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Categoria: Ciência

  • Vinte mil voluntários vão proteger mil nascentes do Rio Doce

    Vinte mil voluntários vão proteger mil nascentes do Rio Doce

    Ricardo Campos, do Boas Novas MG

    Um exército de 20 mil voluntários vai ocupar uma região entre Minas Gerais e Espírito Santo no Dia Mundial do Meio Ambiente, comemorado em 5 de junho, por uma causa nobre: proteger, num único dia, mil nascentes da Bacia do Rio Doce, uma dos mais importantes, mas também uma das mais castigadas, da região Sudeste. A iniciativa, inédita no país, é do movimento Todos pelo Rio Doce, uma entidade criada no final de 2016 por voluntários amantes do rio e da causa ambiental.

    No mesmo dia 5 de junho o movimento vai também fazer uma grande ação educativa, no maior número possível de escolas de todo o país, tanto públicas como privadas, para conscientizar os alunos sobre a importância da preservação dos rios, tanto para o meio ambiente como para a espécie humana.

    Como a intenção é atingir um grande número de jovens, o movimento está preparando videoaulas sobre o tema para distribuir a todas as escolas interessadas em abraçar a causa. O governo do Espírito Santo, por meio da secretaria de Educação do Espirito Santo está apoiando a ideia e os organizadores iniciaram negociações com a Secretaria de Educação de Minas Gerais.

    “Estamos organizando um grande dia em defesa do rio Doce. Mas precisamos conseguir trazer a sociedade civil para essa causa. Caso contrário, passaremos gerações sem ver o rio plenamente recuperado. Por isso, convido todas as pessoas que sabem da importância da preservação dos nossos rios para participar do movimento Todos pelo Rio Doce”, disse o economista e ativista ambiental Theo Penedo, o idealizador da iniciativa.

    Os números da operação são gigantescos. Para atingir a meta de cercar mil nascentes num único dia, os organizadores vão precisar de 170 mil estacas, 29 mil mourões/esticadores, 2 milhões de metros de arame, 676 mil grampos, 4 mil martelos, 2 mil cavadeiras de 2 bocas, 15 mil peneiras, 15 mil pares de luvas, além de kits de primeiro socorro, alimentos (frutas, água, café) e transporte para os voluntários.

    Cruz Vermelha apoia a causa

    O custo da operação estimado pelo movimento Todos Pelo Rio Doce é de R$ 20 milhões. Mas tudo, absolutamente tudo, virá de doações de empresas e de voluntários que querem ajudar a recuperar o rio. Os coordenadores já conseguiram o apoio do Instituto Terra, que desenvolve há anos um trabalho de recuperação de nascentes, da Cruz Vermelha do Espirito Santo, que ficará encarregada da segurança e da saúde dos voluntários no dia 5, e do governo capixaba.

    Outro grande esforço dos organizadores é reunir, no dia 5 de junho, as 20 mil pessoas necessárias para realizar o trabalho de cercar as mil nascentes. Por enquanto, aproximadamente mil pessoas já se ofereceram para fazer parte desse exército do bem. Uma operação desse tamanho, 100% realizada por voluntários, e num único dia, nunca foi feita no país.

    E o número de 20 mil tem uma explicação. Como a meta é cercar mil nascentes, para cada uma delas é necessária uma equipe de aproximadamente 20 pessoas. A cerca de proteção de cada uma das nascentes tem um raio de 50 metros, o que vai exigir 170 estacas.

    Os voluntários, no dia 5, vão colocar e fixar as estacas, colocar e esticar o arame e pregar os grampos. Previamente, o movimento vai realizar, também com o apoio de parceiros, o roçado ao redor das nascentes, bem como as covas para receber as estacas. Das mil previamente selecionadas, 500 estão em território mineiro, na sub-bacia de Manhuaçu, e as outras 500 no Espírito Santo, na sub-bacia do Baixo Guandu.

    Voluntários em Linhares (ES), em outubro do ano passado, protegeram, dentro de um projeto piloto para o dia 5 de junho, cinco nascentes. Foto – Divulgação

    Projeto piloto no rio Doce

    Por ser uma ação complexa, que vai envolver um grande número de pessoas, ela vem sendo planejada desde meados do ano passado. Em 28 e 29 de outubro do ano passado, foi realizado o primeiro piloto em Linhares, no Espírito Santo, quando foram cercadas cinco nascentes e plantadas 1.500 árvores, com o apoio de 60 voluntários.

    No dia 10 de março, o movimento fará o cercamento de mais 23 nascentes do rio Doce, sendo três em território mineiro e 20 no Espírito Santo, como a última etapa preparatória para o grande dia, que será 5 de junho. Este trabalho também será feito por voluntários que o movimento Todos pelo Rio Doce está arregimentando.

    Inspiração vem da Estônia

    A ideia inicial de organizar uma grande ação para ajudar na recuperação do rio Doce foi do economista capixaba Theo Penedo. Ele conta que assistiu a um vídeo de uma ação de voluntários desenvolvida na Estônia em 2008 para recolher, num único dia, dez mil toneladas de lixo em todo o país. A iniciativa recebeu o nome de Let’s Do it (Vamos Fazer).

    Ativista ambiental, Theo vinha acompanhando, ao longo dos anos, a degradação do rio Doce. O quadro ficou ainda mais grave com o rompimento, no dia 5 de novembro de 2015, da barragem de Fundação, localizada no distrito de Bento Rodrigues, no município de Mariana, que foi o pior desastre ambiental da história do país.

    Rejeitos de mineração da mineradora Samarco se transformaram num tsunami de lama que percorreu 650 km rio abaixo, vilas inteiras ficaram destruídas, 19 pessoas morreram e até hoje os prejuízos ambientais não foram completamente contabilizados. Alguns especialistas, inclusive, chegaram a dizer, na época, que o rio Doce estava morto.

    “Quando assisti ao vídeo, fiquei pensando: por que não fazer algo parecido para ajudar o rio Doce? Conversava com muita gente e percebia que havia um grande interesse em ajudar, mas ninguém sabia como. Convidei um grupo de amigos e em dezembro de 2016 nasceu o movimento Todos pelo Rio Doce”, conta Theo.

