Jornalistas Livres

Categoria: História

  • Manifestações mostram que Bolsonaro desliza sem volta para o precipício

    Manifestações mostram que Bolsonaro desliza sem volta para o precipício

    Por Ricardo Melo*

    Que me perdoe Dacio Malta, um dos mais destacados jornalistas do país e produto de uma linhagem que vem de Octavio Malta, co-fundador da Última Hora e um dos mais brilhantes profissionais da grande imprensa quando ela podia ser chamada deste nome.
    Mas o último artigo de Dacio aqui publicado, sobre o impeachment de Bolsonaro, ficou no meio do caminho.

    Ele tem toda razão ao afirmar que Bolsonaro merece o impeachment diante da atitude do genocida, expulso do exército como terrorista, frente à Covid-19. Mas oscila quando diz que seus outros crimes foram “absolvidos” porque foi eleito em 2018.

    Ora, Bolsonaro não foi eleito sob regras democráticas. Primeiro, beneficiou-se do impeachment irregular de uma presidenta legitimamente eleita. Depois, contou com o apoio sórdido de uma ação judicial conduzida contra Lula pelo seu futuro ministro, hoje “desafeto”, o infecto Sérgio Moro. Qualquer dúvida a respeito desaparece quando se consultam os diálogos trazidos a público pelo “The Intercept Brasil”. Lá se revela o caráter criminoso e parcial com que o Marreco de Curitiba manipulou o processo. Não bastasse isso, Bolsonaro beneficiou-se de uma máquina milionária de mentiras, orientada por assessores americanos e financiada por empresários brasileiros para espalhar fake news contra seus adversários.

    Não fosse tudo isso, Lula teria ganho as eleições com folga ainda no primeiro turno. Até a rampa do Planalto sabe disso.

    Bolsonaro é um presidente fraudulento, ilegítimo, com ou sem covid-19. Um usurpador. Sua trajetória neofascista, misógina, homicida, armamentista, desenvolvida durante 30 anos no Congresso, só se tornou “maioria nominal” graças a expedientes liberticidas e, sobretudo, porque contou com o apoio da elite apodrecida que prefere qualquer coisa, menos governos com algum viés social.

    Sim, estes traços tenebrosos ganham tintas mais carregadas quando ele age como homicida assumido diante de uma pandemia devastadora. Transformou o Ministério da Saúde dirigido por militares desqualificados em um esconderijo de cadáveres.

    Mas isso é apenas o ápice da trajetória de um desequilibrado a serviço do grande capital e seus asseclas na grande mídia, nas Forças Armadas, no Judiciário e no Legislativo. Bando de acólitos anti-Brasil. O conjunto da obra já é mais do que suficiente para expulsar Bolsonaro e sua gangue do poder que ele e sua turma de milicianos tomaram de assalto, pisoteando meios democráticos elementares.

    Paradoxalmente, esse alucinado só está de pé por causa do isolamento que ele tanto ironiza. Estivesse segura de sair às ruas sem colocar em risco a própria vida, a população já teria dado cabo deste excremento. Isto já começou a mudar como mostraram as manifestações de domingo.   

    Este será o curso inevitável dos próximos momentos.

     

    *Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.

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    RICARDO MELO: BRASIL À DERIVA, SALVE-SE QUEM PUDER!

  • Cuiabá nas ruas contra do racismo, o fascismo e o genocídio

    Cuiabá nas ruas contra do racismo, o fascismo e o genocídio

    Da: MediaQuatro especial para os Jornalistas Livres

    Desde de 2019, com as manifestações contra os cortes na educação e a deforma da previdência, Cuiabá não juntava tanta gente nas ruas. E talvez nunca tenha havido tamanho contingente policial, incluindo helicóptero, para o improvável caso de “vandalismo”. Mas era mesmo de se esperar. Afinal, o racismo estrutural brasileiro em uma das capitais mais conservadoras do país exige que se trate os pretos e pretas sempre como potenciais criminosos. BASTA! O país não pode mais conviver e não conseguirá sequer viver como nação integral enquanto houver preconceitos que se refletem em práticas cotidianas e políticas públicas que oprimem e excluem a maior parte da população.

