Jornalistas Livres

Categoria: Golpe

  • Elisa LUCINDA: Aos filhos da Liberdade

    Elisa LUCINDA: Aos filhos da Liberdade

    Estação Primeira de Mangueira: Filhos da Liberdade
    Estação Primeira de Mangueira: Filhos da Liberdade

    Quando soube do novo enredo da Mangueira, gostei de cara. Nutriu minha esperança. É muito poderosa a força narrativa da Sapucaí. A festa tem impressão espetacular, grifando bem a etimologia da espetaculosa palavra. O carnavalesco Leandro Vieira sabe certamente da força educacional política de uma escola e não vem medindo esforços para mirar no esclarecimento do povo brasileiro sobre as questões que dominam seu cotidiano e em usar a arte popular do rei momo pedagogicamente. Pelo que entendo do que li do enredo, Jesus Cristo volta ao mundo, o encontra extremamente intolerante, e o que é pior, em seu nome. Isso o desagrada. É realmente perigosa, escandalosa e abismal a diferença da vida e do pensamento entre Jesus Cristo e o que se tornou a igreja católica e as neopentecostais.

    Chocante.

    Ele não era intolerante nem preconceituoso. Sabemos que Cristo não era branco nem pregava riqueza! Ao contrário, vivia entre pobres, hippies e putas, e não estava em seus planos ver um fiel aos seus princípios um dia dizer: “Agora encontrei Jesus e já tenho dois carros”. Tanto que, desde que chegou ao Vaticano , o valente papa Francisco atua seriamente na desconstrução de toda pompa de tal império da fé e de tudo mais que afasta a igreja dos verdadeiros fundamentos cristãos. Não é tarefa fácil. Tudo está muito torto.

    E o mundo está confuso. O Brasil numa maré de azar sem tamanho. Avançam as forças conservadoras numa miscelânea de ignorância radical e pregação de ideologias que não se assumem como ideologias, mentiras vestidas de verdades, e tudo isso leva nossa comunicação à beira do caos. Que confusão é essa?

    Mata-se indígena em nome do desenvolvimento, nudez é crime mesmo sendo o nosso figurino original, condena-se a sexualidade como se fosse pecado, enquanto as igrejas cometem há séculos a desfaçatez de terem templos espalhados pelo nosso país com categorias separatistas e nomeados como igrejas dos escravos ou dos pretos e ninguém repara? Destroem terreiros, atacam babalorixás e ialorixás, e tudo em nome da fé, do bem, da família. Fé em quem? Bem de quem? E de que família? Nessa febre insana que inclui moralistas, terra-planistas em pleno século XXI, temos um presidente desmatador do Brasil que imita o presidente americano que ama armas e guerras e de cuja performance o mundo tem vergonha, e ainda uma ministra da Secretaria especial da mulher que é contra o feminismo, que faz do seu gabinete uma sucursal de sua igreja, e que, agora, inventou de propor a não-vida sexual entre adolescentes e jovens.

    Socorro, “… o mundo está ao contrário e ninguém reparou?” Realmente Jesus vai ter muito com que se espantar com “isso daí”. E o enredo vai fazer muita gente refletir a partir da Sapucaí.

    Estamos todos atordoados. A cada porrada, uma ação judicial, a cada inconstitucionalidade uma reação imediata dos direitos humanos, uma busca desesperada da sociedade que ainda pode usar a Constituição como um escudo contra as barbaridades que estão levando nosso país ao seu pior lugar de evolução diante de todos os avanços que havíamos conseguido nas últimas décadas. Uma merda geral. As milícias no poder, o Ministro da justiça afundado na falta de ética, comprometendo a imagem geral dos juízes, e um governo despreparado para compreender a complexidade do Brasil de agora, que ainda tem coragem de afirmar, esquizofrenicamente, que a economia vai bem, quando nenhuma economia pode ir bem chafurdada na desigualdade, nas injustiças sociais, na violação dos Direitos Humanos no extermínio das populações indígena e negra. É como dizer: “A economia daquela casa vai muito bem, só estão todos desempregados, não têm como se sustentar, as crianças da casa não tem boa alimentação, educação e saúde pública de qualidade, o pai é preto e pobre, por isso pode ser assassinado a qualquer momento, um dos filhos é gay, lésbica ou trans e por isso pode ser assassinado a qualquer momento, a mãe sofre violência doméstica, por isso pode ser assassinada a qualquer momento. Mas a economia daquela casa vai muito bem”. Não sou economista mas sei que se trata de uma ciência que se relaciona com outros fatores definidores. Nossa economia vai mal, meus senhores. Milhões de desempregados circulam desesperados na espiral da falta de perspectivas. Se eu fosse nossa querida e competente Flavia Oliveira, teria mais argumentos aqui. Mas o pouco que sei diz que isso não está certo, que vamos mal sim.

    Porém, brilha uma luz no fim do túnel:

    O que insanos conservadores não perceberam é que não adianta uma determinação para que jovens não façam amor, agora uma ordem. Quem vai obedecer? É tarde demais. Ninguém vai querer parar de transar e quem ainda nunca, não vai querer mudar a regra do jogo logo na sua vez. Nos 35 anos que nos separam do fim da ditadura, desenvolvemos uma profunda revolução amorosa começada mundialmente em 1968, encabeçada por jovens exigindo a liberdade de sua sexualidade, na base do “faça amor, não faça guerra”. Desde então nossos jovens estão transando em casa, na casa dos seus namorados e namoradas, e os pais sabem, orientam, ensinam prevenções sem hipocrisia e com responsabilidade. Esta é a luz: a nova gente.

