Por Luiza Rotbart e Silmara Silva | Jornalistas Livres
O imóvel que supostamente pertence ao contrabandista Law Kin Chong, foragido da polícia, hoje é a habitação de 100 pessoas, que há um ano trabalham duro na revitalização do espaço. São 43 famílias compostas por 10 idosos, 25 crianças, 7 adolescentes, 49 mulheres e 13 homens adultos.
Os jornalistas livres fizeram a denúncia no mês passado sobre a situação do imóvel e das famílias.
A juiza Andrea de Abreu e Braga, da 10ª Vara Cível de São Paulo, não se sensibilizou com a causa e os apelos dessas famílias, disse: “aqui não é lugar para caridade, se querem caridade procurem uma freira”.
Familias da ocupação Almirante Negro, do Parque Dom Pedro protesto em frente ao TJSP. 28.22.2019. Por Fotos: Silmara Silva | Jornalistas Livres
Somente após um ato que ocupou a Praça da Sé e a frente do Tribunal de Justiça de São Paulo na tarde de ontem, 28.11.2019, o Desembargador Almeida Sampaio, determinou a suspensão da reintegração de posse e declarou a nulidade absoluta dos atos processuais. A determinação do desembargador Almeida Sampaio impediu que mais de cem pessoas fossem para as ruas de São Paulo.
Suspenso o despejo depois de apelos e muita luta
A reintegração de posse (despejo) contra os moradores do local, estava marcada para domingo 01.12. A juiza Andrea de Abreu e Braga, da 10ª Vara Cível de São Paulo, foi irredutível na sua decisão, o que fez com que os moradores recorressem ao Tribunal de Justiça para reverter a decisão.
Os moradores haviam feito apelo também ao Vereador Suplicy, que enviou carta à Juiza este semana, veja a íntegra.
Excelentíssima Juíza Dra. Andrea de Abreu e Braga,
Fui procurado na semana passada pelos moradores da Ocupação Almirante Negro, cuja desocupação do imóvel está em discussão nos autos do processo 1026859-66.2019.8.26.0100, sob a responsabilidade de Vossa Excelência. Eles relatam que a operação de reintegração de posse estaria agendada para o próximo domingo (1º) e que não tiveram qualquer atendimento social e habitacional do Poder Público até o momento.
Como Vereador, tenho sido procurado semanalmente por diversas ocupações da cidade solicitando apoio para a articulação de atendimento às famílias que sofrerão algum processo de remoção. Inclusive, sou autor do Projeto de Lei nº 200/2019, que justamente estabelece um Protocolo Unificado para Remoções na cidade de São Paulo, e prevê, entre outros pontos, a articulação de serviços e equipamentos diversos para minimizar os danos sociais (e até humanitários) às pessoas que sofrem algum processo de remoção. Além do dilema da moradia, essa população geralmente já está em uma situação de vulnerabilidade grande, o que se agrava com uma medida dessas, principalmente para as famílias que têm filhos em idade escolar.
No presente caso, quando procurado, minha primeira atitude foi conversar com o Núcleo de Mediação de Conflitos da Secretaria Municipal de Habitação, que informou já ter encaminhado o relatório produzido pela SEHAB, solicitando, ao fim, a prorrogação do prazo para cumprimento da medida de reintegração de posse. Minha manifestação vai ao mesmo sentido. Tenho visto exemplos concretos do quanto uma remoção sem qualquer suporte do Poder Público agrava ainda mais situação de vulnerabilidade e pobreza de famílias que não têm moradia. Embora o direito de propriedade deva ser resguardado, é muito importante que os danos de uma medida como essa sejam reduzidos ao máximo. É importantíssimo para o desenvolvimento das crianças e adolescentes da ocupação que possam bem concluir seu ano letivo escolar, o que acontece em escolas da região.
Em outros casos em que meu gabinete atuou, tivemos êxito na articulação com juízes e promotores, a fim de encaminhar o caso para os cuidados do GAORP, que detém de maior força institucional para viabilizar esse atendimento social nesses casos. Diante disso, questiono a possibilidade de que seja adotado encaminhamento semelhante no presente caso, ou que, pelo menos, seja adiada a medida a fim de que se conclua o ano letivo das crianças e adolescentes e de que essas famílias não tenham que passar as festas de fim de ano na rua.
Coloco-me à disposição, dentro da competência institucional, para colaborar com o que for preciso em prol da boa solução dessa medida de remoção. Agradeço imensamente sua atenção e na oportunidade manifesto votos de elevada estima e distinta consideração.
Atenciosamente,
Eduardo Matarazzo Suplicy
Vereador
APELO DOS MORADORES
Os moradores também enviaram apelo, em carta aberta aos membros do judiciário, que finalmente se sensibilizaram, revertendo a decisão do despejo que estava marcado para o próximo domingo.
Abaixo, a nota que foi enviada pela comissão de moradores da Ocupação Almirante Negro:
Excelências
Do judiciário, do executivo, do legislativo e das forças de segurança, não deixem a injustiça prosperar.
Somos 43 famílias compostas por 10 idosos, 25 crianças, 7 adolescentes, 49 mulheres e 13 homens adultos. Ao todo, mais de 100 pessoas. Trabalhamos duro para sustentar as nossas famílias e por absoluta falta de condições materiais e desprezo do poder público, não encontramos meios para pagar aluguel. Vivemos com dignidade, mas em estado de necessidade. Frente a essas condições, em 18 de Abril de 2018 ocupamos o imóvel abandonado na Rua Carlos de Sousa Nazaré, 630 – Parque Dom Pedro II. Encontramos o prédio completamente destruído, sem fios elétricos, sem encanamentos, nem portas e janelas, pias, vasos sanitários. Servia como ponto de consumo de drogas. E por vezes, ocorria assassinato, e até um corpo foi encontrado na caixa d’agua. Possuía muito lixo, ratos, pernilongos criadouros de dengue. Enfim, era câncer um urbano.
De acordo com o código civil art. 1.228 é uma propriedade ilegal e abandonada. Seu suposto proprietário é o senhor Law Kin Chong, um fora da lei, contrabandista, constantemente às voltas com a polícia e a justiça. Entendemos que essa propriedade, além de abandonada, foi adquirida por recursos ilícitos. Não foi adquirida por execução do trabalho, mas pelas atividades do contrabando. Observando estas condições, ocupamos o imóvel e reconstruímos tudo: Alvenaria, elétrica, hidráulica, portas. Deixamos em condições de acomodar nossas famílias. Já moramos ali por mais de 1 ano. Trabalhamos no entorno e nossos filhos frequentam as escolas da região.