    O economista, que é capixaba de Cachoeiro do Itapemirim, conta que o rompimento da barragem da Samarco agravou muito a situação do rio Doce. Mas ele lembra que o rio, que percorre cerca de 853 km entre sua nascente, em Minas, até desaguar no oceano Atlântico, no Espirito Santo, já vinha passando por um processo de degradação há anos e exigia cuidados faz tempo.

    Como se recupera um rio

    A opção do movimento por cercar as nascentes do Doce também tem uma explicação. Segundo especialistas, o trabalho de proteção dos rios está assentado em três grandes pilares: recuperação das nascentes, recuperação das matas ciliares e o esgotamento sanitário.

    Algumas ações dependem de iniciativas do poder público, especialmente das prefeituras municipais. Recuperar a mata às margens dos rios é tarefa de longo prazo, embora também possa ser feita. O movimento entendeu que proteger as nascentes, o que é fundamental para a sua recuperação ou manutenção, era a contribuição mais efetiva que poderia ser dada agora para ajudar no processo de renascimento do rio Doce.

    A bacia hidrográfica do Rio Doce tem uma extensão de 83.400 quilômetros quadrados (o que corresponde ao tamanho de Portugal), dos quais 86% pertencem a Minas Gerais e os outros 14% ao Espírito Santo. Abrange 228 municípios (202 mineiros e 26 capixabas), onde vivem aproximadamente 3,5 milhões de pessoas.  A estimativa é que essa bacia tenha cerca de 375 mil nascentes e, dessas, 350 mil precisam de algum tipo de recuperação ou proteção.

    Pode parecer, então, que a meta de proteger mil nascentes é modesta. Não é. A Samarco, que provocou o pior acidente ambiental do país, com enormes prejuízos ao rio Doce, já conseguiu cercar, desde o desastre, em novembro de 2015, um total de 511 nascentes, como informa a fundação Renova em seu site. Em dez anos, a meta é recuperar 5 mil nascentes. O movimento Todos pelo Rio Doce quer proteger mil, mas em um único dia.

    Serviço

    – Quem quiser ser voluntário no movimento Todos pelo Rio Doce pode se inscrever pelo site: www.todospeloriodoce.com

  • Congresso na Espanha discute agroecologia

    Congresso na Espanha discute agroecologia

    Por Beatriz Stamato

    O VII CONGRESSO INTERNACIONAL DE AGROECOLOGIA se realizará em Córdoba – Espanha, 30 e 31 de maio e 1 de junho de 2018. É um evento organizado pelo Instituto de Sociologia e Estudos Camponês (ISEC) – Universidade de Córdoba, Grupo de Pesquisa em Economia Ecológica e Agroecologia – Universidade de Vigo, Observatório da Soberania Alimentar e Agroecologia (OSALA). Sua temática central será “AGROECOLOGIA E SOBERANIA ALIMENTAR: (re)politização dos sistemas agro-alimentares”.

    Um evento como esse vem ao encontro da necessidade urgente de construirmos conhecimentos para o enfrentamento das crises ambientais, políticas e sociais. Tempos onde alimentos, terras e biodiversidade são acumulados e governados por um mercado globalizado. A agroecologia, como paradigma científico e como filosofia de ação, pertence ao campo de alternativas para construir outros mundos: mais sustentáveis, mais justos, mais próximos de uma soberania alimentar real.

    O Evento correrá na Espanha, epicentro de acúmulos teóricos-científicos sobre Agroecologia e local onde se encontra o Instituto de Sociologia e Estudos Camponês (ISEC) da Universidade de Córdoba, que formou diversos profissionais militantes do tema, no Brasil e no mundo.

    A Agroecologia tem ganhado proporções importantes uma vez que se mostra como um conjunto de conhecimentos e práticas que podem vir a alterar o rumo civilizatório. É reconhecidamente um método e um campo do conhecimento pautado em uma nova epistemologia e não apenas um conjunto de técnicas produtivas. Envolve temas como: Acesso aos Recursos, Movimento Social e Democracia Radical, Gênero e Geração, Memória Biocultural, Valorização do conhecimento popular e tradicional, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Agriculturas de base ecológica, entre outros temas vindos de campos diversos do conhecimento humano.

    O conceito de “Agroecologia” começa a ser cooptado por organizações internacionais, instituições acadêmicas e políticas públicas que o utilizam sem alterar o quadro (insustentável) da “globalização alimentar”. Seu conteúdo profundo (social, ambiental, político) está comprometido por estas apropriações indevidas seja pelo mercado, seja pela ciência convencional.  Por esta razão, o evento se propõe a debater a Agroecologia a partir desta re-politização necessária contra a globalização da fome e da desnutrição, a concentração de poder nas mãos de transnacionais, ecocidas e epistemicidas e contra a economia capitalista desumanizadora que privatiza e mercantiliza a vida.

    Entendemos que a Agroecologia é, acima de tudo, uma visão política para a construção de novas sociedades e uma resposta urgente aos problemas que nos cercam globalmente. Novos mundos, em escala local e em nível global, no qual colocamos a vida no centro. Apostamos em uma Agroecologia que desafia as explicações que o sistema agroalimentar especulativo e globalizado nos dá: fome, pobreza, desnutrição, doenças, mudanças climáticas e outras mazelas. A agroecologia é autonomia, criatividade, processos coletivos, regeneração dos sistemas naturais e dos conhecimentos, é cooperação social, mas é também ciência, prática, movimentos sociais e políticas públicas. É feminista, inclusiva, intergeracional, plurimetodológica e se propõe a construir espaços e práticas de igualdade e valorização das diversidades.

    O VII Congresso será, portanto, um espaço para encontros e trocas. Buscamos criar sinergias e promover o apoio entre as comunidades acadêmicas, políticas, sociais e de rede baseadas em iniciativas concretas: nossos grupos de trabalho serão compostos por membros desses mundos. Vamos coletivamente lançar reflexões políticas sobre os principais problemas que nos interessam e sobre as alternativas que queremos ajudar a construir. Também pretendemos permear a cidade de Córdoba com esta cor agroecológica. As atividades serão diversas, incluindo grupos de trabalho, apresentação de artigos, mesas redondas, oficinas com grupos e experiências, atividades culturais entre outras.

    Globalizemos a luta, globalizemos a esperança!

     

    DATAS IMPORTANTES

    Congresso: 30, 31 de maio e 1º de junho de 2018, Córdoba.