    Sou de uma geração que nasceu na ditadura e viu, e participou da luta pela restituição da liberdade e da democracia. Uma dura luta contra a censura e pela liberdade de expressão. Vi meu pai queimando livros no meio da noite no fundo do quintal. Temia ser descoberto como homem de pensamento livre, como amante da liberdade e igualdade para todos. Eu sou filha de quem lutou pela liberdade. Herdeira desta bandeira. Ter vivido essa história fez com que nós também lutássemos para que nossos filhos tivessem garantida a liberdade que um dia nos faltou .Vinte anos de ditadura fizeram muito mal ao país, creiam-me! Gênios, intelectuais, estudantes, artistas, professores, pensadores, pesquisadores, jornalistas, pessoas cujo único crime foi lutar pela liberdade, foram torturados e mortos. A ditadura insistia em ser chamada de revolução quando na verdade foi um duro golpe militar. Nesse tempo todos nos tornamos guardiões dessa liberdade e lutamos diuturnamente para preservá-la. Imagine o que farão então os que nunca viveram sem ela? Quem nasceu com esse grito –gozo da liberdade de expressão– solto não vai querer saber de outro rumo pra esta prosa e não vai se entregar assim .

    Greta Thumberg, esta menina ativista sueca que está puxando a orelha dos adultos pela bagunça climática no mundo, não é um caso isolado. Os jovens estão estudando sustentabilidade em todos os sentidos. Estão atentos à contemporaneidade, à diversidade de gênero e enquanto negros e indígenas estão se tornando antropólogos, sociólogos, filósofos, e estão de olho nas contradições do país que caminha trôpego sobre profunda desigualdade. Sabem que dessa injustiça não poderá brotar a paz.

    São os filhos da liberdade e não a entregarão com facilidade, nem imaginam o mundo onde não possam circular livres e expressarem sua opinião quando quiserem, à hora que quiserem e sobre o que quiserem. Não conhecem outro regime. Não estava nos seus planos. Os filhos da liberdade nasceram com o DNA de sua preservação. Seus pais lutaram pelas minorias e acharam maneiras alternativas para lhes prometer um mundo melhor. Lutaram por suas crenças, ervas e opiniões. Não será uma luta fácil, mas confio na força de quem nasceu numa casa onde a repressão deu lugar à uma educação sincera, verdadeira, informal e respeitosa.

    Claro que também há os “jovens de direita” (ó triste encontro de duas palavras tão antônimas), mas ainda assim eu acredito que, como diz o poeta Manoel de Barros, “A liberdade é como água, caça jeito”, acha um modo de escoar. Não vão nos levar tudo na mão grande, haverá luta. Há luta! E os filhos da liberdade não vão negociá-la nem medir esforços para honrá-la. O carnavalesco da Mangueira é um filho desta grandiosa prole. Na esteira destas batalhas para assegurar nossos direitos veio o direito ao nosso pensamento livre, o direito à homoafetividade e à transexualidade sem condenação, veio o anticoncepcional que fez com que pudéssemos decidir e programar gestações, veio a mulher no mercado no trabalho, veio o homem se reconfigurando e se despoluindo de seu machismo tóxico.

    Nosso grande quilombo misto somado aos que vieram depois de nós não é nada pequeno. Ou seja, estamos todos, os da tribo imensa da liberdade, dispostos a não perdê-la de modo algum. Confiemos nos frutos da liberdade e aí veremos que os filhos dela jamais fogem à luta.

    Elisa Lucinda, verão de 2020

     

     

     

    Leia outras colunas de Elisa Lucinda:

     

    ELISA LUCINDA: A mão que balança o berço

    ELISA LUCINDA – “SÓ DE SACANAGEM, VOU EXPLICAR: LULA É INOCENTE, LIMPO”

    ELISA LUCINDA: QUERO A HISTÓRIA DO MEU NOME

    ELISA LUCINDA: CERCADINHO DE PALAVRAS

    ELISA LUCINDA: QUERO MINHA POESIA

  • A volta dos que não foram – Brasil redescobre os fascistas

    A volta dos que não foram – Brasil redescobre os fascistas

    Por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá – www.mediaquatro.com – especial para os Jornalistas Livres

    A mídia hegemônica e as redes sociais se espantaram essa semana ao “descobrir” que os fascistas brasileiros perderam totalmente a vergonha e resolveram mostrar suas atitudes e símbolos à luz do sol, em espaço público. Primeiro foi a retirada pela PM de uma faixa da torcida antifascista do Botafogo.

    Foto: reprodução Instagram

    Depois alguém flagrou um homem de meia idade sentado tranquilamente num bar de Unaí, Minas Gerais, com uma braçadeira de suástica nazista sobre a manga da camisa.

    Foto: reprodução Instagram

    E, finalmente, reportagem do tradicional jornal paulistano O Estado de São Paulo mostra que os Integralistas, versão brasileira do nazismo nos anos 1930, estão de volta à atividade em plena luz do dia.

    Captura de tela do site gratuito Press Reader de foto Hélvio Romero / Estadão – Fonte: https://www.pressreader.com/brazil/o-estado-de-s-paulo/20191215/283205855157928

    Para nós, que sempre fomos antifascistas e cobrimos as manifestações de rua no Brasil antes de virar modinha com as Jornadas de Junho de 2013, temos visto isso, fotografado, registrado, reportado e tentado alertar a esquerda, que infelizmente se achava invencível na política institucional e aparentemente até hoje não conseguiu se rearticular para barrar o processo de fascismo galopante que vivemos, e não somente no Brasil. 

    Barrar o fascismo é fundamental. Nem mesmo as ideologias de centro-direita, nem o liberalismo clássico podem fazer frente a um regime fascista, como explica nessa palestra em inglês o pesquisador Jason Stanley, escritor do livro Como o fascismo funciona: A política do “nós” e “eles” (um bom resumo didático em português pode ser visto no Meteoro.Doc, inclusive fazendo as referências corretas com o Brasil de Bolsonaro citado três vezes na palestra).