Entretanto, a juíza Andrea de Abreu e Braga, da 10ª Vara Cível de São Paulo, concedeu a reintegração de posse (despejo) contra todos os moradores do local. Violou nossos direitos assegurados pela nossa Constituição, pela Convenção de Direitos Humanos, pela Bíblia que tem a moradia como direito sagrado. Violou ainda o código civil que estipula requisitos para o direito à propriedade. Obedeceu a um pedido da esposa do injusto possuidor do prédio. E mais, solicitou forças policiais armadas para arrancar as famílias e suas crianças de seus lares. Para completar, se recusou a dialogar com os moradores. Disse que, “em 18 anos de carreira, nunca falou com populares, sempre por advogados”. Revelando assim, seu total desconhecimento da vida de nosso povo. E por esse comportamento da juíza, fica comprovado que o judiciário não faz justiça.
Por isso estamos aqui, para que as autoridades anulem essa sentença injusta e desumana. Para que respeitem nosso ordenamento jurídico e assegurem os nossos direitos. Queremos continuar morando no local porque deixamos o prédio apropriado para acolher as nossas famílias que correm o risco de irem parar nas ruas de São Paulo. Que o imóvel seja desapropriado e sejam abertos programas de financiamento de moradia popular que contemplem os trabalhadores de baixa renda, permitindo que as famílias continuem morando no local. Não podemos aceitar que as autoridades nos tratem como se fossemos sacos de lixo, para proteger os bens de um contrabandista.
São Paulo, 28 de novembro de 2019
Comissão dos Moradores da Ocupação Almirante Negro
Reportagem e vídeos Luiza Rotbart | Jornalistas Livres
Se não houver a intervenção de um desembargador, 43 famílias incluindo 32 crianças e adolescentes, 10 idosos e 4 pessoas com doenças graves, uma delas com câncer terminal, correm risco de irem parar nas ruas!
A juíza Andrea de Abreu e Braga, da 10° Vara CÍvel de São Paulo, assinou a emissão da reintegração de posse não levando em consideração que as famílias não têm onde morar e que a perda do endereço interfere no final do ano letivo das crianças e compromete o tratamento médico dos enfermos.
A Ocupação Almirante Negro instalou-se no edifício de oito andares, situado na rua Carlos de Sousa Nazaré 630, centro de São Paulo, desde 15 de abril de 2018. O imóvel que anteriormente já foi locado para a Prefeitura e abrigou o projeto Braços Abertos. De propriedade de Law Kin Chong, empresário sino-brasileiro, acusado e réu em casos de contrabando, o imóvel encontrava-se desocupado e completamente depredado. As famílias organizaram-se e investiram cerca de 50 mil reais para reformar a edificação, providenciando fiação elétrica, encanamento e instalações de cozinhas, banheiros e janelas.
Veja o depoimento do Pastor Ricardo que acompanha as famílias: O Pastor Ricardo da Igreja Metropolitana de São Paulo, que convive com as famílias da ocupação Almirante Negro a mais e um ano, faz um apelo emocionado à juíza que assinou reintegração de posse de 43 famílias.
A juíza Andrea de Abreu e Braga, não aceitou os recursos da equipe técnica, como a denúncia de abuso ocorrido no último dia 11/10, quando a advogada do proprietário, acompanhada de forte aparato policial, quis mobilizar o despejo forçado das famílias, sem possibilidade de defesa, encostando vários caminhões na porta do edifício e alegando risco de desabamento, sem apresentação de laudo.
Nesse momento crucial, a única possibilidade de reverter o despejo será através da intervenção direta do Ministério Público, uma vez que a Juíza não aceitou os recursos apresentados nem o apoio do Conselho Tutelar.
AS HISTÓRIAS DE VIDA QUE NÃO ESTÃO SENDO VISTAS:
Conheça um pouco mais de cada história de vidas das moradoras, na sua maioria mães, que tem os filhos matriculados e estudando na região:
Rose, 4 filhas:
Liliana é uma das mães, com 4 filhos, que mora no imóvel, e não tem outra opção de sobrevivência. Ela é imigrante da Bolívia e seus 4 filhos são brasileiros.
Kettia é uma das mães que moram no imóvel, ela veio do Haiti, e tem uma filha com problemas cardíacos.
Paula é mãe de 3 filhos, mora no imóvel, e não tem outra opção de sobrevivência “Se eu tiver que pagar aluguel eu não como”.
Valéria é mãe de 2 filhos. Seu filho de 15 anos acabou de ganhar uma bolsa de estudo numa escola próxima a ocupação.
Lidiane é baiana, mãe de 7 filhos, 5 moram com ela em São Paulo. Ela não tem outra opção de sobrevivência “Como vou pra rua com 5 crianças?”
Estima-se que São Paulo possui atualmente, mais de 206 ocupações que abrigam cerca de 45 mil pessoas. A perseguição aos Movimentos de Luta por Moradia coloca em risco a vida de milhares de pessoas e crianças atualmente abrigadas em ocupações e provocará o aumento de pessoas em situação de rua, que já beira a mais de 17 mil nas ruas da capital.
Bandeira de Frente de Luta por Moradia; Por Luiza Rotbart ” Jornalistas Livres
A FLM – Frente de Luta por Moradia, é uma junção de Coletivos e Movimentos Sociais unidos pela construção de políticas públicas habitacionais, que obriguem o poder estatal a cumprir o dever constitucional de garantir o direito à moradia e demais direitos sociais garantidos na Constituição Federal e Declaração dos Direitos Humanos.
Imagens da festa do dia das crianças, na ocupação Almirante Negro ameaçada de reintegração de posse. Fotos Luiza Rotbart
Um post vigarista, calunioso, falso, 171 e mentiroso, que circulou pelas redes de discípulos de Olavo de Carvalho foi o alicerce com que se construiu o mais novo monumento à infâmia: a perseguição aos movimentos trabalhadores sem-teto, levada a cabo pela Polícia Civil paulista e pelo promotor de justiça criminal Cassio Roberto Conserino, do Ministério Público do Estado de São Paulo.
No dia 11 de julho, o promotor Conserino denunciou à Justiça 19 diferentes lideranças ou membros de movimentos de luta por moradia, entre os quais Carmen Silva Ferreira e Preta Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). Segundo o promotor, todas essas pessoas fazem parte de uma suposta “organização criminosa”. No português claudicante que lhe é peculiar, Conserino diz que os membros das diversas ocupações da cidade “associaram-se entre si”, ainda que informalmente, “com o objetivo de obter direta e indiretamente vantagens de cunho econômico, mediante a prática de incontáveis extorsões”.