    Texto e fotos: www.mediaquatro.com
    Texto e fotos: www.mediaquatro.com

    Chegamos a um ponto no Brasil que não é mais suficiente não ser racista. É preciso lutar contra o racismo, nas ruas, nas redes, nos campos e nas casas. E a luta antirracista é central na derrubada do governo Bolsonaro e suas políticas genocidas na economia, na segurança pública e na saúde. Foi por isso que, apesar da necessidade de se intensificar o isolamento social, fomos à Praça Alencastro e marchamos pelas avenidas Getúlio Vargas, Marechal Deodoro, Isaac Póvoas e BR 364 para retornarmos à Praça da República sem qualquer incidente.

    Texto e fotos: www.mediaquatro.com

    Assim como em outras cidades e estados por todo o Brasil, em Cuiabá e Mato Grosso os negros e negras são maioria e são exatamente os corpos pretos os mais encarcerados, os pior pagos, os que vivem nos lugares mais distantes, os que mais precisam trabalhar fora de casa durante a pandemia (e muitas vezes sem sequer os equipamentos de proteção adequados) e os que mais são atingidos pela Covid-19. Isso não é uma coincidência. É resultado de quase 400 anos de escravidão formal, que em Mato Grosso também vitimou indígenas em larga escala, e de uma abolição inconclusa que indenizou os “proprietários” de pessoas mas nunca pagou a dívida histórica com quem sente na pele seus efeitos até hoje.

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    É fato que o assassinato do estadunidense negro George Floyd foi o estopim dos protestos antirracistas em todo mundo e também no Brasil, onde houve atos em pelo menos 20 cidades, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Mas por aqui, as mortes do menino Miguel, do adolescente João Pedro e dos jovens em Paraisópolis, só pra citar alguns casos mais representativos nos últimos seis meses, demonstram cotidianamente o que significa ser alvo do preconceito, da polícia e das políticas.

    Texto e fotos: www.mediaquatro.com

    Desse modo, derrubar o governo o quanto antes o governo do fascista que ocupa a presidência é indispensável para conseguirmos combater a epidemia de forma minimamente eficiente. E tirar apenas o presidente não é suficiente, porque seu vice e ministério são igualmente racistas, como está provado em entrevistas antes mesmo das eleições, em pronunciamentos em eventos e na fatídica reunião ministerial.

    Texto e fotos: www.mediaquatro.com

    Enquanto não derrubarmos as políticas estúpidas da “guerra às drogas”, do encarceramento em massa, da concentração de renda, do agronegócio acima da agricultura familiar, não há presente para o país. E enquanto não investirmos em políticas públicas de igualdade racial e de gênero, de proteção às minorias e à diversidade, e de promoção dos direitos humanos a TODOS e TODAS, incluindo a punição de policiais assassinos, milicianos e racistas, não haverá futuro também.

     

     

  • Os camisas negras de Bolsonaro

    Os camisas negras de Bolsonaro

    Mais de 1 milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens foram submetidos ao assassinato e à tortura de forma programada pelos nazistas com o objetivo de exterminar judeus e outras minorias. Nos primórdios da Itália fascista, os camisas negras – milícias paramilitares de Mussolini – espancavam grevistas, intelectuais, integrantes das ligas camponesas, homossexuais, judeus. Quando a ditadura fascista se estabeleceu, dez anos antes da nazista, Mussolini impôs seu partido como único, instaurou a censura e criou um tribunal para julgar crimes de segurança nacional; sua polícia secreta torturou e matou milhares de pessoas. Em 1938, Mussolini deportou 7 mil judeus para os campos de concentração nazista. Sua aliança com Hitler na 2ª Guerra matou mais de 400 mil italianos.

    Perdoem-me relembrar fatos tão conhecidos, ao alcance de qualquer estudante, mas parece necessário falar do óbvio quando ser antifascista se tornou sinônimo de terrorista para Jair Bolsonaro. Os direitos universais à vida, à liberdade, à democracia, à integridade física, à livre expressão, conceitos antifascistas por definição, pareciam consenso entre nós, mas isso se rompeu com a eleição de Bolsonaro. O desprezo por esses valores agora se explicita em manifestações, abraçadas pelo presidente, que vão de faixas pelo AI-5 – o nosso ato fascista – ao cortejo funesto das tochas e seus símbolos totalitários, aqueles que aprendemos com a história a repudiar. Jornalistas espancados pelos atuais “camisas negras” estão entre as cenas dessa trajetória.