    Prazo para recepção de resumos de comunicações e experiências: 16 de fevereiro de 2018

    Inscrições pelo site:

    http://www.osala-agroecologia.org/vii-congreso-internacional-de-agroecologia/comunicaciones/

  • CURA GAY MATA!

    CURA GAY MATA!

    É preciso deixar bem claro o grau de irresponsabilidade do Juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, que acatou uma liminar permitindo as infames terapias de conversão ou reversão sexual, apelidadas popularmente como “cura gay”. Segundo um levantamento de 2009, feito pela Associação Psicológica Americana (APA), quem passa pela “cura gay” tem quase 10 vezes mais chances de tentar suicídio. Esses sobreviventes também possuem uma taxa de depressão 6 vezes maior e uma tendência 3 vezes maior para o uso de drogas ilegais e de comportamento de risco para HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. A decisão do judiciário feita nessa sexta-feira (15/09), abre espaço para que essas práticas não científicas voltem a ser aplicadas legalmente no Brasil.

    A iniciativa parte de uma Ação Popular movida contra a Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que orientava a atuação de profissionais da área em questões relativas a orientação sexual. Apesar de não fazer nenhuma mudança no texto da resolução, o Juiz a suspendeu parcialmente. Agora o CFP não pode proibir psicólogos de atender pedidos de reorientação sexual, ou seja, a ação possibilita a aplicação das “cura gay”.

    Sempre é bom realçar que esses tratamentos não possuem nenhuma base científica ou técnica, sendo altamente descartadas por diversas organizações internacionais e nacionais. A Organização Mundial de Saúde (OMS) não considera a homossexualidade uma patologia e, portanto, não há cabimento para propor ou procurar qualquer tipo de terapia que converta a sexualidade. Como o CFP explica em uma nota pública, “as terapias de reversão sexual não têm resolutividade, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional.” Obviamente, as “cura gays” estão fadadas ao fracasso, no entanto, isso não impede que elas causem prejuízos e sequelas severas aos seus pacientes.

    O relatório da American Psychological Association, explica que mesmo que o indivíduo procure por sua própria conta esses tratamentos, a falsa promessa de “curá-lo” e seu garantido insucesso podem gerar uma enorme frustração, fortalecendo os já intensos sentimentos de culpa, desesperança e ódio a si próprio. Segundo a associação estadounidense, o que mobiliza essas pessoas a buscarem tratamento não é por sua homossexualidade, mas sim pela rejeição familiar e social inspiradas pelo estigma de ser LGBTT. A pressão externa é introjetada na pessoa e radicalizada por esses pseudotratamentos, que, ao invés de incentivá-la a abraçar sua sexualidade, os mobiliza a negá-la e a repudiar a si próprio. A autorrepulsa de quem sai desses campos antigay, os leva para comportamentos de risco, depressão e tentativas de suicídio.

    Vários movimentos LGBTTs internacionais defendem que essas terapias sejam consideradas uma forma de tortura, pela violência tanto física quanto psicológica impostas aos homossexuais. Em 2012, Clínicas Privadas no Equador já foram fechadas após denuncias de abusos de direitos humanos e, em 2014, o Comitê contra Tortura das Nações Unidas já declarou que as “curas gays” são uma questão de direitos humanos e apontou preocupação pela permanência da contínua existência dessas supostas casas nos Estados Unidos.

    O Conselho Federal de Psicologia já declarou que vai recorrer a decisão liminar, bem como “lutará em todas as instâncias possíveis para a manutenção da Resolução 01/99, motivo de orgulho de defensoras e defensores dos direitos humanos no Brasil.”

     

  • REVIRAVOLTA NA HISTÓRIA: Inscrições rupestres de Florianópolis seriam ideogramas chineses

    REVIRAVOLTA NA HISTÓRIA: Inscrições rupestres de Florianópolis seriam ideogramas chineses

    Semelhança das inscrições rupestres com ideogramas chineses despertou a investigação

    Foi o interesse apaixonado pela história da Ilha de Santa Catarina que levou Fausto Guimarães, filho de pescador, a “atravessar a ponte” para a China e a ser reconhecido no Oriente e nos Estados Unidos como o maior pesquisador do mundo sobre a presença dos chineses nesta região antes da chegada de Cabral. Agente de vigilância do INSS, ele lança, na sexta-feira (15), às 19 horas, no Restaurante Árabe Falah, em Florianópolis, sua quarta publicação sobre a passagem pelo Brasil de dois dos cinco almirantes da dinastia chinesa Ming, entre os anos de 1421 e 1423. Criado no Morro do Céu, Fausto tornou-se não apenas um grande especialista nas incursões chinesas pelo Novo Mundo, como autor de uma descoberta arqueológica capaz de revolucionar tudo que se sabe sobre as relações entre os indígenas que aqui habitavam e esse povo do Oriente. Capaz também de mudar o entendimento sobre as inscrições rupestres e os artefatos de pesca locais que, na sua hipótese, são uma transferência de tecnologia chinesa na troca de conhecimento com os índios Avás.

    Para início de compreensão da importância de suas pesquisas, a partir delas a origem das inscrições rupestres dos sítios arqueológicos teria uma versão muito diferente da conhecida: “Já temos evidências para demonstrar que nos desenhos dos dois costões do Santinho ou da Ilha do Arvoredo, por exemplo, há presença de caracteres chineses”, afirma Fausto. O encontro feliz entre o manezinho da Ilha e o mundo do Oriente aconteceu há 15 anos quando caminhava pela praia do Santinho e é tão 

    Inscrições rupestres poderiam indicar a troca de símbolos indígenas e ideogramas chineses (Ilha do Campeche)

    fascinante quanto a história que ele passou a contar a partir daí, traduzidas do português para o mandarim e para o inglês. Junto com as publicações, ele tem realizado inúmeras palestras em congressos internacionais sobre as incursões marítimas das dinastias chinesas pelas Américas no período pré-colombiano, patrocinadas pelo governo e por instituições de pesquisa na China e nos Estados Unidos, onde suas teses já são referência.