O que se lerá a seguir é o modo como uma Fake News foi usada pela polícia civil de São Paulo e pelo promotor Cassio Conserino para arrancar pessoas inocentes de suas vidas, privando-as violentamente de liberdade e tentando lançá-las no umbral da desonra.
O promotor Cassio Conserino “contextualizou” assim, a denúncia que apresentou no dia 11 de julho à Justiça:
“Apurou-se que, após o incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, ocorrido no dia 1º de maio de 2018, localizado no Largo do Paissandu com a rua Antonio de Godoy, centro de São Paulo, com várias mortes, aportou, primeiramente, na Delegacia Geral de Polícia –DGP que, posteriormente, encaminhou ao núcleo de Divisão de Investigações Gerais –DIC—do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado –DEIC–, uma missiva que recebeu o número de protocolo 261/18 na DIG dando conta que naquele edifício várias famílias pagavam aluguel de R$ 150,00 a R$ 400 aos coordenadores do Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM) e quem atrasava o aluguel era expulso do prédio, quer através de violência, quer através de ameaça, entre outras irregularidades. Enuncia-se que em pese (sic) a denúncia estar digitada, em manuscrito constou o nome Ixxx Rxxxx, CPF 5.xxx.xxx-x e, provavelmente, o seu telefone, o de número 9xxxx-xxxx, com a seguinte advertência: ISSO OCORRE EM TODOS OS PRÉDIOS INVADIDOS – FLS 16/17.”
Jornalistas Livres ocultam o nome do “denunciante”, o número do seu documento e o telefone dele, porque, como se verá, Ixxx Rxxxx é apenas um “laranja” da esgotosfera de extrema direita.
O texto é claríssimo: a investigação iniciou-se após o recebimento de uma missiva digitada, na qual constava o nome “Ixxx Rxxxx”.
Aqui está a tal missiva, que foi anexada à denúncia apresentada pelo promotor Cassio Conserino.
Tão importante é a tal missiva de Ixxx Rxxxx que, à página 38, o promotor Cassio Conserino requer à autoridade policial:
“Deverão (sic) localizar, qualificar e apresentar o endereço do suposto autor da denúncia de fls. 16, Ixxx Rxxxx para fins de possível oitiva”.
Jornalistas Livres fizeram o trabalho que o promotor pediu para a polícia e localizaram Ixxx Rxxxx, que mantinha um escritório de certificação de pedras preciosas no centro de São Paulo.
Ocorre que uma simples busca pelo texto, na internet, mostra que a tal missiva de Ixxx Rxxxx não passa de um print de post publicado na chamada deepweb, compartilhado por várias páginas de extrema direita:
Como se vê, trata-se do mesmo texto enviado para a polícia, que ora surge como sendo de autoria de Victor Grinbaum, ora de uma pessoa que se identifica como “M.”
De todo modo, trata-se de “missiva” sem qualquer laivo de credibilidade, porque mero print de publicação oportunista, surgida no rastro da tragédia com o edifício Wilton Paes de Almeira, que visava unicamente criminalizar os movimentos de moradia honestos, colocando a todos no mesmo balaio imoral dos exploradores da miséria humana.
Victor Grinbaum se apresenta como jornalista e representante Comercial, atuando no Rio de Janeiro, Brasil. Ele já foi banido do facebook por publicar baixarias, palavrões e fakenews.
Trata-se de discípulo de Olavo de Carvalho, auto-denominado filósofo, também um boquirroto xingador, de ultra-direita, capaz de se referir ao ex-titular da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro, o ministro Santos Cruz, general de divisão da reserva do Exército Brasileiro, ex-comandante das forças da ONU no Haiti e no Congo, ex-secretário Nacional de Segurança Pública e ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência do Brasil como “politiqueiro de merda”, “um nada” que quer “controlar a internet”.
Victor Grinbaum é o sujeito que escreve pérolas como esta: “Arte Contemporânea é o meu Cocô”
E o promotor Conserino leva a sério essas besteiras! Não é à toa.
Cassio Roberto Conserino, autor da denúncia, foi um dos promotores que apresentaram a denúncia criminal sobre o tríplex do Guarujá, atribuído ao ex-presidente Lula, transformando-o em réu. Anticomunista militante, em março desse ano, Conserino foi condenado a pagar indenização de R$ 60 mil por danos morais a Lula por causa de um post no Facebook em que se referia ao ex-presidente como “encantador de burros”, expressão que o juiz Anderson Fabrício da Cruz, da 3ª Vara Cível de São Bernardo do Campo, em São Paulo, disse tratar-se “de conteúdo ofensivo, pejorativo e injuriante”, conforme “deveria ser do conhecimento de um experiente integrante do sistema de Justiça”.
No caso dos movimentos de moradia, o promotor Conserino baseou a denúncia no inquérito policial que tinha como propósito investigar responsabilidades pelo incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por pessoas sem casa, no dia 1º de maio de 2018. Na tragédia, sete pessoas perderam a vida. O Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), dirigido por Ananias Pereira dos Santos, era quem coordenava aquela ocupação.
O problema é que o inquérito e depois a denúncia do promotor Conserino, em vez de apurar as irregularidades que por ventura existissem no prédio sinistrado, resolveram mover uma cruzada contra todos os movimentos de moradia que atuam no centro da cidade de São Paulo.
Estariam a serviço da especulação imobiliária? Dos proprietários de imóveis vazios que ficam anos e anos sem pagar IPTU, cheios de lixo, focos da criminalidade, de ratos e doenças?
Conserino denuncia várias lideranças, entre as quais, como dito acima, as lideranças do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), por supostamente extorquir, mediante violência, moradores pobres das ocupações. Se pelo menos tivesse se dado ao trabalho de andar alguns quarteirões entre o Fórum e a Ocupação 9 de Julho, dirigida por Carmen Silva Ferreira, o promotor anticomunista militante teria se surpreendido com a organização, a limpeza, a habitabilidade de um prédio que até três anos atrás era apenas um depósito de lixo, doenças e ratos (fora os dependentes químicos que utilizavam o local para consumir drogas).
O prédio já foi inspecionado pela Prefeitura e até premiado internacionalmente por sua atuação na solução do problema de moradia em São Paulo. Mas, para o promotor anticomunista militante, todos os gestores e movimentos seriam, como diz o povo, “farinha do mesmo saco”.
Ocorre que os movimentos populares por moradia são diversos. O próprio secretário de habitação de São Paulo, Fernando Chucre, sabe disso. À época do incêndio do Wilton Paes de Almeida, por exemplo, declarou que aquele grupo que o coordenava “não participa da política habitacional, como os demais movimentos que, inclusive, são parte da solução desse problema”. E na semana passada, em depoimento aos Jornalistas Livres, Chucre afirmou sobre Carmen Silva:
“Ela é uma mulher extremamente segura e envolvida com o movimento que administra. Eu tenho muito respeito por ela.” E não só.
