Jornalistas Livres

Categoria: Índios

  • Terra em transe e o destino dos mortos

    Terra em transe e o destino dos mortos

    “Quando andei em terras sem mato grosso, sem ouro, o que encontrei foi morte, foi choro, foi falta de rima. Criança cheia de água no olho, terra lisa de árvore, gente escondida no mato pintadas de preto na cara, vermelho forte no peito e arco em punho.

    dourados Gente com medo e alerta. Gente bonita. Mulheres velhas, bem velhas, dançando como fadas, na solidão grande dos campos de cana e numa solidão de árvores. Tudo seria triste não fosse índio. Tudo seria fraco não fosse palavra e solo. Aqui é morte que encontro na busca da terra sem males.

    Sinto um vazio de mim brasileiro no horizonte, uma ausência de pátria, um país não cidadão. Já não sei qual é a fronteira da razão quando crianças choram de medo diante de fazendeiro e policial, nem entendo lavoura no solo cheio de casas no meio de gente .

    Em bando me recebem, índios guarani-kaiowás, cantando, em apelo, em beira de covas, corpos desaparecidos na relva, pés no chão batendo forte, pegando suave nas mãos.

    Penoso entender o afeto entre a dor de tantos. Aqui solidão é palavra grande e funda , com cabaça entre os dedos. Na terra nua, limpa e desinfetada do agronegócio, surge o índio, impávidos cocares e límpidos chocalhos como armas do espírito, movimentos secretos na hora da defesa, aos quatro cantos cardeais.

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    Som de tratores e caminhonetes se misturam a gritos e estalidos de tiros. Em poesia pobre a imprensa local versa a dor da aldeia.

    Suporta-se com paciência a cólica alheia, como bem escreveu Nelson Rodrigues em 68 citando Machado de Assis.

    Bicas incorrem dentro da alma no Mato Grosso do Sul, lágrima é água salgada.

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    Confira a matéria realizada por Marcelo Zelic, enviado especial ao Mato Grosso do Sul.

  • ONU nem vira as costas e pistoleiros atacam de novo os índios guaranis-kaiowás

    ONU nem vira as costas e pistoleiros atacam de novo os índios guaranis-kaiowás

    A relatora da ONU Victoria Tauli-Corpuz não havia ainda encerrado sua visita ao Mato Grosso do Sul, onde foi para avaliar a situação de violência vivida pelo povo guarani-kaiowá, quando os índios já foram novamente atacados a tiros por pistoleiros das fazendas em torno. O índio Isael Reginaldo ficou ferido, com 10 perfurações pelo corpo

    Pistoleiros a cavalo e em caminhonetes realizaram três ataques contra índios durante a visita da relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, ao Mato Grosso do Sul, aonde foi para avaliar a situação de violência vivida pelo povo Guarani-Kaiowá na região. Tratou-se de uma clara tentativa de intimidação. Jornalistas Livres presenciaram um dos ataques, realizado no dia 12/03 contra a aldeia Ita Poty, na divisa dos municípios de Dourados e Itaporã (MS), pouco depois de outro, em que saiu ferido o indígena Isael Reginaldo.

     

    Nesse dia, índios tentaram retomar seu território tradicional, que atualmente é disputado com fazendeiros da região. Em represália, pistoleiros atacaram o grupo indígena, ferindo Isael, que foi levado para o Hospital de Dourados, com 10 perfurações espalhadas pelo corpo, sangrando muito. Mais tarde, já na beira da estrada e fora da área de litígio, os ataques persistiram. Cerca de 40 índios, que estavam reunidos, bloqueando a estrada, para fechar o acesso à fazenda, foram novamente atacados pelos pistoleiros, que dispararam tiros em sua direção.

     

     

    A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz,  esteve no Mato Grosso do Sul (MS) entre os dias 10, 11 e 12 de março. Visitou os tekohas (territórios) chamados de Kurussú Ambá, Guaiviry e Boqueirão no dia 10/03 e Takuara no dia 11/03. Todas áreas de conflitos recentes. Seguindo para Campo Grande, encontrou-se com representantes do povo Terena e demais povos do estado. Dali, Victoria foi para a Bahia.