    Abaixo, reproduzimos na íntegra a reportagem de março de 2014 publicada originariamente no site Brasil+40 sobre a dita Marcha Com Deus e a Família Pela Liberdade, que além dos integralistas e “segurança” de supremacistas brancos, trazia TODOS os grupos e mesmo slogans em faixas que apareceriam em todas as TVs, revistas e jornais do Brasil a partir de março de 2015 na campanha pelo Golpe contra Dilma Roussef e depois no apoio a Bolsonaro.

    Não digam que não avisamos!

     

    A VOLTA DOS QUE NÃO FORAM

    Reedição da Marcha com Deus e a Família pede o retorno dos militares ao poder ignorando que a mentalidade militarista nunca deixou a polícia, os presídios ou a periferia

    Com o golpe de 2016, de fato consequiram “seu” país de volta. Essa e todas as fotos seguintes: Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá – www.mediaquatro.com

    Quando skinheads, integralistas, fanáticos religiosos e saudosistas do regime militar conclamam nas redes sociais a população brasileira a cerrar fileiras contra um golpe comunista e/ou gaysista (acuma?), a censura na internet (Marco Civil), os perigos à liberdade de expressão (dos discursos de ódio de “jornalistas” como a Rachel Sheherazade), a vinda de guerrilheiros/escravos disfarçados de médicos (de Cuba), as urnas eletrônicas (que fraudariam as eleições que eles não conseguiram ganhar) etc, a coisa pode até parecer piada ou alucinação. Mas quando mais de mil passeiam pelo centro de São Paulo gritando esses slogans e agredindo quem se coloca contra isso, aí já é vandalismo!

    DSC_0224

    Brincadeiras à parte, o número de pessoas que saíram de suas cavernas e detrás das telas de computador onde estão relativamente protegidas para destilar toda sua falta de informação real e preconceito infelizmente não foi insignificante, como alguns jornais publicaram. Ao contrário disso, o fato de colocarem suas “ideias” na rua, de cara limpa, com propostas absurdas mas factíveis (como sempre diz a Professora Malena Contrera, os psicopatas são perfeitamente lógicos e coerentes em sua loucura) é muito significativo do momento que o Brasil e o mundo atravessam, além de ser resultado do processo histórico que vivemos entre 1964 e 1985, e no assim chamado período da redemocratização.

    Diferente de outros países como Chile e Argentina, onde os crimes das ditaduras foram abertos por comissões da verdade e os criminosos acusados, condenados e presos, no Brasil a Lei da Anistia de 1979 (recentemente reafirmada como juridicamente válida pelo STF, apesar dos acordos internacionais em contrário assinados pelo país e da Constituição de 1988) tem garantido a impunidade e preservado a identidade de torturadores e assassinos fardados, além de seus comparsas civis.

    Manifestante traz na camiseta o símbolo do DOPS - Departamento da Ordem Política e Social, usado durante da ditadura para perseguir, torturar e matar dissidentes

    Manifestante traz na camiseta o símbolo do DOPS – Departamento da Ordem Política e Social, usado durante da ditadura para perseguir, torturar e matar dissidentes

    Depois dos períodos ditatoriais no continente, presidentes envolvidos em grandes negociatas e esquemas de corrupção nas privatizações do ciclo neoliberal no Peru, Bolívia e Venezuela também foram julgados e detidos ou estão foragidos nos Estados Unidos. Por aqui, Sarney e Collor seguem sendo eleitos para o Senado e FHC não teme ser investigado pela venda por preço irrisório da maior empresa mineradora do mundo (a Vale), nem pelo sistema telefônico nacional e muito menos pela compra de votos para sua reeleição ou a brutal desvalorização do Real no segundo mandato que derrubou a menos da metade o valor das estatais vendidas.

    O CCC nos anos 1960 e 70 era o Comando de Caça aos Comunistas. Hoje dizem querer caçar corruptos mas atribuem a corrupção apenas à comunista Dilma

    O CCC nos anos 1960 e 70 era o Comando de Caça aos Comunistas. Hoje dizem querer caçar corruptos mas atribuem a corrupção apenas à comunista Dilma

    Para quem quiser conhecer a verdadeira origem da insegurança pública, da impunidade e da falta de qualidade nos sistemas públicos de saúde e educação no Brasil, um bom começo é estudar o que há disponível de história, antes que os revisionistas mudem os fatos, da ditadura civil-militar. Sim, civil! Afinal, jamais os militares teriam tomado o poder se não fosse o dinheiro grosso investido pelos Estados Unidos e por empresários nacionais no desmonte de serviços altamente lucrativos hoje como segurança, educação e saúde.

    Religião, civis, militares, ideologia e mídia em uma única foto

    Religião, civis, militares, ideologia e mídia em uma única foto

    Do mesmo modo, a violência no campo e o inchaço das periferias certamente seriam menores se as reformas de base, como a reforma agrária, propostas pelo PTB de João Goulart em 1961, não tivessem sido abortadas pelo golpe.

    Na linha de frente da marcha à ré, os skinheads

    Na linha de frente da marcha à ré, os skinheads

    Quem empunhou as cores da bandeira nacional no último sábado 22 de Março,via de regra, são aqueles que se beneficiaram e ainda se beneficiam dos frutos de 1964, enquanto a maior parte da população padece de uma herança maldita ainda presente na impunidade cotidiana de torturadores e assassinos pagos com os impostos de todos para manter os pobres longe da velha classe média e garantir o direito à propriedade de grandes latifundiários e especuladores, mesmo que sejam escravistas ou grileiros.

    Um dos únicos detidos na marcha. A polícia não informou o motivo.

