Quem percorre o Vale do Jequitinhonha no extremo Nordeste de Minas, quase divisa com o sul da Bahia, vê ao longe um conjunto de belas pedras de granito como se tivessem sido despencadas numa chuva de meteoritos. É difícil passar por ali e conter a vontade de ir ver de perto, afinal, a pacata e hospitaleira cidade de Rubim fica logo ali. Pois bem, foi neste belo lugar que um antigo quilombo volante, certamente vindo do interior da Bahia, resolveu se fixar de vez, esquecendo-se do tempo e da chamada civilização, vivendo ali esquecido, isolado. São os Quilimérios, um nome de origem desconhecida.
Uma equipe de cineastas e jornalistas de Belo Horizonte esteve lá e fez o interessante curta-metragem chamado Quilimérios, um documentário de 24 minutos que trata da história deste povo que vive isolado desde o século XIX, na parte mineira do Vale do Rio Jequitinhonha, que logo depois deságua no litoral baiano. Escondidos entre altas pedras de lugares quase inacessíveis, os Quilimérios ainda são desconhecidos por muita gente que vive até mesmo na própria região.
O curta Quilimérios conta um pouco da história deste povo, mostra cenários deslumbrantes e lugares quase intocados do Baixo Jequitinhonha, filmados praticamente com celular e drone, “o que o torna um produto experimental e inovador”, afirma Emerson Penha. O diretor do curta revela que ir a esta comunidade e fazer o documentário foi muito significativo: “É impressionante, nos dias de hoje, com tanta tecnologia, um povo permanecer isolado. Por outro lado, é importante poder mostrar que o mundo tem lugar para todos, independentemente do seu jeito de ser e viver. Todos têm direito a viver como desejam e isso precisa ser respeitado”, observa.
Na região do Baixo Jequitinhonha, divisa entre Minas Gerais e Bahia, as pedras gigantes marcam o caminho do rio. A muralha natural isola tudo, até mesmo a passagem do tempo. Nesse cenário, os Quilimérios vivem como no século XIX. Para eles, o isolamento foi a única opção e até hoje o mistério de sua existência permanece. A explicação sociológica mais razoável é que seriam remanescentes dos quilombos volantes, grupos nômades formados por afrodescendentes que escapavam do cativeiro, indígenas expulsos de suas terras e mesmo brancos que fugiam das cidades por diversas razões.
A história que se conta entre várias gerações na região de Rubim, cidade mais próxima e de pouco mais de 10 mil habitantes, é que esse grupo de pessoas foi formado a partir da fuga de um ex-escravo, Juca Preto, contratado por um fazendeiro da vizinha cidade de Pedra Azul para matar alguém importante. Após cometer o crime, Juca fugiu para a região onde seus descendentes vivem até hoje e que permanece quase inacessível. Ali só se chega a pé ou a cavalo. Na fuga, Juca levou uma índia, com quem teria dado início à família dos Quilimérios. São pessoas muito reservadas, que cultivam costumes antigos e têm hábitos comportamentais como o casamento endogâmico. Atualmente restam apenas alguns quilimérios remanescentes, já que as novas gerações vêm se transferindo para Rubim.
Quilimérios é um filme de Emerson Penha, com música de Túlio Mourão, fotografia de Fábio Damasceno, produção de Zu Moreira, edição de Rafael Diniz (Fiel) e argumento de Tião Soares.
Da: MediaQuatro especial para os Jornalistas Livres
Desde de 2019, com as manifestações contra os cortes na educação e a deforma da previdência, Cuiabá não juntava tanta gente nas ruas. E talvez nunca tenha havido tamanho contingente policial, incluindo helicóptero, para o improvável caso de “vandalismo”. Mas era mesmo de se esperar. Afinal, o racismo estrutural brasileiro em uma das capitais mais conservadoras do país exige que se trate os pretos e pretas sempre como potenciais criminosos. BASTA! O país não pode mais conviver e não conseguirá sequer viver como nação integral enquanto houver preconceitos que se refletem em práticas cotidianas e políticas públicas que oprimem e excluem a maior parte da população.
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Chegamos a um ponto no Brasil que não é mais suficiente não ser racista. É preciso lutar contra o racismo, nas ruas, nas redes, nos campos e nas casas. E a luta antirracista é central na derrubada do governo Bolsonaro e suas políticas genocidas na economia, na segurança pública e na saúde. Foi por isso que, apesar da necessidade de se intensificar o isolamento social, fomos à Praça Alencastro e marchamos pelas avenidas Getúlio Vargas, Marechal Deodoro, Isaac Póvoas e BR 364 para retornarmos à Praça da República sem qualquer incidente.
