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Categoria: mulheres negras

  • MARCHA MUNDOS DE MULHERES: Aliança feminista internacional avança contra machismo e retirada de direitos

    MARCHA MUNDOS DE MULHERES: Aliança feminista internacional avança contra machismo e retirada de direitos

    Enquanto a denúncia contra os crimes de corrupção do presidente ilegítimo era covardemente rejeitada no Congresso Federal, em Florianópolis, um pelotão gigante de mulheres de todo o país e de várias partes do mundo marchava no final do dia 2 de agosto pela cidade aos gritos de “Fora Temer” e exigindo o fim da violência machista e a retirada de direitos sociais. A cidade tremeu ao rufar dos tambores da Banda Cores de Aidê, formada só por mulheres, como se sacudida por um terremoto colorido pela explosão de cordões das minorias políticas pelas ruas. Não foram sete, nem oito mil, como eram as expectativas das organizadoras: foram 10 mil, segundo a coordenadora do Movimento de Mulheres Urbanas de Santa Catarina, Shirley Azevedo, apoiada no cálculo de especialistas com base no número de pessoas por metro quadrado.

    Um exército feminino aguerrido ocupou as ruas principais da cidade desde o início da tarde até passadas as 20 horas. A Marcha Internacional Mundos de Mulheres por Direitos integrou a programação das duas maiores assembleias acadêmicas da humanidade sobre relações de gênero: o 13º Congresso Mundo de Mulheres por Direitos e o 11º Seminário Internacional Fazendo Gênero, que este ano acontecem simultaneamente no campus da Universidade Federal de Santa Catarina, de 31 de julho a 4 de agosto. O ato mostrou que lugar de intelectual, sobretudo em tempos de opressão, é também as ruas. “Não existe essa separação entre a academia e a militância. Nós todas estamos entrelaçadas nesta luta”, defendeu a presidente da Comissão de Mulheres na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, Marielle Franco, vereadora pelo PSol, que veio a Florianópolis participar das mesas de debates e do protesto de rua.

    Vídeos: Raquel Wandelli

    Aproveitando a presença de 8.600 pesquisadoras e ativistas sociais inscritos nos dois eventos, a rede de entidades reunidas em torno da Tenda dos Movimentos Sociais do Mundo de Mulheres começou a articular a manifestação junto com o movimento sindical. O trabalho começou já no ano passado, para que houvesse tempo de mobilizar caravanas de todo o país e de preparar apresentações artísticas, cartazes, faixas, refrões, performances teatrais. Foi assim que tornou-se realidade o sonho coletivo dessas lideranças de colocar as acadêmicas nas ruas para militar junto com as trabalhadoras, camponesas, mulheres dos povos tradicionais em luta e todas as minorias políticas organizadas.

    Fotos: Rosane Lima

    A concentração partiu às 17 h pelas principais ruas de Florianópolis, provocando um impacto estridente com o rufar dos tambores da Banda Cores de Aidê

    O resultado ultrapassou as expectativas dos organizadores, como afirma Shirley Azevedo. E o feminismo provou definitivamente que é o movimento mais potente deste milênio, como já haviam previsto as sociólogas do século XX. “E é só o começo. Ainda vamos incomodar muito esses golpistas que querem esmagar nossos direitos”, avisa ela. “São meninas e jovens que vêm junto para a luta, têm garra e sabem muito bem o que defendem”. O caminho do feminismo após o pedido de investigação de Temer ter sido barrado no Congresso Federal é, conforme Shirley, a unidade na América Latina e em todo o mundo. “O que acontece no Brasil não é isolado, é uma ação global de violência e de retirada de direitos das mulheres e das minorias, contra a qual temos que dar uma resposta também mundializada”. No encerramento dos congressos, na sexta-feira (04/07), será aprovado um manifesto do 8M pela unificação mundial da luta feminista.

    Dez mil mulheres marcharam sobre Florianópolis forjando uma poderosa aliança de minorias

    Uma faixa pedindo “Demarcação Já” sobreposta à faixa do “Congresso Multimulheres”, como também é chamado, deu o grito de guerra que unificou não só indígenas e quilombolas, mas todos os coletivos que integram a diversidade do movimento feminista. Atrás dessa composição de faixas, que ficou como um emblema do grande ato, formou-se uma barreira de solidariedade. São mulheres brancas, quilombolas, camponesas, trabalhadoras urbanas, indígenas, negras, ativistas dos grupos LGBTTTQI, gordas, mulheres com deficiência, sindicalistas e muitos homens que incentivam o movimento feminista por considerarem que o machismo oprime todos os seres humanos.

    À frente desse pelotão heterogêneo, ocorreu a cena mais tocante da marcha, que selou o pacto de solidariedade entre as minorias: depois de dançarem ao som do seu batuque eletrizante, as ativistas da Banda Cores de Aidê, na maioria negras, foram retribuídas com a dança e a música das mulheres indígenas de cerca de 15 aldeias de diferentes etnias, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. “Fiquei muito emocionada porque estava acostumada a fazer nossas coreografias para as outras mulheres, mas ainda não tinha visto as indígenas cantarem e dançarem com a gente”, diz com a voz embargada Nattana Marques, integrante do Cores de Aidê. Com essa troca arrepiante de rituais étnicos, a banda nascida no Morro do Quilombo, em Florianópolis, completou dois anos de criação. “Nós fazemos da arte um espaço de luta e empoderamento das mulheres tratadas como minorias”, explica a cantora e percussionista Dandara Manoela.

    Pertubador do início ao fim, o ato transformou a imprevisível Ilha de Santa Catarina, ora conservadora, ora vanguardista, na capital internacional do feminismo. A concentração iniciou às 16 horas, no Terminal de Integração do Centro (Ticen) e partiu às 17 horas pelas principais ruas de Florianópolis, provocando um impacto estridente com os tambores, os jograis, as coreografias, as performances teatrais as palavras de ordem contra as reformas trabalhistas e da Previdência Social, que penitenciam sobretudo as mulheres. O Grupo de Teatro do Oprimido encenou a violência física e simbólica contra as mulheres pela estrutura patriarcal do Estado.

    Ao partir do Ticen, as manifestante saíram em disparada pela avenida Paulo Fontes, ecoando o grito de guerra das mulheres árabes. A imagem estremecedora encenou uma grande corrida de milhares de mulheres avançando para o front de guerra. Antes, às 15 horas, uma concentração prévia já acontecia na UFSC, de onde um pelotão de cinco mil pessoas percorreu, com faixas e cartazes, cerca de 10 quilômetros para se encontrar com os manifestantes reunidos no Ticen. O Nome de Ricardo Nascimento, Rafael Braga, Cláudio Ferreira e outros negros e pobres vítimas da exclusão étnica e social foram muitas vezes lembrados.

    Mulheres camponesa vieram em caravanas do Oeste de Santa Catarina para dizer não à retirada de direitos

    Mostrar a capacidade de articulação e de aliança das causas feministas às lutas específicas de outros grupos foi o grande mérito desse movimento que surpreendeu Florianópolis e o país. “Nós lutamos pela libertação de todos os que lutam contra um mundo regido pelo patriarcado capitalista, racista, homofóbico e fundamentalista religioso”, diz o manifesto da marcha. “Protestamos contra a perda de direitos, a lesbofobia, o racismo, o governo machista este governo corrupto que aí está”, explica Maria de Lourdes Mina, que fez a chamada pública de todos os nomes de mulheres negras e quilombolas assassinadas pela polícia ou perseguidas pelo sistema judiciário, como Maria da Graça Jesus, a Gracinha. Presente na manifestação, a mãe do quilombo da Toca luta há dois anos para reaver a guarda das duas filhas. Um ônibus com 40 mulheres de várias etnias indígenas do Rio Grande do Sul engrossou a passeata, que também recebeu caravanas do Movimento de Mulheres Camponesas vindas de ao menos dez municípios do Oeste do Estado.