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    A visita da relatora Victoria Tauli-Corpuz ao Brasil é decorrência de pedido feito pelos guarani-kaiowás em setembro passado, em que reivindicaram que a ONU adotasse duas medidas urgentes para uma defesa efetiva dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul e do Brasil:

    Primeira: “Promover uma investigação independente sobre o ataque sistemático contra os povos indígenas no Brasil, incluindo a responsabilidade do Estado Brasileiro tanto por ação como por omissão”.

    Segunda: “Assegurar que todos os acordos comerciais de empresas multinacionais e bancos de investimentos com o Mato Grosso do Sul sejam condicionados à demarcação e devolução de nossos territórios”.

    Eliseu Lopes faz denúncia na ONU em setembro de 2015. Foto: CIMI
    Eliseu Lopes faz denúncia na ONU em setembro de 2015. Foto: CIMI

    Na aldeia Kurussú Ambá, o cacique Eliseu Lopes abriu a conversa com a relatora Victoria Tauli-Corpuz denunciando a “violência, matança de lideranças e criminalização de liderança”. Foi seguido pelo cacique Ismar, que disse:

     

    “Sentimos esperança por a senhora pisar em nossa terra, pois nós sofremos demais, há 500 anos.”

     

    Reivindicamos ao governo (a demarcação da terra) e não nos atendeu, não deu ouvido a nosso sofrimento. O governo esqueceu de nós. E a gente insistiu com nossa terra, nós vamos insistir, nós vamos ter a nossa terra de volta, mesmo [tendo] a nossa liderança ameaçada, nossas criança ameaçadas. Nós não nos intimidamos porque estamos atrás dessa alegria [viver no tekoha]. As nossas crianças querem viver felizes, as nossas lideranças querem viver felizes. Por isso nós queremos que as Nações Unidas (ONU) demarquem nossa terra, que considerem nosso sofrimento, que pressione o governo. Porque estamos abandonados. E aqui estamos com pistoleiros em nosso redor, hoje atirando em nós, em cima e nós estamos assim. O governo está esperando a liderança ser assassinada, o povo ser massacrado.”

     

    Rezador da comunidade
    Rezador da comunidade

    “Passamos por um ataque no dia 30/01, quando o acampamento três foi todo destruído. Foram queimadas as casas, a comunidade está viva porque correram da bala. Se esconderam nas braquiárias (tipo de capim para boi pastar) para escapar com a vida. Se não corresse, ia ter um massacre enorme no estado do Mato Grosso do Sul.”

     

    A pedido do rezador de Kurussú Ambá, vários indígenas da aldeia mostraram à relatora da ONU, entre homens e mulheres, jovens e idosos, as cicatrizes de tiros que carregam em seus corpos. A relatora da ONU fez questão de apalpar os projéteis ainda alojados no corpos dos indígenas guarani-kaiowás.

     

    A relatora da ONU ouviu também lideranças femininas. Escutou o apelo de Leila e a denúncia das condições de vida nas reservas indígenas no Mato Grosso do Sul, entendidas como áreas de confinamento da população guarani-kaiowá. Leila chamou essas reservas indígenas de “chiqueiros”. Recebeu abraço apertado de Victoria Tauli-Corpuz.

     

    “A gente esperou há muitos anos essa justiça, mas nenhum governo, nenhuma autoridade, ninguém fez nada por nós indígenas. A gente foi massacrada, a gente foi matada, a gente derramou nosso sangue para esta terra aqui, mas ninguém não olha por nós. A gente perdeu muito a vida já, nossas liderança, desde mais de 500 anos a gente está derramando o nosso sangue pela nossa terra tradicional. Nós não somos estrangeiros, nós somos aqui do Brasil, original aqui do Brasil”.

    Vídeo de Ruy Sposatti, repórter do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)

    Cacique Elpídio Pires, da terra indígena Potrero Guasu, município de Paranhos (MS), liderança do Conselho Aty-Guaçu, sobrevivente do ataque de 19/09/2015 contra o acampamento localizado em área retomada de suas terras, foi um dos indígenas que prestaram depoimentos à Comissão Nacional da Verdade. O ataque deixou três feridos, que junto a Elpídio, esperaram sangrando na aldeia durante três horas para serem levados ao hospital, devido ao cerco dos pistoleiros.