    Não limitado a publicar suas descobertas em forma de romance no primeiro livro “A rampa do Santinho, um legado chinês na Ilha de Santa Catarina” (Editora Insular, 2010), edição bilíngue português-mandarim de 456 páginas, o servidor recorre agora às histórias em quadrinhos para divulgar essa narrativa épica. “A grande maioria dos florianopolitanos e brasileiros – e mesmo os entendidos na cultura local – desconhece completamente os impactos da presença chinesa na Ilha”, enfatiza Fausto, 52 anos, que com o cabelo ruivo e os olhos claros foge ao estereótipo brasileiro. “Desconhecem inclusive o fato histórico das navegações marítimas chinesas”. Em A grande viagem às Terras do Oeste (Brasil) – 1421, a revista em quadrinhos que ele lança na sexta-feira vem para romper um pouco o silêncio sobre esse contato prodigioso entre dois povos fundadores da cultura local, na sua visão. Compõem as ilustrações um mix de tecnologia virtual com alguns desenhos dele mesmo e de outros autores, mas a maior parte são adaptações fotográficas, a exemplo das fotos aéreas da região dos Ingleses e do Santinho, explica Fausto, que trabalha na Previdência Social há 33 anos.

    Tanto livro como revista são, conforme o autor, coerentes com paradigmas e estudos já consolidados sobre as experiências dos chineses com outros povos. Sem referências exatas de realidade para compor uma etnografia, optou por preencher as lacunas com as suas suposições, narrando em forma de romance a relação desses exploradores com os índios Avás, que habitavam a Ilha de Santa Catarina e arredores. “Mas tudo que escrevi explorando a imaginação parte das minhas pesquisas e do

    Agente de vigilância lança sua quarta publicação

    conhecimento estabelecido por outros autores”, esclarece Fausto, que fará distribuição gratuita das revistas no lançamento. Com a ajuda das comunidades Guarani, árabe e chinesa, organizou para o evento uma grande performance com música, dança e teatro em torno de episódios do seu épico que mostram a pluralidade cultural dessas relações entre povos.

     

    Primeiro livro do autor é a história romanceada das relações entre chineses e os índios Avás na Ilha de Santa Catarina

    Até 15 anos atrás, antes da publicação do romance de Fausto, os pesquisadores canônicos só falavam das expedições europeias ao Brasil e ao Novo Mundo como um todo. Ao longo de seis séculos, a misteriosa passagem dos chineses manteve-se desconhecida dos historiadores modernos como um tesouro secreto. Com esse episódio, o romance entre a índia Iracema e o marinheiro Xiao também ficou guardado feito uma pérola em concha fechada para ser reinventado pela pena do autor. Interessado pela cultura chinesa desde que estudou acupuntura no Ceata, em São Paulo (1995), e desde a graduação no curso de História da UFSC (1997), Fausto fez sua primeira viagem à China em 2005. Ficara entusiasmado pelas viagens marítimas pré-colombianas ao ouvir de uma guia turística chinesa em São Paulo sobre sua presença no Amazonas. Essa informação reforçou a hipótese da presença chinesa também em Meiembipe (nome indígena de Florianópolis) e aumentou a suspeita de que as inscrições rupestres tinham a marca oriental.

    As investigações bibliográficas e em campo acabaram tomando conta do seu tempo livre e deram origem ao segundo livro, que apresenta a trajetória dos seus estudos e fundamenta suas hipóteses. Em Do Shan Hai Jing às épicas viagens do almirante Zheng He; estariam os chineses visitando as Américas e o Brasil há mais de quatro mil anos?, ele explica os elementos que foi interligando para creditar a narrativa sobre os rastros deixados pelos chineses na Ilha. Entre eles estão os registros do Padre Alfredo Rhor, no primeiro congresso local sobre Arte Rupestre, em meados de 1960, revelando ter tirado e extraviado na década de 40 a pedra com a imagem de uma santa que se atribuía à padroeira dos navegantes. Diante desse objeto sacralizado pela comunidade local, as mulheres dos pescadores faziam suas preces para pedir proteção antes de os homens se lançarem ao mar, numa espécie de ritual pagão.

    Depois de escrever o romance, Fausto recorreu a história em quadrinhos para divulgar essa história ignorada que desmonta a vulgata ocidental sobre o descobrimento

    Décadas depois, conversando com o pai pescador e com as mulheres mais velhas do Santinho, que alegaram ter ouvido a explosão da pedra quando crianças, Fausto verificou que o artefato tinha uma localização e um tamanho muito diferentes dos mencionada pelo arqueólogo. “Segundo os relatos, o santuário devia ter o tamanho de uma porta, e não os 33 centímetros informados pelo padre”. A descrição da imagem feita pelo padre também difere da apresentada pelas mulheres, o que levou Fausto ao seu primeiro grande achado: tratava-se, na verdade, não de uma santa católica, mas de uma mulher grande e forte, com um chapéu quadrado e um manto nas costas, que corresponde à figura de uma chinesa chamada Mazu. Hábil nadadora, essa personagem viveu de fato no século X na colônia de pescadores Meizhou, no litoral de China. Entre seus feitos, consta ter salvado vários homens de afogamento com seus braços fortes. Depois de sumir no mar, Mazu foi mistificada como uma espécie de padroeira dos pescadores.

    Com equipe de pesquisadores na China

    As surpresas não terminam por aí. Nesse trabalho de campo, o autor confirmou no costão esquerdo da Praia do Santinho, bem na entrada pelo mar, a existência de uma pedra com um furo de dinamite, provavelmente a da imagem da Santa dos Navegantes oriental, implodida pelo padre. E o mais importante: descobriu ao lado dela uma grande rampa cortada na pedra, visivelmente produto de manufatura humana e não da ação da natureza, que serviria ao atracamento das embarcações. Tomou o cuidado de registrar essa descoberta na certeza de que em breve suas evidências seriam confirmadas, assim como outros indícios impactantes: num museu de Hong Kong, identificou muitos instrumentos de pesca, como puçá, coca, jererê, tarrafa que os índios usavam na Ilha de Santa Catarina. “Todos esses artefatos para pegar siri existem na China”, diz Fausto, sustentando ainda a tese de que a sofisticação das técnicas de pesca na Ilha, identificadas pela presença abrupta e inexplicável de esqueletos de grandes peixes nos sambaquis, seria resultante desse contato profícuo entre Avás e orientais. “Sem falar na semelhança etimológica e material da jangada nordestina com um pequeno junco chinês”, comenta o pesquisador, com uns olhos arregalados de espanto pelas possibilidades de interconexões multiculturais que a investigação de sua Ilha lhe trouxe. Da mesma forma, reflete, os chineses, que têm como padrão de comportamento o contágio e a apropriação cultural devem ter aprendido muito com os índios.

