Jornalistas Livres

Categoria: Comportamento

  • DORIA NÃO QUER ENTENDER NADA

    DORIA NÃO QUER ENTENDER NADA

    Por Kátia Passos, dos Jornalistas Livres

     

     

    Todos os dias, logo no amanhecer dos paulistanos, desde o começo da gestão do prefeito Doria Jr, uma surpresa ruim aparece. Em menos de 200 dias, foram tantas as ações descabidas, marcadas pela ânsia do marketing desvairado, mas nenhuma delas mais desastrosa do que a tentativa de acabar com a Cracolândia.

    Vale relembrar algumas delas:

    O moço ganhou flores e as jogou no chão;

    Acabou com o transporte escolar de milhares de crianças;

    Cortou o Leve Leite;

    Apagou grafites na cidade;

    Fez ensaio fotográfico como gari;

    Deu uma verdadeira revirada para baixo na Virada Cultural;

    Passou o Carnaval de rua inteiro caçando ambulantes que não haviam se adequado às suas “regras” de comercialização de venda de produtos. Nessa ação, a Guarda Civil Metropolitana “ganhou” poderes de Polícia Militar. Resultado: repressão. Na ocasião, transmitimos ao vivo uma dessas caçadas.

    E não parou por aí: o prefeito aumentou a velocidade nas Marginais, o que elevou , logicamente o número de mortes em acidentes.

    Depois dessas e outras providências, o gestor vaidoso “entendeu” que a solução para a Cracolândia, seria sem dúvida, o extermínio do problema. Dória levou ao pé da letra o significado desse vocábulo da língua portuguesa e organizou, com o aval do governador Geraldo Alckmin, uma megaoperação caríssima em termos financeiros, e muito mais para os Diretos Humanos.

    Diversas forças de Segurança Pública varreram os usuários de drogas, com balas de borracha, bombas e outros armamentos para a Praça Princesa Isabel, a uns 300 m do local original do ‘fluxo’, nome dado pelos usuários para as ruas Dino Bueno e Helvétia, onde uma multidão se aglomerava para consumir crack.

    Nesta segunda (29), passados 8 dias da ação truculenta da Polícia e de Doria, massivamente criticado nas redes sociais e até na TV, um grupo de representantes de entidades de Direitos Humanos, advogados, profissionais de saúde, assistência social e parlamentares estiveram no local para avaliar o chamado “Projeto Redenção” (redenção para quem?)  e as condições da região no tocante aos problemas dos moradores e à atual situação dos usuários de drogas.

    Leonardo Pinho, da mesa diretora do Conselho Nacional de Direitos Humanos, desabafou: “Não há marco legal, o projeto não foi publicado. Isso quer dizer que não há regras e nem concepções. Então, profissionais de saúde não foram treinados para executá-lo, e o programa não existe. Os funcionários estão atuando sem orientação. Outro abuso foi a destruição ou o sumiço dos pertences dos moradores da Dino Bueno e Helvétia. Cobramos a secretaria de governo do município, que também não sabe dizer onde estão os pertences. Cobramos um atendimento personalizado. Fizemos um levantamento caso a caso e constatamos que levaram até documentos pessoais dos usuários. A situação é desperadora.”

    Sobre os usuários, Leonardo fez um balanço triste:

    “O diagnóstico da praça é assustador. Na Helvétia e Dino Bueno havia trabalhos de inclusão, projetos de cultura. Hoje, eles não podem entrar na rua. Aumentou muito o número de usuários na praça e em diversos pontos da cidade. O balanço da operação militarizada para diminuir o uso tem resultado negativo. Situação insalubre. Aumentou a agressividade e a insegurança nos usuários. Relações com agentes de saúde foram rompidas, esse é o pior cenário. O tráfico e o consumo continuam igual ou superior ao que já acontecia. Se a ação tivesse sido realizada com inteligência, para prender traficantes, talvez o resultado fosse melhor. Atacaram usuários e moradores,  não o tráfico de drogas.”

     

    O “gestor” Doria esqueceu-se –covardemente, diga-se–  dos donos das empresas do tráfico: os traficantes. Preferiu hostilizar mulheres, homens, crianças e idosos, muitas vezes esquálidos, doentes  e frágeis. Violou inúmeras vezes questões caras aos Direitos Humanos. Foi incapaz, desumano, vaidoso. Dória não sabe nada para além de seus luxos.