    Professora de educação indígena da etnia Kaingang, no Rio Grande do Sul, Jocélia Daniza conta que as lideranças do seu povo fizeram uma coleta com amigos para poder financiar a vinda de um ônibus com 40 mulheres para o evento. “Foi muito importante vir para que a gente pudesse expor nossa cultura, falar de nossos problemas de saúde e de educação, da violência sexual imposta por homens brancos nas aldeias e da nossa árdua luta por território, enfim, para mostrar que existimos”, afirma ela, que é mestre em Antropologia pela UFSC e doutoranda em Memória Social e Patrimônio pela Universidade de Pelotas.

    Um exército feminino infindável ocupou as ruas principais da cidade desde o início da tarde até passadas as 20 horas

    Depois do término da passeata, as congressistas se concentraram no vão do Mercado Público de Florianópolis, onde as manifestações políticas continuaram noite adentro, com coros de Fora Temer cortando a todo instante a falsa normalidade pública no dia em que o país foi violentado pela legitimação da corrupção e do golpe. A quinta-feira à tarde foi o dia das lésbicas, dos gays, travestis, transformistas, transexuais LesGaysBiTiniques fazerem sua revolução contra a ditadura do padrão.

    DEPOIMENTOS:

    “Ser mulher indígena é já nascer guerreira. Tá no sangue, tá na alma”, diz o refrão da música criada pelas compositoras e músicas Guarani do Morro dos Cavalos, em Florianópolis, e interpretada por indígenas de várias etnias especialmente para a marcha. A doutoranda e professora Kaingang Jocélia Daniza explica o sentido desta letra: “Ser mulher indígena, nascer num povo indígena é ser guerreira desde o momento que a tua mãe te concebe. É poder se empoderar e saber que no teu sangue vai correr sangue de um povo que foi massacrado, que continua sendo humilhado, que continua sendo retirado do seu território e expropriado ainda em 2017”.

    Levando na garupa a pequena Dora, de dois anos, e ainda sustentando dois cartazes e um celular para gravar a marcha, Laura Denise Castilho, enfermeira, explica porque a filha a acompanha na manifestação. “Nós somos mulheres feministas mostro pra minha filha aquilo que eu mais acredito que é gostar de mim mesma e defender os meus direitos. Trabalho com obstetrícia, com saúde pública, defendo o direito de todos e também os meus.  Todos os dias eu atendo alguém que foi vítima do machismo.

    Ela vem do Oeste do Estado, numa carava de ônibus junto com outros 30 camponesas. “Estamos participando dessa marcha e do congresso, denunciando toda violência praticada contra mulheres, opressão, dominação, exploração e também contra este governo antidemocrático que tira os direitos de trabalhadores, principalmente das mulheres e das camponesas”,  manifesta-se Zenaide Coleto do Movimento de Mulheres Camponesas. “Estamos aqui somando por que esta luta é dos trabalhadores e das trabalhadoras da roça e da cidade”.

    Um dia de igualdade na diversidade para todos os que fogem à ditadura do padrão (Walderes, à direita da foto)

    Algumas integrantes da marcha se emocionaram com a participação marcante das indígenas que costumam fazer uma resistência mais silenciosa e discreta, mas neste evento expuseram com mais exuberância sua arte. Como foi essa decisão? “Na verdade não somos quietas. É que dificilmente temos oportunidade de falar. Então hoje nós abraçamos essa oportunidade”, afirma Walderes Priprá, professora indígena da aldeia LaklãNõ Xocleng, do município de José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí. “Foi muito gratificante ter participado deste evento porque pudemos mostrar um pouco da história do nosso povo e da nossa luta. Sem palavras, foi incrível, todas nós estamos felizes.  Para o seu povo, a dança e a música são os rituais que alimentam a vida.

    No dia seguinte à Marcha, choveu torrencialmente em Florianópolis. A antropóloga Miriam Grossi, coordenadora geral do Congresso Multimulheres e uma das idealizadoras do Seminário Fazendo Gênero, que começou em 1994 como uma atividade restrita ao Curso de Letras da UFSC e logo ganhou proporções internacionais, deixou este depoimento em sua página: “Ontem as deusas nos protegeram até da chuva na Marcha das Mulheres por Direitos, que reuniu 10 mil mulheres no centro de Florianópolis. Foi tão lindo, intenso, perturbador e emocionante estar ao lado de uma multidão de jovens (e algumas mais velhas) mulheres lutando pelas bandeiras feministas pelas quais lutamos há décadas, que nem fotos fiz. Após três dias de muito sol e calor, hoje o dia amanheceu chovendo… E vamos para o quarto dia do 13º Mundo de Mulheres/11º Fazendo Gênero que depois de centenas de atividades fechará com a conferencia de Clare Hemings. Todas lá, companheiras de luta!”

    “Foi lindo, intenso, perturbador”, escreve Miriam Grossi (de roxo), coordenadora do Mundo de Mulheres, que encerra nesta sexta (Foto: arquivo pessoal)

    #MarchamosJutasPorNenhumaAmenosAtéQueTodasSejamosLivres!

  • FLIP INSURGENTE: Minorias políticas rodam a baiana e avisam que não deixam mais o palco literário de Paraty

    FLIP INSURGENTE: Minorias políticas rodam a baiana e avisam que não deixam mais o palco literário de Paraty

    Os leitores de hoje têm mais fome de realidade do que de ficção? Essa pergunta dirigida aos  debatedores estrangeiros da Festa Literária Internacional de Paraty saiu do painel “Trótski e os trópicos” sem uma resposta contundente. Mas tudo o que aconteceu na 15ª edição do evento, encerrado neste domingo (30/07), mostra que escritores e leitores brasileiros tendem a ver a literatura, mais do que nunca, como um espaço privilegiado para a tomada de consciência da realidade do país. Com Lima Barreto, mas não só com ele, se aprende que realidade e ficção não formam uma oposição, mas dois elementos inseparáveis na compreensão do jogo político pelas artes. Esse parece ser o grande recado da quinzenária Festa Literária, que debutou este ano, por força do duríssimo cenário político brasileiro, no mundo das lutas sociais.

    A reverência tardia à obra e à vida do escritor negro, pobre e anarco-comunista Lima Barreto foi o gatilho que faltava para colocar o racismo à frente de qualquer outra tragédia contemporânea, como a mácula vergonhosa deste tempo que a literatura ensina a não mais admitir. E em nome do racismo, todas as formas de exclusão social contra pobres, mulheres, indígenas, quilombolas, jovens das periferias foram tratadas como questões caras e urgentes nessa grande assembleia literária pela qual passaram mais de 50 mil pessoas, segundo os organizadores.