    NO CONTEXTO DA MISSÃO CHINESA PELOS MARES

    Estudante de mandarim há seis anos, logo o vigilante-historiador se faria um dos grandes pesquisadores das expedições chegadas à Ilha por ordens do imperador Zhu Di. O chefe da dinastia alistou cinco almirantes para, sob o comando de seu homem de confiança, o almirante Zheng He, cumprirem uma desafiadora missão: descobrir terras além da África e cartografar todos os oceanos do mundo. O imperador estava decidido a implantar uma importante mudança cultural no mapa político e geográfico do planeta. Desejava romper definitivamente com uma tradição de milênios, pela qual os chineses mantinham-se fechados ao olhos do mundo. Nessa expedição, Hong Bao seria o responsável pela “descoberta” de terras, hoje conhecidas como Brasil. Junto com ele, outros chineses, indianos e um africano de nome Kebec, empreenderiam uma impactante relação com os índios Avás, que significa gente em Guarani e substitui a denominação europeia de Carijós (índios escuros e claros).

    Na hipótese do historiador, algumas inscrições são feitas de símbolos indígenas e outras de caracteres chineses

    Conta o livro, sempre preservando o tom solene e misterioso de um grande épico que versa sobre o encontro de dois povos de diferenças abissais: “Hong Bao é o comandante da missão que se dirige para a terra do Oeste. Sob suas ordens homens e mulheres viverão em comunhão com ideais confucianos. O mundo dos nativos Avás nunca mais será o mesmo. Os chineses levarão seu conhecimento e em troca receberão o respeito dos povos desta terra”. Além de criar a história amorosa de Iracema e Xiao, o romance fala da vida simples do cacique e de seu povo, a trama de Seci para roubar Xiao de Iracema e as armadilhas feitas pelas índias amazonas para capturar seus prisioneiros. Pergunto se essa relação não foi romantizada, considerando que na história mundial os países expedicionários sempre foram truculentos e dominadores com outros povos em suas explorações marítimas. E ele me responde com uma aula sobre o pensamento e a história chinesa, segundo a qual os ditadores que barbarizaram a Ásia não eram de fato chineses, mas pertenciam a outras nações que invadiram a própria China, como os mongóis e manchus. “Ao contrário das explorações europeias que marcaram nossa colonização, a base desse relacionamento chinês com outros povos sempre foi a paz e o respeito”, garante, citando várias fontes bibliográficas e episódios históricos.

    Revista em quadrinhos ilustrada pelo próprio autor

    Em 2013, Fausto viajou à China a convite da Universidade de Macau e da Universidade de Shanghai para participar do seminário Viagens Marítimas Chinesas do Século XV. Nessa expedição de rota contrária aos antepassados de Hong Bao, apresentou seu trabalho sobre as evidências arqueológicas da possível passagem dos chineses pela Ilha de Santa Catarina antes da chegada dos portugueses, na Associação Macau para promoção e Intercâmbio entre Ásia-Pacífico e América Latina (Mapeau) na cidade de Macau. Em dezembro de 2016, já era o maior especialista no assunto e viajou a vários centros acadêmicos de pesquisas sobre explorações marítimas da China, em cidades como Beijing, Nanjing, Guangzhou, Hong Kong, entre outras, para divulgar seu terceiro livro, em inglês: From the Shan Hai Jing to the Epic Journeys of Admiral Zheng He in the XV Century; Where the Chinese visiting the Americas and Brazil over 4000 years ago? Por todos os institutos de pesquisa onde passou, só recebeu um gesto de imediato reconhecimento de ideogramas chineses quando mostrou as inscrições rupestres do Santinho e da Ilha do Arvoredo: “tui, tui, tui” (sim, sim, sim), respondiam-lhe com aquele gesto de cabeça afirmativo típico dos chineses. 

    Na Califórnia, onde o interesse pelo tema é fortíssimo, há também inscrições rupestres com evidências de ideogramas. Os estudos apontam, contudo, que elas resultam de visitas chinesas mais antigas ao continente americano, de cerca de dois mil anos atrás, o que poderia perfeitamente ter ocorrido também no Brasil. “Quando se fala em história, tudo são possibilidades”, reconhece Fausto, que não tem a pretensão de ser a última palavra a vencer essa distância de séculos ou de milênios, mas coloca em dúvida a vulgata do pioneirismo ocidental a partir das pegadas orientais que encontra pelas praias e no próprio corpo dos Guarani. “Não podemos mais é manter no encobrimento a presença de culturas anteriores à chegada dos navegadores europeus”. 

    Em outubro, o pesquisador anônimo em sua terra, mas famoso entre os sinólogos do Oriente e dos EUA, apresentará seu trabalho num simpósio de quatro dias sobre diáspora chinesa pelo mundo e pelo Brasil, no hotel Hilton, em São Francisco, na Califórnia. Essas viagens a convite de outros países são sempre patrocinadas, mas as pesquisas documentais ou de campo resultam de investimentos do próprio bolso. De tanto estudar as expedições não-ocidentais ao Brasil antes da invasão europeia, ele próprio se tornou um navegador a refazer obstinadamente, pelos livros ou pelas explorações físicas, as pontes que fazem as ligações estreitas entre dois povos muito mais próximos do que nossa vã herança ocidental é capaz de imaginar…

  • INFORMAÇÃO (E SUBSTÂNCIA) DE QUALIDADE

    Por Jessica de Almeida, para os Jornalistas Livres 

    Foto: Rafael Marques/Coletivo Chão/divulgação

    “Se pensarmos no ser humano como um ser que é dotado de desejo e curiosidade e que busca aliviar tensões pela via do prazer, é mais do que justo que ele utilize essas substâncias em determinados contextos para se sentir bem, compartilhar momentos e é isso que o espaço de festa é, um espaço de amor, de busca, e a nossa ideia é como deixar o espaço de confraternização mais seguro e saudável para as pessoas que estão ali compartilhando. O recorte aqui será a redução de danos em contextos de festa”, introduz uma mulher ruiva e de vestido longo. A partir dali, a discussão teve como norte a ética e o respeito sobre escolha de consumir substâncias, reflexões sobre possíveis riscos e estratégias de autocuidado, cuidado com o outro e a sociedade.