    A patética lista que circulou depois que o deputado estadual Douglas Garcia(PSL-SP) pediu que seus seguidores no Twitter denunciassem antifascistas mostra que o risco é mais do que simbólico. Depois do selo para proteger racistas criado pela Fundação Palmares, e das barbaridades ditas pelo seu presidente em um momento em que o mundo se manifesta contra o racismo, e que lhe valeram uma investigação da PGR, essa talvez seja a maior inversão de valores promovida pelos bolsonaristas até aqui.

    A ameaça contida na fala presidencial e na iniciativa do deputado, que supera a lista macartista pois não persegue apenas os comunistas, tem o objetivo óbvio de assustar os manifestantes contra o governo e de açular as milícias contra supostos militantes antifas, dos quais foram divulgados nome, foto, endereço e local de trabalho.

    É a junção dos “camisas negras” com a Polícia Militar, que já se mostrou favorável aos bolsonaristas contra os manifestantes pela democracia no domingo passado em São Paulo e no Rio de Janeiro. E que vem praticando o genocídio contra negros impunemente no país desde sua criação, na ditadura militar, muitas vezes com a cumplicidade da Justiça, igualmente racista.

    Como disse Mirtes Renata, a mãe de Miguel, o menino negro de 5 anos que foi abandonado no elevador pela patroa branca de sua mãe, mulher de um prefeito, liberada depois de pagar fiança de R$ 20 mil reais, “se fosse eu, a essa hora já estava lá no Bom Pastor [Colônia penal feminina em Pernambuco] apanhando das presas por ter sido irresponsável com uma criança”. Irresponsável. Note a generosidade de Mirtes com quem facilitou a queda de seu filho do 9º andar.

    Neste próximo domingo, os antifas vão pras ruas. Espero não ouvir à noite, na TV, que a culpa da violência, que está prestes a acontecer novamente, é dos que resistem como podem ao autoritarismo violento. Quem quer armar seus militantes, e politizar forças de segurança pública, está no Palácio do Planalto. É ele quem precisa desembarcar. De preferência de uma forma mais pacífica do que planejam os fascistas para mantê-lo no poder.

    Por: Marina Amaral, codiretora da Agência Pública

  • É muita Coisa, muito Símbolo!

    É muita Coisa, muito Símbolo!

    “Esse horror que é a morte do menino Miguel é a história com mais símbolos de que eu tenho lembrança:⁣

    A empregada que trabalha durante a pandemia;⁣
    A empregada, mãe solo, que não tem com quem deixar o filho;⁣
    A empregada é negra;⁣
    A patroa é loura;⁣
    A patroa é casada com um prefeito;⁣
    O prefeito tem uma residência em outro município, que não é o que governa;⁣
    A patroa tem um cachorro, mas não leva ele pra passear, delega;⁣
    A patroa está fazendo as unhas em plena pandemia, expondo outra trabalhadora; ⁣
    A patroa despacha sem remorso o menino no elevador;⁣
    O menino se chama Miguel, nome de anjo;⁣
    O sobrenome da patroa é Corte Real;⁣
    A empregada pegou Covid com o patrão;⁣
    A empregada consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré;⁣
    Tudo isso acontece nas torres gêmeas, ícone do processo e verticalização desenfreada, especulação imobiliária e segregação da cidade do Recife;⁣
    Tudo isso acontece em meio aos protestos Vidas Negras Importam;⁣
    Tudo isso acontece no dia em que se completaram cinco anos da sanção da lei que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil; ⁣

    É muita coisa, muito símbolo.”⁣

    Texto por Joana Rozowykwiat (@joanagr) (@JoanaRozowyk)

  • A quem interessa ser profeta do caos?

    A quem interessa ser profeta do caos?