    Do  professor que fazia seu protesto contra o fechamento de escolas públicas no Rio de Janeiro na abertura do FLIP ao mero ouvinte, do pesquisador história e literatura ao leitor curioso; do biógrafo e escritor ao ativista social: todos de alguma forma inscreveram na FLIP seu brado contra a persistência dessa ferida colonial no Brasil moderno. Todos o fizeram com brilhantismo, como Conceição Evaristo, ao denunciar o retardo que a associação do racismo ao machismo produziu no seu ingresso, e no de outras escritoras negras, no campo da literatura.  Ou como o historiador baiano João José Reis, que se manifestou contra a perda das cotas raciais nas universidades como uma tentativa do governo ilegítimo de travar a escalada vitoriosa de acesso de negros à educação superior.

    Público subverteu modelo elitista dos auditórios, concentrando-se no espaço dos não-pagantes, onde as manifestações eram mais efusivas

    No mesmo caminho, a antropóloga Lilia Schwarz chamou a atenção para a espantosa atualidade da literatura de Lima Barreto na denúncia à hipocrisia e à crueldade da sociedade da República velha, representada pela Academia Brasileira de Letras, na figura do pernóstico Coelho Neto, baluarte do pensamento conservador na época. Um Lima Barreto é muito pouco para lutar contra a permanência desse Brasil de ontem. “Para combater esse horror precisamos de muitos mais Limas e menos Coelhos Netos”, lacrou o teórico Antônio Arnoni Prado, um dos primeiros pesquisadores de Lima.

    Nas árvores, os caiçaras protestam contra o roubo das águas de Paraty

    Michel Temer é, para Arnoni, a expressão mais acabada dos personagens do Brasil corrupto e escravagista desenhado pelo autor. Político arrogante e empolado, adepto às mesóclises e avesso às camadas populares, que chegou onde chegou sem outro mérito a não ser pertencer às elites que tomaram o poder. Na mesma linha da historiadora Beatriz Resende, a jornalista e pesquisadora Luciana Hipólito, autora de “Literatura de urgência: Lima Barreto no domínio da loucura”, chegou a afirmar que se tivéssemos ouvido mais essa voz negra da literatura nos primeiros anos do século XX, e aprendido com ela, não teríamos chegado ao horror da realidade de hoje.

    Muitos outros palestrantes fizeram manifestações políticas semelhantes e foram apoiados pela maioria do público em todos os espaços de debate e encenação artística. Mas foi uma professora de escola pública do Paraná que tomou a palavra para fazer a literatura oral mais eloquente e perturbadora dos cinco dias de intensiva assembleia literária. A voz anônima surgiu num corpo negro de cabelos brancos no meio da plateia, como o espasmo de um soluço. Foi essa neta de escravos, filha de uma mãe pobre, que lavava roupa em troca de lápis, caderno ou qualquer material escolar para que os filhas pudessem estudar, a narradora mais potente do maior evento literário do Brasil. Diva Guimarães, como ela se identificaria ao final, a pedido do ator Lázaro Ramos, fez do testemunho político de sua vida a mais literária e sincera narrativa.

    Ao tomar a palavra, desculpando-se pela ousadia e prometendo ser rápida, Diva se disse profundamente tocada e encorajada pelo painel do dia anterior, no qual “as moças contam que escrevem em homenagem as suas mães”. Diva assistiu à mesa “Em nome da mãe”, com  a escritora Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de ruanda, que criou no livro “A mulher de pés descalços”, um sepultamento simbólico de papel para dar um ritual imaginário de morte à mãe. A ruandense compartilhou sua história com a brasileira Noemi Jaffe, autora de “O que os cegos estão sonhando”, obra criada a partir do diário da mãe, uma sobrevivente do holocausto nazista. Ambas disseram que escrevem para suportar a dor.

    Diva se sentiu “profundamente tocada” com o gesto das moças e também achou que tinha o dever de se levantar no meio da multidão, enfrentar a dor e a timidez e ser mais forte do que o próprio pranto para reverenciar a sua mãe preta de pés descalços. “Eu também sobrevivi e sobrevivo como brasileira porque tive uma mãe que fez de tudo, que passou todo tipo de humilhação para que nós estudássemos”. Por isso ela lutava de cabeça baixa para controlar a comoção que o testemunho lhe causava: tinha de ser forte para cumprir até o fim a sua homenagem diante daquela multidão toda de leitores. Com os olhos faiscantes da insurgência dos humildes, contou que ela e outras meninas foram recolhidas no interior do Paraná por uma missão da Igreja a pretexto de ir estudar em Curitiba, e antes de completar cinco anos, se tornou uma escrava das freiras católicas num colégio interno.

    E por que Diva foi capaz de levar às lágrimas e de levantar para aplaudi-la vigorosamente a plateia em peso do auditório da Praça, incluindo o próprio Lázaro Ramos, que falava sobre a própria experiência como negro no painel “A pele que habito”? Por que ela, mais do que qualquer um dos 44 sábios oradores e especialistas mobilizados pela feira, produziu essa tomada venal de consciência que só a literatura é capaz de provocar, segundo Lima Barreto?

    Certamente porque na voz dessa senhora ao mesmo tempo trêmula e destemida, que chegou a ser amparada para prosseguir no seu jorro de fala, a literatura e a vida tenham se reunido novamente. Na sua boca, a literatura, sempre utilizada pelos esnobes para marcar a linha divisória entre as classes, finalmente mostrou sua potência de arrebatar as almas e de promover a solidariedade entre os homens, como propunha Lima Barreto em seu manifesto por uma “literatura militante”. Por que a sua narrativa singela e vigorosa foi tão comovente?

    Talvez porque nela se materialize aquilo que Conceição Evaristo, entrevistada por Ana Conceição Gonçalves no painel “Amadas”, que encerrou a programação na tarde de domingo, chamou de “arte da escrevivência”. Com esse neologismo, a autora de “Um defeito de cor” e “Insubmissas lágrimas de mulheres” quer nomear a literatura brotada e talhada da própria vivência ou da própria sofrência dessas vozes brasileiras escreventes.

    Como se fosse uma das “amadas” saídas dos romances de Conceição, Diva revelou que conheceu a discriminação aos seis anos, quando as freiras do colégio interno contaram a história que explicaria a pele escura de uns e clara de outros. Para quem foi “recolhida no mato”, como ela, as freiras diziam que quando o mundo começou, deus criou um rio e mandou todos tomarem banho, “naquela água abençoada do maldito rio”, diz dona Diva com a autoridade de seus 77 anos de opressão, sem esconder a rebeldia. Então, todas as pessoas inteligentes e trabalhadoras que se esforçaram para chegar ao rio conseguiram se lavar e ficaram brancas. “Mas nós, como negros preguiçosos” – e ela interrompe, bate no peito e bufa de dor e se cala por uns instantes eternos, calma Diva, calma Diva e continua, sob os aplausos que tentam encorajá-la – “nós chegamos no final, quando todos já tinham se banhado e só havia lama”. Então, os negros só tiveram tempo de lavar a palma das mãos e a sola do pés. Por isso, concluiu ela, erguendo para a plateia a palma das mãos, e afirmando o que os olhos arregalados de torpor desmentiam, “porque somos preguiçosos, temos apenas essas duas partes do corpo claras”.

    Diva arrancou essa dolorosa narrativa do fundo de um espasmo, como se no instante mesmo da sua fala, ela e toda a multidão da FLIP, ela e todas as meninas e meninos negros e pobres escravizados pelas igrejas no interior do Paraná vivessem o horror de um segredo revelado.