    A redução de danos tem como base um conjunto de estratégias cuidadosas que refletem sobre as vulnerabilidades em relação ao uso de drogas. Considera-se que as pessoas assumam a responsabilidade sobre suas escolhas, mas sempre prezando o mundo e os outros envolvidos. O conceito de redução de danos não é novo e os efeitos da aplicação dessas estratégias são célebres, como a iniciativa de troca de seringas para usuários de drogas injetáveis na Holanda, em 1984. A medida reduziu intensamente o contágio por doenças como a hepatite B e a propagação do vírus HIV. É facilmente acessível, hoje, materiais sobre a redução de danos enquanto política pública e tratamento efetivo de dependentes químicos a partir do uso de diversas outras substâncias. Mas o diálogo sobre redução de danos cruza, em vários momentos, com as discussões sobre a fronteira entre os usos recreativo, problemático e medicinal de drogas, a inclusão da população em situação de rua, a luta antimanicomial e práticas de sexo seguro.

    A plataforma brasileira de política de drogas é majoritariamente embasada no paradigma proibicionista, responsável pelo distanciamento da relação uso de drogas-controle sanitário (nos processos de produção, armazenamento e distribuição), tornando altamente duvidosa a composição de substâncias psicoativas, ampliando o risco de consumi-las e mantendo seus efeitos no campo do desconhecido.

    Surgida no início do século XX e pautada na ideia de que algumas substâncias devam ser inacessíveis para a sociedade. Os alvos de perseguição se tornam, então, essas substâncias específicas; as pessoas que a produzem, transportam e vendem; o próprio uso. Enquanto isso, outras substâncias são permitidas ou mantidas no regime médico. No caso da redução de danos, o impacto é no tratamento. Domiciano Siqueira, redutor de danos e presidente da Associação de Redução de Danos de Minas Gerais, destaca que “o uso de drogas é, sim, presente nas organizações sociais desde os tempos mais remotos, mas ninguém fala que ele [o uso] se tornou um problema há apenas 120 anos, com o proibicionismo”.

    Uma das proposições do paradigma proibicionista é que a única forma de reduzir o dano ou tratar uma pessoa em situação de dependência é cessar o consumo. Siqueira explica que a meta das ações de redução não é a abstinência e que há diversas formas de lidar com a questão, incusive a abstinência, ideal para alguns casos, mas não para todos. E é exatamente a totalidade que a política deve abarcar.

    Nem todos os envolvidos na contestação do proibicionismo tem uma direção clara sobre como deve ser a política de drogas ideal – já que nada além do que está posto foi tentado em grande escala – mas todos compartilham o diagnóstico de que este modelo é um fracasso, não só do ponto de vista da preservação dos direitos humanos, mas na garantia da promoção da saúde pública e da redução de danos. O propósito é mudar a discussão no Brasil de patamar e declarar oficialmente o fracasso da guerra às drogas.

    AÇÕES LOCAIS

    Já passa de duas de manhã e o celular de Frederico vibra. A demanda vem de uma pessoa que fez uso drogas e se viu diante de uma experiência difícil. No Whatsapp Frederico recomenda, primeiramente, o simples: tome um banho. Minutos depois, o resultado: “Tomei banho e fiquei de boa. ‘Brigadão aí”. É com um quê de orgulho que o redutor de danos do Coletivo Egrégora conta uma das ocorrências cotidianamente comuns de um ofício voltado para a boa “viagem” de alguém. “O tráfico é o maior produtor de danos individuais e sociais”, emenda.

    Segundo Frederico, uma das ações fundamentais para conter os riscos em espaços de festa é o uso de aparelhos de testagem. O drug checking exige reagentes químicos para “examinar” a composição de drogas. “Não é o ideal, mas é o que é possível fazer no Brasil, pois máquinas para fazer análises técnicas são caras para o contexto brasileiro”. O maquinário seria adequado para mostrar, com precisão, a dosagem da substância ou quais outros elementos compõem a droga.
    O emprego de reagentes químicos é a ação possível nos microespaços. Para usá-los, a recomendação é raspar levemente o comprimido ou fazer um recorte de ⅛ de um blotter – o “quadrado” de LSD – e, ao pingar apenas uma gota do reagente químico (armazenado em um frasco), a cor da reação identificará basicamente os componentes. O testador mais comum é o Marquis, usado frequentemente para testar comprimidos. Se uma gota do Marquis sobre a “bala” trouxer a cor roxa, ali contém MD (methedrina), mas, segundo Frederico, “pode ser ‘MD alguma coisa’, ou trinta coisas”, alerta.

    A comunidade de usuários de drogas em contexto de festas cada vez mais se preocupa com a redução de danos. “As pessoas tem se preocupado mais em perguntar, repassar informações para os amigos e há cada vez mais estandes de testagem em festas”, explica o redutor de riscos. Belo Horizonte está sendo incipiente nesse sentido. Um dos exemplos é o Festival Pulsar, festival de cultura alternativa e psicodélica com duração de cinco dias e circulação de cerca de três mil pessoas de todo o país. Neste ano o evento ocorreu em Ipoema, distrito de Itabira, mais especificamente na Cachoeira Alta. Frederico conta que desde a segunda edição a produção traz um coletivo de fora para fazer testagens e acompanhamento com redução de danos.

    RECORTE DE CLASSE

    Considerando a colossal diversidade de drogas e modos de consumo, é urgente o reconhecimento de que as políticas de drogas não podem, nem sequer devem, se dissolver de um entendimento amplo de sociedade. Ao abordar o uso de substâncias psicoativas, o recorte de classe deve ser lembrado, uma vez que “problemas” relacionados a drogas são concentradamente territorializados, aqueles considerados agentes desse problema tem classe e cor de pele bem definidas e a cidadania afetada. A abordagem foi lembrada pelo médico epidemiologista Mauro Cardoso.