    Acampamento incendiado durante o ataque. Foto: CIMI
    Acampamento incendiado durante o ataque. Foto: CIMI

     

    “O Brasil está negando. O Brasil está dizendo que estão tratando bem os pobres, os indígenas, mas estão mentindo. Eles estão mandando relatório bonitinho, mas não é verdade”.

     

    “Isso é uma vergonha aqui no Brasil, nós agradecemos a senhora por ter vindo, porque o Brasil faz parte desta organização. O Brasil assinou com a ONU, ele tem compromisso e não está cumprindo e nós indígenas guarani-kaiowás, nós pedimos também um contato direto, um acesso direto, diretamente com a ONU, para a gente passar a nossa situação, porque em 19/09/2015 eu fui quase matado pela minha terra. Então isso me indignou e isso é uma vergonha pro Brasil. A senhora sente como nós, a senhora tem filho, tem marido. A senhora deve imaginar a perda para uma família. Todo ser humano tem esse sentimento e esse sentimento tem de ser respeitado. Tem na Constituição que garante e nós devemos respeitar, mas não está sendo respeitado. Tá no papel bonitinho, mas não está sendo respeitado e não está sendo feito pelo governo brasileiro. Nós somos tratados como estrangeiro dentro da nossa própria terra. Minha mulher ainda hoje lembra como iria ficar se eu fosse matado. Como que vai ser criar os meus filhos. E ela fica muito triste, muitas vezes ela quer me segurar, mas eu falo, vamos continuar lutando pela nossa terra. Eu estou lutando pela causa justa”.

    Elpídio Pires em depoimento à relatora da ONU.
    Elpídio Pires em depoimento à relatora da ONU.

    A indignação e coragem deste cacique Guarani-Kaiowá está expressa no volume de sua voz, nos gestos constantes e fortes de suas mãos chacolhando várias vezes no ar a cada frase, sem tirar os olhos de Victória. “Eu não estou defendendo criminosos, eu não estou formando quadrilha, não! Eu estou lutando, porque está em 1988 na Constituição o nosso direito.” A bala que o atingiu em 19/9/2015 ainda está em sua barriga.

     

    O cacique Eliseu Lopes concluiu sua fala pedindo: “Victoria, pressione o governo Dilma, pressione o Congresso e o STF, em Brasília, para que demarque nossas terras e que o governo não faça mais isso: despejo e criminalização das lideranças”.

     

    A relatora da ONU antes do encerramento declarou aos Guarani-Kaiowá em Kurussú Ambá:

     

    “Eu consigo sentir a dor, eu consigo sentir a raiva, a tristeza que vocês comunicaram a mim e eu entendi muito claramente a mensagem que vocês querem que eu repasse para o governo de vocês e para a comunidade internacional. Eu farei todo o possível para levantar estas questões não somente com vosso governo, mas também com a ONU e também para a imprensa, para que a questão de vocês seja conhecida pelo mundo inteiro. Ajudaria a aplicar pressão sob o governo de vocês, se a situação de vocês não fosse só conhecida no Brasil, mas também no resto do mundo. Eu farei minhas recomendações, para destacar o ponto de vocês sobre a questão crucial da demarcação. E eu concordo com vocês de que esta é a única forma”.

     

    Já em território baiano, onde Victória Tauli-Corpuz foi informada dos ataques em Kurussú Ambá e que o indígena Isael Reginaldo, foi alvejado por fazendeiros. Depois de ouvir os relatos dos Tupinambás, ela declarou:

     

    “Devo recomendar que seja instalada uma investigação nacional de violações aos povos indígenas. Depois de ter ouvido reclamações padrões e constantes, acho mesmo que é o caso de uma investigação”. (grifo nosso)

     


    Marcelo Zelic é Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e Coordenador do Projeto Armazém Memória.

    Helio Carlos Mello é fotógrafo e membro do Projeto Xingu, da Unifesp.

     


    Confira o ensaio do fotógrafo Helio Carlos Mello, enviado especial ao Mato Grosso do Sul.