    Um dos únicos detidos na marcha. A polícia não informou o motivo.

    Afinal, quem são os heróis, saudados aos gritos nas ruas, numa corporação militar que matou 111 presos em 1992, assassinou mais de 600 em 48 horas nas periferias em 2006, desalojou com bombas 1.600 famílias no Pinheirinho em 2012 e agrediu e deteve de forma totalmente ilegal mais de 800 manifestantes e jornalistas entre junho de 2013 e março de 2014, pra falar só de São Paulo? Pior, o que cada uma dessas ações recentes resultou em termos de melhorias na segurança, educação ou saúde?

    Segurança reforçada "do nosso lado" , como dizia o panfleto de convocação da marcha.

    Segurança reforçada “do nosso lado” , como dizia o panfleto de convocação da marcha.

    Prós versus Contras

    Importante lembrar, contudo, que protestos civis questionando o atual modelo de democracia representativa refém dos grandes capitais, como temos visto desde junho passado, não são exclusividade do Brasil. Mas, distintamente dos que pregam maior repressão aos movimentos populares, os jovens nas ruas de todo o mundo ainda não conseguem apontar um caminho para a sociedade e o resultado final é a participação cada vez menor nos processos eleitorais. Não é à toa que os reacionários, sem número para se contrapor à maioria da população, bombardeiam os programas sociais ao mesmo tempo em que pedem o fim do voto obrigatório. Na Espanha dos “indignados”, onde mais de um milhão foram às ruas contra as medidas de austeridade no último fim de semana, os franquistas voltaram ao poder há dois anos também por causa de uma abstenção recorde de 46%. Na Grécia, os neonazistas não ganharam por pouco (diferente dos adeptos ucranianos que tomaram o poder à força e com apoio estadunidense) e na França o partido de extrema-direita acaba de ganhar as eleições municipais no mesmo esquema de poucos votos, falta de organização e desânimo das esquerdas.

    Se Deus foi, não dá pra dizer, mas representantes da igreja, com certeza

    Se Deus foi, não dá pra dizer, mas representantes da igreja, com certeza

    Por aqui, tirando vitórias pontuais de movimentos específicos, como o MPL que conseguiu barrar o aumento das tarifas de transporte em várias cidades, a maior parte dos protestos mais à esquerda não trazem propostas afirmativas, apenas negativas. A própria manifestação de contraponto à Marcha de sábado trazia o título de ANTIfascista e apesar de reunir mais gente teve, obviamente, repercussão menor. Da mesma forma, o movimento mais forte nas ruas esse ano traz em destaque a expressão NÃO vai ter Copa. A outra parte do slogan (sem direitos) quase não aparece. Uma pergunta simples, pragmaticamente falando, o que tem mais chance de se concretizar no curto prazo: a redução da maioridade penal ou o cancelamento da Copa do Mundo?

    Civis e militares juntos por uma nova intervenção "constitucional"

    Civis e militares juntos por uma nova intervenção “constitucional”

    Fundamental ressaltar, também, que é muito mais fácil criminalizar manifestantes mascarados, especialmente os adeptos da tática Black Bloc, e acusá-los na mídia de extrema violência (ainda mais depois da morte do jornalista Santiago Ilídio Andrade no Rio de Janeiro) do que apontar, dentro da PM e dos governos, os responsáveis pelas agressões a pessoas (e não a vidraças), mutilações e mortes na brutal repressão às manifestações. Não podemos esquecer, por exemplo, que NINGUÉM está respondendo processo pela perda do olho do fotógrafo Sérgio Silva em 13 de junho de 2013, enquanto a morte de Santiago foi esclarecida em menos de uma semana.

    A campanha contra o Marco Civil da Internet, chamada de censura pelos manifestantes, não conseguiu impedir sua aprovação na Câmara

    A campanha contra o Marco Civil da Internet, chamada de censura pelos manifestantes, não conseguiu impedir sua aprovação na Câmara

    Se queremos um avanço real na sociedade e não a volta da ditadura, devemos olhar com atenção quais táticas trazem resultados de fato, quais nos levam a ficarmos reféns da violência para conseguir visibilidade e o que significa essa armadilha. É preciso observar a ação dos grupos que conseguem passar sua visão de mundo nos meios de comunicação em massa, inclusive os reacionários, quem os apóia e quais os interesses não revelados por trás deles. Temos de desconfiar da cobertura da grande imprensa, mas criar formas de diálogo e de influenciar e influir nos seus fluxos. E, finalmente, temos de desenvolver as alternativas factíveis para os modelos atuais que sejam mais democráticos e justos para o conjunto da população e especialmente os mais vulneráveis e historicamente prejudicados. A rua é de todos que têm coragem de ocupá-las. Mas as vitórias políticas são de quem tem plano e estratégia para conquistá-las.

    A população realmente marginalizada não tava nem aí pra marcha

    A população realmente marginalizada não tava nem aí pra marcha

  • O que é o cerco de Túpac Katari, anunciado por seguidores de Evo e temido em La Paz

    O que é o cerco de Túpac Katari, anunciado por seguidores de Evo e temido em La Paz

    Movimentos sociais leais a Evo Morales exigem a renúncia imediata da presidente interina Jeanine Áñez. REUTERS

    Em ambas as ocasiões, todos os acessos à capital da Bolívia foram fechados para que nenhum alimento, gasolina ou botijões de gás pudessem entrar.

    Nas duas ocasiões, povos indígenas, moradores da cidade de El Alto, produtores de folhas de coca e outros setores decretaram o “cerco de Tupac Katari” a La Paz, uma medida que os mesmos grupos anunciaram nesta semana para defender o ex-presidente Evo Morales.

