem direitos) quase não aparece. Uma pergunta simples, pragmaticamente falando, o que tem mais chance de se concretizar no curto prazo: a redução da maioridade penal ou o cancelamento da Copa do Mundo?

    Civis e militares juntos por uma nova intervenção "constitucional"

    Civis e militares juntos por uma nova intervenção “constitucional”

    Fundamental ressaltar, também, que é muito mais fácil criminalizar manifestantes mascarados, especialmente os adeptos da tática Black Bloc, e acusá-los na mídia de extrema violência (ainda mais depois da morte do jornalista Santiago Ilídio Andrade no Rio de Janeiro) do que apontar, dentro da PM e dos governos, os responsáveis pelas agressões a pessoas (e não a vidraças), mutilações e mortes na brutal repressão às manifestações. Não podemos esquecer, por exemplo, que NINGUÉM está respondendo processo pela perda do olho do fotógrafo Sérgio Silva em 13 de junho de 2013, enquanto a morte de Santiago foi esclarecida em menos de uma semana.

    A campanha contra o Marco Civil da Internet, chamada de censura pelos manifestantes, não conseguiu impedir sua aprovação na Câmara

    A campanha contra o Marco Civil da Internet, chamada de censura pelos manifestantes, não conseguiu impedir sua aprovação na Câmara

    Se queremos um avanço real na sociedade e não a volta da ditadura, devemos olhar com atenção quais táticas trazem resultados de fato, quais nos levam a ficarmos reféns da violência para conseguir visibilidade e o que significa essa armadilha. É preciso observar a ação dos grupos que conseguem passar sua visão de mundo nos meios de comunicação em massa, inclusive os reacionários, quem os apóia e quais os interesses não revelados por trás deles. Temos de desconfiar da cobertura da grande imprensa, mas criar formas de diálogo e de influenciar e influir nos seus fluxos. E, finalmente, temos de desenvolver as alternativas factíveis para os modelos atuais que sejam mais democráticos e justos para o conjunto da população e especialmente os mais vulneráveis e historicamente prejudicados. A rua é de todos que têm coragem de ocupá-las. Mas as vitórias políticas são de quem tem plano e estratégia para conquistá-las.

    A população realmente marginalizada não tava nem aí pra marcha

    A população realmente marginalizada não tava nem aí pra marcha

  • O que é o cerco de Túpac Katari, anunciado por seguidores de Evo e temido em La Paz

    O que é o cerco de Túpac Katari, anunciado por seguidores de Evo e temido em La Paz

    Movimentos sociais leais a Evo Morales exigem a renúncia imediata da presidente interina Jeanine Áñez. REUTERS

    Em ambas as ocasiões, todos os acessos à capital da Bolívia foram fechados para que nenhum alimento, gasolina ou botijões de gás pudessem entrar.

    Nas duas ocasiões, povos indígenas, moradores da cidade de El Alto, produtores de folhas de coca e outros setores decretaram o “cerco de Tupac Katari” a La Paz, uma medida que os mesmos grupos anunciaram nesta semana para defender o ex-presidente Evo Morales.

    Morales exilou-se no México após renunciar e pede para retornar à Bolívia para concluir seu mandato até janeiro de 2020. Enquanto isso, as organizações leais a ele não desistem e exigem a renúncia imediata da presidente interina, Jeanine Áñez.

    Quatro semanas após as eleições em que a oposição denunciou ter ocorrido uma fraude e que, segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA), teve “irregularidades”, estes movimentos sociais apelam para uma estratégia que já funcionou antes e que se origina no século 18.

    A Bolívia vive uma onda de protestos desde as eleições de 20 de outubro. AFP

    A lenda do cerco

    Em 2003, uma mobilização que aparentemente não representava um perigo real para o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada transformou-se em um protesto maciço que terminou com a renúncia do então presidente.

    As primeiras mortes ocorridas na crise agravaram a situação e levaram as Províncias indígenas no entorno de La Paz a tomar uma decisão: reeditar o cerco de Túpac Katari.

    A violenta resposta do governo em El Alto acabou sendo conhecida como o Massacre de Outubro e deixou mais de 70 mortos. Gonzalo Sánchez de Lozada renunciou algumas semanas depois, em 17 de outubro de 2003.