Chucre apontou que “o movimento de Carmen conseguiu o retrofit [reforma de imóvel antigo] para o Hotel Cambridge”. De fato, agora renomeado como Residencial Cambridge, o imóvel ganhou edital para financiamento da Caixa Econômica Federal, dentro do programa Minha Casa Minha Vida-Entidades. A obra segue sob severas e constantes fiscalizações do poder público. Importante dizer: ao contrário do que imaginam os críticos dos movimentos sociais por moradia, nada vem de graça. Todos os futuros moradores vão pagar pelo financiamento que, por sinal, já colabora com os impostos da cidade ao arcar com custos de IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano.
DEPOIMENTOS ANÔNIMOS
A denúncia do MP ancora-se em mais inconsistências, além da fake news apontada. É um tal de depoimentos anônimos e interceptações telefônicas que, coisa gravíssima, provam que havia discussões entre vizinhos! É isso o que o promotor cita à guisa de provar que todos os dirigentes dos movimentos de moradia extorquem dinheiro dos moradores “mediante grave ameaça e com o intuito de obter para si indevida vantagem econômica”. Carmen já foi acusada desse mesmo crime e foi inocentada em 2018, porque ficou comprovado que as pequenas contribuições pagas pelos moradores das ocupações que ela dirige (R$ 200 por mês de cada família) são revertidas em melhorias nos imóveis ocupados.
Além disso, a denúncia do promotor é incompetente e inventiva. Por exemplo, diz que as ocupações são habitadas por “estrangeiros em sua maioria”, um erro crasso, sanável com meia hora de trabalho sério. Acusa o movimento de Carmen Silva Ferreira, o MSTC, de estar por detrás da ocupação do Cine Marrocos, fechada em 2016 depois de se terem encontrado armas e drogas no poço do elevador. Ali quem atuava era o Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS), mas a letrinha dissonante não incomodou o promotor anticomunista militante. Carmen nunca nem sequer pôs os pés no Cine Marrocos. Se tivesse conversado com o delegado de polícia, Conserino teria evitado o vexame de confundir movimentos tão diferentes (ou será que esse é mesmo o propósito?). E há várias mentiras como essa na acusação, revelando, mais uma vez, o caráter persecutório das denúncias do promotor anticomunista militante Cassio Conserino.
Entre as 19 prisões pedidas pelo promotor, quatro já estão sendo cumpridas: a da cantora, atriz e produtora cultural Preta Ferreira, formada em publicidade, do educador Sidney Ferreira, ambos do MSTC, e de Ednalva Silva Franco Pereira e Angélica dos Santos Lima, do Movimento de Moradia para Todos (MMMT). Todos negros e pobres.
O Jornal Nacional de segunda-feira (14/5), dedicou um minuto e onze segundos à morte de 58 palestinos num protesto contra o reconhecimento americano de Jerusalém como capital de Israel. A entrevista ao vivo com o técnico da seleção brasileira Tite durou onze minutos e oito segundos. A desproporção já permitiria inferir a escala de valores ($$$) da Globo. Mas tem mais. Logo depois da abertura do telejornal, como se grande furo fosse, a apresentadora Renata Vasconcellos disse: “O Jornal Nacional teve acesso a conversas gravadas em que a coordenadora de um prédio invadido no centro de São Paulo cobrou dinheiro dos moradores, e com ameaças.”
Os flagelados do incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida ainda jazem ao relento na praça da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ao pé de uma escultura dramática, que mostra uma mulher negra, seminua, oferecendo o peito farto de leite ao bebê branco. Os cadáveres dos gêmeos Wendel e Werner, de apenas 10 anos, negros filhos da auxiliar de limpeza Selma Almeida da Silva, negra também, desaparecida nos escombros, ainda nem foram enterrados, e o Jornal Nacional já se assanha. Em vez de responsabilizar o poder público, que ignorou laudos e mais laudos atestando que o prédio do Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, estava condenado, lança-se contra o movimento que luta por moradia. Culpa as vítimas pela sua tragédia.
O principal telejornal da Globo de Ali Kamel, diretor geral de Jornalismo e Esportes, autor do livro “Não Somos Racistas” (aham, só que não!), promoveu o passe de mágica que fez desaparecer os flagelados, os mortos, os desaparecidos do prédio sinistrado no dia 1º de Maio (não mereceram nenhuma fração de segundo do telejornal). Talvez porque, se continuasse a falar sobre o assunto, teria, inevitavelmente, de mostrar as fotos em que o chefão do edifício que desabou, Ananias Pereira, aparecia, alegre e sorridente, há um ano, ao lado do ex-prefeito e pré-candidato a governador de São Paulo pelo PSDB, João Doria Jr., durante comemoração do aniversário do atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), que também posou com ele.
Ananias Pereira é dirigente do autodenominado Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), responsável por sete ocupações de prédios no centro de São Paulo, uma delas sendo a do prédio que ruiu. Afoito como sempre, o ex-prefeito João Doria Jr., fez-se de esquecido sobre a festa de aniversário de Covas e sentenciou: “O prédio foi invadido e parte desta invasão financiada é ocupada por uma facção criminosa”. Ananias, ressalte-se, foi à festa de Covas como convidado, e não como penetra.
A fala de Doria visava a esconder as responsabilidades da Prefeitura na tragédia.
Doria, o gestor das mil e uma fantasias, precisava mesmo achar um bode expiatório. Documento da Secretaria Municipal de Licenciamento, datado de 26 de janeiro de 2017, gestão Doria, apontava os seguintes problemas no prédio Wilton Paes de Almeida:
Ausência de extintores;
Sistema de hidrantes inoperante;
Ausência de mangueiras;
Ausência de luzes de emergências;
Ausência de sistema de alarme;
Instalações elétricas irregulares: fios sem isolamento adequado e expostos, além da entrada de energia improvisada;
Elevadores inoperantes e fechados por tapumes;
Ausência de corrimão nas escadas;
Instalações do sistema de para-raios não puderam ser avaliadas, porque o acesso estava bloqueado.
Depois de apontar tantas falhas, o documento concluía: “A edificação não reúne condições mínimas de segurança contra incêndio.” Mesmo assim, o poder público não tomou providência alguma para atender as famílias que se encontravam sob risco de tragédia iminente e que de lá não saíram por absoluta falta de opção. Ou alguém acha que é melhor dormir na rua?