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Assim como em outras cidades e estados por todo o Brasil, em Cuiabá e Mato Grosso os negros e negras são maioria e são exatamente os corpos pretos os mais encarcerados, os pior pagos, os que vivem nos lugares mais distantes, os que mais precisam trabalhar fora de casa durante a pandemia (e muitas vezes sem sequer os equipamentos de proteção adequados) e os que mais são atingidos pela Covid-19. Isso não é uma coincidência. É resultado de quase 400 anos de escravidão formal, que em Mato Grosso também vitimou indígenas em larga escala, e de uma abolição inconclusa que indenizou os “proprietários” de pessoas mas nunca pagou a dívida histórica com quem sente na pele seus efeitos até hoje.
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É fato que o assassinato do estadunidense negro George Floyd foi o estopim dos protestos antirracistas em todo mundo e também no Brasil, onde houve atos em pelo menos 20 cidades, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Mas por aqui, as mortes do menino Miguel, do adolescente João Pedro e dos jovens em Paraisópolis, só pra citar alguns casos mais representativos nos últimos seis meses, demonstram cotidianamente o que significa ser alvo do preconceito, da polícia e das políticas.
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Desse modo, derrubar o governo o quanto antes o governo do fascista que ocupa a presidência é indispensável para conseguirmos combater a epidemia de forma minimamente eficiente. E tirar apenas o presidente não é suficiente, porque seu vice e ministério são igualmente racistas, como está provado em entrevistas antes mesmo das eleições, em pronunciamentos em eventos e na fatídica reunião ministerial.
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Enquanto não derrubarmos as políticas estúpidas da “guerra às drogas”, do encarceramento em massa, da concentração de renda, do agronegócio acima da agricultura familiar, não há presente para o país. E enquanto não investirmos em políticas públicas de igualdade racial e de gênero, de proteção às minorias e à diversidade, e de promoção dos direitos humanos a TODOS e TODAS, incluindo a punição de policiais assassinos, milicianos e racistas, não haverá futuro também.
Mais de 1 milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens foram submetidos ao assassinato e à tortura de forma programada pelos nazistas com o objetivo de exterminar judeus e outras minorias. Nos primórdios da Itália fascista, os camisas negras – milícias paramilitares de Mussolini – espancavam grevistas, intelectuais, integrantes das ligas camponesas, homossexuais, judeus. Quando a ditadura fascista se estabeleceu, dez anos antes da nazista, Mussolini impôs seu partido como único, instaurou a censura e criou um tribunal para julgar crimes de segurança nacional; sua polícia secreta torturou e matou milhares de pessoas. Em 1938, Mussolini deportou 7 mil judeus para os campos de concentração nazista. Sua aliança com Hitler na 2ª Guerra matou mais de 400 mil italianos.
Perdoem-me relembrar fatos tão conhecidos, ao alcance de qualquer estudante, mas parece necessário falar do óbvio quando ser antifascista se tornou sinônimo de terrorista para Jair Bolsonaro. Os direitos universais à vida, à liberdade, à democracia, à integridade física, à livre expressão, conceitos antifascistas por definição, pareciam consenso entre nós, mas isso se rompeu com a eleição de Bolsonaro. O desprezo por esses valores agora se explicita em manifestações, abraçadas pelo presidente, que vão de faixas pelo AI-5 – o nosso ato fascista – ao cortejo funesto das tochas e seus símbolos totalitários, aqueles que aprendemos com a história a repudiar. Jornalistas espancados pelos atuais “camisas negras” estão entre as cenas dessa trajetória.
A patética lista que circulou depois que o deputado estadual Douglas Garcia(PSL-SP) pediu que seus seguidores no Twitter denunciassem antifascistas mostra que o risco é mais do que simbólico. Depois do selo para proteger racistas criado pela Fundação Palmares, e das barbaridades ditas pelo seu presidente em um momento em que o mundo se manifesta contra o racismo, e que lhe valeram uma investigação da PGR, essa talvez seja a maior inversão de valores promovida pelos bolsonaristas até aqui.
A ameaça contida na fala presidencial e na iniciativa do deputado, que supera a lista macartista pois não persegue apenas os comunistas, tem o objetivo óbvio de assustar os manifestantes contra o governo e de açular as milícias contra supostos militantes antifas, dos quais foram divulgados nome, foto, endereço e local de trabalho.
É a junção dos “camisas negras” com a Polícia Militar, que já se mostrou favorável aos bolsonaristas contra os manifestantes pela democracia no domingo passado em São Paulo e no Rio de Janeiro. E que vem praticando o genocídio contra negros impunemente no país desde sua criação, na ditadura militar, muitas vezes com a cumplicidade da Justiça, igualmente racista.
Como disse Mirtes Renata, a mãe de Miguel, o menino negro de 5 anos que foi abandonado no elevador pela patroa branca de sua mãe, mulher de um prefeito, liberada depois de pagar fiança de R$ 20 mil reais, “se fosse eu, a essa hora já estava lá no Bom Pastor [Colônia penal feminina em Pernambuco] apanhando das presas por ter sido irresponsável com uma criança”. Irresponsável. Note a generosidade de Mirtes com quem facilitou a queda de seu filho do 9º andar.
Neste próximo domingo, os antifas vão pras ruas. Espero não ouvir à noite, na TV, que a culpa da violência, que está prestes a acontecer novamente, é dos que resistem como podem ao autoritarismo violento. Quem quer armar seus militantes, e politizar forças de segurança pública, está no Palácio do Planalto. É ele quem precisa desembarcar. De preferência de uma forma mais pacífica do que planejam os fascistas para mantê-lo no poder.
“Esse horror que é a morte do menino Miguel é a história com mais símbolos de que eu tenho lembrança:
A empregada que trabalha durante a pandemia;
A empregada, mãe solo, que não tem com quem deixar o filho;
A empregada é negra;
A patroa é loura;
A patroa é casada com um prefeito;
O prefeito tem uma residência em outro município, que não é o que governa;
A patroa tem um cachorro, mas não leva ele pra passear, delega;
A patroa está fazendo as unhas em plena pandemia, expondo outra trabalhadora;
A patroa despacha sem remorso o menino no elevador;
O menino se chama Miguel, nome de anjo;
O sobrenome da patroa é Corte Real;
A empregada pegou Covid com o patrão;
A empregada consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré;
Tudo isso acontece nas torres gêmeas, ícone do processo e verticalização desenfreada, especulação imobiliária e segregação da cidade do Recife;
Tudo isso acontece em meio aos protestos Vidas Negras Importam;
Tudo isso acontece no dia em que se completaram cinco anos da sanção da lei que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil;
É muita coisa, muito símbolo.”
Texto por Joana Rozowykwiat (@joanagr) (@JoanaRozowyk)
Mulheres brancas fazem paredão entre polícia e manifestantes negros em Minneapolis
Você está me sufocando. Em todos os lugares você é privilegiada, ô branquitude!
Em todos os lugares ditos importantes, para mim e minha gente entrarmos temos que ser verdadeiros gênios, vitoriosos e sobreviventes de todos os obstáculos que você põe na pista para a gente nunca chegar.
Você fala em meritocracia sendo que poucos tem mil carros e outros nem uma cama pra se deitar? Um livro, um silêncio para se concentrar? Condições desiguais ferem o critério do mérito. O bom Estado é o que garante a dignidade de seu povo. Por isso é público! Ser público é ser representante do povo. E é por isso que você, branquitude, não gosta de um Estado igualitário.
Na tevê, de repente, surge Ronilso Pacheco, professor da Universidade de Columbia. Negro. Precisou filmarem a morte de George Floyd a sangue gélido, para que o chamassem como comentarista na televisão. Até então não se via um infectologista, uma pesquisadora, um médico, uma defensora dos direitos humanos, uma jurista, um advogado, uma psicanalista ou um enfermeiro negros sendo entrevistados. É como se não existissem. Estou falando de formação de pensamento, estou falando de voz.
Me irrita muito você me dizer que não reparou nisso.
Me choca muito sentir você infectar o ar com seu nojo de pobre, nojo de trabalhador. Seu desprezo por quem anda de ônibus, por quem come um prato muito cheio de comida, por quem não sabe distinguir uma taça de vinho de uma taça de champanhe. O lixo da Casa Grande é imenso e lhe deixou marcas através desses tantos séculos que não sei como isso não te constrange tanto quanto me machuca.