    Doria não quer entender nada. Nessa visita, o prefeito não mandou ninguém de peso para o local. Somente o chefe de gabinete da secretaria de governo, Orlando Faria, apareceu e fez feio. Quando uma beneficiária do Programa De Braços Abertos interrompeu a reunião, ele chegou a orientar discretamente, um funcionário da Prefeitura a retirar a mulher do local, pelo braço, afinal muitos veículos de imprensa estavam no local. Ela permaneceu, graças ao vereador Eduardo Suplicy, que fez o movimento contrário, puxando a mulher pelo outro braço e assim, pediu que ela falasse. Enquanto isso, na praça Princesa Isabel, uma nova iluminação era instalada.

    O prefeito errou o alvo de seu extermínio. Ele foi o responsável pela demolição de uma pensão com gente dentro. Exterminou histórias, lares, lembranças e a esperança de um sono tranquilo para muitas mulheres, crianças e homens que não são usuários de drogas, A maioria trabalha, leva suas crianças à escola, volta, prepara seu jantar simples e tenta descansar, para levantar cedo no dia seguinte e repetir o ciclo cotidiano. Muitos estão sem roupa, sem cama, sem casa.

    Assédio sexual na Cracolândia

    Na quinta (25), em meio a um ato que levou às ruas da região da Luz a informação omitida pelos veículos de imprensa tradicional de que na Cracolândia também há muitas famílias, uma comissão de moradores da Rua Dino Bueno e Helvétia foi recebida pelo subcomando da Guarda Civil Metropolitana, ali no centro. A ideia do encontro foi denunciar principalmente, a forma truculenta como estão sendo tratados os moradores, pelos agentes da Guarda que atuam no local.

    Algumas pensões do entorno que ainda não foram emparedadas , demolidas ou bloqueadas ainda têm moradores. Eles têm sido constantemente hostilizados e assediados pelos guardas. São abordagens, violências físicas e até assédios sexuais que ocorrem quando voltam para seus quartos nessas moradias, depois de um dia inteiro de trabalho.

    É gente muito pobre, em sua maioria mulheres, e muitas crianças.

    A comandante Lídia, sugeriu que os moradores usassem uma espécie de broche de identificação, mas tal proposta foi imediatamente recusada pelos moradores. Afinal de contas, o que essas pessoas menos querem é ficar ‘marcadas’, para só assim garantirem seu direito de ir e vir sem violência policial. O que os moradores querem é o respeito da GCM.

    O comandante Adelino, responsável pela área, prometeu apurar os casos e orientou os moradores a registrarem queixa na Corregedoria Geral da GCM, que cuida dos procedimentos disciplinares com atitudes isoladas ou não, de guardas que desrespeitem a lei.

    E as aventuras do menino riquinho continuam, sexta (26), Doria tinha em mãos uma liminar que o autorizava a internar compulsoriamente dependentes químicos. Perdeu o poder, quando o promotor Arthur Pinto Filho, entendeu que a liminar feria gravemente o Estado Democrático de Direito e a suspendeu.

    Agora o prefeito vai recorrer à liminar e quem sabe anunciar ao amanhecer, um novo desejo conquistado: sequestrar e internar dependentes de Crack e outras drogas à força. Tudo sob comando de Arthur Guerra e Ronaldo Laranjeiras, integrantes do que ele chama de Comitê Médico, os dois são os soldados de Doria Jr. na argumentação favorável à internação compulsória.

    São Paulo não passa bem neste momento. Doria não quer entender nada.

  • O futebol não será televisionado

    O futebol não será televisionado

    Wilson Simonal eternizou de maneira célebre, na música Aqui é o País do Futebol, os versos que pautam, normalmente, as discussões políticas sobre o esporte:

     

    “Brasil está vazio na tarde de domingo, né?

    Olha o sambão, aqui é o país do futebol

    No fundo desse país

    Ao longo das avenidas

    Nos campos de terra e grama

    Brasil só é futebol

    Nesses noventa minutos

    De emoção e alegria

    Esqueço a casa e o trabalho

    A vida fica lá fora

    Dinheiro fica lá fora

    A cama fica lá fora

    Família fica lá fora

    A vida fica lá fora

    E tudo fica lá fora”

     

    Por mais que as Diretas Já tenham tido influência da Democracia Corinthiana, que o futebol tenha sido uma das principais portas da luta contra o preconceito racial com times como a Ponte Preta e o Vasco da Gama, o futebol é visto como um esporte de manutenção do status quo ou de reacionarismo. Muitas vezes nem é o esporte que faz isso, mas sim pessoas que utilizam a camisa esportiva para motivos extracampo.