Agora, que há mortos, feridos, desaparecidos, a TV Globo opera para ocultar a responsabilidades do poder público (de Doria principalmente, porque era o prefeito até o dia 06 de abril de 2018, cargo ao qual renunciou para disputar o governo do Estado de São Paulo pelo PSDB). Para isso, lança mão de acusações falsas e infundadas contra movimentos sociais. A primeira e mais surrada acusação é a de que os movimentos por moradia são associados à facção criminosa Primeiro Comando da Capital – foi isso o que fez João Doria. Para dar foros de realidade a essa acusação, o procedimento tem sido denunciar a cobrança de taxas de contribuição nas ocupações. (ninguém explica o que tem a ver uma coisa com a outra, mas serve para lançar um tsunami de suspeitas sobre todos os movimentos de moradia).
O alvo da denúncia, entretanto, não foi Ananias, o “amigo de Doria e Covas”, que mantinha famílias em situação de extrema vulnerabilidade dentro de um prédio bagunçado, com fios desencapados, sem extintores, sem mangueiras de incêndio, com áreas inteiras inundadas, como atestado pela própria Prefeitura.
Carmen Silva com as cineastas Eliane Caffé e Daniela Thomas
Foi Carmen da Silva Ferreira, coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), líder da luta por moradia e pela Reforma Urbana na cidade de São Paulo, cérebro das iniciativas mais criativas, inclusivas e inovadoras de requalificação de áreas degradadas da megalópole, e responsável pela conquista da moradia pelos sem-teto que ocuparam o antigo Hotel Cambridge, localizado no centro de São Paulo. O prédio, agora desocupado, passará por uma reforma e será então entregue aos pobres que lutaram por ele. A experiência foi tão bem-sucedida que se tornou base do roteiro do premiado filme “Era o Hotel Cambridge“, da diretora Eliane Caffé (2016).
A trajetória do Hotel Cambridge é exemplar das forças mais terríveis e das mais generosas que atuam sobre o espaço urbano. Fincado em prédio de estilo modernista na avenida Nove de Julho, o Hotel Cambridge foi inaugurado em 1951. Era famoso pelo bar elegante com poltronas vermelhas, onde se apresentou, em 1959, o músico Nat King Cole, quando ele veio ao Brasil. “Stardust“, a canção que fala sobre os encantos do amor que passou, embalou a noite. Poeira estelar.
Daqueles brilhos, o Cambridge desabou no buraco negro da decadência tão logo o centro econômico e financeiro da cidade deslocou-se para a região da avenida Paulista e, depois, para a Faria Lima e Berrini. Hotéis com nomes chiques e estrangeiros, como o próprio Cambridge, o Othon Palace, o Hilton, o Paris e o Cad’oro, entre outros, viveram em agonia, até o apagar definitivo das suas luzes.
Carmen da Silva Ferreira, 58 anos, foi quem reacendeu as luzes do prédio de 17 andares e 120 apartamentos. Em vez dos engravatados de antes, ela capitaneou um exército de pobres miseráveis, gente que não tinha nem sequer um teto pra dormir em paz… e eles ocuparam o Hotel Cambridge, então tomado por ratos, baratas, escorpiões, lixo, entulho. Toneladas de dejetos foram retirados dos andares.
Detalhe: As centenas de edifícios abandonados do centro da cidade são como tumbas de histórias e recordações. Como tumbas, os proprietários lacram-lhes portas e janelas com tijolos e cimento. É para evitar a invasão de animais ou de quem queira questionar a posse do imóvel — o prédio sufoca sem ar e nem luz.
Felizmente, não é nada que algumas marretadas não resolvam.
Jornalistas Livres acompanham desde abril de 2015 algumas ocupações coordenadas por Carmen, desde os seus instantes iniciais. Trata-se de uma mulher forte, dotada de determinação e coragem ímpares. É ela que está no centro de uma possante organização que restaura vidas, acolhe os derrotados da cidade, os idosos, as mulheres espancadas, as pessoas que perderam tudo e as que sempre ganharam muito pouco ou quase nada (os trabalhadores informais, os camelôs, cuidadores de enfermos, faxineiros, garis, pedreiros, eletricistas, operários da construção civil, balconistas, cozinheiros, seguranças, operadores de telemarketing, artesãos, auxiliares de enfermagem, protéticos etc. etc. etc.). Carmen gosta de dizer que as pessoas vão ao movimento em busca de direitos (o direito à moradia está impresso na Constituição de 1988), e aprendem que direitos vêm junto com deveres.
Vida cármica
Baiana, mãe de oito filhos, Carmen nasceu na Cidade Baixa de Salvador, filha de empregada doméstica e de militar. Foi o pai que a criou e é indelével a marca deixada pela disciplina da caserna no espírito da mulher. Os prédios sob coordenação dela rebrilham de limpeza, fruto de mutirões bem-organizados. Não se consomem drogas, respeita-se o horário de descanso, funcionam projetos profissionalizantes, crianças não podem ser deixadas sozinhas nos apartamentos, homem não bate em mulher nem com uma flor. E por aí vai.
Tudo isso é fruto de uma sólida hierarquia, resultante de assembléias e reuniões com quórum e representatividade de mais de 80% dos moradores. Começa pelos coordenadores de andares, que atuam como mediadores de conflitos, pelos líderes de projetos comunitários, passa pela Linha de Frente (os fiéis escudeiros da ocupação), e chega até a liderança incontestável de Carmen –a Dona Carmen, como é respeitosamente chamada. Depois das 22h, é tudo silêncio.
Carmen Silva fala com moradores
Neste caso, trata-se de autoridade conquistada. Carmen casou-se aos 17 anos e conheceu a violência doméstica, espancada que era pelo marido truculento e cheio de ciúmes. Com 16 anos de união, 8 filhos, ela jogou tudo para o ar e fugiu para São Paulo. Sem teto, conheceu a dura rotina e a solidariedade das ruas. Morou em albergues, um administrado pela Igreja Universal do Reino de Deus, e outro, público, sob o viaduto Pedroso, que atravessa a avenida 23 de Maio, no centro da cidade.
Rotina dura. No albergue, um humano é só corpo que precisa de pouso e banho. Tem de sair tão logo o dia nasce. E voltar assim que a noite cai, senão não entra. Carmen lembra-se de passar horas e horas, esperando o tempo passar, dentro do templo da Universal na avenida Brigadeiro Luis Antonio. Andou muito, conheceu todas as entidades que serviam comida, em busca de emprego, as quebradas. Virou cozinheira, mas achou pouco…
A rua é cruel e louca. Ela resistiu ao desespero porque seu único objetivo era trazer todos os filhos para viver sob suas asas (conseguiu). Já viu muita gente forte desabar ante o peso da própria dor.