    Morales exilou-se no México após renunciar e pede para retornar à Bolívia para concluir seu mandato até janeiro de 2020. Enquanto isso, as organizações leais a ele não desistem e exigem a renúncia imediata da presidente interina, Jeanine Áñez.

    Quatro semanas após as eleições em que a oposição denunciou ter ocorrido uma fraude e que, segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA), teve “irregularidades”, estes movimentos sociais apelam para uma estratégia que já funcionou antes e que se origina no século 18.

    A Bolívia vive uma onda de protestos desde as eleições de 20 de outubro. AFP

    A lenda do cerco

    Em 2003, uma mobilização que aparentemente não representava um perigo real para o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada transformou-se em um protesto maciço que terminou com a renúncia do então presidente.

    As primeiras mortes ocorridas na crise agravaram a situação e levaram as Províncias indígenas no entorno de La Paz a tomar uma decisão: reeditar o cerco de Túpac Katari.

    A violenta resposta do governo em El Alto acabou sendo conhecida como o Massacre de Outubro e deixou mais de 70 mortos. Gonzalo Sánchez de Lozada renunciou algumas semanas depois, em 17 de outubro de 2003.

    Os piores episódios de violência foram registrados em Cochabamba. GETTY IMAGES
    Os plantadores de coca de Chapare continuam a defender Evo Morales. GETTY IMAGES

    Em 2005, com Carlos Mesa como presidente, houve uma nova crise política que levou a um novo bloqueio total de La Paz. A medida funcionou mais uma vez, e o mandato de Mesa terminou prematuramente em meados daquele ano.

    Essa estratégia remete a 1781, um dos anos mais icônicos das lutas dos povos indígenas contra o colonialismo espanhol. Julian Apaza, conhecido como Túpac Katari, liderou dezenas de milhares de indígenas no cerco à cidade de Nossa Senhora da Paz por vários meses, desencadeando cenas de horror e desespero entre os espanhóis e descendentes de espanhóis que viviam ali.

    Embora o cerco tenha sido derrotado e Katari punido com a morte, esse episódio ficou conhecido como um feito indígena que forçou os representantes da colônia a ficarem de joelhos por alguns meses.

    Em 2003, o acesso rodoviário a La Paz foi bloqueado. GETTY IMAGES

    Em meados de novembro (2019), Evo Morales fez uma menção ao líder indígena em sua conta no Twitter. “O imperialismo espanhol pensou que, ao desmantelar Túpac Katari há 238 anos, acabaria com a força do povo para romper as correntes do colonialismo. Hoje, mais do que nunca, a luta continua. Diante da repressão do golpismo racista, repetimos a frase: ‘Voltarei e serei milhões!’.”

    A reedição do cerco

    Após a renúncia de Evo, uma grande marcha de moradores das Províncias indígenas percorreu La Paz. “Agora sim, guerra civil”, eles gritavam enquanto avançavam pelo centro da cidade e caminhavam ao redor do Palácio do Governo e da Assembleia Legislativa Plurinacional.

    “Cerco até as últimas consequências, companheiros”, disse um dos manifestantes que vestia um poncho vermelho e carregava uma wiphala, bandeira indígena elevada a símbolo nacional por Morales.

    Ele explicou que o objetivo dos manifestantes é deixar La Paz “sem um grão de arroz”, conforme uma decisão tomada no fim de semana, em uma assembleia dos representantes das Províncias e de organizações sociais ligadas a Morales, na cidade de El Alto, quando decidiu-se sufocar a capital boliviana até que Áñez deixe a Presidência.

    Os apoiadores de Morales exigem a renúncia imediata da presidente interina, Jeanine Áñez. Foto: REUTERS

    Caso ela não renuncie, o cerco começará entre as próximas terça e quarta-feiras (26 e 27/11) , com uma greve por tempo indeterminado e o “bloqueio de mil ruas”.

    No entanto, as organizações de El Alto ligadas a Morales não são as únicas que se juntarão à mobilização. As federações de produtores de folha de coca de El Chapare, no centro da Bolívia, também deram um ultimato a Áñez e dizem que nunca abandonarão o homem que começou como “um deles” e “chegou ao poder em defesa da coca”.

    O medo do cerco

    Lizzy Moraibe é uma estudante universitária de 20 anos e foi a La Paz para estudar. Nos cercos de 2003 e 2005, ele morava em Santa Cruz e tinha menos de 6 anos de idade. Ela diz que não sabe muito bem o que comprar para estocar antes do cerco.

    “Há cada vez menos comida, e não sabemos quando isso vai acabar”, diz Moraibe, que mora sozinha e vai ao mesmo restaurante todos os dias para almoçar. “A cozinheira toda vez me diz que há menos comida. Que não há frango, agora não há carne. Tudo está acabando.”

    Os indígenas aymaras concordaram em se juntar ao cerco a La Paz. Foto: REUTERS 

    Por outro lado, Joeris Vera sabe muito bem como foram os cercos recentes e decidiu aproveitar uma tarde livre para ir aos mercados. Por 2 kg de carne bovina, pagou o equivalente a R$ 126, algo que não deveria custado mais do que R$ 84 antes da atual crise.

    “Felizmente, consegui isso, mas acho que a fila para o frango era de três horas”, diz ele, resignado.

    Vera tem 45 anos e lembra das últimas vezes que o “cerco de Túpac Katari” obrigou La Paz a estocar mantimentos e produtos básicos — e a deixou muito parecida com uma cidade fantasma.

    “Eu não quero voltar a viver aquilo. Espero que solucionem a situação de uma vez”, diz ele.