    Os piores episódios de violência foram registrados em Cochabamba. GETTY IMAGES
    Os plantadores de coca de Chapare continuam a defender Evo Morales. GETTY IMAGES

    Em 2005, com Carlos Mesa como presidente, houve uma nova crise política que levou a um novo bloqueio total de La Paz. A medida funcionou mais uma vez, e o mandato de Mesa terminou prematuramente em meados daquele ano.

    Essa estratégia remete a 1781, um dos anos mais icônicos das lutas dos povos indígenas contra o colonialismo espanhol. Julian Apaza, conhecido como Túpac Katari, liderou dezenas de milhares de indígenas no cerco à cidade de Nossa Senhora da Paz por vários meses, desencadeando cenas de horror e desespero entre os espanhóis e descendentes de espanhóis que viviam ali.

    Embora o cerco tenha sido derrotado e Katari punido com a morte, esse episódio ficou conhecido como um feito indígena que forçou os representantes da colônia a ficarem de joelhos por alguns meses.

    Em 2003, o acesso rodoviário a La Paz foi bloqueado. GETTY IMAGES

    Em meados de novembro (2019), Evo Morales fez uma menção ao líder indígena em sua conta no Twitter. “O imperialismo espanhol pensou que, ao desmantelar Túpac Katari há 238 anos, acabaria com a força do povo para romper as correntes do colonialismo. Hoje, mais do que nunca, a luta continua. Diante da repressão do golpismo racista, repetimos a frase: ‘Voltarei e serei milhões!’.”

    A reedição do cerco

    Após a renúncia de Evo, uma grande marcha de moradores das Províncias indígenas percorreu La Paz. “Agora sim, guerra civil”, eles gritavam enquanto avançavam pelo centro da cidade e caminhavam ao redor do Palácio do Governo e da Assembleia Legislativa Plurinacional.

    “Cerco até as últimas consequências, companheiros”, disse um dos manifestantes que vestia um poncho vermelho e carregava uma wiphala, bandeira indígena elevada a símbolo nacional por Morales.

    Ele explicou que o objetivo dos manifestantes é deixar La Paz “sem um grão de arroz”, conforme uma decisão tomada no fim de semana, em uma assembleia dos representantes das Províncias e de organizações sociais ligadas a Morales, na cidade de El Alto, quando decidiu-se sufocar a capital boliviana até que Áñez deixe a Presidência.

    Os apoiadores de Morales exigem a renúncia imediata da presidente interina, Jeanine Áñez. Foto: REUTERS

    Caso ela não renuncie, o cerco começará entre as próximas terça e quarta-feiras (26 e 27/11) , com uma greve por tempo indeterminado e o “bloqueio de mil ruas”.

    No entanto, as organizações de El Alto ligadas a Morales não são as únicas que se juntarão à mobilização. As federações de produtores de folha de coca de El Chapare, no centro da Bolívia, também deram um ultimato a Áñez e dizem que nunca abandonarão o homem que começou como “um deles” e “chegou ao poder em defesa da coca”.

    O medo do cerco

    Lizzy Moraibe é uma estudante universitária de 20 anos e foi a La Paz para estudar. Nos cercos de 2003 e 2005, ele morava em Santa Cruz e tinha menos de 6 anos de idade. Ela diz que não sabe muito bem o que comprar para estocar antes do cerco.

    “Há cada vez menos comida, e não sabemos quando isso vai acabar”, diz Moraibe, que mora sozinha e vai ao mesmo restaurante todos os dias para almoçar. “A cozinheira toda vez me diz que há menos comida. Que não há frango, agora não há carne. Tudo está acabando.”

    Os indígenas aymaras concordaram em se juntar ao cerco a La Paz. Foto: REUTERS 

    Por outro lado, Joeris Vera sabe muito bem como foram os cercos recentes e decidiu aproveitar uma tarde livre para ir aos mercados. Por 2 kg de carne bovina, pagou o equivalente a R$ 126, algo que não deveria custado mais do que R$ 84 antes da atual crise.

    “Felizmente, consegui isso, mas acho que a fila para o frango era de três horas”, diz ele, resignado.

    Vera tem 45 anos e lembra das últimas vezes que o “cerco de Túpac Katari” obrigou La Paz a estocar mantimentos e produtos básicos — e a deixou muito parecida com uma cidade fantasma.

    “Eu não quero voltar a viver aquilo. Espero que solucionem a situação de uma vez”, diz ele.