Carmen iniciou-se no movimento dos sem-teto quando morou, por seis anos, num antigo prédio do INSS, na avenida Nove de Julho. De lá para cá, participou de dezenas de ocupações. Hoje, é uma profunda conhecedora da cidade que escolheu para viver. Quem está devendo IPTUs milionários, quem são os maiores latifundiários urbanos, quantos imóveis possuem, quem são os habitantes tradicionais de cada bairro. É respeitada na Prefeitura, acaba de ser convidada a lecionar em uma grande Escola de Arquitetura. Urbanista prática, discute altivamente com autoridades dos setores público, privado e acadêmico. Recentemente, foi uma das organizadoras de duas rodas de conversa dentro do Ministério Público de São Paulo, com a presença do próprio Procurador-Geral de Justiça do Estado, Gianpaolo Poggio Smanio, sobre políticas públicas voltadas para Moradia Social e Gênero.
A hora H
Junta gente de todos os jeitos na hora de ocupar. A velhinha louca que perdeu tudo na jogatina, a jovem crente desempregada, o dependente de drogas, o estudante de medicina que foi expulso de casa porque o pai descobriu que ele é gay, o pastor, a sambista, o poeta, o militante, o refugiado palestino, sírio e congolês, sobreviventes de tragédias humanitárias, os imigrantes bolivianos, haitianos, a prostituta. Um dos grandes insights do movimento de moradia deu a liga entre todos esses espécimes da grande biodiversidade humana que viceja no centro elétrico da metrópole:
“Somos todos refugiados: os estrangeiros aos quais a própria pátria tornou-se ameaçadora; e os nacionais, aos quais o Brasil dos privilégios virou as costas”, conforme epifania de Carmen.
Nem precisa dizer que é difícil alinhar na vida intensamente coletiva da ocupação as pirações individuais de pessoas tão diversas. Mas, avessos aos vitimismos, embora motivos não faltem, os sem-teto cultivam mesmo é a solidariedade. É o que permite a elaboração coletiva de uma poesia lavrada na esperança de dias melhores.
Movimento de pobres, de pretos, de pardos, a luta pela moradia no centro de São Paulo é intensa na construção de novíssimos quilombos, dirigidos e habitados em sua maioria por mulheres tão fortes quanto delicadas, capazes de enfrentar as maiores violências enquanto cuidam dos mais fracos e desamparados. É preciso entendê-las, porque elas resgatam para a cidadania aqueles a quem o poder público fecha a cara e os cofres.
Manipulação escancarada e tombo no Mc Donald’s
A TV Globo, que nunca simpatizou com as ocupações de imóveis abandonados, feitas por pobres sem teto, não hesitou em invadir um terreno público para instalar seus estúdios de São Paulo, às margens da Marginal Pinheiros. Mas disso, obviamente, os telejornais sob o comando de Ali Kamel não falam. O que lhe importa é operar, com o concurso sempre ativo de promotores inquisitoriais, e com a Polícia Civil, a transmutação da verdade em farsa:
Uma reportagem do SP2, também da Globo, veiculada no mesmo dia 14 afirmou o seguinte:
“Depois que o edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, desabou, a Polícia Civil abriu um inquérito para investigar a cobrança das taxas nessas ocupações. Até agora identificou três núcleos que agem de forma parecida em ocupações diferentes: uma comandada por Carmen [da Silva Ferreira], outro por Ednalva Franco e uma terceira, por Ananias Pereira dos Santos, apontado por moradores como coordenador da ocupação do prédio que desabou. A reportagem não conseguiu falar com Ednalva Franco nem com Ananias Pereira.”
É Fake News em estado puro.
O repórter Bruno Tavares, autor do texto, sabe que são ocupações distintas, lideradas por pessoas absolutamente diferentes, oriundas de movimentos que mantêm autonomia entre si. Seria o mesmo que dizer que todo o jornalismo do planeta é ruim porque o que o Bruno Tavares faz é um lixo.
Sim, há diferenças gritantes entre as ocupações.
Em sua “reportagem”, Bruno Tavares cita investigação do Ministério Público, iniciada em 2016, a partir da denúncia de uma ex-moradora do Hotel Cambridge. Essa moradora disse que já pagava R$ 200 pelas despesas de manutenção do prédio e que estava sendo “vítima de extorsão”, a exemplo dos outros moradores, para desembolsar mais R$ 20, referentes a uma multa por ligação de água clandestina, dividida entre as famílias.
Apesar do segredo de Justiça em que corre o processo, a Globo “teve acesso” ao processo (claro! de novo, são os tais vazamentos a que a emissora dos Marinho sempre “tem acesso”). Pois deveria ter aproveitado o tal “acesso” privilegiado para informar aos telespectadores que no Cambridge havia 120 famílias, que decidiam coletivamente em assembléias qual o valor das taxas e contribuições que caberiam a cada uma.
O repórter disse ainda que “ao falar com os promotores, a coordenadora da ocupação não apresentou documentos para comprovar que o dinheiro arrecadado era gasto com a manutenção do prédio.” Engraçado! Em entrevista coletiva no último dia 11, da qual participou uma equipe da Globo News, Carmen apresentou documentos e comprovantes de despesas das ocupações que coordena. Mas isso não interessou ao Jornal Nacional.
Carmen da Silva Ferreira
A reportagem mencionou taxas de R$ 200 mensais, e uma taxa extraordinária única de R$ 20, para pagar multa da Sabesp. Vinte Reais. Isso é muito ou é pouco? A reportagem maliciosa não diz. Se fizesse bom jornalismo, Bruno Tavares teria investigado a contabilidade do condomínio. Ou alguém acha o Hotel Cambridge estava “pronto pra morar”, como aqueles apartamentos dos folders e dos anúncios imobiliários que forram as páginas dos jornais impressos?
Sem água, sem luz (muitos andares tiveram toda a fiação roubada), os encanamentos entupidos ou simplesmente arrancados, sem elevadores, sem extintores ou mangueiras de incêndio, repletos de lixo (só do antigo hotel Cambridge foram retirados 15 mil quilos de entulho!), os prédios dos sem-teto eram sucatas podres antes de serem – aos poucos - revitalizados pelo movimento social.
E quem paga por isso? O poder público é que não é. A iniciativa privada é que não é. Muito menos a TV Globo. Então, sobra para os ocupantes, na forma das taxas de contribuição. Aliás, a reportagem de Bruno, se não estivesse atrás de escândalos inexistentes, poderia investigar como as novas tecnologias sociais estão ajudando a baratear os custos de manutenção dos edifícios ocupados. Exemplos? No Hotel Cambridge, os moradores fizeram parceria com a Escola da Cidade e desenvolveram uma horta comunitária para ocupar toda a cobertura com verduras e legumes sem agrotóxicos. Foi da mesma parceria que se originou o lindo e inovador mobiliário que decorava as áreas comuns do prédio — creche, biblioteca e oficinas de costura e maquiagem feitas com material de reciclagem. Dessa parceria também vem a idéia de ressuscitar um antigo poço artesiano abandonado no subsolo do prédio, a fim de utilizar a água para lavagem do chão e descarga das privadas.