     

  • O Povo Que Não Pode Plantar

    O Povo Que Não Pode Plantar

    É sexta-feira e sigo com meu amigo Jekupe, escritor indígena, ao encontro de seu povo, Guarani M’byá,  para protesto na cidade de São Vicente, a matriarca urbana do país, em seus 484 anos de ruas e casas. Sei que quem tem coração no mar, nas águas, na mata e na terra, também sabe jogar sua dor na avenida. A solidão dos povos indígenas irá à praia e mais que choro, tal um pirata chegando à velha cidade, protesta com canto e dança, o jeito índio de se manifestar.

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    Os povos indígenas do Brasil, como toda sociedade nesse momento, estão também em movimento. É longa a lista de solicitações e evidentes certos direitos renegados. O direito à terra, novamente, precisa ser escancarado.

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    Chego às Terras indígenas de Paranapuã, dentro da Reserva Xixová, onde índios são acusados de serem responsáveis pela degradação ambiental. Surreal alegação. A região da Bacia de Santos tem sido notada e assolada por ocorrências de acidentes ambientais associados ao comércio e translado de produtos químicos. Acusar índios de degradação ambiental é no mínimo uma farsa.

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    Cerca de 100 índios vivem na Tekoa Paranapuã. Noto que a comunidade carece de roça, aventurando-se apenas com alguns poucos pés de cana, banana e açaí, entre a vegetação densa. O cuidado com as orquídeas e flores da mata atlântica também é notável. Casas muito simples, e um vazio de escola ou posto de saúde evidencia a ausência do Estado. Em vez de assistir, aqui o Estado prefere expurgar.

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    Os Guarani tem por nome a sentinela e a terra livre, e nesse momento a aldeia, entre toda carestia, é toda força e alvoroço. Caciques se reúnem, mulheres e homens se pintam e se adornam, crianças cantam, arcos e bordunas se aprumam. Na casa de reza, Opy, entre a fumaça dos pitynguas, cachimbos tradicionais, as lideranças comunicam a todos o motivo do protesto e como proceder. Cantam e dançam pedindo a Nhanderu, Deus, a proteção.

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    É uma sexta-feira de janeiro, índios saem da mata, transpassam a ponte pênsil, ocupam a avenida beira mar e seus marcos, se misturam na rua em dia de aniversário e feriado na cidade mais antiga  e protestam. Uma certa poesia invade a rua, apesar da dor e das necessidades, como quando antes não havia cidade.

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    Reintegração de posse é frase insana.

  • A Emergente Pátria Livre

    A Emergente Pátria Livre

    Sobre a experiência de participar de um evento global que discutiu a Cultura e sua relação com os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e ambientais

    Senti águas em meu sonho. Vejo a juventude a se encontrar em vários cantos, em fundição, de cofres e fogões. Tudo se deu em leito e margem de mar que rodeia a cidade e assuntos que se devem conversar, entre gentes de vários cantos, raças até. O caminho é livre, sabia eu.

    Quem foi, está ou já partiu, leva uma certeza que novos tempos se anunciam.

    Nas águas cariocas, patrícios que resistiram e outros que nasceram após 1964, se mostram. De mim sei que nasci no 64, e em 2015 ao final, ouço o velho Gil, ministro sempre nos terreiros, a ditar seu belo leme da nave.

    Meus amigos indígenas, índios, povo tradicional e íntimo do solo, anunciam que estão e sempre estarão aqui, não importa que doa ou trema.

    Grata honra à toda juventude presente das 5 regiões, em dias tão delicados, ser saudada pelo Ministro da Cultura, Juca Ferreira, ministro e ministério, um farol nesse governo.

    Interessante notar que nesse território central da cidade que nos recebe, tudo se mistura em um largo da Cinelândia: a pirâmide cônica da igreja, a sede da Petrobrás, os Arcos da Lapa construído por mãos e submissão indígena e a fábrica de cofres e fogões, em grande circo mágico que se anuncia.

    É tamanha a diversidade de signos e significados, que a poesia seria agora diversa de gêneros. Como uma batalha de Parnaso, se mostra um tempo oswaldiano que quer superar o mercado e garantir direitos e anunciar outros modos. Não seremos poetas nesse mundo caduco diário, mas gente que sabe o que se deve no dia.

    Não passarão é termo de emergências. A grande ponte suplanta a Guanabara, unindo jovens e velhos camaradas, de São Paulo ao Rio, da mata aos terreiros todos são uma bossa nesse tempo de nação que querem todos.