    Por Jacqueline Muniz, Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues
    Imagens de autoria dos Jornalistas Livres, capturadas em protestos, no último final de semana, em São Paulo e na França
    A advertência de não realização de manifestações políticas, fundada no medo e na promoção do pânico social, é um atentado à democracia, uma forma de extorsão de poderes, de dirigismo monopolista das pautas plurais e das reivindicações divergentes de sujeitos que são diversos em cor, classe, renda, gênero, orientação sexual, instrução, etc. A advertência sob a forma de ameaça produz paralisia decisória de lideranças, imobilismo social e lugares resignados de fala, que seguem aprisionados nas redes sociais, na política emoticon do “estamos juntos” até o próximo bloqueio, diante da comunhão de princípios com diferença de opiniões: “você deve ir ao shopping, mas não a passeata”.
    A fabricação de conjecturas apocalípticas e suposições catastróficas com roupagem analítica é um recurso de persuasão de via única, impositiva, que aponta para um sentido hierárquico e, até mesmo autoritário, de quem se acha portador de uma verdade ‘revelada’ sobre os atos políticos e de uma razão superior sobre os fatos da política. A fala profética é uma fala moralista, ilusionista, que, por meio do uso da fé e do afeto, inocula nas pessoas uma culpa antecipada por suas escolhas para desqualificar seus arbítrios e fazê-las rebanho dependente de um guia despachante do juízo final. Este projeto de poder necessita fazer crer que o pessimismo visionário e proselitista é mais real que a própria realidade vivida e que deve fazer parte do cálculo das ovelhas boas e más, dos aliados e opositores de ocasião. A fala profética serve aos senhores da paz, da guerra e do mercado, sem distinção. É um jogo ardiloso do ganha ou ganha em qualquer circunstância ou resultado obtido.
    A quem interessa ser o profeta do caos? Ao próprio profeta que, inventor do jogo do quanto pior melhor, sacrifica seus seguidores feito gado, gasta a tinta das representações com seu próprio manifesto e promove a tensão entre espadas para se manter como o grande  conselheiro conciliador.  
    Os profetas do caos são como uma fênix que ressurgem da crise que criam. Eles se apresentam como proprietários das representações políticas, à direita ou à esquerda, em cima e embaixo. Eles se oferecem como mediadores dos conflitos que provocaram, como tradutores intérpretes na Torre de Babel que criaram entre nós.  A ameaça (do caos, da morte e do cerceamento da liberdade) não serve como advertência. Os profetas do caos produzem o medo, moeda de troca fundamental para a construção de milícias, para vender os seus remédios (previsíveis, amargos e inócuos). Para eles, não importa se os doentes morrem ou vivem, o que importa é que, doentes ou não, consumam suas previsões do passado.
    É notório que as polícias no Brasil têm tradição em policiar eficazmente o entretenimento lucrativo dos blocos de carnaval, shows e aglomerações em campeonatos de futebol. Nesses casos, sua atuação se dá na manutenção do status quo dos públicos, constituída a partir das atividades de contenção e dispersão das multidões. Já para o controle de pessoas que ocupam o espaço público sob a forma de protestos de todos os matizes políticos, apesar de ser um fenômeno relativamente recente e não haver protocolos policiais escritos e validados, sabemos que esses eventos se tornam encenações, nas quais janelas são abertas para oportunistas de todas as ordens, para acertos de contas da polícia dos bens com a polícia do bem, incluindo os ‘caroneiros’ de manifestação que comparecem por motivos completamente alheios às pautas dos protestos.
    Nesses espetáculos públicos que encenam os jogos da política aprendemos coisas muito básicas, sejamos nós manifestantes ou espectadores: sempre haverá a presença de agentes infiltrados (que ajudam na contenção) e de provocadores, para providenciar a dispersão. A infiltração de agentes de inteligência por dentro dos movimentos sociais remonta uma antiga estratégia estadunidense da década de 1960. Ou seja, muito antes do surgimento dos Black Bloc. Nos últimos 60 anos, acumulou-se um aprendizado sobre o uso do espaço
    público relativo ao círculo do protesto (aglomeração, deslocamento,  ato de encerramento e dispersão) que permite que os movimentos saibam lidar com esses elementos internos. 
    Neste mesmo período aprendemos, também, que o que torna legítimo um protesto não é a quantidade de indivíduos reunidos em um território específico por um período de tempo determinado, mas os modos de ocupação do espaço público e a construção coletiva de uma agenda política que os mobilize e tenha impacto na sociedade. A produção de dossiês intimidatórios, com a participação de agentes públicos, também não é novidade. Os constrangimentos da exposição de dados acabam por jogar na lama do “tribunal digital” os adversários, fortalecendo a promoção de linchamentos virtuais, de direita ou de esquerda.
    O governo Bolsonaro não é o único que tem disseminado o medo para sabotar os mecanismos de cooperação e mobilização sociais, substituindo práticas de coesão por coerções e cruzadas moralistas vindas de cima, de baixo e ao redor. Discursos do medo contra ou a favor de Bolsonaro são péssimos conselheiros porque dão a #Elenão um tamanho e uma agilidade política irreal, retirando-o do isolamento político em que se encontra para nos fazer acreditar que, quando chegarmos às ruas, imediatamente um cabo e um soldado fecharão o Congresso, o STF e tirarão as emissoras e os portais de internet do ar. O medo transforma Bolsonaro num bicho papão, num monstro mítico incontrolável que atira hordas de zumbis (com cabelos tingidos de acaju) contra todos nós.
    O medo disseminado faz com que as pessoas vejam gigantes onde há sombras e abram mão de seus direitos e garantias em favor de um ‘libertário do agora’ que prometa proteção. Mas o profeta-liberador de hoje será o seu tirano de amanhã!
    O rigor científico não permite que nós, pesquisadores, determinemos como os movimentos sociais devem se comportar, nem que sejam pautados por oráculos que anunciam profecias que se autorrealizam. A contemporaneidade produziu os ativismos acadêmicos, mas eles não devem substituir jamais a liberdade dos sujeitos de decidir suas agendas, nem servir de chofer dos movimentos sociais em direção à “Terra sem Males”, um mundo idílico sem conflitos e, por sua vez, sem a política. A ciência pode contribuir com diagnósticos da realidade e oferecer alternativas que considerem, inclusive, que a negação dos conflitos monopoliza o debate e as representações, obscurecendo as negociações dos interesses em disputa. Quando a decisão científica está acima da pactuação social ela deixa de ser ciência e passa a ser doutrina, retira da sociedade a responsabilidade pelas escolhas que faz, para o bem e para o mal.
    Ao  olharmos a história vemos que os discursos de “lei e ordem” são utilizados sempre a serviço dos interesses do Estado e seus grupos de poder. Viver sob o jugo da espada não é novidade para as pessoas para quem o isolamento social é uma prisão histórica dos direitos de cidadania, e não um privilégio de classes. A juventude, principalmente a negra, conhece de perto a violência policial, e sabe que nem em casa está protegida.
    Sobre as autoras do texto: 
    JACQUELINE MUNIZ,antropóloga, professora da UFF.
    ANA PAULA MIRANDA, antropóloga, professora da UFF
    ROSIANE RODRIGUES, antropóloga, pesquisadora do INEAC/UFF.
  • Brasil e EUA: dois experimentos sociais falidos

