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Categoria: Feminismo

  • Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

    Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

    A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

    Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

    Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

    “A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

    O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

    É só ler o título indigitado de novo:

    JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

    Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

    Uma pena.

    Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

    Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

    Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

    E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

    Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

    A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

    Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

    Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

    Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

    Não, não é razoável.

    Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

    A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

    Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

    Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

    É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

    Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

    Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

    É preciso atuar sobre esse front.

    Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

    Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

    Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

    A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

    Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

  • INQUISIÇÃO: Fundamentalistas perseguem ONG de católicas e Justiça faz coro

    INQUISIÇÃO: Fundamentalistas perseguem ONG de católicas e Justiça faz coro

    Agora vai, Brasil! A 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que a ONG Católicas Pelo Direito de Decidir não poderá mais usar a palavra “Católicas” em seu nome.

    Católicas Pelo Direito de Decidir existem desde 1993 e se caracterizam pela defesa intransigente da descriminalização e legalização do aborto. Segundo o grupo, no interior do catolicismo “há vozes diversas, há teologias diversas”. “Essa pluralidade existe, ainda que o pensamento único fundamentalista queira negá-la”, dizem elas, que se reivindicam feministas.

    As Católicas falam em fundamentalistas e foi exatamente uma organização fundamentalista dessas, a Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura que resolveu levar aos tribunais sua contrariedade com o nome da ONG feminista.

    O Centro Dom Bosco parece não confiar muito na fé do rebanho católico e é reincidente em tentar calar divergências religiosas na Justiça, em vez de convencer os corações dos fiéis. Foi esse grupo da ultra-direita católica que processou a Igreja Universal do Reino de Deus por causa de uma revista em quadrinhos (!!??!) chamada “A Força”, porque conteria “mentiras e ofensas à Igreja Católica”. Os inquisidores do Centro Dom Bosco queriam que a Justiça retirasse de circulação a publicação. Perderam!

    Também foi o Centro Dom Bosco que processou o coletivo de humoristas Porta dos Fundos, depois que este produziu um especial de Natal em que retratou Jesus como homossexual. Os “guerreiros da fé” do Centro Dom Bosco queriam retirar o especial de Natal da plataforma de streaming Netflix e bani-lo pela eternidade. Mas perderam também.

    Agora, o grupo colhe uma recentíssima vitória, já que ainda passível de recurso, com a decisão do TJ de São Paulo. Se prevalecer, as Católicas terão de adequar o estatuto social e retirar a expressão “católicas” de seu nome em 15 dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000.

    O relator, desembargador José Carlos Ferreira Alves, escreveu um textão de 61 páginas para justificar o acolhimento do pedido do Centro Dom Bosco. Coalhado de referências ao Código Canônico, ao Catecismo, a textos de clérigos ultraconservadores, a homilias papais, a ideólogos da Opus Dei e até, pasme-se, a Olavo de Carvalho, com a citação de sua obra “Católicas, uma ova”, lavrada naquele estilo inconfundível pela falta de educação, o relatório do desembargador parece esquecer que o Brasil é um País laico e não uma pequena paróquia de um obtuso rincão conservador.

    Quer o desembargador católico que “nenhuma associação adote a designação de ‘católica’, a não ser com o consentimento da autoridade eclesiástica competente, segundo as normas do cânone 312” [do Código Canônico]. O Código de Direito Canônico é o conjunto das normas que regulam a organização da Igreja Católica, a hierarquia do seu governo, os direitos e obrigações dos fiéis e o conjunto de sacramentos e sanções que se estabelecem pela infração das mesmas normas. Impor aos cidadãos brasileiros a obediência a esse tal Código Canônico é um ultraje à Constituição do Brasil.

    Ferreira Alves diz que o uso da expressão “católicas” constitui “flagrante ilicitude e abuso de direito (…) pela notória violação à moral, boa-fé e bons costumes na atuação [da ONG]”. Trata-se de acusação gravíssima que, entretanto, não dispõe de um único argumento que a ponha em pé.