Mas não.
Em vez da inteligência coletiva do movimento, a reportagem preferiu contemplar, como se verdadeira fosse, a denúncia de uma ex-moradora do Cambridge, apresentada como “testemunha Alfa”, que disse ter sido ameaçada por Carmen. O repórter Bruno Tavares teve acesso inclusive aos vídeos que a tal “testemnha Alfa” gravou com as supostas ameaças. Aliás, esses vídeos também constam no processo que corre em Segredo de Justiça (segredo de Polichinelo…)
Eis a transcrição das tais ameaças:
Carmen:A senhora que vai na Sabesp fazer o acordo porque não pagou aqui.
Alfa:Eu? Tanto dinheiro que você pega dos outros.
Carmen:O que foi que a senhora falou?
Alfa:Sai de cima de mim, sai de cima de mim que eu te coloco atrás das grades.
Carmen:Sem vergonha, caloteira.
Carmen:A sra. vai sair por bem ou mal. Por bem eu já tomei a providência, agora, se a senhora quiser por mal, vai por mal também.
Carmen:Contestam porque pagam contribuição. Vocês acham que vão morar de graça na Avenida Nove de Julho?
Carmen:Daqui a pouco vem a conta de luz aí é outra briga para pagar.
Leia bem e se quiser veja os vídeos no site da Globo. O que se vê? O que se entende?
O Cambridge era uma ocupação organizada e legal, reconhecida pela Prefeitura. Pagava a conta de água. Pagava a conta de luz. Como é que se pagava isso? Com a colaboração dos moradores, decidida em assembleia. Quando Carmen afirma que Alfa terá de sair “por bem ou por mal”, refere-se ao cumprimento de decisão da assembleia dos moradores, que não acharam justo pagarem por alguém que queria folgada e graciosamente usufruir a água da Sabesp custeada pelo alheio. Foram os moradores que decidiram pela exclusão de Alfa da ocupação. E caso ela se recusasse a sair, a polícia seria chamada.
Onde está a ilegalidade? Quem quer que já tenha tido de lidar com condôminos inadimplentes em um prédio de classe média sabe muito bem o que é ter de pagar taxas maiores porque alguns simplesmente se recusam a cumprir suas obrigações com o coletivo.
É incrível o ministério público se meter numa briga entre vizinhos. É incrível uma briga entre vizinhos ocupar o lugar de uma real investigação sobre as causas do incêndio, desabamento e mortes do edifício Wilton Paes de Almeida. Mas o mais incrível é a TV Globo prestar-se a tal jogo ilusionista, baseando-se na denúncia da “testemunha Alfa”, tristemente famosa na ocupação do Hotel Cambridge por ter tentado – sem sucesso, diga-se – aplicar o golpe do “escorrego” no Mc Donald’s.
Sim! A mulher que acusa Carmen de cobrança indevida de uma taxa que visava unicamente cobrir as despesas de manutenção do Edifício Cambridge, tentou garfar indenização de 200 salários mínimos (R$ 190.800 em valores atualizados) por um tombo que diz ter sido causado por falta de corrimão em uma loja do Mc Donald’s. Só que o corrimão estava lá! Então, em 25 de junho de 2014, a 5ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, negou o pedido de Alfa.
É claro que os movimentos de moradia incluem alguns oportunistas e exploradores (categoria de que, aliás, o meio jornalístico está cheio). Isso poderia ser uma boa pauta. Mas a preguiça e a desonestidade levaram a “reportagem” de Bruno Tavares a transformar a pauta em texto final e a suspeita em tese.
Incrivelmente, a grande mídia que está em busca de culpados de araque esquece-se todo o tempo de mencionar a existência de 290 mil imóveis não-habitados na cidade de São Paulo, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Habitação, a partir de dados do Censo de 2010. São imóveis deixados vazios para a especulação. O movimento exige que eles tenham função social. Mas isso não tem importância para os empresários, empreiteiros e especuladores. E nem para os seus serviçais dentro da grande mídia, que não hesitam em jogar no lixo os principais fundamentos do jornalismo para atacar uma das mais generosas e preparadas lideranças do movimento social no Brasil: a mulher negra Carmen da Silva Ferreira.
Neste domingo, 10 de dezembro, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) comemorou em praça pública, em companhia de 30.000 pessoas (o que não é para qualquer um), seus 20 anos de luta. Tinha Caetano Veloso, Criolo, Maria Gadú e outras jóias preciosas da Música Brasileira, cantando num show de graça, uma festa aberta a todo mundo. Uma celebração.
Mas dona Martha Rodrigues achou de criticar o rolê, argumentando que tinha pouco MTST na festa do MTST. Veja o link aqui.
Vamos falar a real: se tem um movimento que não precisa mostrar as credenciais populares e o enraizamento entre a gente oprimida, preta e pobre, esse movimento é o MTST.
São ocupações, lutas, atos públicos, caminhadas épicas imensas, cenas bíblicas, com milhares e milhares de mulheres, idosos, LGBTs, pretos, homens sofridos e guerreiros. Não tem Moisés abrindo o Mar Vermelho, efeito especial de todos os jeitos, nas novelas da Record, que rivalize em emoção com o povo do MTST de carne e osso lutando unido pela sua terra prometida.
Bom, aí o MTST faz uma festa-celebração com alguns dos maiores artistas brasileiros, e vem a amargura se pronunciar: “festa sem povo”, “festa da Vila Madalena”, “festa de branco”.
Eu prefiro um milhão de vezes focalizar o fato de que esses brancos, essa Vila Madalena, provavelmente, foi pela primeira vez a um evento do Movimento dos Sem-teto. Que, pela primeira vez, eles puderam ver que o MTST é cultura, é arte, é amor. É festa. É praça aberta, é felicidade.
Quando se sabe que os Kim Kataguiri, Alckmin, os latifundiários urbanos, e os poderosos sempre imputam aos lutadores a pecha de “criminosos”, a praça lotada caetaneando o que há de bom é a melhor contra-narrativa ao discurso dominante.
Caetano canta na festa dos 20 anos do MTST – foto de Guilherme Silva
Por fim, disponibilizo para vocês o depoimento de uma linda guerreira sem-teto, da Ocupação Marisa Letícia Lula da Silva, ligada à Frente de Luta pela Moradia (um movimento distinto do MTST e, num certo sentido, rival deste). Toninha é negra e é pobre. E é da luta. E estava lá, no largo da Batata, acompanhada de outras mulheres pobres da mesma ocupação. Mas dona Martha Rodrigues não as viu e nem as entrevistou.