    Brasil e EUA: dois experimentos sociais falidos

    Os episódios recentes de protestos no Brasil e nos EUA não deveriam surpreender. É compreensível que, em meio ao surto virótico, milhares de pessoas ocupem as ruas nas duas maiores nações do continente americano. A escalada de confrontos e violência reflete problemas estruturais em ambos os países que os caracterizam, até certo ponto, como “casos únicos” no mundo. Não que protestos violentos demandando igualdade, justiça social e melhores condições de vida não aconteçam em outras partes do globo. Mas Brasil e EUA possuem uma combinação maléfica entre passado e presente que os empurra a um conflito interminável caso mudanças profundas na economia e sociedade não ocorram.

    A similaridade entre os dois países torna insustentável a convivência pacífica em sociedade, conforme demonstrado pelo cotidiano violento e cruel aqui e acolá.  As diferenças entre Brasil e EUA não podem obliterar características comuns à formação e consolidação de suas estruturas econômica e social. É importante insistirmos que ambos nasceram da expansão comercial europeia entre os séculos XV e XVIII calcada no escravismo e que o capitalismo, em sua face mais livre e, portanto, selvagem, reina nas duas maiores economias do Novo Mundo. Forjados na crueldade do trabalho escravo e vitaminados pelo capitalismo sem peias, a guerra entre “vencedores” e “perdedores” é uma constante nas duas localidades. 

    À base fundante excludente que, desde o início, apartou os proprietários de terra brancos dos negros, indígenas, mestiços e brancos pobres, acrescentou-se a competição desregulada no mercado de trabalho e no sistema econômico como um todo, ausente da devida intervenção estatal necessária à amenização das injustiças e distorções oriundas da dinâmica capitalista. O resultado não poderia ser outro: dentre as nações industrializadas, Brasil e EUA possuem as maiores desigualdades econômicas e sociais. Em ambas as nações, riqueza e pobreza têm cores.  