    Ninguém sabe o que se passará nos templos que se erguem, das vontades sei apenas que não voltaremos atrás, seguiremos fazendo o que deve ser perpetrado, como arco sobre arco. Em meio ao caos um país se expõe azul, vermelho, branco amarelo verde, longe da escuridão que nos ameaça a grande imprensa.

    Aqui a juventude se mostra como uma pedra no meio do caminho dos mal intencionados. Como criança que nasce, mama e nu logo cresce em um país que dorme e acorda. Coisas da vida.

     

  • Sônia Guajajara pede socorro por povos indígenas ameaçados pelo incêndio no Maranhão

    Sônia Guajajara pede socorro por povos indígenas ameaçados pelo incêndio no Maranhão

    Há algumas semanas um incêndio de grandes proporções avança por terras indígenas no Maranhão. Os focos começaram na terra indígena Caru, onde existem as aldeias Awá e Tiracambu, do povo Awá Guajá, e a aldeia Maçaranduba, do povo Guajajara, além de grupos de indígenas Awá isolados. Os Awá são um dos últimos povos nômades de caçadores-coletores no Brasil. Considerados pela organização International Survival como a “tribo mais ameaçada do mundo”

    Os indígenas denunciam que o fogo é criminoso e que os incêndios foram iniciados por madeireiros, em represália à atuação dos guardiões do povo Guajajara, que se organizaram para fazer a autodefesa de seu território frente às falhas do Estado brasileiro em cumprir com esse papel.

    “Somos poucos índios para proteger a terra de todo o Brasil. Se entregarmos, nossas florestas irão se transformar em plantação de eucalipto, soja ou cana. O Maranhão está em chamas, nossas terras estão sendo incendiadas por ataques criminosos em consequência do desmatamento ilegal”,

    relatou sob fortes aplausos Sônia Guajajara, Coordenadora Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), durante o evento “Emergências”, que acontece desde 7 de dezembro no Rio de Janeiro.

    Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), cerca de 100 indígenas Guajajara e 30 Awá estão atuando no combate às chamas, coordenados por apenas 45 brigadistas do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Ibama.

    Mesa de Culturas indígenas no #Emergências. Foto: Mídia NINJA
  • O Rio e a Morte

    O Rio e a Morte

    A lama de Mariana que se arrasta agora na água salgada nos mata de sede

    Por Helio Carlos Mello, especial para Jornalistas Livres

    Em dias de margens e leito nas manchetes em que a lama de Mariana abrange a todos, o pensamento se entope na construção de uma saudade de água doce e seus rios. Imagens históricas da geografia e seus relevos, ainda hoje verdadeiros em algumas regiões do Brasil em áreas de celibato entre a natureza e o colonizador, sempre nos fascinam no curso das águas e seus volumes.

    Tudo parece ruir. Para as águas, os povos tradicionais da América reservaram um lugar especial em sua semântica, simbologias de origem. Nossa humanidade o vê, líquido precioso, mais como meio e fim do que uma origem além do que a ciência define. Índios são distintos na significação da água e da terra que percorrem e perfazem, vêem nos elementos fundamento e propósito. Nessa ótica, passo a compreender o caos contemporâneo que se impõe no horizonte, pois para nós mineração, agronegócio e hidrelétricas seguem outros pensares nas leis do mundo.

    Índia Matipu aguarda para receber dose de vacina em seu filho. Foto: Helio Carlos Mello

    Comecei a frequentar comunidades indígenas há 15 anos, e em seus atributos e significados dados às coisas do mundo, descobri uma distinta conduta ao que nos rodeia, nossa terrena leitura econômica da história. Para esses povos, muitas de nossas fontes são seres, e como tais podem reagir, porque são em si uma mecânica na conduta da vida e dinâmica própria do mundo.

    Em maio desse ano, no registro de uma expedição de imunização na terra indígena do Xingu, um amigo me conduziu à revelação de um monumento ao amor, erguido às margens do rio, em território tradicional dos Kalapalo e Matipu. Com a sinceridade de um povo que adora dançar e cantar celebrando, onde guerrear tinha seus fascínios e lógica própria, descubro história sem final feliz e que expõe a perversa relação entre as tramas da mídia, a cultura e o meio ambiente.