    Todo esse senso-comum contra o futebol no Brasil teve uma fagulha de oposição neste último domingo, dia 19 de fevereiro de 2017. As equipes do Atlético Paranaense e do Coritiba entravam na Arena da Baixada decididos a fazer história no primeiro clássico do futebol do Paraná pelo campeonato estadual de 2017.

    Antes da decisão do certame, Atlético e Coritiba recusaram a proposta da RPC/Globo de venda dos direitos televisivos. Apesar de ambas equipes serem campeãs brasileiras – Atlético Paranaense em 2001 e Coritiba em 1985 –, a proposta foi muito abaixo daquela oferecida para outras equipes do Sudeste. Com a recusa, veio a ideia: a transmissão via Facebook pelas páginas oficiais dos dois clubes. Seria algo inédito no futebol nacional.

    Seria, afinal não aconteceu. A Federação Paranaense de Futebol, sem motivo claro – ora foi o não-credenciamento dos profissionais de comunicação, ora foi o posicionamento errado das equipes, mas nenhuma das duas com clareza legal –, proibiu o árbitro Paulo Roberto Alves Junior de iniciar a partida. Em alguns veículos de imprensa, tal como o Zero Hora Online e o UOL, o principal motivo posto foi o contrato da Globo com a Federação Paranaense, que é assinado sem a confirmação da proposta com os clubes.

    A resposta vinda dos representantes das equipes no campo foi clara. “Eu queria explicar para as duas torcidas. Atlético-PR e Coritiba não venderam seus direitos por essa esmola que a RPC e a TV Globo quiseram nos pagar. É um direito nosso. E hoje nós queremos fazer a transmissão de forma gratuita pelo Facebook e pelo Youtube. A Federação de forma absurda não quer que o jogo comece. Mas nós não vamos parar. Os dois clubes não venderam os seus direitos. A Federação de forma arbitrária quer que nós tiremos do ar a nossa transmissão, que não é ligada a nenhuma TV, é uma produtora que nós contratamos. Então não vai ter jogo. Peço desculpas às duas torcidas. Os técnicos estão de acordo. Eu já recebi o telefonema do presidente Petraglia e do presidente Bacellar que concordam com essa decisão”, declarou Mauro Holzmann, diretor de marketing do Furacão, ao jornal esportivo Lance!.

    O resultado desse imbróglio reside no legado das inúmeras imagens dos dois times saudando as torcidas no meio de campo antes de abandonar o jogo e no importante debate da desmonopolização da comunicação brasileira, especialmente no âmbito esportivo. A busca pela liberdade de informação não pode ser feita pela manutenção de velhos monopólios, sejam eles estatais ou privados.

    Equipes do Atlético Paranaense e Coritiba saudam, juntos, as torcidas. Reprodução Youtube

    Os clubes ao decidirem explorar eles mesmos – sob uma forma de comunicação do-it-yourself – a partida de futebol mostram o potencial das redes sociais digitais para uma nova era da transmissão da informação, uma era de liberdade plena de expressão. Liberdade de expressão essa que, muitas vezes, é pregada pelos meios tradicionais de informação em determinados assuntos. Só que, no entanto, quanto tocam em casos onde o monopólio e a restrição de informação os interessa, eles se tornam contrários a essa liberdade vinda das redes sociais digitais.

    O mundo do futebol acordou diante das possibilidades da liberdade de expressão. Sair dos monopólios onde uma única empresa (no caso do Brasil) ou mesmo o Estado (no caso da Argentina) tem a totalidade do controle dos direitos de transmissão do esporte se torna a tarefa primeira da comunicação esportiva nesse fim de segunda década do século XXI. Os clubes precisam expandir suas áreas de comunicação – tanto de jornalismo institucional como de marketing, sabendo bem distinguir o nicho de cada um – e dar possibilidade à pluralidade de vozes informacionais.

    É chegada a hora de não mais defender uma única mídia esportiva, mas sim as inúmeras vozes que formam o caleidoscópio do futebol. É uma oportunidade única em um país onde é fácil assistir a um jogo do Barcelona, mas difícil de ver na TV aberta um jogo que não seja dos 13 clubes grandes do país. O futebol precisa deixar de ser televisionado para cair de vez na rede digital e, com isso, se tornar grande novamente e ligado com o seu povo e suas demandas. É a chance do Brasil se tornar um país do futebol que não seja alienado tal como a música do Simonal, mas que represente direitos fundamentais, tal como o da liberdade de expressão informacional.