    A guerra contra as mulheres: uma história de violências

    Acusar mulheres, identificando-as a seres imorais, dotados de má-fé e de comportamento maligno tem dado, desde sempre, ensejo a perseguições e a toda série de violências e iniquidades (incluindo a tortura) praticadas contra o gênero feminino desde o século 12. Agora não é diferente.

    As Católicas Pelo Direito de Decidir, que conheço desde seus primórdios, pela catequese feminista de Maria José Rosado, fundamentam sua militância na crença de que a Igreja de 2.000 anos é capaz de errar (muito) e de se auto-reformar mediante a crítica —muitas vezes heroica— dos dissidentes (ou hereges).

    Foi assim com Giordano Bruno e Galileu Galilei, opositores da tese segundo a qual a Terra estaria no centro do Universo. Pela sua petulante defesa da Ciência, Galileu acabou condenado por desobediência e por difundir conteúdos contra a doutrina católica. Com Giordano Bruno, foi pior. A Inquisição o considerou culpado e ele foi queimado na fogueira no Campo dei Fiori, em Roma, em 1600. No ano 2000, o Papa João Paulo II finalmente pediu desculpas por todos os erros cometidos pela Igreja Católica nos últimos 2.000 anos, incluindo o julgamento de Galileu Galilei pela Inquisição. Será que João Paulo II não era muito católico?

    Mas tem muito mais erros! A mesma Igreja Católica ainda hoje condena o divórcio, as pesquisas científicas com embriões humanos, a eutanásia e os contraceptivos artificiais, o sexo antes do casamento, a homossexualidade e o uso de preservativos. Apesar disso, o Papa Francisco acaba de dar seu OK às uniões civis entre homossexuais, mostrando que a Igreja (também ela) é permeável ao espírito do tempo, e que a luta dos homossexuais católicos por reconhecimento valeu a pena. Será que Bergoglio também não é muito católico?

    As Católicas consideram-se católicas, mas católicas que lutam contra o machismo e a misoginia das instituições católicas, que proíbem a ordenação sacerdotal de mulheres, mantêm o celibato clerical e estão na base dos milhares de casos de abusos sexuais cometidos contra meninos e meninas em todo o mundo.

    Quem são o desembargador José Carlos Ferreira Alves e seus colegas na 2ª Câmara de Direito Privado, José Joaquim dos Santos e Álvaro Passos, para dizer que elas não podem mais se dizer católicas? Ainda mais usando como argumento um código estranho ao ordenamento jurídico do Brasil, como é o Código Canônico?

    Ou será que vamos também usar o “Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec, ou “As 95 Teses”, de Martinho Lutero, para orientar os juízes sobre quais condutas serão consideradas lícitas ou ilícitas pelos tribunais brasileiros?

    A decisão do TJ de São Paulo é mais um barbarismo a atestar que a generosa Constituição de 1988 está sob grande ameaça. É preciso resistir. Ou logo as fogueiras serão acesas!

    Homofobia, armas e Educação de meninos: Veja quem é e o que defende o Centro Dom Bosco
    https://www.facebook.com/watch/?v=608039206566114

  • História em quadrinho feminista critica naturalização da sobrecarga das mulheres na pandemia

    História em quadrinho feminista critica naturalização da sobrecarga das mulheres na pandemia

    Por Allan de Almeida, da agência Saiba Mais

    A história em quadrinhos com abordagem feminista “Família Ghee” estreou nesta terça-feira (1º) no Instagram @johannatds. Com linguagem predominante irônica, a tirinha aborda o feminismo em tempo de pandemia, faz reflexões sobre a disparidade da produtividade de mulheres e homens nesse período, além de criticar a desigualdade de gênero.