  • O ódio ao índio, por Álvaro García Linera*

    O ódio ao índio, por Álvaro García Linera*

    Jornalistas Livres reproduzem artigo de Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia no exílio, porque a tragédia boliviana ajuda a entender a nossa própria tragédia. Lá é o ódio ao índio; aqui é ao índio, ao negro, ao mestiço, ao nordestino. Lá, como aqui, a reação provém daqueles que sempre usaram sua cor de pele (branca) e sobrenomes tradicionais como forma de prevalecer sobre a maioria do povo pobre e oprimido, monopolizando o acesso aos bens do Estado.

     

    Como uma espessa névoa noturna, o ódio se espalha pelos bairros das tradicionais classes médias urbanas da Bolívia. Seus olhos transbordam de raiva. Eles não gritam, cospem; eles não reivindicam, eles impõem. Suas canções não são de esperança ou fraternidade, são de desprezo e discriminação contra os índios. Eles andam de moto, andam de caminhão, se reúnem em suas fraternidades de carnaval e universidades particulares e caçam índios que ousaram tirar seu poder.

    No caso de Santa Cruz, eles organizam hordas motorizadas 4×4 com paus na mão para assustar os índios, a quem chamam de collas e que vivem em favelas e nos mercados. Eles cantam slogans dizendo que você tem que matar collas, e se no caminho cruza com eles alguma mulher usando a pollera (saia rodada típica das mestiças), eles a espancam, ameaçam e ordenam que ela saia de seu território. Em Cochabamba, organizam comboios para impor a supremacia racial na zona sul, onde vivem as classes carentes, e avançam como se fosse um destacamento de cavalaria sobre milhares de camponesas indefesas que marcham pedindo paz. Eles carregam tacos de beisebol, correntes, granadas de gás, alguns exibem armas de fogo. A mulher é sua vítima favorita, eles agarram uma prefeita de uma população camponesa, humilham-na, arrastam-na pela rua, batem nela, urinam nela quando ela cai no chão, cortam seus cabelos, ameaçam linchá-la e, quando percebem que estão sendo filmados decidem jogar tinta vermelha, simbolizando o que farão com seu sangue.

    Em La Paz, eles suspeitam de suas empregadas e não falam quando elas trazem a comida para a mesa; no fundo temem-nas, mas também as desprezam. Depois saem às ruas para gritar, insultam Evo e nele todos esses índios que ousaram construir a democracia intercultural com igualdade. Quando são muitos, arrastam a wiphala, a bandeira indígena, cospem, pisam, cortam, queimam. É uma raiva visceral que se descarrega sobre este símbolo de índios os quais gostariam de extinguir da terra junto com todos os que nela se reconhecem.

    O ódio racial é a linguagem política dessa classe média tradicional. De nada servem seus títulos acadêmicos, viagens e fé porque no final tudo se dilui diante do ancestral. No fundo, a estirpe imaginada é mais forte e parece aderir à linguagem espontânea da pele que odeia, aos gestos viscerais e à sua moral corrompida.

    Tudo explodiu no domingo, 20, quando Evo Morales venceu as eleições com mais de 10 pontos de diferença no segundo, mas não mais com a imensa vantagem de antes ou 51% dos votos. Foi o sinal que as forças regressivas aguardavam, desde o medroso candidato da oposição liberal, as forças políticas ultraconservadoras, a OEA e a inefável classe média tradicional. Evo venceu novamente, mas ele não tinha mais 60% do eleitorado, e então estava mais fraco –era hora de passar por cima dele. O perdedor não reconheceu sua derrota. A OEA falou de eleições limpas, mas de uma vitória minguada e pediu um segundo turno, aconselhando a ir contra a Constituição, que afirma que, se um candidato tiver mais de 40% dos votos e mais de 10 pontos de diferença em relação ao segundo, é o candidato eleito

     

    E a classe média foi à caça dos índios.

    Na noite da segunda-feira 21, cinco dos nove órgãos eleitorais foram queimados, incluindo boletins de voto. A cidade de Santa Cruz decretou uma greve cívica que articulou os habitantes das áreas centrais da cidade, ramificando-se a greve para as áreas residenciais de La Paz e Cochabamba. E então o terror eclodiu.

    Bandos paramilitares começaram a sitiar instituições, a queimar sedes sindicais, a queimar as casas de candidatos e líderes políticos do partido do governo; no final até a residência particular do presidente foi saqueada. Em outros lugares, famílias, incluindo crianças, foram seqüestradas e ameaçadas de serem flageladas e queimadas se o pai, ministro ou líder sindical, não renunciasse ao seu cargo. Uma dilatada noite de facas longas foi desencadeada e o fascismo deixava seus rastros.

    Quando as forças populares mobilizadas para resistir a esse golpe civil começaram a recuperar o controle territorial das cidades, com a presença de operários, trabalhadores, mineiros, camponeses, indígenas e colonos urbanos, e o balanço da correlação de forças estava se inclinando para o lado popular, veio o motim policial.

    Os policiais haviam demonstrado durante semanas uma indolência e inépcia para proteger as pessoas humildes quando elas eram espancadas e perseguidas por gangues fascistóides; mas a partir de sexta-feira, com o desconhecimento do comando civil, muitos deles mostrariam uma capacidade extraordinária para atacar, prender, torturar e matar manifestantes populares. Certamente, antes tinha que conter os filhos da classe média, e supostamente eles não tinham capacidade, mas agora que era para reprimir os índios revoltosos, a arrogância e a sanha repressiva eram monumentais. O mesmo aconteceu com as Forças Armadas. Em toda a nossa administração, nunca permitimos que as manifestações civis fossem reprimidas, nem mesmo durante o primeiro golpe de Estado cívico, de 2008. Agora, em plena convulsão, e sem que ninguém perguntasse nada, eles disseram que não tinham elementos antidistúrbios, que apenas tinham 8 balas por integrante e que, para estar presentes na rua de maneira dissuasiva, era necessário um decreto presidencial. No entanto, não hesitaram em pedir-impor ao Presidente Evo a sua renúncia, quebrando a ordem constitucional. Eles fizeram o possível para tentar sequestrá-lo quando ele foi e estava no Chapare; e quando o golpe foi consumado, eles foram às ruas para disparar milhares de balas, militarizar as cidades, matar camponeses. Tudo sem decreto presidencial.