Branquitude, seu domínio está em todas as estruturas de poder.
Como um velho menino ou uma velha menina dona da bola que, se o jogo pender para um lado que não a favoreça, ela segura a bola. Se você visse pelos meus olhos também veria algo muito familiar na cena de um policial branco em Brasília, nesse momento, espancando as costas nuas de um homem negro em situação de rua. Sem motivo. São onze e meia da manhã. Ontem também vimos uma senhora branca racista raivosa, vestida de verde e amarelo, armada com um taco de basebol na manifestação antirracista, provocando todos os pretos ali. Deu tudo na televisão. Tem crianças vendo isso.Isso é a crueldade da senzala moderna cheia de grades que não vemos mas sentimos.
Na reunião de “demônios“ que houve no dia 22 de abril, dia também em que sujos brancos portugueses chegaram aqui com o mal costume de não tomar banho, não havia um negro sequer e era uma reunião de brancos em um filme sem mocinho. No entanto, nas estruturas todas de poder, tem sempre a branquitude como um detector, que se move em lugares estratégicos, focado em nos deter e barrar, como se o mal todo se concentrasse nos pretos.
As estéticas, os saberes todos vêm envoltos numa embalagem onde o modelo exemplar do ser humano é eurocêntrico e cuja propaganda tem como perfeição a lourice de olhos azuis. Tal modelo foi esfregado em nossa cara, nos oprimindo, para que ficássemos sendo o lado negativo da história, os exóticos sem beleza, por muitos e muitos anos. Reagimos, nos estruturamos, fomos catando os cacos, acionando cada vez mais as informações e as experiências da ancestralidade e da diáspora para que nos reerguêssemos. Mesmo sabedora de que “quem dá luz a cego é bengala branca e Santa Luzia”, eu vou explicar: Diáspora é a África espalhada pelo mundo, uma espécie de pátria global de africanos. Sem essa força e esse diálogo entre nós, ficaria muito difícil brigar contra as Cinderelas, Brancas de Neve e princesinhas Barbies que amalgamam o imaginário do feminino na cabeça de uma sociedade que se pensa ainda como senhora de escravos.
Ô branquitude, você conseguiu se blindar de tal maneira que, mesmo que haja uma série de crimes cometidos por brancos nas empresas, na política, na corrupção em compras de respiradores, exatamente na hora em que o povo luta para respirar, ninguém diz que branco é bandido, ninguém diz que branco é psicopata, frio, traidor. Ninguém racializa qualquer ação malévola sua, ô branquitude. Fizesse um negro 0,1% das iniquidades desse genocida que está na presidência, não faltaria boca a dizer: só podia ser preto. Tô de saco cheio, sabe? Cansada de lutar contra esse racismo estrutural há décadas! Trago também a luta do meu pai, e dos muitos que me precederam.
O que é sordidamente curioso é que você é violenta todos os dias contra nós e toda vez que reagimos, ouvimos sempre uma boca branca dizer: “Como esses pretos são radicais!” Ora, nos matam indefesos e nós é que somos os violentos, branquitude?! Amanheci com uma consciência plena do que li nas palavras de Angela Davis: não existe democracia sem uma democracia racial.
É de mentira essa nossa democracia. É de mentira a americana também.
Isto significa que a nossa é falsa, que muitos dos que lutam por ela não estão lutando direito. Sabe-se que, para tal desigualdade ocorrer no país, é preciso que haja uma sistêmica e profunda injustiça. Sem trégua.
Você sabe o que eu quero dizer, branquitude, eu tô falando com você. Você sabe também como você custa a compreender que, não só a nossa gênese, mas a de todos os seres humanos é africana, como também somos iguais e às vezes melhores do que você. Qual o problema? Que jogo é esse de ganhar sempre? O que aconteceu com as leis do quintal da infância? Lembro que alternávamos. Se você realmente entra num restaurante que só tem brancos e acha que tá tudo bem, se você está naquele clube, naquela ala vip do hospital, está aí no camarote onde só tem branco, mesmo que seja pra ver o samba? E acha que tudo isso é normal, meu papo é mesmo contigo. Numa investigação rigorosa e ampla, certamente acharíamos seus vestígios, suas digitais onde você colabora para não ceder um pingo do seu privilégio em prol de uma igualdade.Me preocupam seus filhos: crianças brancas que crescem ao lado de crianças brancas ricas, se encontram no clube com as mesmas crianças brancas ricas, depois vão ser colegas: chefes dos bancos, diretores nas tevês, como num túnel de ouro, onde o lugar pro sucesso é seguro e independe de qualquer meritocracia, vamos combinar.