    Ao todo, 12 episódios serão publicados, um a cada dia, às 11h, no Instagram. Uma das autoras é a artista potiguar Lara Ovídio, atualmente radicada no Rio de Janeiro. Além dela, também integram o time a cineasta Mykaela Plotkin, que mora na Cidade do México, Johanna Thomé de Souza, que vive em Paris. Juntas, elas formam o “Fúria Criativa”, nome pelo qual vão construindo novos trabalhos.

    A ideia da narrativa surgiu a partir das pesquisas que revelaram que homens cientistas haviam aumentado a produtividade na pandemia. De acordo com Lara Ovídio, surgiu urgência de falar sobre o tema devido a sobrecarga das mulheres durante o isolamento social.

    Em levantamento do projeto brasileiro Parent in Science, em resultados preliminares, 40% das mulheres sem filhos não concluíram seus artigos, contra 20% dos homens. Além disso, o estudo afirmou, também, que 52% das mulheres com filhos não concluíram seus artigos, contra 38% de homens.

    “A produção com esse tema coloca em evidência uma coisa que não tem sido tratada, mas sim naturalizada, que é a sobrecarga (de trabalho) das mulheres. E isso é bastante grave. Em um sistema que fala que é assim e que a gente se contente. Mas a tirinha vem e mostra que será o inverso e as mulheres vão se identificar”, afirmou a artista.

    Um estudo do IBGE publicado no início de agosto apontou que as mulheres que se dedicam aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas não só continuam sendo as que mais realizam esse tipo de trabalho, como têm tido participação crescente, passando de uma taxa de 89,9%, em 2016, para 92,1%, em 2019.

    “A maior taxa de realização de afazeres domésticos também pode ser efeito da crise do mercado de trabalho e da queda de renda das famílias, reduzindo as possibilidades de contratar empregada doméstica”, ponutou a analista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Alessandra Scalioni Brito.

    Além disso, Lara afirmou que o intuito é pensar sobre os impactos do feminismo tem passado e refletir sobre as possibilidades de resistência:

    “Feminismo é um mundo anticapitalista mais igualitário em que pessoas tenham acessos, direitos, visibilidade e tenham possibilidades iguais. É um mundo contra o capitalismo”, explicou.

    Produção

    Lara Ovídio, Johanna Thomé de Souza e Mykaela Plotkin em reunião virtual para debater projeto foto: acervo pessoal)

    Durante a produção da história, foram ouvidas histórias reais de pessoas próximas ao trio feminino que idealizou o projeto: Lara Ovídio, Johanna Thomé de Souza e Mykaela Plotkin.

    Todo o processo criativo foi realizado por meio de reuniões online. As artistas possuem experiência no meio virtual. Juntas, criaram outros projetos mesmo morando em cidades diferentes: Lara mora no Rio de Janeiro, Mykaela, em Recife/PE, e Johanna, vive em Pithiviers, na França.

    “Coletamos história de amigos e pessoas próximas, há uma frase que nos guiou durante o processo: “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”, de Audre Lorde”, conclui Lara.

  • Miguel: quantos como ele correm perigo nas casas das patroas de suas mães?

    Miguel: quantos como ele correm perigo nas casas das patroas de suas mães?

    https://www.youtube.com/watch?v=sMvyTtB070M

    Se nesse momento a história da trágica morte do menino negro, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, filho da empregada doméstica, Mirtes Renata Santana da Silva, fosse inversa em todas os seus detalhes: se ele fosse o filho branco da patroa, Sari Mariana Gaspar Corte Real, e tivesse morrido depois de despencar do 9º andar por desleixo e irresponsabilidade da empregada doméstica, certamente essa mulher negra estaria, neste exato momento, encarcerada.

    Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos de vida, é vítima do racismo arraigado na vida cotidiana de pessoas como Sari, uma mulher que, ironicamente, possui sobrenome supremacista branco “CORTE REAL”.

    Mas esse não é o pior dos detalhes. Nesse episódio trágico, a imprensa pernambucana, majoritariamente branca, portanto “limpinha”, não quis desagradar a mulher do prefeito da cidade de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB).

    Até agora não há sequer uma menção realmente incisiva sobre a responsabilização de Sari na morte do menino.

    O mesmo aconteceu com o delegado Ramón Teixeira, que acolheu o caso inicialmente. Preferiu preservar a identidade de Sari Mariana Gaspar Corte Real.

    Sari não dispensou Mirtes por causa da pandemia. Sari não quis limpar sua própria merda, não quis varrer seu chão, não quis colocar  suas roupas na máquina de lavar, não quis cozinhar sua própria comida. Sari não quis levar seu cachorro para passear. Sari colocou a vida de sua empregada em risco, exposta à COVID-19. Sari matou o filho de Mirtes.

    Que tipo de gente é essa?  Miguel, 5 anos, queria ver a mãe, que saiu para levar o cachorro da patroa a passear. Insistiu, fez birra, como qualquer criança faria. E não se curvou ao racismo de Sari. Por isso entrou no elevador. Por isso foi ao nono andar. Sozinho, porque Sari não se importa, não se importou com o fato de ele ser um menino. Ele era filho da empregada, não era nada. E ele caiu do nono andar. Ele morreu. Quando um filho morre, a mãe é a primeira que desce à cova. Era um filho negro. Na casa da patroa branca. A mãe negra, a empregada, não percebeu isso ainda. Em meio à dor, em estado de choque, ela humildemente lamenta a “falta de paciência” da patroa assassina.

    Miguel
    Miguel com sua mãe, Mirtes. Ao lado, Sari Corte Real, a patroa que colocou a empregada e seu filho em risco.

    O FATO – O menino foi vítima de homicídio na terça-feira (2). Caiu do 9° andar da sacada de um prédio de luxo no Centro do Recife, em Pernambuco, conhecido como Torre Gêmeas. A informação inicial era de que, na hora do acidente, a empregada estaria trabalhando no 5° andar do prédio, mas hoje foi revelado que, na verdade, a empregada estava cumprindo a função de passear com os cachorros da família, enquanto a patroa cuidava de Miguel. Sari foi presa inicialmente, mas pagou uma fiança de R$ 20 mil e responde em liberdade, mesmo depois da divulgação de vídeos mostrando que Sari colocou Miguel sozinho no elevador de serviço, o único que dava acesso para a área desprotegida da qual o menino despencou para a morte. Os elevadores para pessoas como Mirtes e seu filho, na prática, ainda são diferentes no Brasil. E foi lá que a patroa o deixou.

    Apartamento onde Miguel estava
    Planta de um apartamento no prédio de luxo de Sari, marcado por corrupção e tragédia

     

    Um corpo negro que vale 20 mil reais? Realmente vivemos um pesadelo legitimado pela racismo institucional do judiciário

    Liana Cirne Lins, professora da Faculdade de Direito da UFPE, relatou em suas redes sociais que muitos têm defendido a tese de que, inclusive, houve homicídio DOLOSO, configurando dolo eventual. “Afinal, que adulto coloca uma criança de cinco anos, que está chorando pela mãe, sozinha, num elevador, e não calcula a possibilidade de um acidente?” Miguel não tinha intimidade com elevadores. Morava com os pais em uma casa pobre, num bairro humilde.

    Sari sabia dos riscos e não faria o mesmo com os próprios filhos. Aliás, essa é uma pergunta que gostaríamos de fazer à patroa de Mirtes: como você acabaria com a birra de seus filhos?

    Certamente Sari não os colocaria em risco. O centro desse debate é, sem dúvida, a herança de nossa cultura escravocrata e racista.

    Outra declaração importantíssima de Liana Cirne é sobre o local e a data simbólica do homicídio: “O local é nas famigeradas Torres Gêmeas, esse lugar horroroso que tem essa energia do mal, do crime, da corrupção. Elas são um aborto em nossa paisagem e cenário de vários escândalos, desde que a [construtora] Moura Dubeux as ergueu, entre liminares. Nesse momento, mais do que em outros, queria que a sentença demolitória do juiz Hélio Ourém tivesse sido executada. Sobre a data: Miguel morreu no dia em que a PEC das Domésticas completou cinco anos! E é assim que se celebra o aniversário da legislação de proteção das Domésticas, o que diz muito sobre nosso país, que não superou sua herança escravagista.”

    Os Jornalistas Livres se solidarizam demais, profundamente, com mais esse fato absurdo, horroroso, que tem como alimento o racismo.

    Miguel, presente!

     

     

     

    Leia mais sobre o racismo que mata no Brasil:

    A Polícia de Wilson Witzel matou João Pedro, um jovem estudante. Ele poderia ser seu filho

     

  • Marcha Mundial das Mulheres faz 24 horas de ação global contra as empresas transnacionais

    Marcha Mundial das Mulheres faz 24 horas de ação global contra as empresas transnacionais

    Nesta sexta-feira, dia 24 de abril, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) promove uma ação global contra as empresas transnacionais. Neste ano, as 24 Horas de Solidariedade Feminista serão realizadas exclusivamente pela internet, devido à pandemia do novo coronavírus e às recomendações de isolamento social. As atividades denunciam os ataques das grandes corporações sobre a vida das mulheres e sobre a natureza, ao mesmo tempo em que buscam visibilizar as alternativas feministas, construídas cotidianamente por mulheres em movimento no mundo todo.

    No Brasil, a Marcha realizará uma transmissão ao vivo, das 12h às 13h, com militantes de diversos estados do país. Os diálogos podem ser acompanhados pelas redes da organização (Youtube e Facebook). A atividade será repercutida nas redes por meio do uso da hashtag  #SolidariedadeFeminista. Pelo mundo todo, haverão manifestações semelhantes, quase sempre das 12h às 13h. Por conta do fuso horário de cada país, a soma de todas as manifestações resultam em 24 horas de ação global.

    A data foi escolhida para relembrar o desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh, no ano de 2013, que matou 1138, sendo que 80% eram mulheres. Nesse pŕedio funcionavam confecções de grandes marcas de roupa, como Walmart, Benetton, H&M e C&A. Um dia antes do desmoronamento, uma imensa rachadura se abriu sobre os andares da edificação, fazendo com que trabalhadoras e trabalhadores das oficinas têxteis se negassem a trabalhar. Contudo, diante da ameaça de perda de empregos, acabaram cedendo. O crime feriu mais de 2.500 pessoas. Desde então, a data marca a luta feminista contra a impunidade das empresas transnacionais que precarizam o trabalho e a vida das mulheres.

     

    5ª Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres

     

    As 24 Horas de Solidariedade Feminista fazem parte do calendário da 5ª Ação Internacional da MMM, que foi lançada no dia 8 de março. A cada cinco anos, uma Ação Internacional conecta os processos organizativos do movimento e lutas a nível local. Neste ano, “Resistimos para viver, marchamos para transformar” é o lema da Ação. De 08 de março a 17 de outubro, a Marcha mobiliza uma intensa agenda de lutas no Brasil e no mundo.

    As informações sobre o calendário estão disponíveis nos sites da MMM nacional e internacional.

    Acesse: www.marchamundialdasmulheres.org.br/

    marchemondiale.org

  • ELISA LUCINDA: Cadê o futuro que estava aqui?

    ELISA LUCINDA: Cadê o futuro que estava aqui?

    Tudo cancelado. Era março e, de repente, o futuro não estava mais ali, a ação nas ruas exigindo saber quem mandou matar Marielle,  minha apresentação no teatro São Pedro em POA, o curso de literatura viva para professores que participarão da primeira Festa da Palavra em Itaúnas… tudo se pulverizou em materialidade imaginada só e sem o “quando”. Estávamos todos ansiosos indo para o futuro quando o mundo parou de ir. Se bem que eu andava reclamando de gastar tanto o meu verbo ir. A vida vai levando a gente num frenesi que, muitas vezes, não se tem tempo nem de desfazer as malas porque uma viagem se sobrepõe à outra. E o pior, isso era bom, isso era o “sucesso”.  

    Sem perceber, como escravos robotizados, entramos na doida corrida do ouro, porque dentro do sistema capitalista de altos lucros para os senhores, tudo nosso é muito caro. Então tem que se ganhar muito dinheiro pra se viver com a mínima dignidade: saúde, escola boa, comida, roupa, transporte. Tudo caro. Tudo escrotamente caro. E quem mais trabalha, menos ganha. A comida é cara. Uma passagem de avião, comprada na hora de viajar, despudoradamente te cobra mais porque sabe que você precisa, que é uma emergência. Aproveita-se o momento do desespero, é escancaradamente a taxa desespero! É isso que o capitalismo não quer que pare. Uma máquina de moer gente para transformar em dinheiro! É isso! Estávamos sendo moídos por dentro, lutando pesado para achar um canto para nossa necessária aula de Yoga, de música, um telefonema para os amigos. Congestionadíssimo, o tempo presente, ia sempre acumulado das tarefas de ontem, impossíveis de serem cumpridas num só dia, e as de hoje que, se não fosse a vida on line não pertenceriam ao tempo presente  simultaneamente. Esperávamos cartas por dias. Agora, elas chegam de toda parte do mundo dentro do mesmo “agora” em que apenas se esperavam cartas há vinte anos atrás. O agora não mudou de tamanho. É certo que pode ser imenso, mas é um agora apenas.

     

    O novo vazio: São Paulo confinada pela lente de Victor Moriyama
    O novo vazio: São Paulo confinada pela lente de Victor Moriyama

            A verdade é que desembarcamos dentro de nossas casas violentamente.

    Não tem mais aquela reunião física, aquele trabalho foi pra onde ninguém sabe, nem quando. Fora comprar comida, pra que comprar um vestido agora? Pra quê? Aonde vamos? Não vamos. Há uma hora em que o dinheiro vai acabar. O que faremos? É só uma questão de prazo. Isso me aflige e ao mesmo tempo me leva para o espaço da ignorância. Aquele em que fico quando ainda não sei o que eu vou fazer, que cena vou escrever, qual poema, que arco dramático terá esse romance ou essa  peça. É profícuo esse lugar. É vazio. Mas é nele que vai brotar o que houver. Estou perdida. Triste e estranhamente feliz. Tenho alguns compromissos virtuais, reuniões, aulas, mas, de cara, uma vida inteira voltou pra mim sem horas marcadas. Molho as plantas, cozinho, malho, amo, namoro meu amor, e as coisas estão todas animadas sabendo que voltei. No ateliê, recentemente organizado por uma especialista, a fofoca dos lápis, purpurinas, colas, tesouras e papéis de texturas e cores diversas é imensa. Também me aguardam roupas para tingir, revista da biblioteca, esculturas para colar, e muitos cadernos com seus manuscritos decifráveis e a serem digitados. O negócio é animado. Os livros, meu Deus, tantos livros se assanhando pra mim. Lerei todos? 

    Tudo se conecta e implora pela empatia, pelas correntes virtuais de solidariedade, pelo mundo desintoxicado de seu modo egoísta. Esse é o momento para a gente distribuir, olhar para aquilo que não usamos, compartilhar. Os dias de isolamento da humanidade precisam nos levar a uma nova sociedade. Estávamos isolados antes. Vivendo para derrotar o outro. 

    Creiam-me: o mundo muito torto conseguiu chegar aqui até com a fé sendo um produto de manipulação e de grana ao mesmo tempo. Ou seja, um mundo miserável, do ponto de vista espiritual. Amaldiçoado seja o templo que cobra prestação dos fiéis, e o pior,  que tem a má fé de os aglomerar em tempos de contágio onde o ser humano é o único e perigoso hospedeiro e transmissor da devastadora doença. E o presidente chamando o povo para a morte. Será que é ideia dele matar esses crentes? Já que ele sabe que não são todos atletas. Ou esse Deus tem preferências, é injusto, e só vai proteger do vírus os que pagarem o dízimo? Será que é por motivo comercial que os templos não podem parar? Se eu fosse evangélico, ia achar que o presidente está de má fé comigo. O Deus que faz tal distinção não pode ser chamado de Deus. Este é um tipo de cargo que não aceita injustos. Sem citar ainda os produtos vendidos nos templos e tudo isso é negociado, passa de mão em mão entre fiel e vendedor. A verdade é que a grana é que não pode parar. Muitos templos são negócios. Quem quer que não fiquemos isolados agora está apavorado em ficar sem dinheiro, perder o seu altíssimo lucro e fala-se em economia e como se essa pudesse existir sem a mão do trabalhador. Como se não fosse uma produção humana. Quem tem mais dinheiro está achando que tem mais direito à vida do que seu empregado doméstico que ele não liberou na quarentena. 

    Fiquemos em casa, reinventemos a vida. Há muito o dinheiro está em luta com o amor. Usando o seu nome em vão. Até bancos falam levianamente de amor e felicidade e lucram trilhões nos emprestando dinheiro a juros cruéis de dar inveja à mais alta agiotagem, fazendo refém a humanidade. Agora é hora de eles enfiarem as mãos nos próprios bolsos e tirarem as mãos dos nossos. É bom que a reparação tão logo aconteça. Urge.

    Enquanto isso sinto que a Natureza está gostando. As praias estão desertas. Ouvem-se mil vozes de pássaros em Copacabana. Espécies em extinção voltaram a dar as caras. Os céus estão mais azuis e estrelados em toda parte, de Pequim a Sampa, e o número de desastres automobilísticos nas estradas despencou geral. Golfinhos aparecem nas orlas, brincam. O planeta  respira, desocupamos seus poros. Parece que a Terra descansa de nós. Eu sinto, ela está farta de nós, da nossa presença tóxica, predatória, destruindo e pisando afoitos com a bota da pressa querendo fazer o tudo. Seguíamos vorazes, velozes e furiosos, em busca do pseudo próximo novo. De repente, aquele futuro imediato não será mais daqui a pouco. Vai demorar e será outro. Estamos sem quando. Esse importantíssimo advérbio de tempo que nos guiava como uma estrela na noite escura do inédito. Sabemos que a ciência deve ser ouvida, a arte compartilhada para nutrição geral e que o Estado, representante do povo que é, tem que segurar a estrutura e nos manter vivos até chegarmos à nova ordem. Que encontre esta grana. Que milionários usem os altos lucros agora para nos manter viáveis se quiserem ter gente viva consumindo quando o futuro voltar a ser possível.

    Abaixo os neoliberalistas, abaixo separatistas, abaixo a vida escrota e competitiva até o talo. Coisa tensa. Pois o jogo mudou. O mundo todo se tornou contaminador e contaminável. Neste momento constatamos que paz, igualdade e sobrevivência não são assuntos particulares. Renomados indígenas afirmam que o futuro é um delírio branco pois, no encalço cego deste futuro desprezamos passado e presente, que são simplesmente o seu chão. Estivemos todos muito tempo fora de casa. A mãe Terra nos  botou pra dentro. Que nos seja lição. O que do que fomos servirá para o novo mundo que surgirá depois da guerra? Já não somos mais os mesmos.

     

    Coluna Cercadinho de  palavras, Elisa Lucinda, outono inusitado, 2020

     

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