    “A questão das drogas não se separa da questão de classe porque o problema das drogas é um problema do pobre. O rico não tem problema com droga. A gente pode falar que o consumidor de crack é um problema, mas há silêncio sobre o usuário da cocaína que é transportada por helicóptero”, lembrou e emendou: “A questão do crack é uma discussão em campo inimigo. A substância [o crack] é a pior situação do uso de drogas que eu conheço na realidade brasileira e quando começamos a discutir drogas a só pelo crack, estamos destacando o pior exemplo da situação, sendo que a prevalência de outras substâncias é mais comum”.

    Liberação de conteúdo inconsciente, recuperação de memórias, reflexão introspectiva, regressão – às vezes até o nascimento, insights religiosos psicofilosóficos são alguns dos efeitos de drogas psicoativas citadas por Cardoso. “Sintomas que, pelo menos para essa classe de drogas, praticamente remetem à terapia e esses efeitos dão a ideia de que você pode explorar tudo isso do ponto de vista da psicoterapia além da questão da escuta, como é feito”, opinou.

    EXERCÍCIO DE DIREITO

    A transformação da política de drogas enquanto questão social propõe ampliar os canais de comunicação e decisão entre os envolvidos na efetivação do direito à saúde previsto na Constituição de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. O cenário proibicionista brasileiro representa a necessidade de trazer aperfeiçoamento e melhor entendimento das contribuições possíveis de um pensamento humano sobre drogas.

    Rafael Marques/Coletivo Chão/divulgação
  • HABEMUS CLITORIS!

    HABEMUS CLITORIS!

    No mês da mulher, queremos homenagear todas elas com muito gozo e prazer.

    Na segunda parte da nossa série sobre o prazer feminino, vamos explicar um pouco da história do clitóris. Algumas pessoas mal sabem o que é, outras acham ele se resume àquela pequena bolinha rosa acima da vulva. Nada disso! O clitóris mede cerca de 10 centímetros e é o único órgão humano exclusivamente dedicado ao prazer. O mais assustador é que nós levamos anos para descobrir a sua real forma, popularizada em 2016 quando o primeiro projeto de impressão 3D do clitóris foi criado em arquivo aberto para que todxs possam ter o seu, mas o clitóris é conhecido desde o século XVI. Depois de 500 anos de negação e mentiras a respeito do prazer feminino, é hora de falar sobre a nova revolução sexual que essa descoberta pode propiciar a nós, mulheres.

    Ei, eu sou o Clitóris 🙂

     

     

     

    Foto: Maxwell Vilela / Jornalistas Livres

    A primeira pessoa a descobrir o clitóris, em 1559, foi um homem, Matteo Realdo Colombo, professor de anatomia italiano. Nessa época, ele já tinha identificado que o clitóris era o despertador do prazer feminino, e o bichinho também já era bem conhecido e os desenhos científicos e médicos da época o mostravam quase por completo.

    Cinco séculos depois, em 1998, foi a vez de uma equipe de pesquisadores australianos coordenada pela doutora Helen O’Connell, da Universidade de Melbourne, revelar a anatomia exata do clitóris com seus bulbos e  propriedades.  Além da glande, que debaixo do prepúcio é a parte mais visível e sensível (a tal de bolinha), ele também é composto por um corpo, dois pilares e dois bulbos, que formam um duplo arco na entrada da vagina, na altura dos dois lábios externos. Totalmente formado de corpo cavernoso, o mesmo tecido erétil do pênis, ele se enche de sangue quando excitado para produzir a ereção. O clitóris também é um órgão móvel que acompanha os movimentos do pênis durante a penetração. De todos os órgãos, ele é o mais sensível e, como diz a diz a jornalista do New York Times Natalie Angier “há mais terminações nervosas na sua extremidade de que em todos os outros órgãos, inclusive a língua ou o pênis”.

    Para ela, enquanto o pênis é uma simples espingarda, o clitóris é uma verdadeira metralhadora!

    Anatomia do Clitoris

    Fazem mais de vinte anos que o tema voltou a tona, com o protagonismo militante dessas pesquisadoras. Mas como podemos constatar, ainda está longe de ser amplamente conhecido na opinião pública. Hoje qualquer adolescente sabe desenhar um pênis com seus testículos, mas sequer as mulheres sabem como seu próprio clitóris é feito. Entre dogmas e superstições a historia do clitóris é uma verdadeira epopeia. “1998 é exatamente a data de comercialização do Viagra. Ou seja, quando sequer se sabia como era feito um clitóris, os homens já tinham um remédio pronto para tratar seus distúrbios de ereção”, nota Odile Buisson, ginecologista membro da equipe francesa que fez o primeiro ultrassom in vivo do clitóris em 2007. A palestra completa feita na na Universidade Paris-Diderot em 2011 você pode conferir aqui.

    Era uma vez, o clitóris…

    “Mas então como podemos ter passado de uma época na qual sabia-se tanto sobre o botãozinho rosa para um tal nível zero de informação? O papel da ciência não é de progredir sempre? Não senhora! Quando falamos de prazer feminino tudo se complica sempre”. Esses são os comentários da jornalista Clarence Edgard-Rosa, da revista francesa Causette que publicou em janeiro desse ano um especial integralmente dedicado ao clitóris e da qual tiramos grande parte das nossas fontes.

    O ponto central que captou a atenção dos cientistas nos séculos XVI e XVII era a crença de que o clitóris tinha um papel central na procriação. O sexólogo Jean-Claude Piquard (autor do livro ainda não traduzido em português, a Fabulosa historia do clitóris) explica que na época “a estimulação do clitóris é considerada como uma prática importante na cama do casal. Até a Igreja o recomenda aos maridos. Alguns médicos vão até dizer que o orgasmo simultâneo é condição necessária para reprodução”.
    Mudança total de cenário no século XVIII. A masturbação feminina passa a ser chamada de “conspiração natalista” ainda segundo Piquard. O prazer feminino, quando ocorre sem penetração vem sendo considerado com forma de contracepção. Casos de excisão terapêutica começam a ser praticados pelos médicos na França e na Alemanha, com a ilusão de conter o que pensava-se podia causar o fim da humanidade.