Repara que, não é à toa, se a gente for analisar, que tinha maioria branca nas ruas a favor do impeachment da Dilma, tem maioria branca nos 30% que ainda não se livraram do cabresto bolsonarista. Você acha que é coincidência? Por que tanta gente se incomodou com a PEC das domésticas? Quem se incomodou? A branquitude.Você queria que tudo seguisse como sempre na nossa escravidão moderna explícita: senhoras trabalhando todo dia desde às cinco da manhã para por os meninos pro colégio, até as onze e meia quando o marido vem daquela “reunião” que foi até mais tarde. A PEC veio regular um serviço de escravização urbana, normatizado aqui por muitas pessoas de “bem”, que hoje são minhas destinatárias. O seu silêncio e sua inação em não mexer uma palha nesse tema, como se não fosse assunto seu, matou João Pedro.
Sei que é pesado dizer isso, mas quem cala consente e, enquanto não houver um grupo de brancos anti-racistas neste país que entenda que esse jogo está podre, a branquitude toda estará mancomunada com os crimes raciais nesta terra. É cúmplice, sim senhora!
Por que seus filhos crescem e só se casam com brancos? Por quê? Não, não é gosto.
Sua educação foi estruturada na hegemonia e na homogeneidade; é gente que, sai governo, muda governo, e o cardápio não muda, e nada se altera. Educação rigorosamente racista. Seus filhos cresceram com a lição de que pretos só servem para servi-los: a babá, o motorista, a cozinheira de estimação que está na família há 60 anos. “Oh, como gostamos da Dedé, pra nós ela é da família…” Ah é, então eu pergunto qual é o nome, qual é o sobrenome da Dedé? Onde nasceu? Tem irmãos, tem mãe?
Que de família que nada, conta outra, ô branquitude! No quarto dela tem aquela televisão meio ruim, não tem janelas, o chuveiro levemente em cima do vaso, formando um mix de box e louça sanitária sem direito à cortina ou qualquer outra divisão. Gente, haver dependência de empregada, esse nome, tudo é um escândalo! Você não repara não? Você que enche sua boca para dizer… ”é gente de favela“… êpa êpa, eu pergunto: quem é você? O que você sabe dela? Tem tanta preciosidade numa comunidade que dependendo de quem me lê agora, digo: limpe a boca pra falar o nome dela. Respeite a favela!
É isso, acordei atravessada, sentindo dificuldade, metafórica, de respirar. Vendo esse ar empesteado de preconceito, de segregação, de apartheid; nosso território está sanguinário, você nos trata todo dia com violência, duvidando da nossa potência, duvidando do nosso saber, desprezando nossa cultura por ignorância e soberba, mistura letal donde não brotará um homem sábio. Seus filhos não casam com negros porque precisam casar com pessoas do seu “nível “, pois por gerações, sua família, mesmo que tenha sido uma família progressista e muitas vezes uma família de esquerda, seguiu tal cartilha separatista. Quem fala aqui é de esquerda, chamo até de esquerda raiz, pois me desconstruo todo dia, me reeduco, me curo a duras penas do machismo tóxico, remexo meus preconceitos, e me ajeito junto aos muitos que querem mexer no caldeirão da história a favor também dos que sempre foram sacaneados pelos que a escreveram.
Não se assuste, muitas palavras e seus sentidos estão sendo vilipendiados nesse momento pela milícia virtual das fake news. Ser de esquerda é nada mais, nada menos do que querer ver o Estado honrando os impostos que pagamos e que os divida igualitariamente para todos e ainda taxe mais um pouco quem ganha muito mais. Sou a favor da distribuição de renda, a favor de pobres terem direito a uma educação de alto nível e uma saúde igual. Não consigo compreender quem não veja ainda, à luz do recorte racial, a pobreza, a população carcerária, a população em situação de rua, os orfanatos e as crianças que neles sobram. Tudo preto.