Em vez de se ater ao que separa as duas organizações, essas mulheres falaram sobre a necessidade de todos se unirem contra os retrocessos, contra o confisco dos direitos do povo, por um mundo mais justo.
Elas estavam felizes, dançando, cantando –gloriosas–, com Caetano Veloso. É, esse cara, a quem elas nunca teriam tido acesso se não fosse o feliz encontro do artista com o MTST, estava ali, generosamente, espalhando a sua poesia e arte para todos.
Aprende, Martha! União e gratidão levam a gente a brilhar. O resto é a treva da amargura e da depressão. Ninguém precisa disso.
Carta aberta da Frente de Luta por Moradia representando milhares de famílias que não tem onde morar e que ocupam agora diversos edifícios abandonados no centro da cidade.
São Paulo, 15 de outubro de 2017
Excelências do Executivo, Legislativo e Judiciário
Homens e Mulheres de bem SEM TETOS QUEREM: TERRAS E PRÉDIOS ABANDONADOS PARA CONSTRUIR, REFORMAR E MORAR.
Em meados de outubro centenas de famílias sem tetos, homens, mulheres, idosos, jovens e adolescentes, tomaram uma atitude extraordinária. Organizados pela FLM, em suas
comunidades, realizaram várias ocupações de terras e prédios. Propriedades estas fora da lei. Não cumprem sua função social. E ao mesmo tempo provocam danos aos cidadãos paulistanos. Os prédios acumulam esgotos em seus subsolos de onde emergem enxames de pernilongos,
baratas e servem de esconderijos de ratos. Em toda edificação se acumula lixo onde proliferam as pulgas, percevejos, muquiranas, fezes de pombos e seus piolhos. No teto as caixas d’água acumulam água nas lajes e empesteiam a cidade de Chikungunha e dengue. Nos terrenos abandonados acumulam lixo e servem de abrigo e criação de todas as pragas urbanas imaginadas e já apontadas nos prédios. Mas, também são espaços apropriados para a desova de cadáveres e de violência a mulheres e crianças. Quem mora próximo a esses terrenos
abandonados sabe muito bem dos infortúnios que causam à vizinhança. Não recolhem os impostos devidos. Mas, surrupiam recursos públicos, apropriando-se da valorização da região ocasionada pelas melhorias urbanas do entorno.
O Judiciário, se servisse à Justiça, já teria requisitado essas propriedades, conforme a lei, e os disponibilizando para a construção de moradias populares e/ou equipamentos públicos e sociais. Entretanto, o Judiciário brasileiro não se presta a fazer Justiça, mas serve para acobertar o mal feito dos ricos. Esta semana o STF – Supremo Tribunal Federal inocentou um Senador envolvido com o tráfico de drogas. Um helicóptero de um amigo dele foi apreendido nas imediações de sua fazenda com 450 quilos de cocaína, parte já tinha sido distribuída no interior de São Paulo. Foi apanhado, também, recebendo mala de dinheiro e em diálogo com outro malfeitor revela que poderia matar delator e combinando obstruir a Justiça. Mas, os juízes do
Supremo o livraram da prisão e devolveram seu mandato de senador.
O povo pergunta: Quantas malas de dinheiro comprou essa decisão do Supremo? Não é possível esperar Justiça desse Judiciário.
Os sem tetos, por absoluta falta de opção e de possibilidade de ter uma casa para morar e pautados por seus direitos fundamentais conferidos pela civilização moderna e pela escritura sagrada, lutam por seus direitos. Os sem tetos encontram-se em situação desesperadora e juridicamente se encontram em estado de necessidade. O desemprego os ataca de modo impiedoso. Segundo o IPEA, são 21 por cento de desempregados entre os mais pobres. Para os jovens são perto de 40 por cento. As pessoas acima de 40 anos têm dificuldade para arranjar trabalho. São mais de um milhão de almas desempregadas e sem alento para viver na cidade de São Paulo.
Os sem tetos, além da violência do desemprego, não conseguem trabalho com salário digno. São empregos informais, temporários, bicos e de baixa remuneração. Enquanto os sem tetos são castigados pelo desemprego e pelos baixos salários os custos de suas necessidades não
param de subir. Por mais precário que seja uma habitação, barraco, um cômodo ou dois em locais insalubres, o preço chega perto de mil reais. Consumindo quase a totalidade de sua renda.
O gás de cozinha passou de R$ 57,00 para quase R$ 100 em 4 meses. O aumento da gasolina e do óleo diesel também influem no preço do consumo dos sem tetos. Um trabalhador rural para encher o tanque do trator, 57 litros de óleo diesel, tem que vender 180 litros de leite, ou 500 ovos, ou 7 sacos de milho. Estes aumentos após o golpe do Temer afetam os trabalhadores da roça e o preço das necessidades dos sem tetos nas cidades. A energia elétrica subiu 51,7% nos últimos quatro meses.
Enquanto os preços de nossas necessidades sobem nossos rendimentos continuam caindo. Bem, nós sem tetos somos cozinhados no caldeirão do egoísmo do governo atual e da classe dirigente. Nós, sem tetos vamos até o poder público pleitear nossa moradia, nosso direito. E o que nos falam que não tem dinheiro para fazer casas populares. Mas, observamos que dinheiro não falta para eles. No Judiciário encontramos desembargadores recebendo de cem até quatrocentos mil reais mensais. Juízes recebendo de cinquenta a quinhentos mil mensais. Todos do Judiciário pegando R$ 4.377,00 de auxílio moradia.
O Banco Itaú teve sua dívida de imposto não recolhido de 23 bilhões de reais perdoada. Entre os diversos exemplos de perdão de dívida com o poder público de infratores ricos. Transferidos para os agiotas financeiros são mais de 500 bilhões anuais. Nos subterrâneos do Congresso Nacional são malas de dinheiro destinados aos apoiadores do governo golpista Temer. Mas, recursos públicos para assegurar o direito de morar de homens, mulheres e crianças não tem. Deste modo, nós sem tetos resolvemos guiar nosso destino pelas nossas mãos e pela nossa inteligência e ocupamos esses prédios e terras abandonadas de São Paulo.
Vamos aqui organizar nossa vida e fazer nossas casas.
Pleiteamos, então, que estes imóveis sejam requisitados pelo poder público e disponibilizados para as famílias sem teto, fazerem suas casas e aqui proteger os filhos e viver em paz. É uma marcha justa para o futuro de nossas famílias.