     

    O testemunho de Diva Guimarães insurgiu na multidão da FLIP, assombrando os leitores como um romance sobre luta e opressão que provoca por dentro um silencioso furacão

    Mas a fábula racista sobre a cor negra, que muitos brasileiros ouviram nas escolas regidas por brancos, não convenceu a menina Diva. “Se fôssemos preguiçosos, não teríamos sobrevivido. Se o Brasil existe é porque os meus antepassados o construíram”. Estimulada pela mãe, ela estudou mais do que era devido a uma menina pobre. Sempre que pensava em desistir da escola por causa do racismo, era vencida pelo argumento da mãe de que se não estudasse teria o mesmo destino dela. Quando se formou em Educação Física e se tornou professora da rede pública de Curitiba, em plena ditadura, ensinou o mesmo aos seus alunos: que deveriam estudar se quisessem ser livres. Por isso foi perseguida e combatida: “Eu era considerada uma subversiva!”.  Ela, que teve o direito à infância roubado, que teve a liberdade usada como moeda de troca para estudar, tornou-se uma defensora ferrenha da educação pública e nunca mais parou de estudar. “Eu sou uma sobrevivente da educação e sou uma sobrevivente da luta”, afirmou Diva, inconformada com o fato de o governo do Paraná ter cortado a bolsa dos cotistas negros, que recebiam R$ 400,00 para se manter nas universidades.

    Ao desnudar a violência do racismo desencantando a lenda da diferença, a professora paranaense aposentada deu a resposta exata à questão inicial. Mostrou que ficção e realidade sempre caminharam juntas, seja para separar a humanidade imiscuindo nas histórias a ideologia da dominação, ou para libertar os povos oprimidos com a narrativa da resistência. Toda literatura digna de ser chamada como tal busca a verdade coletiva de um povo – ou como disse a repórter-escritora argentina Leila Guerriero, não existe literatura que não se refira à realidade. Prenhe de vigor estético e apuro ético, o depoimento da professora negra viralizou na internet e nas redes sociais. E segue impactando muitos mais leitores do que a FLIP teria capacidade de reunir no elitizado auditório da Igreja Matriz ou mesmo na tenda de projeção.

    A COLETIVA DE ENCERRAMENTO

    Curadora Josélia Aguiar, à esquerda, pediu que  coletivos negros e ativistas sociais não deixem a FLIP caso próximo homenageado não seja negro

    Numa entrevista coletiva fria e burocrática, com poucas perguntas e respostas curtas e evasivas, a equipe responsável pela organização da 15ª FLIP fez o balanço de encerramento para cerca de 20 jornalistas. A mais entusiasmada, a curadora Joselia Aguiar, falou rapidamente, se disse feliz com os resultados, destacou os ganhos com a diversidade e se retirou antes do término para participar das mesas de encerramento. Nem ela, nem o diretor presidente da Fundação Casa Azul, Mauro Munhoz, pareceram conscientes da revolução que ocorreu no evento por conta do espaço rasgado pelas minorias políticas, com a acolhida de sua própria direção.

    A primeira pergunta veio questionando se o tom político da feira era determinado pelo momento brasileiro atual e se tenderia a persistir nos próximos eventos. Tanto Joselia quanto Munhoz procuraram neutralizar as manifestações contra Temer, contra o extermínio de jovens negros pela polícia,  o aprofundamento do racismo e o corte das cotas,  o atraso no pagamento dos salários de professores no Rio de Janeiro ou o fechamento de escolas. Ambos argumentaram que era natural os painelistas se posicionarem a partir das demandas do público. Mesmo os estrangeiros se manifestaram contra Trump, no caso do escritor jamaicano Marlon James e do poeta estadunidense Paul Beatty, como lembrou Josélia. Antes de sair, a curadora deixou no ar um pedido que soou ambíguo como uma ameaça velada numa calorosa acolhida: “Quero pedir aos coletivos negros e ativistas sociais que permaneçam para sempre na FLIP, mesmo caso o próximo homenageado não seja uma mulher ou não pertença a uma minoria”.

    O diretor da fundação que patrocina o evento reafirmou que a feira economizou R$ um milhão com o novo formato, eliminando a grande tenda gigante próxima ao canal, as oficinas, a biblioteca na Mangueira e  as iniciativas descentralizadas em municípios mais carentes para concentrar todas as atividades no centro de Paraty. “Antes tínhamos um país que estava se expandindo e a FLIP tinha esse movimento de descentralização da cultura. Agora vivemos em outro país que precisa se concentrar e se fortalecer pra voltar a pensar nesses projetos mais complexos que dependem de mais investimento público”.

    Debates ao vivo dentro do auditório da Igreja Matriz foram muitas vezes preteridos pelo público, que preferiu a projeção na praça

    Com um discurso conformista, defendendo a “adaptação da feira aos novos tempos”, Munhoz insistiu no sucesso do auditório para pagantes na Igreja Matriz, onde se concentraram a maioria dos paineis “ao vivo”. Garantiu que todos os 400 ingressos para cada uma das sessões foram vendidos e utilizados, embora todos tenham testemunhado o esvaziamento progressivo desse espaço privatizado em favor do crescimento da audiência gratuita na tenda de projeção. Em torno dela o público chegou a pelo menos menos duas mil pessoas em vários momentos, ultrapassando em muito a lotação de 700 lugares com cadeiras fixada por ele. Isso significa que o próprio público subverteu o modelo elitista e a separação dos auditórios ao se manifestar de forma muito mais efusiva e espontânea no local de livre acesso. Apesar disso, Munhoz afirmou que o espaço intimista será mantido porque é “mais adequado para determinados tipos de paineis”.

     

     

    Ao final de sua mesa, Conceição Evaristo afirmou que mulheres e negros fizeram a ocupação da FLIP e não pretendem mais sair dela. “Vai ser muito difícil voltar atrás e nos tirar daqui, porque não sairemos mais”. Para outro grande estudioso de Lima, o professor da UFMG Edmilson de Almeida Pereira, poeta e especialista na diáspora africana no Brasil, o espaço foi uma conquista dos movimentos sociais que qualificou o evento. “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, lembra o pesquisador. Muitas vezes os painelistas e artistas referenciaram Rafael Braga, Ricardo Nascimento e Jonathan Bidoia Neres e os jovens negros presos, torturados ou mortos pela polícia de extermínio. “Essa dimensão política da arte sempre esteve presente e tende a se agudizar com o estado de exceção no país”, sustenta Edmilson.

     

    “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, afirma o pesquisador Edmilson de Almeida Pereira

    O melhor emblema de tudo isso talvez seja a performance multimidiática “Fruto estranho”, apresentada pelo ator e poeta Ricardo Aleixo, na abertura do evento, a partir da mistura de fragmentos de textos de Lima Barreto e de sua própria lavra. A imagem de um artista como um livro vivo onde a pele é a própria escritura do mundo evoca esse movimento de hibridização com as lutas sociais. Se o negro é uma invenção do branco, como diz o poema, cabe a literatura reinventá-lo como uma fabulação de si e por si.