    Obviamente, para proteger o índio, era necessário um decreto. Para reprimir e matar índios, bastava obedecer ao que o ódio racial e de classe ordenava. Em cinco dias já existem mais de 18 mortos e 120 feridos a tiros. Claro, todos eles são indígenas.

    A pergunta que todos devemos responder é: como essa classe média tradicional foi capaz de incubar tanto ódio e ressentimento contra o povo, levando-a a abraçar um fascismo racializado, centrado no índio como inimigo? Como fez para irradiar suas frustrações de classe para a polícia e Forças Armadas e ser a base social dessa fascistização, dessa regressão estatal e degeneração moral?

    Foi o rechaço à igualdade, isto é, o rechaço aos próprios fundamentos de uma democracia substancial.

    Nos últimos 14 anos de governo, os movimentos sociais tiveram como principal característica o processo de equalização social, redução abrupta da pobreza extrema (de 38% para 15%), extensão de direitos para todos (acesso universal à saúde, educação e proteção social), indianização do Estado (mais de 50% dos funcionários da administração pública têm uma identidade indígena, nova narrativa nacional em torno do tronco indígena), redução das desigualdades econômicas (de 130 para 45, a diferença de renda entre os mais ricos e os mais pobres), isto é, a democratização sistemática da riqueza, do acesso aos bens públicos, às oportunidades e ao poder estatal. A economia cresceu de 9 bilhões de dólares para 42 bilhões, ampliou-se o mercado e a poupança interna, o que permitiu a muitas pessoas ter sua casa própria e melhorar sua atividade profissional. Mas isso levou ao fato de que em uma década a porcentagem de pessoas na chamada classe média, medida em renda, aumentou de 35% para 60%, a maior parte proveniente de setores populares, indígenas. Trata-se de um processo de democratização dos bens sociais mediante a construção da igualdade material, mas que inevitavelmente levou a uma rápida desvalorização dos capitais econômicos, educacionais e políticos possuídos pelas classes médias tradicionais. Se antes um sobrenome notável ou o monopólio dos saberes ou o conjunto dos vínculos parentais típicos da classe média tradicional lhes permitia acessar posições na administração pública, obter créditos, licitações de obras ou bolsas de estudos, hoje o número de pessoas que lutam pela mesma posição ou oportunidade não apenas dobrou, reduzindo pela metade as chances de acessar esses bens; mas, além disso, a nova classe média de origem popular indígena tem um conjunto de novos capitais (língua indígena, vínculos sindicais) de maior valor e reconhecimento estatal para lutar pelos bens públicos disponíveis.

    É, portanto, um colapso do que era característico da sociedade colonial, a etnia como capital, ou seja, do fundamento imaginado da superioridade histórica da classe média sobre as classes subalternas, porque aqui na Bolívia a classe social é apenas compreensível e visível sob a forma de hierarquias raciais. O fato de os filhos desta classe média terem sido a força de choque da insurgência reacionária é o grito violento de uma nova geração que vê como a herança do sobrenome e da pele desaparece diante da força da democratização dos bens. Embora exibam bandeiras da democracia entendidas como voto, na verdade se rebelaram contra a democracia entendida como equalização e distribuição da riqueza. Por isso o transbordamento de ódio, a abundância de violência, porque a supremacia racial é algo que não se racionaliza; se vive como impulso primário do corpo, como uma tatuagem da história colonial na pele. Portanto, o fascismo não é apenas a expressão de uma revolução fracassada, mas, paradoxalmente, também nas sociedades pós-coloniais, o sucesso de uma democratização material alcançada.

    Por isso, não surpreende que enquanto os índios recolhem os corpos de cerca de 20 mortos, assassinados a bala, seus algozes materiais e morais narrem que o fizeram para salvaguardar a Democracia. Na realidade, sabem que o fizeram para proteger o privilégio de casta e o sobrenome.

    O ódio racial, porém, só pode destruir; não é um horizonte, não é mais que uma primitiva vingança de uma classe histórica e moralmente decadente, que demonstra que por detrás de cada liberal medíocre se agarra um golpista consumado.

    * Vice-presidente da Bolívia no exílio

  • Rússia de Putin rifa os indígenas bolivianos e Evo Morales

    Rússia de Putin rifa os indígenas bolivianos e Evo Morales

     

    O governo de Vladimir Putin considera os eventos que levaram à deposição do presidente Evo Morales como um “Golpe de Estado de Manual”. Mas Moscou trabalhará com a presidenta interina Jeanine Añez até a realização de novas eleições.

    A informação foi dada pelo vice-ministro das Relações Exteriores da Federação Russa Sergey Ryabkov na cúpula dos BRICS que acontece em Brasília.

    O próprio diplomata russo reconheceu que não houve quórum na reunião do parlamento boliviano em que Añez se declarou “presidente interina”.

    “Mas é claro que ela será percebida como líder da Bolívia até a eleição do novo presidente”, disse Ryabkov, em nome de Putin, apesar de haver milhões de trabalhadores indígenas em pé de guerra contra o golpe, neste momento em La Paz e El Alto.

    Para quem se supreende com o posicionamento da delegação russa na cúpula dos BRICS, é preciso lembrar que o supremo mandatário russo, Putin, um egresso das fileiras do antigo Partido Comunista e ex-chefão da KGB, o temido serviço secreto, é o atual responsável pela aplicação dos preceitos neoliberais na antiga União Soviética. Destruição de direitos trabalhistas, de garantias para a população mais pobre, fazem parte do modo de governar de Putin.