     

     

  • Bauman e a utopia iconoclasta

    Bauman e a utopia iconoclasta

    Em 2009 entrevistei o sociólogo Zygmunt Bauman para a revista Cult (clique aqui para ler). Após falar rapidamente pelo telefone, ele me pediu que mandasse as perguntas por email pois não estava com a audição boa. Não sei se foi uma forma educada (ou sarcástica) de dizer que não entendia o meu portinglês. De qualquer forma, enviei as perguntas para o email que ele indicou e dois dias depois chega cerca de 20 páginas de resposta com a recomendação: aproveite o que achar melhor.

    Deu um trabalho imenso ler tudo aquilo, editar e depois mandar para ele revisar. A resposta foi lacônica e rápida: ok. Traduzi para o português, pedi para uma pessoa revisar a tradução e depois gastei dois dias com o designer da revista para montar as páginas em que sairia a entrevista na Cult.

    Foi trabalhoso, mas recompensou (inclusive fiz isto durante as minhas férias de julho que foram quase todas consumidas por este trabalho). Já tinha lido várias obras de Bauman, particularmente as mais filosóficas que são as minhas preferidas – O mal estar da pós modernidade, última obra em que ele ainda utiliza o conceito de pós-modernidade; Modernidade líquida, quando ele passa a usar este conceito no lugar de “pós moderno”; Comunidade – a busca por segurança no mundo atual e Tempos Líquidos (quase uma síntese das idéias das obras anteriores).

    Um dos seus livros mais vendidos no Brasil, Amor Líquido, foi o que menos gostei e Bauman disse que esta foi uma obra produzida rapidamente. Mas no Brasil ela chegou a ocupar as estantes de “auto-ajuda” nas livrarias (santa ignorância!) e muita gente interpretou equivocadamente que Bauman fazia uma defesa enfática dos relacionamentos duradouros ou “para toda a vida” quando o que ele apontava é que a insegurança do mundo contemporâneo penetra nas relações cotidianas e afetivas. Há um filme irlandês que alguns dizem ser inspirado nesta obra, “Todas as cores do amor” (Goldfish memory), dirigido por Elisabeth Gill.

    Bauman era sociólogo e no campo do pensamento crítico e marxista. A brilhante releitura que ele faz de Freud em O mal estar da pós modernidade tem como base as mudanças estruturais na sociedade capitalista contemporânea. Os paradigmas produtivos e societários do capitalismo da era flexível forçam a novos arranjos institucionais (e ele se refere a decadência dos projetos do Welfare State) e isto tem como conseqüência o esvaziamento da esfera pública política – que ele vai afirmar, em Tempos Líquidos, como o divórcio entre o poder e a política – e a responsabilização individual pelos problemas que são de origem social. Daí então que a desregulação social cria uma ambiência em que não ocorre mais o dilema entre segurança e liberdade, de que fala Freud, mas uma guetificação dos espaços – aí a idéia de ordem e limpeza apontada por Freud é aplicada a sociedade contemporânea – e à medida que as relações sociais são guetificadas, a insegurança aparentemente desaparece e os sujeitos têm o direito de serem “livres” dentro dos seus guetos.

    Por esta razão, Bauman faz uma crítica dura (particularmente na sua obra Vida Líquida) à chamada por ele, “esquerda multicultural dos Estados Unidos” por considerar que o problema não é apenas a reivindicação do direito à diferença, mas sim os comandos políticos da sociedade que se deslocaram para as corporações privadas e, portanto, sem qualquer controle social. A desregulação social tem, como única ordem, as exigências do capital, portanto as diferenças culturais podem perfeitamente serem absorvidas pelo sistema se elas possibilitarem novos ganhos para as corporações.

    As obras de caráter mais filosófico de Bauman – O mal estar…, Modernidade Líquida, Tempos Líquidos, Vida Líquida, Amor Líquido – se concentram nesta “insegurança” estrutural da sociedade contemporânea e como as incertezas da condição humana. Na entrevista à revista Cult, ele faz uma metáfora: saímos de uma sociedade de jardineiros para uma de caçadores. Jardineiro é aquele que lavra e cuida da terra no presente para no futuro o jardim florescer. Caçador é aquele que sai a busca da caça para o seu sustento no dia – portanto, no presente. E afirma que em uma sociedade de caçadores, há imensas dificuldades de se florescer um projeto utópico, que ele define não apenas como um lugar distante, mas como “um lugar bom”.

    Bauman afirma ainda que nos dias de hoje é necessário “reinventar a utopia”, sair de uma utopia de projetos para uma utopia iconoclasta, isto é, centrada na constante capacidade crítica.

    Há um outro conjunto de obras de Bauman em que a sua vertente sociológica está mais presente, como Vidas para o consumo, livro em que ele aponta como os poderes constituídos aplicam as máximas de “limpeza e ordem” de Freud na seleção das pessoas que imigram para a Europa. Para o pensador polonês, vivemos em um capitalismo de “excessos”, como uma produção intensiva que demanda um consumo intensivo. Como conseqüência disto, há “consumidores” e “consumidores falhos”, a nova classe de excluídos que compõem os indesejáveis, o “lixo”, os “fora da ordem” submetidos ao discurso impositivo do consumo a qualquer custo, mas sem ter recursos para tanto. Aí, há uma referência a figura mítica grega de Tântalo, o homem que foi punido pelos deuses do Olimpo a ficar preso em um lago com uma árvore frutífera a altura da sua cabeça, podendo ver a água, mas não alcançando para bebê-la e também vendo as frutas mas não conseguindo come-las. Em determinados momentos, há a explosão destes “consumidores falhos” que arrebentam lojas e consomem “à força”, explicação dada por ele nos movimentos de jovens na Inglaterra em 2011.

    A crítica fica mais ácida ao sistema social contemporâneo quando ele afirma o desperdício de vidas (Vidas desperdiçadas), a falência do sistema educacional, o esvaziamento do significado de juventude e a transformação da cultura na sociedade líquida como happenings.

    Pessimismo? Apocalíptico?

    Vemos no Brasil, no seu período histórico mais longevo de democracia (32 anos, contados a partir do fim da ditadura militar e a convocação da Constituinte) cenas de verdadeiro horror no sistema prisional aliado ao cinismo de determinados políticos, meios de comunicação e juristas que mencionam a famosa frase de Darcy Ribeiro de que era preciso construir mais escolas para evitar ter que fazer mais presídios e, ao mesmo tempo, apoiaram a aprovação da Emenda Constitucional que congela os investimentos públicos. Após o golpe parlamentar de agosto de 2016, alianças bizarras acontecendo entre partidos do governo golpeado com partidos golpistas em nome de uma tal governabilidade e um crescimento, nas últimas eleições municipais, da abstenção. E em vários outros países do mundo, a insegurança geral sendo aproveitada oportunisticamente pela extrema direita. Enquanto isto, os ativistas pelos direitos humanos e dos segmentos sociais subalternizados (negros, mulheres, LGBTs, imigrantes) sendo acusados de “vitimismo” e a extrema direita reivindicando o direito “democrático” de expressar seu discurso de ódio e de ataque à democracia.

    Pesquisa da organização Conectas e publicada recentemente na Agência Pública e no jornal El Pais mostra os elos entre as estruturas do judiciário e o executivo do estado de São Paulo a ponto deste sentir-se a vontade para recusar-se a receber a notificação de uma liminar que proíbe o reajuste de tarifas de transporte público. Enfim, o que Bauman nos alerta é que os arranjos institucionais da chamada “modernidade” – os três poderes, o chamado quarto poder, o jornalismo, o “contrato social” – se liquefizeram, os seus formatos são modulados de acordo com as necessidades do capital globalizado.

    Todas as instituições clássicas da modernidade, na qual ele inclui os partidos políticos, os meios de comunicação jornalísticos, as estruturas do poder de Estado, foram deslocadas para serem meros “administradores” de uma sociedade dirigida cada vez mais diretamente pelas corporações privadas (com base nisto, formulei o conceito de ação direta do capital neste artigo).

    Em suma, o que Bauman nos deixa de legado é que as estruturas da sociedade capitalista estão em crise e declínio, entretanto ainda não se constituiu uma alternativa. É o interregno que, se ao mesmo tempo nos deixa com pouco chão para pisar, nos desafia para a avaliação crítica e a constituição de uma alternativa. Este é o sentido da utopia iconoclasta de Bauman.

     

    *Dennis de Oliveira é professor associado e chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP. Atua também como coordenador do CELACC (Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação) e é membro da Rede Antirracista Quilombação. E-mail: dennisol@usp.br

  • É UM NAVIO HUMANO

    É UM NAVIO HUMANO

    Reveillon na avenida expõe a alegria de viver de muitos. Até o fim. Tudo se mostra em credos, confianças e movimentos que celebram. O asfalto vira bar, a guia é passarela e o companheiro é um ilustre desconhecido. Seus gêneros são muitos. Caras, bocas, braços sem retoques querem apenas paz, pedido reto todos os anos. É multidão, é desconhecido. A face de muitos observa, porque observar quieto, cantar só, é senda de paulista, encanto perverso que faz todos fazerem futuro, sonho de busca.

     

     

    Para onde todos olham na rua? Para o céu, vejo bem. A cara de todos é fusão, seu cheiro é suor de fé, descrenças, espera. Sua cor é café, é fumaça de carro, é gente que ocupa. Na cidade não há espaço para vazios, sem receio o meio do mundo se faz aqui e tudo se ajunta e rebola. Segregação se mostra palavra vazia, uma avenida sem contramão em madrugada primeira do ano.

     

    Não quero falar do lixo no asfalto, mas do luxo que treme entre todos  quando a deusa do fim do mundo canta, Elza Soares reina na madrugada, anunciando que o navio humano, quente guerreiro, irá partir, novo ano se anuncia:

     

    “Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida

    Na avenida dura até o fim

    Mulher do fim do mundo

    Eu sou e vou até o fim cantar”

  • Adeus. Rupturas. Despedidas. Perdas. Saudade.

    Adeus. Rupturas. Despedidas. Perdas. Saudade.

    Por Rafael Castilho*, para o Jornalistas Livres
    A maioria das despedidas cotidianas não podemos controlar. Elas simplesmente caem na nossa cabeça como uma bigorna de desenho animado. A gente perde alguém que ama e pronto! A morte, o desencontro, o desamor, o divórcio, a desilusão, a distância, a perda.

    Mas existem aquelas despedidas que poderíamos evitar. Amizades que não precisaríamos perder. Saudades que não precisaríamos sentir.

    Dessas amizades que não deveríamos perder e nem o distanciamento pelo qual deveríamos sofrer, me refiro a especialíssima amizade entre homens e mulheres.

    No ranking das estupidezes humanas, a separação da amizade de homens e mulheres, certamente ocuparia um lugar importante e de destaque.

    Talvez, seja essa uma tragédia irrecuperável. Eu sei que vou causar polêmica e talvez ser lido naquele encontro meio chato onde “só entra casal”. Não pra fazer suíngue, mas para que não haja a presença de elementos externos e ameaçadores à estabilidade tão frágil dos casais. Cada um se encosta num canto da sala, até que alguma alma mais inquieta propõe a discussão se “é possível homens e mulheres serem apenas amigos”. Todo mundo acorda. Vai começar um grande debate. Alguém vai iniciar a narrar a amizade de seu par em “excessiva” intimidade com outra pessoa. Um bom momento para o suicídio. Todos irão mentir.

    A separação entre homens e mulheres se inicia logo na primeira infância. Constroem-se escolas, erguem-se muros, contratam-se seguranças, vendem-se serviços, pacotes de turismo. Meninas e meninos desde bem pequenos são desencorajados a brincar juntos.

    Crescem e continuam sendo separados.

    A amizade entre homens e mulheres é diferente de todas as outras.

    Nenhuma amizade ensina tanto. A amiga ensina para o homem coisas que nenhuma mãe e nenhuma irmã conseguiriam ensinar. Ela aprende também coisas com a gente. Faz perguntas que não teria para quem fazer. Conhece lugares, acessa espaços. Sente-se protegida de perigos, aos quais infelizmente as mulheres são mais vulneráveis. Sempre na companhia de seu fiel escudeiro, pode se divertir mais e melhor.

    Homem gosta muito da amizade de homem. Mas, tem um limite. Com a amiga o homem se sente mais à vontade para ser sensível. Para falar coisas que certamente se sentiria desencorajado a falar para os amigos homens. Não que não possa. Pode. Mas com a amiga ele se sente mais livre para tratar de sentimentos, decepções, fragilidades. Não que a mulher seja só sensível. Ele pode ter um papo de amigão com a amigona numa boa, mas digamos que a mulher consegue capturar certas sutilezas da vida que o homem não consegue. Ser um pouco mais profunda, na maioria das vezes.

    A mulher ama o amigo porque pode descomplicar. É também uma maneira de se reconciliar e reparar aquele momento na infância em que ela foi injustamente obrigada a se arrumar “direito”, cruzar as pernas, ser impedida de brincar com o carrinho, empinar pipa, voltar encardida pra casa. E ela adorava isso. Ficava puta da vida por não brincar com os moleques.

    A gente cresce e se melhora na amizade com o sexo oposto. Recebe do universo aquilo que a própria natureza não pode colocar no nosso corpo. Nos desenvolvemos como seres humanos. Recebemos informações para além do nosso corpo físico.

    E sabe o que é pior? Mente também quem diz que o amigo ou a amiga é um irmão ou irmã. Não tem nada a ver.

    É tão diferente. Nem melhor nem pior. É diferente.

    Pausa.

    Você quer continuar a ler esse texto na sala nessa reunião chata de sábado à noite? Vai dar pau.
    Você sabe porque a imensa maioria das amizades entre homens e mulheres acaba, não é? Não é por causa do namorado nem da namorada. Do marido nem da esposa.
    É por culpa sua!
    Você jogou sua amiga ou seu amigo na lata do lixo, abriu mão da sua amizade, simplesmente porque não suporta a ideia de que seu par tenha o mesmo direito. Então vocês dois se afogam. Se oprimem.

    Bom, quem decidiu continuar no texto…
    Esse texto não é um tratado para que a sociedade aceite a amizade entre homens e mulheres. A verdade é que ninguém deveria pedir permissão a ninguém para ter ou não um amigo. E qual o problema se esse amigo tem um pinto ou uma buceta?
    Os amigos não se olham com desejo? Sei lá. Talvez a maioria das vezes não. Mas e se olhar de vez em quando? Os amigos se olham. É uma sacanagem controlada. É suave.

    O que os melhores amigos falam uns para os outros? Você nunca vai saber. Muito provável que sejam coisas que ele ou ela nunca falaria pra você. O grande barato é esse. Isso que é o foda. Eu sei!

    Mas eu quero propor um brinde às amizades entre homens e mulheres que sobreviveram apesar de tantos encontros e desencontros e de tantas relações possessivas.
    Quero brindar às amizades que foram recuperadas depois de anos no exílio por conta de relacionamentos cheios de ciúmes doentios.
    Outro brinde às amizades que sobrevivem hoje na clandestinidade. Um brinde aos casais de amigos que se encontram neste momento em um lugar desconhecido, longe de tudo e de todos, sem que ninguém saiba, apenas para bater um papo, colocar a conversa em dia e matar a saudade que já estava machucando os corações.
    Um brinde àqueles que não morrem de remorso nem de culpa pois se recusaram a perder as amizades da vida toda por conta de ciúmes e possessão.
    Um brinde também aos casais que se amam e sabem conviver com a amizade de seus pares, ainda que estas sejam do mesmo sexo que o seu. Estejam certos que vocês estão construindo uma linda história de amor. Uma fortaleza.

    Por fim brinde às amizades que ainda serão retomadas. A vida passa tão rápido. Nesse mundo com tantas coisas efêmeras. Nessa vida agitada onde a gente consegue se perder da gente mesmo. Onde o desencontro é permanente. Nessa sociedades de consumo onde tudo é descartável. Eu quero te dizer uma coisa. Amizade não se compra no shopping. Se você teve a felicidade de receber da vida uma pessoa especial valorize isso. Se a vida te presenteou com um amigo ou uma amiga, trate de aproveitar. Com o tempo você vai perceber o quanto isso é valioso.
    Com o amor a gente é mais saudável.

    *Rafael Castilho é sociólogo com especialização em Política e Relações Internacionais e em Gestão Pública. Também é coordenador do Núcleo de Estudos do Corinthians.

  • O bagulho é louco

    O bagulho é louco

    SARAU DA PEDRA MOSTRA QUE A CRACOLÂNDIA NÃO É SÓ CRACK. TEM ARTE, RESISTÊNCIA E RENASCIMENTO

    Por Flávia Martinelli, Sato do Brasil e Adolfo Várzea/Jornalistas Livres
    Fotos: Sato do Brasil/Jornalistas Livres

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    Se no meio do caminho tinha uma pedra, nada impede que no meio de uma pedra exista um caminho. E nele, um sarau. Ali, no coração da Cracolândia, ponto excluído até dos moradores mais excluídos de São Paulo, música, dança, arte e poesia abriram um clarão na noite desta quarta-feira (25). Foi o Sarau da Pedra, nome perfeito para a linda iniciativa do projeto Casa Rodante/ Cidadania Rodante, que faz parte do “De Braços Abertos”, projeto de redução de danos da Prefeitura, parceria do coletivo casadalapa, Associação Sabiá e Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo.

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    Com um carro de som (curiosamente criado em forma de carroça) e um projetor de vídeo na rua, o que se viu foi alegria e até leveza no quarteirão entre o largo Coração de Jesus e a rua Dino Bueno, no mal iluminado bairro da Luz. Os microfones estavam abertos para quem quisesse se apresentar e havia público para prestigiar. Para um desavisado, aquele poderia ser só mais um sarau de rua como outro qualquer: com risadas, abraços, poses para fotografias, bate-papo sobre causos e histórias de vida, espaço para mostrar aos parceiros que se sabe cantar, dançar ou até fazer performance caprichada para a vizinhança.

    803718980_11244343301597820595Mas o Sarau da Pedra aconteceu em meio ao vai e vem do fluxo – o emaranhado de gente na busca ou no delírio da pedra. Isso, no entanto, não impediu que muitos interrompessem a marcha da fissura para prestigiar uma transsexual cantando Cássia Eller e Maria Rita ou aplaudir a dupla Chineladaaa, por exemplo. O show de do DJ Will Robson e do performer e escritor Pedro Guimarães misturou eletrofunk com imagens da pornochanchada brasileira, desenhos japoneses dos anos 80 e 90 e poesia social urbana. “O bagulho aqui foi louco”, descreveu uma espectadora. “Foi uma noite especial, a Cracolândia tá mudando e vai mostrar para a sociedade que aqui tem cultura. Eu hoje ocupei o meu tempo. Precisamos de quem faz algo diferente pra cair na mente e deixar o crack de lado.”

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    É, o bagulho é louco…

     

    Júlio Dojcsar, cenógrafo, grafiteiro, artista plástico que faz parte da organização do sarau e há dois anos trabalha na Cracolândia dá sua definição lugar: “aqui não é só crack. A Cracolândia é um quilombo urbano, é negra. É também uma área de resistência contra a especulação imobiliária e de resistência contra uma política de drogas super militarizada. É um tapa na cara da sociedade”.

    Júlio fala de problemas que vão muito além da pedra e acredita que o local precisa ser entendido como uma zona de exceção. “Só assim seremos capazes de enxergar a Cracolândia a partir das leis e valores dela. E não a partir dos olhos de uma sociedade hipócrita que tem uma classe média que compra Rivotril por R$ 6,50 e coloca o dedo na cara de um usuário para dizer o que ele pode e não pode fazer”.

    “Aqui não é só crack. A Cracolândia é um quilombo urbano, é negra”

    Júlio lembra que quem vive na Cracolândia está à margem até dos mais marginalizados. “A sociedade trata a todos aqui como um bando de almas nuas, sem valor. Consideram os usuários menos que um morador de rua, menos que um bicho. Mas a gente que está aqui dentro olha tudo de um outro jeito. Quando vejo esse sarau, acho que sociedade pode mudar. E rápido. Como? Com menos revólver na cara e mais respeito e amor. Com o bairro sendo um espaço de quem vive nele. E com a rua sendo de todos. Sendo nossa.”

    803717905_2050651722057916131 Falar dessa apropriação num bairro como a Luz ganha ainda mais relevância. O que se chama de Cracolândia é na verdade um depositório de usuários que muda de lugar conforme as pressões do mercado imobiliário do centro de São Paulo. Em 2005, o tudo piorou por causa do projeto Nova Luz, da gestão do prefeito Gilberto Kassab, que desfigurou completamente o bairro em planos de desapropriação para a construção de edifícios comerciais. Assim, não espanta o fato de a Cracolândia ter mudado de endereço conforme avançava a compra de imóveis por um conglomerado de empresas, hoje capitaneadas pela seguradora Porto Seguro que instalou sua sede na região.

    “Aprendi a viver a vida contando que não vai dar tempo. Mas agora eu acho que vai dar, sim”

    Várias casas dos arredores onde o Sarau da Pedra foi realizado já estão vendidas ou em vias de serem arrematadas. A preço de banana, claro. “Quando tudo estiver comprado e os novos imóveis começarem a ser construídos, facilmente vão empurrar os moradores do fluxo para outro lugar e teremos outras Cracolândias”, explica Julio, dessa vez interrompido por um morador que quis participar da conversa.
    É Carlos Badarós que fez questão de dizer que sua família foi cigana e que ele aprendeu a “viver a vida contando que não vai dar tempo”. Badarós diz isso enquanto enumera balas alojadas e vários remendos que fez pelo corpo. “Já pensou se você vivesse a minha vida? Você ia achar que não ia dar tempo. Mas agora eu acho que vai dar, sim. Já cheguei aos 61 anos, até que deu tempo de viver muita coisa.” Júlio concorda. Afinal, se no meio do caminho tinha uma pedra, nada impediu que no meio de uma pedra existisse um caminho para Badarós. E, no caminho, um sarau onde Badarós disse que ainda dá tempo. Há de dar.

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