     

    TROPEÇANDO NAS RUAS DA LITERATURA

    Pelas ruas de Paraty, a literatura que todos os anos enche a cidade da algazarra dos diferentes acentos e línguas, de poesia, dança, música, teatro e livros, tropeça na escravidão em cada pedra do calçamento antigo, em cada construção que presentifica suor e sangue negros derramados. Ainda que queira, os olhos da escritura não podem se desviar do trabalho infantil em torno da presença dos turistas. A literatura do testemunho, que arrebatou o público nesta edição da FLIP, não pode mais ignorar os sobreviventes contemporâneos dos extermínios que desfilam diante dos olhos dos turistas.

    Não basta abrir um painel na programação para reconhecer a presença exótica de caiçaras, negros, quilombolas, indígenas: é preciso dedicar a eles toda a produção intelectual e artística brasileira. Eles não formam uma parte ou uma “aldeia” da literatura, mas são os verdadeiros anfitriões da festa como protagonistas da cultura nacional. E isso vale também para as centenas de coletivos de jovens artistas das tribos urbanas de todo o país que, atraídos todos os anos para o evento, fazem seu trabalho nas ruas de Paraty. São eles que trazem as artes para a plenitude da vida, promovendo saraus de literatura periférica, rodas de batuque, manifestos de poesia marginal, varais literários que aproximam a arte do povo, como fez Paulo Leminski ou Lindolf Bell. Eles continuam totalmente à margem da programação da feira.

     

     

    Depois de atingir 15 anos, a FLIP não pode mais ignorar a literatura dos Guarani Mbya sobreviventes da dizimação, que expõem seus artesanatos nas calçadas, sob pena de construir um evento tão fake quanto uma cidade onde tudo gira em torno do turismo. Os milhares de forasteiros que se esbaldam todos os anos nos restaurantes e hoteis de Paraty não podem continuar esquecendo que os primeiros habitantes desse paraíso estão em plena luta por território. E ainda são acusados de serem “índios falsificados do Paraguai” numa cidade onde tudo – praias, moradores, pratos típicos, danças, ritmos musicais – carrega nomes como Janaína, Catimbau, Cajaíba, Cachadaço, Saco do Mamanguá e cateretê.

    Antes tarde do que nunca, os amantes das letras se depararam também com as manifestações políticas e culturais dos quilombolas do Campinho da Independência, que estão em luta por seus direitos. Viram os estudantes cotistas protestando contra o prefeito de Paraty, Carlos José Miranda (PMDB), que suspendeu o transporte público para a universidade dos municípios vizinhos.  E os caiçaras denunciando o roubo da água natural para engarrafamento e comercialização a preço de ouro. Ao mesmo tempo que reconhece a conquista de um espaço cultural e intelectual dominando pela identidade masculina e branca, a jornalista Tatiana Carvalho Costa, integrante do coletivo Elas Pretas, de São Paulo, que está em Paraty fazendo um filme sobre a obra de Ricardo Aleixo, se sentiu constrangida com o assédio às mulheres negras. “Pessoas se aproximam da gente, como se nossa presença na feira fosse algo extraordinário, como se o nosso corpo negro fosse um lugar de expiação do sentimento de culpa”.

    A verdade mais nua e crua sobre o impacto negro na festa das elites, quem disse foi ela, dona Diva: “Aparentemente tivemos uma libertação que não existe até hoje”. Já na abertura, uma enorme faixa do Sindicato Estadual dos Profissionais na Educação do Rio de Janeiro, protestando contra o sucateamento da educação pública, recomendava que os participantes da FLIP lessem a obra de Lima Barreto para entender a realidade brasileira atual. Ao final a faixa exclamava: “Salve Lima Barreto!” Salve também Diva Guimarães e todas as negras e negros que rasgam seu lugar na literatura. Subversivas e subversivos!

     

     

     

  • LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

    LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

    É verdade que o escritor negro Lima Barreto morreu pobre, doente, desprezado e enlouquecido, sem o reconhecimento que seu talento e sua inteligência mereciam. Mas sua luta por um lugar na literatura do Brasil racista do início da República está longe de ter sido em vão, temor que deixou registrado num de seus últimos escritos. A reverência a sua obra pela 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty foi suficiente para tirar o evento de qualquer lugar de culto elitista à erudição separada da cultura popular e da realidade nacional, o que seria contraditório com o legado do autor. Como um ciclone capaz de levar o Brasil a retornar-se sobre si mesmo, a homenagem fez da Feira um evento também caracterizado pela reflexão sobre o atravessamento da tragédia política e social do país na sua produção literária.

    Única sobrevivente de sua família no genocídio de Ruanda, Scholastique representa a literatura do testemunho

    Num clima de denúncia, protestos e diversidade, a Festa de Paraty ficou menos elitista e um pouco mais coerente com o autor que ela reverencia, o cultíssimo descendente de escravos que defendia a cultura popular e propunha o manifesto de uma literatura militante contra o racismo, o machismo e toda a forma de opressão. Com Lima feito uma espécie de guerreiro póstumo no front de um expressivo cordão de autores que rasgou o seu espaço na FLIP, o evento também se tornou uma feira militante da diversidade. Fazem parte desse cordão mulheres feministas, negros, quilombolas, indígenas, testemunhas de guerras de extermínio, como a escritora da etinia tutsi, Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de Ruanda, que lança sua literatura de testemunho na FLIP com Pés descalços. E ainda a angolana Djaimilia Pereira de Almeida, autora de Esse cabelo, uma ficção que traz para a narrativa a questão do corpo como identidade étnica. Na noite do dia 27, Mukasonga compartilhou com a brasileira Noemi Jaffe, cuja obra reverencia a mãe sobrevivente do holocausto nazista, um dos mais densos e tocantes painéis. A ruandense disse que escreve para suportar o horror que ela e sua família viveram e fazer valer o privilégio de ter escapado viva.

    Desde a abertura na quarta-feira (26/7), a quinzenária FLIP promete não ser a mesma que reproduziu, na sua última edição, o modelo dominante de sociedade colonial, onde mulheres, índios, negros e pobres estão marginalizados do mundo da cultura. O reconhecimento público desses autores em nível nacional e internacional mostra que o boicote à “literatura militante” pelo cânone e pelo mercado não passa de preconceito. Mostra ainda que se o artista não se engaja às questões políticas que falam dos dramas humanitários do seu tempo, o seu tempo o engaja nessas tragédias. Nesse espírito de contraliteratura, a abertura e o primeiro dia da mostra foram marcados pela implicação do movimento político no estético que caracteriza as épocas sombrias.

    Manifestações políticas marcam a 15ª edição da Festa de Paraty

    Houve protesto, houve Fora Temer, Fora Pezão, manifestações efusivas durante o espetáculo de abertura que continuaram no dia seguinte. No recital que acompanhou a linha de tempo de sua dramática biografia, apresentada pela historiadora e professora de antropologia da USP Liliam Schwarz, a obra e a trajetória de Lima Barreto atingiram atualidade máxima. A leitura de Lázaro Ramos para os trechos mais primorosos de Lima acentuou a potência da retórica literária de Lima, que na mesma cena sintetiza um realismo cru com impagável humor popular, para em seguida alcançar o lirismo dos grandes clássicos. As passagens mostram a tragédia de personagens negros, negras e pobres idealistas que ousaram, como ele e seu Policaropo Quaresma, atravessar os territórios da cultura e da intelectualidade sob o domínio branco, masculino e burguês.

    Um retumbante brado de Fora Temer foi a forma do público aplaudir e agradecer a dupla que  surpreendeu a plateia maior de não-pagantes, limitada à tenda de projeção em frente à Praça, para refazer ao vivo a leitura dramática de encerramento. Diante de cerca de mil pessoas, Lázaro deu vida à voz de um Lima Barreto de clareza e refinamento encantadores ao apresentar as bases do que considerava ser a tarefa da literatura e das artes. À diferença dos poderosos diletantes, que elitizam a literatura para aprofundar a diferença entre as classes, a literatura, segundo Lima, serve para derrubar os muros entre os homens. Serve para tornar a humanidade mais tolerante, fazendo-a conhecer melhor sua condição, entendendo suas virtudes e fraquezas. “A missão da literatura é fazer comunicar umas almas às outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando assim a solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade”.

    Desde a abertura, as manifestações políticas marcam as conferências e debates, quando palestrantes são interrompidos para serem ovacionados cada vez que denunciam, através de Lima Barreto, o obscurantismo social que o Brasil vive hoje e a violência contra os que fogem aos padrões dominantes de subjetividade. Isso ocorreu muitas vezes quando o poeta e ensaísta negro Edmilson de Almeida Pereira, professor da Universidade de Juiz de Fora (MG), pesquisador das contribuições africanas na língua portuguesa, analisou o impacto da obra de Lima Barreto como a permanência de um passado que sabota as possibilidades de expressão artística para os marginalizados. Pereira dividiu o painel Arqueologia de um Autor, ocorrido na manhã do dia 27, com a professora Beatriz Resende (UFRJ), organizadora da obra principal de Lima Barreto, e o pesquisador Filipe Botelho Correa, professor do Kings´s College London, que recuperou textos inéditos de Lima Barreto. Beatriz foi igualmente ovacionada ao comentar a denúncia do autor carioca à corrupção sistêmica no Brasil republicano e lamentar a ausência de colegas da UERJ, como Ítalo Moriconi, entre outros, que não puderam vir à feira porque estão há quatro meses sem receber salário.

    A leitura dramática de Lázaro Ramos funde-se com a escrita insurgente de Lima Barreto

    Empobrecida pelo corte violento de recursos federais e estaduais, esta Feira se tornou ainda mais seletiva para os que foram convidados ou conseguiram comprar ingressos para as apresentações, palestras e mesas-redondas concentrados no auditório da Igreja da Matriz Nossa Senhora dos Remédios. Mas a curadoria sensível de Joselia Aguiar impediu que o evento assumisse os ares de festa de esnobes diletantistas. Além de criar a tenda de projeção como um espaço para a inclusão gratuita de todos os que conseguiram chegar à belíssima Paraty, criou um espaço para discussão de literatura não-canônica no painel Aldeia. Na manhã de quinta-feira (27), o painel reuniu escritores e educadores de povos tradicionais para discutir a literatura oral e escrita que está intrinsicamente conectada a suas lutas coletivos pelo direito à vida e à identidade. Participaram Ivanildes Kerexú Pereira da Silva, ativista feminista e professora na Escola Paraty Mirim, na aldeia Guarani Mbya Itaxi; Laura Maria dos Santos, arte-educadora e militante pela educação e pela cultura quilombola na região de Paraty e Álvaro Tukano, pensador indígena do Alto do Rio Negro, que lançou na feira O mundo Tukano Antes dos Brancos. Um dos precursores do movimento indígena brasileiro, Álvaro Tukano mobilizou a plateia ao afirmar que no Brasil se procura imitar os europeus, quando a maior parte dos autores e dos leitores ignora a literatura indígena que deveria fazer parte da formação de todos os brasileiros.

    Pensador indígena Álvaro Tukano reclamou o lugar da literatura dos povos tradicionais na cultura brasileira

    CONTRA O FIM DOS POLICARPOS

    Antes mesmo da abertura, um manifesto liderado pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro quebrou a zona de conforto dos convidados e pagantes que avançavam na fila para a cerimônia de estreia no auditório da Igreja da Matriz. Empunhando faixas com dizeres irônicos, como “Triste fim para milhares de Policarpos Quaresmas”, professores, estudantes e servidores de escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro protestavam contra o fechamento de 300 escolas pelo governo do Rio de Janeiro e contra o atraso no pagamento dos educadores que, segundo eles, fará se repetir o destino de Policarpo Quaresma, condenando à morte cultural os estudantes das periferias. “Estamos aqui hoje abrindo a Flip para denunciar o descaso do governo do Estado com as escolas públicas do Rio de Janeiro, onde estudam a maioria dos filhos dos trabalhadores”, afirmou Clarice Ávila, diretora do SEPE e professora de Língua Portuguesa para mudos em Barra Mansa.  “Estamos aqui representando milhares de Limas Barretos que, na época do início da República também foi esquecido pelos cânones da literatura brasileira, que o acusavam de ser panfletário, simplesmente porque denunciava o racismo e toda a forma de opressão”.

    Outros educadores se alternaram ao microfone, contando a vida de Lima e recomendando a leitura de seus livros para que sua tenha um impacto verdadeiro nas decisões políticas e no comportamento do povo brasileiro. “Os participantes da Festa de Paraty, um evento que discute as questões da cultura, precisam saber que este governo não está atento à educação de qualidade para a maioria que dela precisa”, acrescentou a professora Cecília de Araújo Brás, do Sepe de Barra Mansa. Usando alto-falante, os professores lembraram que Lima Barreto está sendo homenageando tardiamente e em nome dele é preciso denunciar  todas as injustiças de Pezão e seus aliados contra o Rio de Janeiro e contra a educação pública que só fortalecem a elitização do ensino. “Não basta homenagear: é preciso refletir sobre a história de lima Barreto, que é muito atual. Tudo que ele denunciava estamos vivendo no século XXI”, lembra Clarice. Além de Barra Mansa, estavam presente professores de Barra do Piraí, Volta Redonda e São Gonzalo.

    Protesto na entrada do auditório da FLIP denunciou o fechamento de 300 escolas públicas

    Ao fundo, Lima Barreto e esta paradigmática edição da Festa Literária de Paraty mostram que não há oposição entre o estético e o político, assim como não há separação entre erudição e cultura popular. O sociólogo Walter Benjamin nos permite definir erudição justamente como a capacidade dos grandes narradores de buscar a experiência coletiva da cultura, subindo e descendo os escalões dessa experiência com a facilidade de quem percorre nos dois sentidos os degraus de uma mesma escada. “O grande narrador está sempre enraizado no povo”, escreveu Benjamin. Ao mesmo tempo em que avança para baixo e afunda seus pés na terra, enraizando-se na cultura popular, ele se esgueira para cima, perdendo-se além das nuvens, em direção ao clássico.

    A literatura moderna, em todas as suas formas de expressão, consiste, como defendeu Lima Barreto em seu manifesto por uma literatura militante, no talento de falar, em uma linguagem clara e capaz de mobilizar as massas sobre as estruturas de opressão invisíveis que só a arte pode fazer emergir de modo mais compungente. “A literatura trabalha pela união da espécie. Assim, trabalhando, concorre, portanto, para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade”, escreve o autor de uma das obras mais contundentes contra a soberba e a ignorância das elites brasileiras, excluído pela Academia Brasileira de Letras, morto aos 41 anos, mas imortalizado por sua literatura dos vencidos. O ilustradíssimo descendente de escravos continua botando o dedo na ferida da mentalidade colonialista.

    Lázaro Ramos: o Brasil ainda ceifa a vida de talentos como Lima Barreto
  • Angela Davis compara encarceramento à escravidão moderna

    Angela Davis compara encarceramento à escravidão moderna

    Por Midiã Noelle

    Há mais de 35 anos Angela Davis, ícone da luta pelos direitos civis, foi presa nos EUA acusada de ser cúmplice em um assassinato. Os 17 meses que passou dentro da prisão a fizeram refletir sobre diversas questões acerca do sistema carcerário. Seus artigos e pensamentos sobre aqueles dias, reverberam até a atualidade. Seja onde nasceu, no Alabama, Estados Unidos, ou em um município do recôncavo baiano. Pela sua trajetória inspiradora, a integrante do Panteras Negras nos anos 70, mais uma vez veio ao Brasil. Desta vez, sua sexta entrada ao país, sendo a quarta na Bahia, para participar de atividades desenvolvidas no âmbito do 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha e comemorações da agenda da sociedade civil Julho das Pretas.

    Durante os dias que ficou na Bahia, a convite do Coletivo Angela Davis da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), do Odara – Instituto da Mulher Negra e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher (Neim) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Davis participou na cidade de Cachoeira de um evento sobre Feminismo Negro Decolonial nas Américas e, em Salvador, da conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”. Este evento, ocorrido na noite de terça-feira (25), lotou a Reitoria da UFBA com mais de 700 pessoas e emocionou a todos/as, tanto pelas falas de referências do movimento de mulheres negras, como Angela Figueiredo, Dulce Pereira e Naiara Leite, que relembraram as perdas de Luiza Bairros e Mãe Beata de Yemanjá, e a importância da luta diária contra o racismo e o sexismo, quanto pela bela apresentação do Slam das Minas e as colocações da convidada.

    Auditório da UFBA lotado para conferência com Angela Davis. Foto: Juh Almeida

    Entretanto, antes do momento aberto ao público, a filósofa concedeu entrevista à imprensa. Neste momento, diferente do momento da noite, Davis pode responder questões e pontuar com mais detalhamento suas impressões sobre o “sistema carcerário industrial” que alimenta os presídios de corpos negros em uma escala global. As contribuições colocadas pela ativista durante a coletiva denunciaram o punitivismo do encarceramento e como essa lógica tem “mantido ligações muito óbvias com o sistema de escravização”.

    Segundo Angela explicou para as pouco mais de 30 pessoas presentes e para milhares de outras que acompanhavam a transmissão on line, essa relação não é apenas no estabelecimento de uma analogia, mas também de genealogia. Ela fez referência de que o sistema escravocrata queria manter o sistema como instituição, porém com uma forma “mais humanizada”. Ou seja, os argumentos se equiparam, segundo a ativista, quando argumentamos “em prol da reforma do sistema carcerário”. “É simplesmente um argumento que visa manter o racismo e a repressão do encarceramento e do aprisionamento. E, portanto, a abolição é a estratégia que abraçamos”.

    Angela destaca que essa noção de abolição visa transformar a sociedade para que não haja mais a necessidade da manutenção destas medidas de repressão, pois o encarceramento nunca resolveu os problemas para os quais pressupõe-se que seria a resposta. “A abolição do sistema carcerário nos convida a construirmos uma sociedade onde não haja racismo. Sem estruturas hétero patriarcais. Sem estruturas capitalistas. Onde haja educação livre e acesso livre, ou gratuito, ao sistema de saúde”, enfatizou e concluiu destacando que repudiar o sistema carcerário vigente é, sobretudo, lutar pelo socialismo.

    Fotos de Juh Almeida

    Caso Rafael Braga
    Preso há quatro anos, o caso de Rafael Braga tem mobilizado o Brasil por se apresentar como um caso explícito de racismo institucionalizado na justiça brasileira, em que apenas a versão da polícia é considerada. Ao ser questionada sobre como órgãos internacionais podem contribuir para que casos como o do jovem sejam denunciados e solucionados, sobretudo por estarmos na Década Internacional de Afrodescendentes, instituída pelas Nações Unidas, Angela disse que a década em si contribui apenas no pensar arcabouços para nos “levar a construir redes mais amplas de solidariedade”, considerando ser uma ex-prisioneira política grata às pessoas que se uniram em âmbito global para exigir a sua liberdade na campanha “Free Angela”.

    Davis destacou ainda como melhor caminho a continuação dos movimentos pelas libertações de prisioneiros políticos, no intuito de contribuir para casos como de Rafael Braga, dos detidos em Israel engajados em lutas contra a ocupação palestina, dos aprisionados na Europa por estarem engajados na luta contra a fobia do Islã e do racismo, entre outras situações, como a de Assata Shakur, que também foi dos Panteras Negras e continua a viver no exílio em Cuba.

    As mulheres e o encarceramento
    Durante a coletiva que mais parecia uma prévia da conferência que aconteceria na noite do mesmo dia, Davis pontuou a necessidade de se pensar em todas as circunstâncias dentro do sistema carcerário feminino mundialmente. Por mais que, ao se falar em encarceramento a imagem que vem às mentes das pessoas são de homens, pois são aqueles que efetivamente estão encarcerados em maior escala, isso não significa que não podemos adquirir conhecimento sobre as circunstâncias que envolvem as encarceradas, e, também, aquelas afetadas pelo contexto carcerário. “É uma conexão entre a violência institucional, por um lado, e a violência individual. Ou a violência que ocorre em relações íntimas”.

    Angela apontou ainda que, no que o Estado é o agente punitivo para os homens, mas que há formas de punição consideradas privadas, geralmente mencionadas como violência doméstica, que afetam muito mais as mulheres. “As mulheres apontam para o fato de que dentro desse mundo dos ‘livres’, não encarcerados, têm vivenciado a violência sexual. Quando as mulheres visitam as prisões e são sujeitas as revistas constrangedoras, ou revistas invasivas, que utilizam buscas ou revistas vaginais e no reto, isso também constitui violência sexual”.

    A filósofa também evidenciou as condições e violências sofridas por pessoas encarceradas trans, principalmente mulheres trans, e como é necessário compreender o sistema carcerário de forma mais ampla, em especial no que tange as questões de gênero, como um aparato que sustenta percepções ideológicas ou ideologias de raça e sexismo. Ela ressaltou ainda o alto índice de encarceramentos no Brasil, o quarto país em maior número, sendo majoritariamente de pessoas negras, homens e mulheres pretos/as e pardos/as. E, apesar de o maior número de encarcerados serem o masculino, nos relembrou que são as mulheres negras as protagonistas nas lutas contra o sistema carcerário “nesse sistema tão saturado pelo racismo”.

  • Cidinha da Silva: Julho das Pretas

    Cidinha da Silva: Julho das Pretas

    Em 1992, durante o Primeiro Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas na República Dominicana, instituiu-se o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. Em 2014, a Presidenta Dilma sancionou esta mesma data como Dia Nacional Tereza de Benguela e da Mulher Negra.

    Desde o estabelecimento da comemoração na década de 1990, tem crescido no Brasil o volume de eventos políticos e culturais que objetivam discutir questões caras às mulheres negras, ao tempo que também fazem circular sua produção intelectual e artística. Dessa forma, afirma-se o mês de julho como mês das mulheres negras brasileiras, pautado por programação ativa, crítica e reflexiva que as tem como grandes timoneiras. Tanto aquelas oriundas de organizações mais convencionais, quanto as outras, integrantes de novíssimos coletivos políticos. Também aquelas que se juntam para propor um programa exclusivo no Julho das Pretas.

    Mais do que fazer uma cartografia dos eventos, nomeando-os e localizando-os no espaço político-geográfico, interessa-me registrar e agregar algumas características gerais, muito positivas, cuja sistematização pode vir a ter alguma utilidade para o futuro. Interessa-me mais o tempo político desses acontecimentos.

    A primeira característica que me move é geracional. Noto um protagonismo de mulheres negras que estão entre trinta e quarenta anos e que têm se responsabilizado por estabelecer pontes entre sua própria geração e as mulheres de menos de trinta, bem como entre as maiores de quarenta, cinqüenta, sessenta, setenta anos…

     

    As mais velhas, principalmente, as bem mais velhas, têm sido tratadas nesses momentos como sábias senhoras. Isso vai da designação de espaços, assentos especiais, aos cuidados carinhosos e destaque aos lugares de fala das mais experientes.

    As juventudes, por sua vez, têm sido instadas a interagir com as mais velhas e a aprender pela troca, pela experiência e pelo exemplo.

    Essa posição de ponte exercida pelas balzaquianas tem sido fundamental para promover um diálogo fluido, pleno de frestas e sem arestas, que se vale também de manifestações culturais e de apresentações artísticas para promover e discutir política, além dos necessários debates temáticos.

    Existe um diálogo freqüente e profícuo com as novas tecnologias de comunicação. Os registros são de alta qualidade no formato de livros bonitos, leves e dinâmicos; áudios igualmente bem feitos, alguns curtos, outros longos, disseminados pela Web. Não raro, podemos acompanhar os eventos em transmissões feitas em tempo real, em qualquer parte do país, quiçá do mundo.

    Por fim, as organizadoras do Julho das Pretas, por todo o país, têm sido capazes de mobilizar significativos públicos negros, não necessariamente filiados a organizações políticas, nem mesmo aos novíssimos coletivos políticos ou culturais formados para atuar na Web ou a partir dela.

    Trata-se de mulheres negras, jovens, a maioria, interessadas em processos de afirmação identitária, discussão política, arte, estética e cultura negras, aprendizados múltiplos, trocas entre pares e sustentação ao protagonismo de mulheres negras.

    O Julho das Pretas veio para ficar e para transformar.

  • FLIP começa hoje com mais mulheres e negros, mas com menos estrutura e vagas para o público

    FLIP começa hoje com mais mulheres e negros, mas com menos estrutura e vagas para o público

    Sob o emblema da insubordinação negra do escritor brasileiro Lima Barreto e a presença massiva de autoras mulheres, a Feira Internacional de Literatura de Paraty (FLIP) inicia oficialmente nesta quarta-feira (26/7), às 19 horas, agarrando a tarefa que costuma engajar a escritura em tempos de exceção: a da resistência. Além de vir a ser um território para a literatura das minorias políticas, que derrubaram seus muros para a entrada de negros, mulheres e autores ligados a grupos e etnias não referenciados pelo mercado editorial, o maior evento de literatura do Brasil terá que lutar por sua própria sobrevivência. Os reflexos na redução de 30% do seu orçamento, determinada pelos cortes dos recursos do Governo Federal, principalmente, já são evidentes para o público que começou a chegar em Paraty já no final de semana. Eles vão encontrar uma FLIP mais heterogênea e inclusiva, porém, contraditoriamente encolhida, para não dizer desprestigiada pelo Governo Temer.

    Uma programação bem mais enxuta do que as anteriores já denuncia por si só os efeitos do menor orçamento desde que a FLIP iniciou em 2010 e se tornou um evento de fama internacional. Em vez da grande tenda para 800 pessoas, a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios abrigará metade desse público, restrito a convidados e pagantes dos ingressos, vendidos a R$ 55,00, e esgotados logo na abertura das vendas, em 13 de junho.  Além da transferência para a igreja, diversas oficinas e programas educacionais que ocorriam paralelamente à programação oficial foram suspensos pela Associação Casa Azul, responsável pela organização da Festa, para que os cortes não inviabilizassem sua realização, conforme o diretor-presidente, o arquiteto e urbanista Mauro Munhoz.

    Em abril, o  diretor anunciou à mídia que a restrição de lugares para as palestras dos autores seria compensada pela ampliação do número de lugares na tenda de projeção, os quais passariam de 200 para 700. A poucas horas antes da abertura oficial, contudo, ninguém viu essa possibilidade se concretizar no espaço montado ao lado da Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios, onde permanece a mesma estrutura. “Estou impressionada de ver como a programação e os ingressos foram reduzidos”, lamenta Ângela Palomo, produtora de cinema, que mora entre a capital do Rio de Janeiro e Paraty. “É duro pensar que não teremos mais a grande tenda ao ar livre, um acontecimento único e marcante no Brasil”, acrescenta ela, que acompanha a feira desde sua primeira edição. Ninguém com quem se fale transitando pelas ruas de Paraty conseguiu ingressos, nem mesmo muitos jornalistas credenciados.

    Nas vésperas do grande evento, o público de jovens, artistas, intelectuais e ativistas sociais atraídos pela diversidade política dos autores parecia estar disposto a fomentar a vocação de resistência da literatura. No dia Internacional da Mulher Negra, grupos de músicos se alternavam no esquenta da FLIP, na Praça da Matriz, sacudindo o público com melodias e letras alusivas à luta contra o racismo e ao orgulho negro. Depois dos protestos da edição passada pela baixa representatividade de mulheres e negros, a atual curadora, a jornalista e biografista Josélia Aguiar, defendeu o fim da supremacia branca e masculina. Josélia configurou as 22 mesas de palestras e debates com a participação de 24 mulheres e 22 homens.

    A aliança entre povos subjugados não podia ter atravessado a literatura em hora mais necessária. Lima Barreto, que era um feminista de vanguarda no Brasil imperial e uma pena insubmissa contra o racismo e toda sorte de discriminação social, opera como uma espécie de guerreiro póstumo no front de batalha dessa minoridade política que rasga seu território na FLIP.  A lista de estrelas negras contempla Scholastique Mukasonga, da etnia tutsi, de Ruanda, Marlon James, da Jamaica, os brasileiros Conceição Evaristo e Lázaro Ramos, que na abertura fará uma dramatização especial da obra de Lima Barreto, criada por Lilia Schwarcz, com direção de cena de Felipe Hirsch.

    O feminismo será tratado pela angolana Djaimilia Pereira de Almeida e pela autora Deborah Levy, Beatriz Resende, Carol Rodriguez, Natalia Borges Polesso, Noemi Jaffe, Scholastique e Conceição Evaristo, que ao lado de Ana Maria Gonçalves fará uma homenagem às escritoras africanas. Em casa, nas artes, na política ou nas fábricas, a mulher sempre deu duro, como escreveu o próprio Lima Barreto: “Então a mulher só veio a trabalhar porque forçou as portas das repartições públicas? Ela sempre trabalhou, aqui e em toda a parte, desde que o mundo é mundo; e até, nas civilizações primitivas, ela trabalhava mais do que o homem”.