    Repressão e violência nos EUA e no Brasil: o legado do escravismo e do capitalismo feroz
    Repressão e violência nos EUA e no Brasil: o legado do escravismo e do capitalismo feroz

    A desigualdade do ponto de partida foi aprofundada pela desenfreada, injusta e não-meritocrática concorrência capitalista, ampliando a distância entre ricos e pobres, brancos e negros, incluídos e excluídos. Os favorecidos inicialmente saíram na frente na corrida com um acúmulo de riqueza e propriedades e foram turbinados pelas políticas discriminatórias de educação, saúde, habitação, cultura, direitos e afins… o resultado é que ficou impossível, via trabalho, esforço ou mérito, alcançar os privilegiados. O Abismo ficou deveras grande. O capitalismo prometeu prosperidade mas entregou disparidade. Os ricos já deram voltas e voltas em cima dos excluídos na corrida da luta pela sobrevivência cotidiana. Impossível alcançá-los correndo. A única maneira é mudar o curso da corrida. Dar meia volta e cruzar a linha de chegada pelo outro lado. O problema é que na inversão, choca-se com quem está vindo na direção oposta. Ou esses viram e saem correndo para o mesmo lado, ou serão atropelados. Necessário lembrar que nessa colisão o número, a quantidade, leva vantagem. Ou toda a sociedade caminha para o mesmo lado, ou a violência continuará na ordem do dia.    

    O debate precisa, entretanto, ir além. Reivindicamos mesmas oportunidades, igualdades de condições. Mas igualdade de condições para que? Para competir? Para participarmos da corrida? Para continuarmos moendo pessoas através da concorrência por dinheiro? Mas será que precisa haver corrida? Será que precisamos competir e aniquilar o próximo em 2020?

    O passado e o presente dos dois países resultaram em um sistema no qual, independente da vontade individual, não importando quem ocupa determinada posição, os valores capitalistas, a exploração e a exclusão são permanentes.

    Criou-se um sistema no qual o narcisismo, o individualismo, o egoísmo, a competição tresloucada, o enriquecimento ilimitado, o consumo exacerbado e o culto ao corpo imperam. Tais atributos não são, obviamente, predicados brasileiros e estadunidenses, mas, sem dúvida, avançaram mais nesses dois países. E nesse sentido a fala de Cornel West, viralizada nas redes sociais, caminha nessa direção quando afirma que “Estamos testemunhando a América como um experimento social falido”.

    O sistema precisa mudar. Não adianta substituir um homem por uma mulher como CEO de um banco, se ela continuar ganhando 400 vezes mais do que o auxiliar de almoxarifado. Não adianta substituirmos um modelo branco por um modelo negro na propagando da Zara se a lógica consumista de destruição dos recursos terrestres permanecer. Não adianta darmos educação de qualidade se o objetivo é trucidar o próximo na entrevista de emprego. É inútil substituirmos as peças se o jogo continua o mesmo. Não se trata de indivíduos melhores ou piores, bons ou maus. Trata-se de relações perniciosas derivadas do próprio sistema; um sistema nocivo ao bem-estar coletivo que precisa urgentemente mudar.

    Temos por obrigação reconhecer que falhamos como sociedade. Permanentemente, excluímos mais que incluímos; destruímos mais que construímos. É preciso mudar a lógica do sistema, seus valores. Enaltecer o coletivo, o bem-estar, o amor ao próximo e não a competição, o individualismo, a diferença, a desigualdade, o “mérito”. É preciso libertar a humanidade do jugo mercantil. O momento é propicio para reflexões e atitudes que realmente mudem o sistema, transformem nossas vidas. Não dá mais para vivermos num mundo onde a maioria sofre. É insustentável. É impossível. É imoral. Uma bomba relógio.

    O ideal é que o nascimento de uma nova sociedade ocorra através das vias democráticas, sem violência. Mas parece que a democracia não funciona no mundo do livre-mercado. As histórias do Brasil e dos EUA mostram que no capitalismo selvagem, sem a devida mediação/proteção econômica e social do Estado, os interesses da maioria são relegados ao esquecimento. Isso é sentido na pele pelos excluídos. Que as forças democráticas se unam a favor de um mundo novo pois, é bom relembrar, a violência é a parteira da história.

    Daniel de Mattos Höfling

    é doutor em Economia

    pela Unicamp

    (Universidade Estadual de Campinas)

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