    Assim sendo, é à população pobre do continente latino-americano, às massas rebeladas do Chile, Equador, Argentina, Brasil e Bolívia, que caberá a defesa da soberania e da liberdade. Como sempre, aliás.

  • Desertos Pântanos e Oásis alimentares: O que comer? 

    Desertos Pântanos e Oásis alimentares: O que comer? 

     

    Entre a ausência da comida de verdade e a podridão apresentada pela indústria dos alimentos o que nos resta é ir além dos Oásis alimentares e construir uma rede entre o campo e a cidade que possibilite a população a alimentação saudável enquanto um direito no país.

    Exposição e debate com o site O Joio e o Trigo no Metrô Vilarinho em Belo Horizonte

     

    Em uma breve volta ao passado, podemos demarcar um tempo histórico dos últimos 100 anos que apresenta ao Brasil e ao mundo um novo horizonte sobre a alimentação. As últimas décadas o que é argumentado pelo agronegócio e toda cadeia industrial agroalimentar é que não é possível produzir comida saudável em suficiência para toda a população. Porém como há tanta comida e ao mesmo tempo tanta fome no século 21? Fica a pergunta.

    A revolução verde da agricultura e a Ditadura Militar no Brasil, de forma conjunta apresentaram para o campo, águas, florestas e as cidades urbanas um novo panorama na alimentação da população brasileira. Os agrotóxicos, ou veneno, tinham como garantia a produção de alimentos para o monocultivos em larga escala e a ausência de pragas na produção. Também na mesma narrativa, a revolução verde trouxe o discurso do Produto Interno Bruto PIB da agricultura acima de qualquer política econômica e a ideia modernista de comer alimentos industrializados por sua praticidade e versatilidade. O que restou desta narrativa são os estudos científicos que ligam as doenças graves como o câncer crescente na sociedade.

    Quem não lembra que após Ditadura Militar, com as eleições, o Frango foi a grande bandeira política em debate no Brasil. O ex presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou a avicultura em confinamento e o seu controle químico como a alternativa de reposição proteica para a população em situação de pobreza. Neste mesmo processo a queda do valor da moeda, o recente criado real, apresentou um aumento no consumo de alimentos americanizados e a invasão dos fast food como o Brasil do futuro. Na atualidade as barras de cereais que contém todos os ingredientes, menos os cereais.

    A luta das trabalhadoras e trabalhadores nos movimentos sociais rurais em qualquer tempo deste diálogo  é sinônimo de resistência. Com a vitória do ex presidente Lula, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional CONSEA e a articulação entre governo e a sociedade civil foram fundamentais para reposicionar a alimentação e a nutrição no cenário político. O tema: Brasil, país rico é país sem pobreza tem muito para nos dizer.

    As políticas de aquisição de alimentos, às compras antecipadas, os recursos para fomento, a assistência técnica e a extensão rural apresentaram uma realidade que sobreviveu na resistência dos povos e comunidades tradicionais. 

    É a agricultura familiar quem produz o que comemos. Mas o processo da dialética é complexo, ao mesmo tempo cresce a resistência do campo é o tempo que se amplia o agronegócio e as bancadas ruralistas. Que se luta pela comida de verdade se apresenta a propaganda para crianças de alimentos ruins para a saúde.

    Nos últimos anos o Guia Alimentar para a População Brasileira traz à sociedade um novo panorama, que além de combater a fome é necessário pensar o que se come. Estar alimentado não é o mesmo que estar nutrido!

    Os desertos e pântanos alimentares estão a cada dia tomando conta da cartografia do país. Se entende por desertos os territórios que apresentam a ausência de venda ou acesso de alimentos saudáveis e por pântanos os espaços territoriais em que a grande oferta alimentar se resume aos produtos ultra processados e de baixo valor nutricional.

    Esta conjugação entre a ausência de alimentos saudáveis e a presença de alimentos ruins para a saúde da população não fica apenas nos centros urbanos. A cada dia ganha as periferias das metrópoles e a ruralidade. Atravessa a questão da renda e apresenta em especial às famílias mais pobres, chefiadas por mulheres negras, a ausência do papel do estado enquanto regulador da economia e responsável pela saúde pública.

    O Governo Federal, após o Golpe em 2016, avança em pacotes de veneno, incentivos para a indústria dos alimentos e perseguição aos movimentos sociais e aos povos e comunidades tradicionais. Uma conjugação que nos leva à ausência da democracia, perda da soberania e da segurança alimentar e nutricional e consecutivamente a morte em larga escala. A alimentação é indispensável para a vida.

    Especialistas apresentam a ideia de que a oferta dos alimentos saudáveis em uma delimitação cartográfica devem ser compreendidos como Oásis. Porém este conceito também nos remete para algo distante, quase inatingível e possibilitador da vida frente aos desertos e pântanos. Os Oásis não podem ser a única forma de se comer com qualidade em um país de tamanha dimensão espacial, biomas e de toda formação ecológica que temos.

    Lutar pelo Direito Humano à Alimentação Adequada é fortalecer as práticas e as culturas alimentares e apresentar para a população alternativas reais que possibilitem transformar a realidade que vivemos. As tecnologias e as redes sociais podem ser aliadas as feiras, as compras colaborativas e aos mercados alternativos.

    E se comer é um ato político, a nossa organização coletiva nos alimentará!

    Leonardo Koury Martins – Assistente Social, professor, escritor e conselheiro dos Conselhos Municipal de Belo Horizonte e Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de Minas Gerais. Especial para os Jornalistas Livres