Vivemos numa máquina de moer preto na nossa cara. Você branquitude, é também quem mandou prender o pai do menino que pode ficar anos preso por ter tentado roubar um celular e que talvez seja condenado por algum juiz branco envolvido no desvio de milhões na compra de leitos. Quem está na fila hoje, você sabe, dos hospitais, em seus corredores, é quem sempre lá esteve.Gente que morre querendo respirar esperando leito, consulta, órgão, médico, atenção: maioria negra.
Você não pode dizer que não tem nada com isso. A parte que sobra na sua vida, em dignidade e cidadania, é que está faltando na vida de muitos pretos do país que você diz amar. Que loucura! Há situações em que a religião fica tão perto do armamento que talvez seja melhor ser ateu para ser mais revolucionariamente cristão. Não sei. Veja aí branquitude, é contigo mesmo. Se eu fosse um de vocês me apressaria em limpar minha barra provando que não sou racista, que não tenho pensamento torto e eugenista, e mais do que isso, que sou anti-racista! Se eu fosse branca seria essa minha bandeira principal.
Outro dia, antes da pandemia, na praia, uma moça me disse: ”Meu deus, que pele boa, não acredito que vocês tenham uma pele boa assim sem rugas, isso não é justo!!!” Tratava-se de uma Barbie. Deu quase pena, mas não poupei, olhei bem dentro dos olhos dela e perguntei: Realmente você acha injusto que vocês não tenham uma pele tão boa quanto a nossa, você acha injusto isso também? Um silêncio esmagador se estendeu como um tapete curto entre nós. Quase um perigo. Ninguém sabia de quê. Sei que estou dizendo coisas aqui que, como diz minha amiga querida Flávia Oliveira, não é nem nesse andar que se estuda. É no prédio do ensino fundamental.
Mas te escrevo, porque vi uma barreira de brancos antirracistas na frente dos pretos americanos, enfrentando a polícia e dizendo com a coragem que a democracia exige: “E agora, em nossos corpos brancos, vocês vão atirar também?“. Inspirada nesse gesto, comecei a te escrever essa carta.
A sensação de não conseguir respirar por tanto impedimento que há na circulação social do negro em cada parte, sem descansar, é também asfixiante. É difícil se constituir um ser humano negro decente sem ser confundido com ladrão ou com bandido, como um condenado a princípio, bem antes do direito de ser inocente.
Ainda bem que confio nos filhos dos nosso movimento negro, os que já cresceram com cabelos crespos e auto-estima, vendo em alguns livros protagonistas negros. É isso! Estamos avançando no quilombo moderno! A diáspora está cada vez mais conectada, o levante americano só não tomou definitivamente as ruas do Brasil, por causa da pandemia. Mas nos aguarde. E corra agora atrás do seu prejuízo, ô branquitude!
Escuta: tira o joelho do meu pescoço! Pela milésima vez, estou te dando a chance de não ser mais assassina.
O Projeto “Contração” surge por uma necessidade de contato durante o período de quarentena e está sendo realizado na Cidade de São Paulo, Brasil. Idealiza uma visita, na intenção de encurtar distâncias entre sentimentos. O objetivo é pensar os meios de comunicação e as possibilidades de interação neste momento. O uso da tecnologia como ferramenta de aproximação, revelando a saudade.
“Contração” busca que, ao menos uma das pontas, seja “real”, em corpo físico. Pesquisa formas de contato fazendo uso de um drone. O drone como extensão dos meus olhos.
Faço um convite às avessas: convido-me para adentrar e para a troca, através de uma proximidade segura – uma das únicas formas possíveis de se fazer uma visita nesse momento – sem toque, sem físico… o olhar.
Retrato estas pessoas em suas casas, seus espaços possíveis. São a minha comunidade, meus vizinhos e minha rede de apoio. Cada qual vivendo em seus casulos, lugar onde aprendem o significado de reviver, o contexto espacial que lhes é possível, na tentativa de segurarem a vida… A deles e a de todas e todos.
Poder estar em casa neste momento, sabemos! já começa a ser um privilégio. No Brasil, vivemos um colapso político, além de todo o colapso já causado por uma pandemia. Trabalhar remuneradamente, quase já não faz parte do cotidiano da maioria do brasileiros e brasileiras, seja ele ou ela da classe social que for. Estamos à deriva, soltos à plena “sorte” e caminhando para uma situação de desumanidade geral.
Lembramos aqui da importância de se estar em casa e gritamos alto, cobremos por políticas públicas que nos dêem condições de permanecer… Sobretudo Vivas e Vivos.
O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.