    Na mesma época, o clitóris encontra-se no centro dos tratamentos psicanalistas para curar as pacientes consideradas histéricas. Após ter queimado milhares de bruxas nos séculos anteriores, a histeria se tornou a doença do século para controlar mulheres inconformadas e com supostos comportamentos desviantes. Enquanto alguns psicanalistas preconizavam a ablação do clitóris, outros indicavam cessões de … masturbação!  A chegada do orgasmo contribuía a parar as crises e acalmar as pulsões. Piquard conta que essa atividade constituía cerca de 30% do lucro dos psicanalistas, extremamente rentável. A comédia romântica Hysteria da britânica Tanya Wexler (2011) descreve esse contexto histórico que contribuiu para invenção do vibrador por … um médico cansado de masturbar suas pacientes!

    Imagem do filme Hysteria de Tanya Wexler (2011)

    Por fim, o que devia acontecer aconteceu: os psicanalistas entenderam que o clitóris não tinha nada a ver com procriação, e o querido clitóris caiu no esquecimento. Segundo a historiadora Aude Fauvel, especialista em sexualidade feminina no instituto universitário de Lausanne, “surgem na época teorias darwinistas especulando que o clitóris era um órgão em desaparecimento na evolução da espécie. Algumas até chegaram a dizer que tratava-se de um vestígio da pré-história”. Tais especulações deram assim embasamento para teorias racistas estipulando que as mulheres negras teriam o clitóris mais desenvolvido porque mais primitivas.

    Confira o videoclip de Dorian Electra, “Our music Ode to the clitóris” que relata a historia da opressão masculina sobre o prazer feminino.

    Imagem do videoclipe Dorian Electra, “Our music Ode to the clitóris” .

    Orgasmo clitoridiano versus orgasmo vaginal

    No século XX, o clitóris cai em desuso e a única fonte considerada normal de prazer feminino se torna a penetração graça ao célebre psicanalista Sygmund Freud. O pai da psicanalise dizia desde 1905 que o prazer clitoridiano era infantil e que a penetração vaginal era a única forma de se praticar a sexualidade adulta. “Para ele as meninas tinha inveja dos meninos por não ter pênis”, diz a doutora O’Connell. Ele escrevia que “a eliminação da sexualidade clitoridiana é a única condição para desenvolvimento da feminidade adulta”, reporta a revista Causette.

    Sendo assim, as mulheres que se masturbam não seriam verdadeiras mulheres, afirmação muito diferente da visão de outras culturas, como a de Ruanda, da África. Tais teorias espalharam universalmente e são à base da frustração de milhões de mulheres que até hoje sentem vergonha ao não “conseguir” chegar ao tão desejado orgasmo vaginal. A ideia que o orgasmo clitoridiano seja algo secundário, menos gostoso ainda prevalece nas mentes femininas e vem sendo veiculado em muitas revistas contemporâneas.

    Tais injustiças continuaram vigentes enquanto só os homens tinham legitimidade para falar e teorizar sobre o corpo da mulher. Com a entrada na profissão das primeiras mulheres começa um novo discurso sobre a sexualidade não reprodutiva. Entrada que como se sabe, acompanha-se de muitos preconceitos.

    A virada de protagonismo do nosso sininho 

    Uma das primeiras vozes femininas a ressoar contra a moral masculina foi a da princesa Maria Bonaparte, descendente de Napoleon, que em 1924, após uma pesquisa empírica junto a 200 mulheres contesta o dogma teórico imposto por Freud e recoloca o clitóris no centro do debate em torno do prazer da mulher. Segundo ela a frigidez seria a consequência do extenso afastamento entre o clitóris e vagina (ver o livro ainda não traduzido em português deAlix Lemel, “es 200 clitoris de Marie Bonaparte”(2010)).

    A grande revolução chega em 1976 com a cientista social norte americana, Shere Hite que pública seu famoso “relatório Hite: um profundo estudo sobre sexualidade feminina”, que causou grande polêmica na sociedade da época ao ponto de obrigar a pesquisadora a se exilar fora do país. De fato Hite ousou fazer o mais evidente: perguntar às mulheres o que elas sentem durante a penetração. E foi assim que ao mandar questionários para uma amostra de 3000 americanas, através de associações, anúncios em revistas e até paroquias, ela demostra que só 30% das mulheres afirmam ter orgasmos frequentes durante a penetração. Portanto, a maioria delas conhecem o orgasmo clitoridiano. Um cataclismo que revela que falo não seria mais o principal objeto do prazer feminino.

    Outra peça chave dessa revolução dos paradigmas, o casal norte americano Virginia Johnson e William Masters, ambos sexólogos que desde os anos 50 deram maior divulgação na sociedade sobre a importância do clitóris na sexualidade feminina. A série “Master of Sex” relata essa historia.

    Imagem do vídeo realizado por Marie Docher sobre a impressão 3D do clitóris. Vídeo legendado aqui pela TV Folha.

    Muita luta está ainda por vir até que o clitóris chegue ao mesmo patamar que o pênis. Mas grandes ações já foram realizadas. A última foi o trabalho da pesquisadora francesa Odile Fillod que divulga desde 2016 uma modelização 3D do clitóris podendo ser baixada e impressa por qualquer pessoa. O link com arquivo e modus operandi (em francês) está aqui. Com isso ela espera alcançar escolas e projetos educativos e assim, sair do mundo acadêmico.

    Segundo a historiadora francesa Stéphanie Wyler , a etimologia do clitóris vem do grego “kleitor”, literalmente “o fechador/lacrador”, nome de um rei de Tessalia, pelo fato dele precisar conter fatos, segredos e poderes.   Nada de mais claro: está na hora de rebentar de vez essas correntes!  Porém no meio dessa confusão outro pesquisador alemão em 1848, o Dr Georg Ludwig Kobelt, ao pesquisar sobre prazer masculino e feminino, faz um paralelo entre as glandes do clitóris e do pênis e chega à conclusão que o prazer feminino seria mais intenso.

    Depois de tanta informação, que tal entrar no clima do nosso prazer? Indicamos o filme  “Clitoris, prazer proibido” de Michèle Dominici (2003). Disfrute-se!

     

     

     

     

    Agradecimentos Especiais:

    Edwaldo Queiroz, do coletivo Mola, pela gentileza e a dedicação para impressão 3D;
    Carlos Cox Costa, pela tradução do vídeoclipe “Ode ao Clitoris”;
    Thaina Nogueira e Verilucy Cristine pela contribuição no vídeo “Prazer, Clito!”.