    Tomei ciência da inusitada história de amor entre o sertanista Ayres Câmara Cunha e a índia Diacuí, na década de 1950. A história veio a público pela revista O Cruzeiro e adquiriu ares de enredo de novela, entre 1950 e 1953. Chegou em seus capítulos derradeiros a ter Getúlio Vargas e Assis Chateaubriand como padrinhos do casal na Igreja da Candelária, após muitos trâmites entre os chefes da igreja católica e as instituições indigenistas da época. Bem, o desenrolar dos fatos se encarregaria de evidenciar as contradições do projeto etnocida no qual a índia Diacuí Kalapalo foi envolvida, juntamente com seu povo, como conclui Helouise Costa, docente e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, “expondo de maneira imprevista a violência extrema que se ocultara sob as boas intenções de seu discurso.”

    A reportagem contava a história de amor:

    “Aqui está um curioso caso de amor à primeira vista, de onde se conclui que a vida na selva, se é rude e áspera, nem sempre endurece o coração humano. Ayres Câmara Cunha, funcionário da Fundação Brasil Central, foi transferido para um pôsto daquela entidade, próximo a uma aldeia da tribo dos Kalapalos. Conheceu ali uma jovem índia, Diacuí, por quem imediatamente se apaixonou. Ayres não falava o kalapalo e Diacuí muito menos o português, mas isso não representou obstáculo para que os dois se entendessem. Os olhos da indiazinha dispensavam as palavras: deles escorria uma ternura mansa, levando ao coração do homem branco a certeza de que era correspondido no seu amor. E Aires não hesitou: pediu Diacuí em casamento. Os maiorais da tribo, não duvidando dos sentimentos dêle, concordaram com a união dos namorados. Mas eis que uma nuvem veio toldar a felicidade dos dois jovens, sob a forma de um artigo dos estatutos do Serviço de Proteção aos Índios, que proíbe a ligação entre civilizados e selvagens. Chamado ao Rio para prestar esclarecimentos, Aires nada negou, deixando falar bem alto o seu coração. E através da imprensa lançou um dramático apelo às autoridades, no sentido de instituírem uma cláusula no regulamento do S.P.I., permitindo o casamento de brancos com índios. Na foto, Ayres ao lado de Diacuí, num flagrante que lhe aviva as saudades da mulher amada. A índia continua a esperá-lo na selva, sem saber que os separam, com mais fôrça do que as léguas de mata, as leis feitas pelos homens.”

    Acima: A famosa atriz Fada Santora penteando Diacuí, na Gávea-RJ | Dir: Assis, Diacuí, Ayers e Jacuí | Acervo Expedição Xingu 2015

    Diacuí foi vítima da relação desigual que se estabeleceu entre o colonizador branco e a mídia. Com Mariana não seria diferente.

    Somos um país de rios que choram. Neste momento em que o Rio Doce se expõe violentado por nossa humanidade, em que índios Krenak choram limpo nas águas vermelhas de Minas ao Espírito Santo, lembrei-me dessa história do amor consumado e a imagem do rio Culuene, que vai em curva engolindo lentamente, no movimento natural de seu leito, o túmulo de Diacuí.

    Importante aqui citar a educadora Marisa Vorraber Costa, da UFRGS:

    “As sociedades e culturas em que vivemos são dirigidas por poderosas ordens discursivas que regem o que deve ser dito e o que deve ser calado e os próprios sujeitos não estão isentos desses efeitos. A linguagem, as narrativas, os textos, os discursos não apenas descrevem ou falam sobre coisas, ao fazer isso eles instituem as coisas, inventado sua identidade. O que temos denominado ‘realidade’ é o resultado desse processo no qual a linguagem tem um papel constitutivo. Isto não quer dizer que não existe mundo fora da linguagem, mas sim, que o acesso a este mundo se dá pela significação que é mediada pela linguagem.”

    A lama de Mariana que se arrasta agora na água salgada nos mata de sede. O Doce e o Xingu são as faces da moeda.

    Acima: Margem do rio Culuene, Alto Xingu, onde se localiza o túmulo de Diacuí. | Abaixo: Túmulo de Diacuí envolvido pela mata ciliar. Fotos: Helio Carlos Mello

    Assista também: