Em meio a uma pandemia que já matou mais de um milhão de pessoas no mundo todo, a Operação Acolhida do Exército Brasileiro anunciou no último dia 17 de setembro o despejo de 850 pessoas da comunidade Ka’Ubanoko de imigrantes venezuelanos indígenas e crioulos.
“Desde que soubemos que teremos que sair, estamos vivendo muita pressão psicológica e social. Estamos vendo mulheres que não bebiam e começaram a beber, mulheres que têm chorado, crianças com medo”, relata Leannys Torres, indígena Warao e liderança da coordenação indígena da Ka’Ubanoko.
A Operação foi citada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante seu discurso na Assembleia das Nações Unidas (ONU), quando afirmou que “no campo humanitário e dos direitos humanos, o Brasil vem sendo referência internacional pelo compromisso e pela dedicação no apoio prestado aos refugiados venezuelanos, que chegam ao Brasil a partir da fronteira no estado de Roraima”.
A comunidade Ka’Ubanoko cujo significado em português é “Meu espaço para dormir”, fica localizada na cidade de Boa Vista, capital de Roraima, e ocupa o espaço do antigo Clube do Trabalhador – uma obra que ficou abandonada há anos e abriga, desde o ano passado, crioulos e indígenas Warao, Eñepà, Kariña e Pemon.
Alejandrina Cortez tem 5 filhos, sendo um recém-nascido, e agora vive diariamente a angústia de não saber o futuro de sua família.
“Me sinto mal, estou preocupada, não durmo bem, penso nos meus filhos. Não por mim, mas por eles que são pequenos. Agora eu tenho meu lugar. Meus filhos gostam de jogar [no quintal]. Será que eu não posso ter paz? Eu estou morando aqui. Estamos todos. Meus filhos gostam de brincar e estão acostumados com isso”, completa.
Tanto a coordenação crioula quanto a coordenação indígena da comunidade escreveram uma carta à Operação Acolhida do Exército explicando a situação e pedindo que o despejo não seja efetuado sem diálogo.
“Estamos cansados a ser pisoteados. Não nos negamos a deixar um terreno que sabemos que não é nosso, mas nós temos direitos e sabemos que há outras soluções. Queremos falar, dialogar, mas nos tratam como animais. Nos impõem, querem pensar por nós”, explica a Cacique Eñepa.
Regras da Comunidade autogerida Ka’Ubanoko, em Boa Vista (RR) / Martha Raquel / Brasil de Fato
O local atual é dividido em cinco áreas, entre espaços reaproveitados da construção do parque, casinhas de madeira, barracas e redes.
Os indígenas e crioulos convivem como uma comunidade, organizada por setores. Os moradores se dividem através de coordenações responsáveis por alimentação, saúde, esporte, infraestrutura, segurança, proteção da mulher, educação, cultura e limpeza.
Quando decidem por nós, estão violando os nossos direitos, de construir nosso futuro, de sermos protagonista
Para Leannys Torres, da forma como está sendo conduzida a Operação Acolhida há um desrespeito com os direitos dos povos indígenas.
“Não somos migrantes, somos indígenas de toda a América e isso é algo que eles precisam aprender a respeitar. E quando decidem por nós, estão violando os nossos direitos, de construir nosso futuro, de sermos protagonistas. Estamos indignados”, ressalta.
A alternativa apresentada pela Operação Acolhida é realocar as mais de 850 pessoas nos abrigos geridos pelo próprio Exército, onde é realizado um trabalho de interiorização das famílias quando são enviados para trabalhar em diversos estados do Brasil.
Abrigo oficial do Exército São Vicente 2, no bairro São Vicente, em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato
Um ser humano não merece viver a vida que eles nos oferecem em um abrigo
Alguns moradores da comunidade explicam que já viveram nos abrigos e não gostariam de passar novamente por essa experiência.
“Não há privacidade. Um ser humano não merece viver a vida que eles nos oferecem em um abrigo. Viver com calor, comer na hora que eles nos entregam a comida. Não teremos o direito de escolher o que vamos comer pela manhã, ao meio dia e à noite”, protesta Deirys Ramos, Cacique Eñepa, pertencente à etnia Warao.
Com base em experiências passadas nesse tipo de instalação, ela afirma que as condições de moradia apresentadas são insalubres.
“Querem ter-nos como animais, mas nem os animais se tratam assim. É um lugar onde não há árvores, não há brisa, em que estaremos fechados por todo o dia. Faz muito calor, todos estaremos amontoados”, ressalta.
Torres ressalta que o espaço dos abrigos limita a prática dos costumes tradicionais desses povos.
“Nos abrigos não teremos a liberdade de expressar nossas ideias, nossos costumes. A vida dos Warao está ligada à terra e ter terra é ter vida. Ficarmos fechados num abrigo nos limitaria bastante, é como estar em um campo de concentração”, explica.
Uma das construções da ocupação Ka’Ubanoko, que abriga indígenas venezuelanos em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato
Educação prejudicada
Para a Cacique Deirys, a vida em abrigos impacta também no processo de educação da comunidade.
“É um lugar que nem sequer nos asseguram a educação, que pra nós seria não só bilíngue, mas que deveria ser trilíngue porque nós falamos diferentes idiomas. Não somos só um povo indígena, somos quatro povos indígenas”, ressalta.
Entre os crioulos, 80% falam português e todos falam a língua nativa, o espanhol. Entre as quatro etnias indígenas, algumas pessoas falam apenas o idioma originário e outros aprenderam o espanhol.
Yidri Torrealba, coordenadora-geral da comunidade e representante dos crioulos explica que a educação diferenciada para as crianças sempre foi uma prioridade dentro da comunidade.
“Entre a população indígena e a população crioula aprendemos a viver em comunidade, implementando a educação diferenciada para as crianças, já que mais de 50% que não conseguiram vagas nas escolas”, conta.
Crianças da Comunidade autogerida Ka’Ubanoko, em Boa Vista (RR) / Martha Raquel / Brasil de Fato
Segundo Luís Ventura, coordenador do Cimi, no próximo 14 de outubro uma reunião deve acontecer entre MPF, DPU, Operação Acolhida e representantes de entidades internacionais. A reunião também irá contar com a presença de um procurador da República de Brasília (DF), representante da área da Defesa do Cidadão, e também Renan Sotto Mayor, presidente Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
Eles apresentarão uma petição para que se suspenda a operação do despejo da Comunidade Ka’Ubanoko e solicitar outro prazo, garantindo diálogo, consulta prévia e que as reivindicações dos ocupantes sejam consideradas.
Segundo o coordenador do Cimi essa é uma medida extrajudicial para convencer a Operação Acolhida e, se não atendida, as entidades acionarão judicialmente a operação acolhida.
Questionados por e-mail sobre a operação, os diálogos realizados, as alternativas para os imigrantes,as condições nos abrigos e as formas de fiscalização utilizada para que os refugiados não sejam enviados para lugares em que sejam obrigados a trabalhar em situação análoga à escravidão, a Operação Acolhida não respondeu e disse que a Casa Civil da Presidência da República deveria ser acionada.
A equipe do Brasil de Fato tentou contato com a instituição, mas também não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
A cada dia cresce mais o número de relatos de moradores de Pacaraima sobre a violência na cidade a 214 km de Boa Vista (RR), que faz divisa com a Venezuela. Furtos e roubos se tornaram frequentes e a situação revela como o aumento da pobreza está diretamente ligado com o aumento da violência.
A outrora pequena Pacaraima, que segundo o Censo de 2010 tinha 4514 habitantes, tem hoje quase quatro vezes mais. O aumento se deve a migração venezuelana registrada nos últimos 5 anos. Com o aumento de moradores e o não-investimento dos governos municipal, estadual e federal na região, a pobreza se tornou realidade visível nas ruas de Pacaraima.
A crise econômica aprofundada pelo bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos desde 2015 à Venezuela, assim como a crise do mercado petroleiro, foram os principais fatores que levaram à precarização da vida da população do país vizinho.
Em 2014, 47 pessoas foram mortas por arma de fogo em Roraima. Já em 2017 quase o dobro, 93. Os últimos dados divulgados pelo Atlas da Violência em relação a estupros é de 2016. Em 2014 foram registrados 128 casos, em 2015 um pequena queda, e um aumento em 2016, com 156 casos registrados no estado.
Os números não param de crescer. Se em 2018, houve 57.956 homicídios no Brasil, o menor nível desde 2015 e em quase todos os estados houve queda nas taxas de homicídios por 100 mil habitantes em comparação com 2017, Roraima foi uma exceção (alta de 51,3%), ao lado de Amapá (7%) e Tocantins (2%).
Para a socióloga e cientista da religião Tainah Biela Dias, não há como falar de violência sem falar sobre aumento da pobreza. “Vemos no Brasil atual um desmonte geral de políticas públicas e um aumento da pobreza intensificado também por uma gestão praticamente inexistente da pandemia da Covid-19. O aumento da pobreza, e isso já está mais do que debatido, tem como consequência o agravamento da violência, e isso recai ainda mais fortemente sobre populações que são vítimas de preconceito, como é o caso dos imigrantes, alimentando uma lógica que estabelece ‘culpados’ pela situação de precarização generalizada”, explica.
Para ela, os imigrantes em Roraima, especialmente em Pacaraima, sofrem com diversos fatores, entre eles a cultura do “você está ocupando um lugar que é meu”.
“Existem debates e pesquisas que mostram como o aumento da violência contra populações em diáspora — ou seja, separadas de seu território de origem por razão política, religiosa, preconceituosa — está diretamente relacionadas à ascensão de governos de extrema direita, e não só no Brasil, como por exemplo as políticas anti-imigração do governo Trump e o crescimento de milícias civis armadas nos EUA. A ideia que direciona esses conflitos tem a ver com a consolidação de uma identidade nacional que se estabelece através da rotulação negativa daquelas pessoas que são entendidas como ‘de fora’, explica Dias.
“No caso do Brasil não é diferente, apesar de o país ter suas questões específicas. Nesse caso, a oposição explícita do governo Jair Bolsonaro com relação ao regime Maduro gera, por si só, um senso comum preconceituoso contra a população venezuelana. O governo Bolsonaro produz continuamente discursos que estabelecem a separação ‘nós’ x ‘eles’, uma hipervalorização da identidade nacional brasileira em prejuízo da desumanização do ‘outro’, reproduzindo mecanismos xenofóbicos e racistas que tratam algumas vidas como menos dignas ou, de fato, sem dignidade alguma.”
“É também importante dizer que a lógica dos discursos do presidente somente considera como brasileiro quem apoia o governo de forma incondicional, vide seus comentários sobre os “comunistas” no período eleitoral e posteriormente também, com ameaças à imprensa”, completa a socióloga.
Segundo Rommulo Cesar Teixeira Saraiva, Secretário Adjunto da Secretaria de Estado da Segurança Pública de Roraima, a localização geográfica de fronteira com a Venezuela facilita a existência de crimes transnacionais, com interesses das organizações criminosas locais e internacionais. Ele afirma que foi necessário acionar outras organizações para dar conta da nova demanda que o estado de Roraima está tendo por conta dos imigrantes.
“Houve mudanças de impactos sociais, como exemplo o modus vivendi da sociedade e a evidente característica de multiculturalidade no contexto urbano, o aumento do desemprego, e aumento do acesso aos atendimentos na rede pública, como atendimentos na saúde, nas escolas públicas, e demais órgão que prestam atendimento à sociedade.”
“Quanto à implementação de políticas públicas, o atendimento da triagem junto aos estrangeiros se inicia com a operação Acolhida, por uma equipe multidisciplinar. Na área da Segurança Pública, especificamente, houve intervenção federal com Força Nacional e patrulhamento ostensivo, e intervenção de agentes penitenciários federais através da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP).”
“Em 2019 foram dadas continuidade às ações articuladas entre os órgãos de segurança de forma integrada, o que levou a redução dos dados de homicídio. Neste, além da FTIP atuou também a força tarefa denominada Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO), composta por policiais civis, militares e policiais federais”, explica o secretário.
Em fevereiro deste ano, 2020, a bancada de Roraima no Senado, pensando na região de Pacaraima, cobrou, em sessão plenária, providências do governo federal no controle da violência e dos conflitos causados pela entrada de imigrantes venezuelanos no estado, pelo município de Pacaraima, que faz fronteira com a Venezuela. Os senadores Chico Rodrigues (DEM-RR), Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e Telmário Mota (Pros-RR) criticaram a Lei de Migração (Lei 13.445, de 2017) e pediram atenção à cidade, que não possui estrutura e nem recursos para abrigar os refugiados.
Refugiados
Segundo a Coordenação-Geral do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) até dezembro de 2018, foram recebidas 85.438 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado da Venezuela. Dessas, 61.681 foram recebidas apenas em 2018 e 81% das solicitações foram apresentadas no estado de Roraima. Existem hoje cerca de 45 mil venezuelanos no Brasil que solicitaram o pedido de refúgio. Destes, mais de 33 mil residem em Roraima, seguido do Amazonas, com cerca de 8,4 mil pessoas.
Todos os pedidos de refúgio no Brasil são decididos pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e composto por representantes do Ministério da Justiça, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério do Trabalho, do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, do Departamento de Polícia Federal e de organizações da sociedade civil dedicadas a atividades de assistência, integração local e proteção aos refugiados no Brasil. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e a Defensoria Pública da União (DPU) têm assento no CONARE com direito a voz, porém sem direito a voto.
A pessoa que consegue refúgio no Brasil tem alguns direitos garantidos, entre eles estão a não-devolução ao país de qual foi expulso /fugiu; não-penalização pela entrada irregular; elaboração de documentos de identidade e carteira de trabalho; permissão para trabalhar formalmente; livre trânsito pelo território brasileiro; educação; saúde; não ser discriminado por raça, sexualidade, classe, situação econômica, religião, origem; e pode praticar livremente sua religião.
Porém muitos imigrantes que recebem o status de refugiados reclamam que após o reconhecimento, nenhuma política de inclusão na sociedade é colocada em prática. Muito moram nas ruas e vivem de doação ou vendas em semáforos. Realidade nas ruas de Pacaraima.
O Dia Nacional da Visibilidade Lésbica foi escolhido durante a realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que ocorreu em 29 de agosto de 1996. A funcionária pública Marcelle Fonseca esteve presente em algumas edições do seminário que, posteriormente, se tornou um encontro. Ela explica que as discussões eram pensadas de acordo com a conjuntura política.
“Cada SENALE teve uma programação própria, construída de acordo com o cenário atual, mas de forma geral, sempre houveram debates sobre saúde lésbica; direitos civis (a questão do casamento e da adoção, inclusive quando a Cássia Eller morreu e teve aquele acordo entre a Eugênia e o pai da Cássia, nós tivemos uma mesa apenas para falar sobre judicialização); violência estatal em razão da imensa resistência/dificuldade de gerar números sobre casos de estupros corretivos e de lesbocídio no país”, conta.
Ela explica que o fortalecimento do feminismo e o enfrentamento da lesbofobia, em suas diversas faces, também eram pautas fixas. “Tínhamos também uma preocupação com o registro das nossas histórias, de não permitir que nossa memória fosse apagada. No final, fazíamos uma grande plenária, com todas as participantes, para apresentar as propostas produzidas pelos grupos, para votar qual seria a próxima cidade e outras questões que acabavam surgindo, como por exemplo, a votação para alteração do nome de SENALE para SENALESBI”, finaliza.
Ainda hoje, um ambiente em que essa violência é vivenciada constantemente é o profissional. O Brasil de Fato conversou com quatro mulheres que sofreram diretamente essa violência em seus ambientes de trabalho e, para protegê-las de uma sociedade que já despreza lésbicas, seus nomes serão fictícios nesta publicação.
Rosangela se assumiu lésbica aos 23 anos, mesmo tendo consciência da própria sexualidade há quase uma década. Na infância, ela foi vítima de um estupro por um amigo da família e, após a saída do armário, foi novamente estuprada, desta vez de forma “corretiva”, com a promessa de que “o estupro iria curá-la desses pensamentos de macho de querer beijar e namorar meninas”. Já adulta ganhou uma bolsa de estudos no exterior e só então pode se descobrir e viver sua sexualidade sem medo dos julgamentos. Quando retornou ao Brasil, acabou cortando laços com a família, mantendo contato apenas com a mãe hoje.
Os conflitos no ambiente familiar também foram experimentados por Lourdes. Por ser uma lésbica que, de acordo com os padrões patriarcais impostos pela sociedade, se veste com roupas que são consideradas masculinas e que não adere aos estereótipos da feminilidade – como o uso de maquiagem, saias, saltos, ter o cabelo comprido, se comportar de forma doce, submissa-, Lourdes conta que sofreu muito com esse processo de auto-aceitação por causa dos conflitos vivenciados no ambiente familiar.
Larissa Caroline Silva de Souza, psicóloga clínica, integrante dos coletivos Psicopretas e Visibilidade Lésbica Campinas, diz que a experiência da lesbianidade impacta todos os âmbitos da vida da mulher. “Nós sofremos lesbofobia quase todos os dias e em diferentes ambientes, isso significa estar de cara com a não aceitação e negação dos nossos corpos pela sociedade, e consequentemente isso impacta de diferentes formas e em todos os âmbitos da nossa existência enquanto ser lésbica. Impacta, por exemplo, na forma como nos vemos e como somos enxergadas, na invisibilidade das nossas pluralidades (negras, pobres, gordas, pessoas com deficiência, mais velhas, mais novas, etc), impacta em como nos portamos frente às dificuldades e possibilidades, impacta na forma como nos relacionamos afetiva e sexualmente entre nós e, principalmente, impacta na nossa saúde mental e na maneira de sentir e existir no mundo”, explica.
Sobre a questão familiar, Larissa explica que é um dos primeiros ambientes em que as lésbicas enfrentam o preconceito e vivenciam a violência, seja ela física, verbal ou psicológica. “Impacta na invisibilização do ser mulher, pois muitas vezes a nossa sexualidade é interpretada como uma tentativa de ser homem, e isso impacta na forma como somos tratadas, principalmente quando não se é reproduzida a feminilidade. E ainda impacta na tentativa de aniquilamento da nossa existência através da morte desses corpos, feito em sua maioria por homens, sendo eles da família ou não”, acrescenta.
Valéria conseguiu contar para a família que estava em um relacionamento com uma mulher apenas depois de se formar na faculdade. Segundo ela, a saída do armário aconteceu depois que ela fez “tudo que havia sido projetado para si”. A reação familiar não foi das melhores e ela chegou a ter que sair de casa para poder viver o relacionamento.
A lesbofobia foi experimentada muito cedo por todas as entrevistadas e se expressava desde apelidos masculinos até o isolamento. “As outras meninas não queriam ficar perto da ‘sapatão’, me tratavam com desprezo, com nojo. De um dia para o outro pessoas que eu achava que eram minhas amigas não queriam mais nem me dar oi, não queriam ser vistas comigo porque tinham medo que outras pessoas achassem que elas também eram lésbicas”, contou Lourdes.
A lesbofobia no mercado de trabalho
Rosa não enfrentou conflitos no contexto familiar, mas no ambiente de trabalho. “Entrou uma funcionária nova na empresa e tínhamos interesses em comum. Começamos a trocar dicas de livros e logo surgiram piadinhas sobre a ‘sapatão não perde tempo e já está em cima da menina’. Eu respondi à altura na hora, mas nada foi feito pela direção da empresa”, contou.
“Sou jornalista e uma vez fui acusada, em um dos meus trabalhos, de entrevistar apenas mulheres lésbicas para as minhas reportagens. Que eu soubesse, nunca tinha entrevistado uma mulher lésbica, até porque quando fazemos entrevistas não perguntamos a sexualidade se não for a pauta, mas a acusação veio porque duas pessoas que eu havia entrevistado no dia anterior tinham o cabelo curto ou colorido”, finaliza. Na ocasião, ela foi advertida, mas se recusou a assinar.
No início de 2019, um caso de lesbofobia em Campinas tomou conta dos noticiários. Thais Cyriaco foi impedida de usar o banheiro feminino em seu ambiente de trabalho por cinco meses até conseguir liminar favorável na Justiça. Ela trabalhava como auxiliar de limpeza da rede de supermercado atacadista Makro. Depois de três meses trabalhando, foi comunicada pela empresa que a contratou, a Elofort Serviços, que, a partir daquele momento, estava proibida de usar e limpar os banheiros femininos da unidade. O motivo era o lesbianismo e sua aparência, já que não performava feminilidade. Hoje, Thais não trabalha mais nesta empresa e deixou a cidade.
Thais se veste com roupas que são consideradas masculina de acordo com os padrões patriarcais impostos pela sociedade / Arquivo pessoal
Rosangela e Valéria trabalham na área da educação. Elas contam que a lesbofobia nesse ambiente acontece de uma forma sutil, mas muito violenta. Rosangela conta que uma mãe pediu para que sua filha fosse trocada de turma porque “ter uma professora machinho não seria bom para o desenvolvimento da criança”. Valéria conta que, mesmo quando se relacionava com homens, não comentava sobre a vida pessoal na escola em que dava aulas, mas que depois que começou a namorar uma garota foi procurada pela direção com o pedido de que não deixasse transparecer a lesbianidade e não comentasse sobre isso com as crianças. Um ponto importante levantado por ela sobre como as lésbicas são vistas como ameaça é que, nesta mesma escola, há um professor gay assumido e isso é visto como algo incrível pela direção, enquanto ela precisa se calar e esconder a sexualidade. “Tenho medo de estar na rua andando de mãos dadas com a minha namorada e cruzar com alguma aluna ou com sua mãe e isso não é justo”, explica Valéria.
Há alguns anos, Rosangela trabalhou em uma grande empresa multinacional, fora da área da educação. Ela conta que as mulheres se incomodavam de usar o banheiro se ela estivesse no ambiente. “Houve um episódio com a minha chefia direta, em que eu estava saindo e ela entrando no banheiro, ela tomou um susto com a minha imagem e se desviou. Estilo Matrix, com uma cara muito assustada, quando percebeu que era eu, se desculpou, e disse que achava que era um homem”, relembra.
A mesma sensação foi vivida por Lourdes. “Reparo também que as mulheres heterossexuais parecem ter medo de ficar sozinhas numa sala com uma lésbica, como se a gente fosse pular em cima delas a qualquer momento. Mantêm distância, ficam de longe”, conta.
A “aparência profissional” também é lembrada como algo usado contra as lésbicas. “Se você não se feminiliza, não se maquia, não usa salto, etc, você leva chamada de atenção por ser ‘desleixada’ e ‘mal-vestida’, mesmo que os homens do local possam trabalhar de jeans e camiseta sem nenhum problema”, explica Lourdes.
“A lesbofobia impacta no nosso não acesso ao mercado de trabalho (muitas de nós estão desempregadas) ou apenas a trabalhos subalternos e que não necessita interação com público. Então, quando estamos inseridas no mercado de trabalho, é despertada e reforçada a insegurança, o medo de rejeição, o não-lugar, o silenciamento e o tratamento diferenciado entre as mulheres héteros. Isso tudo pode e geralmente impacta em como nos sentimos em outros âmbitos da nossa vida, seja na vida social, amorosa ou familiar”, explica a psicóloga que trabalha diretamente com essa população.
Quando o assunto é inclusão por parte das empresas, as entrevistadas acreditam que pouco é feito na prática. “Muitas empresas fazem um ‘showzinho’ sobre o quanto são diversas e inclusivas, mas você vai ver os cargos de chefia e só têm homens brancos. Você vai ver o quadro de funcionários e é todo mundo parecido, as mulheres todas de saltinho, de cabelo alisado, embonecadas. Você vai fazer uma entrevista e eles ainda esperam que você seja feminina, que esteja maquiada, ainda perguntam se você tem filhos ou pretende ter. Fiz entrevista onde perguntaram até a data da minha última menstruação para ‘confirmar que eu não estava grávida’. Se você [consegue a vaga e] tenta apontar algum caso de discriminação que acontece lá dentro, você é acusada de ‘não trabalhar bem com a equipe’”, conta Lourdes.
Rosangela vivenciou coisas parecidas. “Na prática pouco é feito para a educação e a mudança de comportamento de outros trabalhadores e das chefias. E, mesmo quando dizem que ensinam, é nítido perceber como existe um preconceito velado ainda, que não se expressa verbalmente, mas os comportamentos se expressam naquela cobrança maior em cima da lésbica. O tratamento masculinizado que nos oferecem, na forma como por vezes dizem que somos mais fortes, não somos delicadas. Já aconteceu de chefes e colegas me dizerem que comigo eles “mandam a real” sobre as coisas porque sabem que eu não sou tão delicada quanto outras colegas mulheres”.
Lourdes acabou deixando o trabalho presencial por conta das diversas situações enfrentadas. “Tenho bastante dificuldade de conseguir e manter emprego formal. Por causa da minha aparência, tendo a preferir trabalho remoto. Querendo ou não, as pessoas te tratam melhor quando não sabem que você é uma lésbica “butch“, “caminhoneira”. Você deixa sua aparência a critério da imaginação das pessoas, é mais fácil. Existe esse estereótipo de que a lésbica é agressiva, que é turrona, barraqueira, e as pessoas projetam isso em você.
“Tudo que você fala é interpretado dessa forma. Quando você não é feminina, as pessoas interpretam isso como uma infantilidade ou rebeldia ou desleixo. Já perdi oportunidade de emprego porque o contratador achou que eu tinha “cara de que ia arrumar encrenca com os homens da equipe.”
“A gente acaba caindo muito pra informalidade, pros freelas, pros bicos. Eu trabalho como [serviços através de Pessoa Jurídica] PJ faz muito tempo e a informalidade deixa a gente estressada, né. A gente nunca sabe quando vai ter dinheiro, morre de medo de quebrar alguma coisa em casa numa época de vacas magras e não poder substituir, de acontecer alguma emergência e não ter uma renda previsível. Eu vejo muitas lésbicas trabalhando na informalidade e passando esse mesmo stress constante de nunca saber como vai ser o dia de amanhã”, desabafa. “Se puder contratar ou escolher uma profissional lésbica para fazer algum serviço, tem muita mina por aí fazendo trabalhos super legais, de maneira autônoma. Vale a pena buscar”.
“Vivenciar esses episódios de lesbofobia me marcou de maneira muito negativa. Eu desenvolvi alguns problemas psicológicos que ainda hoje trabalho em terapia para superar. São lutas diárias para me entender como um corpo que não está errado, como alguém que merece ser feliz e ser bem tratada e até mesmo de refletir sobre quando eu sinto uma imensa gratidão ao ser tratada bem, o quanto isso é de fato gratidão e o quanto é a surpresa de, em um raro momento, ser tratada com dignidade. Hoje eu tenho a alegria de trabalhar em um ambiente de qualidade, com pessoas que me respeitam e me valorizam, mas infelizmente isso não é algo que está disponível para todas as lésbicas”, conta Rosangela.
A psicóloga explica que essas violências podem deixar impactos durante toda a vida das lésbicas. “As marcas deixadas pela lesbofobia podem ser consideradas um trauma pois tratam-se de lésbicas que experienciam ansiedade, depressão, baixa autoestima, insegurança, constante sentimento de culpa, inadequação, sensação de inferioridade, negação de si, medo de rejeição, abuso de álcool e drogas, distúrbio alimentares, idealização suicida. Isso pode impactar, mas não é determinante, na dificuldade de estabelecer relacionamentos afetivos e criar vínculos, dificuldade de pôr em prática os desejos e planos, reprodução e internalização de estereótipos para ser aceita, entre outros.”
“Considero o acompanhamento psicológico como uma das possibilidades de cuidado, assim como estar em coletivo com outras lésbicas, pois a grupalidade auxilia muito no fortalecimento de si e de outras lésbicas, no sentimento de pertencimento, na construção de identidade, pois é ter contato com outras referências de existir e, principalmente, na possibilidade de se enxergar enquanto um corpo político”, completa Larissa.
A lesbofobia é vivenciada por todas as mulheres lésbicas, mas pode se manifestar de diferentes formas. A não-feminilidade expressada por algumas mulheres pode ser um fator a mais para o alvo dessas violências. “Estamos falando de uma sociedade machista e misógina que define qual o padrão aceitável de existência e classifica os seres a partir da dualidade (homem e mulher), já impondo as característica esperadas por essas duas possibilidade que eles mesmo definem e que exclui totalmente outras expressões de gênero e sexualidade. Então se a mulher não performa feminilidade, não tem seu afeto direcionado ao homem hétero, ela se torna uma ameaça a essa sistema todo que depende dos lugares sociais impostos para manter seu funcionamento”, explica a psicóloga.
A importância da Visibilidade Lésbica no combate à discriminação
A criação do Dia da Visibilidade Lésbica propiciou que o debate fosse colocado em diversas áreas da sociedade. Para as entrevistadas, a data é importante para que a existência lésbica seja normalizada. “A lésbica é vista como um ser aberrante, uma desviante, e por isso mesmo encaixada em estereótipos. A visibilidade é importante para que sejamos entendidas como pessoas que têm uma vida interior própria. A mulher já é desumanizada e objetificada, tem um papel social que é construído como receptáculo do desejo do outro. A lésbica é vista como um receptáculo quebrado, uma mulher que não funciona. A visibilidade é dar voz às lésbicas num processo humanizador. Nós não somos mulheres quebradas, ou barraqueiras frustradas, somos seres humanos, temos nossas próprias histórias e precisamos ser vistas e ouvidas”.
“É por meio da visibilidade que, pouco a pouco, a gente consegue transformar o imaginário coletivo de quem somos enquanto lésbicas, a cada movimento novo de visibilidade é um próximo passo que a gente tenta dar rumo a uma transformação das realidades das próximas gerações. Eu espero que o mundo seja mais acolhedor para as lésbicas que vão vir e o Dia da Visibilidade Lésbica contribui pra isso. Além disso, marca um momento importante na história das lutas por direitos, por transformação social e é uma data importante politicamente porque rompe com o véu da ignorância, inclusive do movimento LGBT+, de dizer que lésbicas nunca estiveram ativas politicamente, de que mulheres não constroem política”, explica Rosangela.
Para a psicóloga, é preciso lembrar, todos os anos, que as lésbicas existem o ano todo. “É visibilidade, para olhar nossa pluralidade, reivindicar respeito, acessos, humanidade. É celebrar todos os corpos lésbicos que são resistência, revolução, que têm voz, têm potência, e que vai contra o patriarcado, o machismo, o racismo e todas outras formas de opressões. É o rompimento da invisibilidade do nosso existir, é mostrar que estamos na luta há muito tempo e, além disso, relembrar toda a caminhada histórica trilhada por mulheres lésbicas que vieram antes de nós. É pensar outras formas de viver em menos sofrimento, pensar outras possibilidade de caminhos, principalmente se for em coletivo, e deixar uma estrada para outras que irão vir depois de nós”.
Quando questionada sobre como avançar no combate às violências, Lourdes é assertiva “com mais lésbicas tendo espaço!”. E continua “Em todas as áreas, em todos os lugares, numa posição de protagonismo. Precisamos ter nossas lutas e nossas histórias contadas. E não apenas numa forma de ‘representatividade’ com histórias meia-boca sobre lésbicas de mentira sendo contadas por homens ou por mulheres heterossexuais, mas realmente dar espaço para a nossa voz. Na mídia, no mercado de trabalho, nos círculos feministas, na legislação, em todo lugar”.
Combater a lesbofobia diariamente passa por humanizar lésbicas e reafirmar que, assim como todas as demais pessoas existentes, elas também são merecedoras de acessar políticas públicas. “Combater a lesbofobia é a disponibilidade de pensar ações para tudo que é nos é negado – como o acesso à saúde especializada, ginecologia lésbica, programas de saúde mental -, ações de acesso ao trabalho que nos ajudem a permanecer, pois falamos de um ambiente capitalista e competitivo. Disposição de repensar os estereótipos atribuídos e as atitudes direcionadas a nós, repensar ações para a sobrevivência das lésbicas nos presídios e em situação de rua também. É também enfrentar lesbocídio, que é o homicídio direcionado a mulheres lésbicas. Enfim, é pensar formas de a gente poder ter uma existência mais plena e por mais tempo”, finaliza Larissa.
Rosangela encerra a entrevista pedindo “que o Dossiê Lesbocídio [primeiro e único levantamento sobre assassinato de mulheres lésbicas no Brasil] não seja o único que se preocupa em contar nossos corpos, que nossas vidas sejam valorizadas por todos os poderes e que sejamos mais que corpos assassinados e suicidados, que sejamos vida também”.
Dia do Orgulho Lésbico: 19 de agosto, a revolta no Ferro’s Bar
Localizado próximo à avenida 9 de Julho, no centro da capital paulista, o Ferro’s Bar era um conhecido ponto de encontro de lésbicas a partir dos anos 60. A polícia fazia investidas violentas no estabelecimento e as frequentadoras eram expulsas do bar, além de terem seus panfletos e materiais impressos apreendidos.
Jornal “Chana com Chana”, vendido no Ferro’s Bar, local do primeiro levante lésbico no Brasil / Reprodução
Nesta época, o que mais circulava entre essas mulheres era o jornal não-permitido “Chana com Chana”, produzido de 1981 a 1987, que trazia troca de cartas, poesias, resenhas, entrevistas, dicas de livros, depoimentos, além de tratar questões como legislação, trabalho e família.
Depois de muito resistir às expulsões violentas e à proibição dos materiais, no dia 19 de agosto de 1983, as militantes resolveram dar um basta em toda essa violência. Um manifesto contra a repressão e pelo direito das lésbicas foi lido diante da polícia e da imprensa. O protesto resultou em um pedido de desculpas e na liberação da venda dos panfletos.
O levante do Ferro’s Bar foi um marco histórico da primeira manifestação lésbica brasileira, incentivando outros grupos a se erguerem contra a repressão também.
Levante no Ferro’s Bar, em 19 de agosto de 1983 / Reprodução
Confira abaixo o conteúdo do panfleto distribuído em julho que mobilizou o levante em agosto.
PRA VOCÊ QUE FREQUENTA O FERRO’S
BEM, GENTE, ACHO QUE CHEGOU A HORA DE FALARMOS ABERTAMENTE. CHEGA DE SUBTERFÚGIOS. E VOCÊ QUE É UMA PESSOA INTELIGENTE HÁ DE CONVIR COMIGO QUE TEMOS QUE NOS UNIR, POIS SÓ A UNIÃO FAZ A FORÇA. NÃO QUEREMOS QUE VOCÊ EMPUNHE A BANDEIRA DE HOMOSSEXUAL CONTRA A SUA VONTADE, MAS GOSTARÍAMOS QUE VOCÊ OLHASSE PARA DENTRO DE VOCÊ E VISSE O QUANTO GENTE VOCÊ É, QUE SER HUMANO MARAVILHOSO SE ESCONDE ATRÁS DE UMA MÁSCARA, BRINCANDO DE FAZ DE CONTA.
FAZ DE CONTA QUE SOU TRATADA IGUALMENTE COMO TODAS AS PESSOAS.
FAZ DE CONTA QUE O RESTAURANTE QUE EU FREQUENTO ME RESPEITA COMO EU MEREÇO.
FAZ DE CONTA QUE A SOCIEDADE ME ENCARA SEM PRECONCEITO.
FAZ DE CONTA ATÉ QUANDO?
VOCÊ SABIA QUE COLEGAS SUAS, SERES HUMANOS COMO VOCÊ, SÃO POSTAS PARA FORA DE NOSSO MEIO COMO SERES LEPROSOS?
VEJA, POR EXEMPLO, O QUE ACONTECEU NA NOITE DO SÁBADO PASSADO, DIA 23 DE JULHO, SÓ PORQUE UMAS MENINAS ESTAVAM VENDENDO SEU BOLETIM O CHANACOMCHANA, NUM CERTO BAR QUE CONHECEMOS, O DONO DO BAR E OS SEGURANÇAS QUERIAM EXPULSÁ-LAS À FORÇA SÓ PORQUE O BOLETIM FALA DAS NOSSAS VIDAS CLARAMENTE, SEM VERGONHA OU MEDO E ATÉ COM MUITO ORGULHO. E É SÓ POR ISSO MESMO, JÁ QUE, NO MESMO DIA, O EXÉRCITO DA SALVAÇÃO ESTAVA VENDENDO SEU JORNAL PARA NOS LIVRAR DO “PECADO” E NINGUÉM O INCOMODOU.
NESSA NOITE, QUISERAM EXPULSAR AS COLEGAS, MAS NÓS NÃO DEIXAMOS E ELAS FICARAM, JANTARAM E PAGARAM A CONTA COMO SEMPRE COSTUMAM FAZER, POIS, PRA UNS E OUTROS, EMBORA NÃO PASSEMOS DE CÃES SARNENTOS, NOSSO DINHEIRO NÃO TRANSMITE NOSSA DOENÇA. E ELES SABEM FAZER BOM USO DELE, NA COMPRA DO CARRO ZERO KM, NO ESTUDO DO FILHO NO EXTERIOR, ETC. QUEREMOS TER OS MESMOS DIREITOS DAS OUTRAS PESSOAS, NÃO SÓ SEUS DEVERES.
E PRECISAMOS COMEÇAR A BATALHAR POR ISSO A PARTIR DOS LUGARES QUE FREQUENTAMOS E SUSTENTAMOS. OU NÓS NOS UNIMOS OU CENAS COMO A DO SÁBADO PASSADO CONTINUARÃO A OCORRER E PODERÁ SER COM QUALQUER UMA DE NÓS POR QUALQUER MOTIVO.
NOSSAS COLEGAS ESTÃO PROIBIDAS DE ENTRAR NO FERRO’S PORQUE QUEREM VENDER UM BOLETIM QUE TAMBÉM É NOSSO E PORQUE QUEREM CONVERSAR CONOSCO. VAMOS ADMITIR ESSA PROIBIÇÃO?
GUARDE E PENSE COM CALMA, EM CASA. REFLITA, FAÇA UMA AUTO-ANÁLISE, SE POSSÍVEL RELEIA ESTE TEXTO COM BASTANTE ATENÇÃO E, SE VOCÊ NÃO SE IMPORTA CONSIGO MESMA, JOGUE FORA E FAÇA DE CONTA QUE NADA LEU.
CASO CONTRÁRIO NOS PROCURE. NOSSO ENDEREÇO É RUA AURORA, 736, APTO 10.
E DEIXE O SEU RECADO. CASO CONTRÁRIO, PROTESTE CONTRA A PROIBIÇÃO DE NOSSA ENTRADA COM O DONO DO BAR.
E, CASO CONTRÁRIO, NOS APOIE QUANDO FORMOS VENDER O BOLETIM CHANACOMCHANA.
PARTICIPE NA LUTA CONTRA O PRECONCEITO QUE NOS DISCRIMINA, POIS TODA MANEIRA DE AMOR VALE A PENA.
GRUPO AÇÃO LÉSBICA FEMINISTA CX.POSTAL 62,618, CEP 01000, SP JULHO DE 1983
(texto digitalizado do folheto original distribuído no Ferro’s Bar– acervo Rede de Informação Um Outro Olhar, contido na publicação “Quando o preconceito fecha as portas, lute para abrí-las”, de Miriam Martinho)
Um áudio da Chefa da Divisão de Educação Escolar Indígena, Gleide de Almeida Ribeiro, enviado em abril em um grupo pelo Whatsapp, colocou em pânico professores indígenas da rede estadual de ensino de Roraima.
“Eu quero a confirmação dos centros regionais! Escolas que não estiverem funcionando, que não começou e nem vai começar [a dar aulas presenciais], nós vamos suspender o pagamento dos professores! Eu preciso urgentemente dessa informação. Já foi autorizada a suspensão do pagamento dos professores da Serra da Lua – exceto aquelas escolas que estão funcionando. Por isso eu preciso urgentemente saber quais são as escolas que estão funcionando na Serra da Lua, ou então todas as escolas da Serra da Lua vão ser suspensos o pagamento”, disse a Chefa da Divisão do governo de Antônio Denaruim (sem partido).
Após o envio do áudio, Silvana*, professora seletivada, teve alguns dias descontados de seu salário por se recusar a ir até a casa dos alunos para entregar atividades. Por medo de retaliação, ela preferiu não se identificar, e detalhes como etnia, região e escola de atuação serão mantidos em sigilo.
Diferente do restante do país que cumpre, em algum nível, o estudo à distância, os alunos indígenas de Roraima não conseguem ter uma estrutura de internet e de aparelhos eletrônicos para assistir às aulas. Além dos alunos, alguns professores também não sabem como usar o aparelho para dar aulas. Os professores reclamam que não houve qualquer tipo de instrução para que as aulas fossem dadas à distância.
A reportagem do Brasil de Fato tentou entrar em contato com Gleide de Almeida Ribeiro, Chefa da Divisão de Educação Escolar Indígena, e Leila Perussolo, Secretária de Educação e Desporto do Estado de Roraima, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Silvana conta que assim como ela, a maioria dos professores indígenas são seletivados, ou seja, podem ter seu salário cortado a qualquer momento. “Primeiro pediram que fôssemos até a casa dos alunos entregar as atividades e lá teríamos que aguardar que eles as fizessem e nos devolvessem. Quando nos recusamos disseram que teríamos que atendê-los na escola. Hoje atendemos salas inteiras de uma vez”. Ela explica que o governo de Antônio Denaruim não enviou máscaras, álcool em gel, luvas ou qualquer outro equipamento de segurança para as escolas. “Atendemos 6 ou 7 alunos de uma vez sem nenhuma proteção”, explicou.
Desesperada com a situação, outra professora que também não quis se identificar desabafou: “Nós não temos como ficar sem salário, ainda mais durante uma pandemia. O que estão fazendo com a gente é desumano. Como eu vou chegar pros meus filhos e falar ‘ou a mamãe sai pra trabalhar e corre o risco de morrer pra poder trazer comida pra casa ou a gente vai passar fome’? Não tem como eu fazer isso”.
A primeira morte de professora
Professora indígena da etnia Macuxi, Bernita Miguel, de 52 anos, foi a primeira vítima do coronavírus dentro das escolas indígenas de Roraima. Bernita ensinava a língua Macuxi na Escola Estadual Indígena Artur Pinto na comunidade Nova Esperança, na região de São Marcos, no município de Pacaraima.
Professora Macuxi Bernita Miguel, primeira professora vítima de coronavírus em Roraima / (Reprodução / Facebook)
Enock Taurepang, coordenador-geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), explica que o governo estadual não tem se importado com a saúde indígena. “Os professores indígenas estão entre a cruz e a espada. O governo joga essa proposta de 15 ou 20 dias de repasse de atividade pros alunos, mas aulas estão acontecendo e isso nos preocupa mesmo que seja de 15 em 15 dias”, explica. “Ainda tem profissionais indígenas que se reúnem dentro do ambiente escolar para fazer o planejamento e isso é uma preocupação muito grande”, completou.
O coordenador do CIR explica que não é possível prever quem está contaminado ou não. “Já temos 8 perdas de professores para essa doença e não queremos ter mais vidas levadas por essa doença. Esse método proposto para os professores expõe o professor, o aluno, o pai do aluno e consequentemente toda a comunidade. Nós temos a cultura de visitar nossos parentes, ir nas casas dos parentes de manhã ou no finalzinho da tarde pra conversar, pra repassar informação, pra combinar o trabalho do dia seguinte. E tudo isso propicia que o vírus se espalhe em toda a comunidade”.
O coronavírus passa de cada pessoa contaminada para três a cinco pessoas. O que significa que, sem nenhuma medida de contenção, o número de casos tem potencial de dobrar, em média, a cada quatro dias. Em ambientes fechados o contágio é muito maior, sobretudo se se faz uso de ar condicionado, onde a troca de ar é aquém da ideal. O contágio é rápido uma vez que há uma faixa grande de pessoas que são pré-sintomáticas e durante essa fase seguem transmitindo mesmo antes de apresentar os sintomas.
“Nesse modelo de continuar com os atendimentos presenciais, todos ficam expostos. Não importa se é um, dois ou três minutos, não importa o tempo. Essa doença se espalha de uma maneira tão rápida… basta você ter um pequeno contato e aí lá se vai o vírus causar mais mortes. Esse modelo não é apropriado para nós, não é!”, explicou Enock.
Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), há hoje 821 casos de indígenas confirmados com covid-19 e 47 óbitos em Roraima. No Brasil, o número passa para 14.793 infectados e 501 mortes, sendo 131 povos atingidos. Os estados com maior número de indígenas infectados pelo vírus são Amazonas, Para e Maranhão. Os principais povos atingidos pela doença foram Kokama (60 óbitos), Xavante (33 óbitos) e Guajajara (30 óbitos).
Rotina em sala de aula
Silvana explica que as aulas acontecem por horário determinado, exemplo: alunos do quinto ano das 09h às 10h; do sexto ano das 10h às 11h; e assim por diante. As salas de aula continuam iguais, sem afastamento de carteiras ou distanciamento social. Os estudantes formam uma fila e vão, um a um, tirar as dúvidas. Geralmente o professor fica sentado e o aluno em pé ao lado. Ela conta que nem todos os alunos têm máscara, e que poucas escolas disponibilizam álcool em gel. Ela, que tem apenas licenciatura para dar aulas para alunos do ensino fundamental, há alguns anos assumiu, a pedido do governo estadual de Roraima, matérias como sociologia, biologia e espanhol. Silvana tem, em média, 120 alunos.
Enock explica que, ainda que o governo tenha enviado alguns vidros de álcool, eles não são suficientes. “Não é uma realidade para o professor indígena pensar ‘ah, agora eu posso trabalhar e fazer as minhas atividades com o mínimo de segurança’, não é! Mandar dois ou três vidros de álcool em gel para uma escola que tem 40 ou 50 professores é inviável, é inadmissível”.
Outras formas de lidar com a situação
Para o CIR, há outras formas de manter o emprego dos professores durante a pandemia. “O professor poderia estar produzindo materiais pedagógicos específicos e diferenciados para as escolas indígenas nesse período de um ou dois meses. O professor ficaria liberado para fazer seu próprio material pedagógico e depois que tudo isso passasse, ficaria mais fácil de ele chegar com esse material, apresentar e aplicar para os seus alunos. Ele só iria aplicar o que ele já tinha criado nesse período que ele passou sem dar aula. Então, de uma forma ou outra, o professor não pararia suas atividades como profissional”, explicou Enock.
Para ele, o governo não está escutando as demandas e as sugestões dos professores. “Quando essa ordem vem de cima, o profissional indígena se sente na obrigação de executar aquilo que tá se pedindo mesmo que a sua vida esteja em risco. Se eu paro de executar minha atividade como professor por causa de uma pandemia, o governo aponta o dedo e diz que vai tirar o meu salário e eu tenho muita conta pra pagar. Tenho uma família pra alimentar, e se eu parar, consequentemente, eu vou perder tudo isso; e daí fico na obrigação de executar o que o governo tá pedindo mesmo colocando minha vida em risco”, explicou.
Professores vítimas do Covid-19
Assim como Bernita, outros sete professores faleceram por conta da doença. Elizabeth Ribeiro, da etnia Wapichana, tinha 37 anos e dava aulas na comunidade Canauanim, no município do Cantá. Já Fausto Silva Mandulão, de 58 anos, era professor há 41 anos. Liderança indígena, ele lecionava na Escola Estadual Indígena Professor Ednilson Lima Cavalcante, na comunidade Tabalascada, também em Cantá. Ambos faleceram no mesmo dia, 03 de junho, vítimas da doença.
Poucos dias depois o professor indígena da etnia Macuxi, Luciano Peres, de 68 anos, também faleceu vítima da doença. Formado em pedagogia e matemática, lecionou no Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol. Ele também atuou como gestor pedagógico na escola estadual Tuxaua Silvestre Messias e foi secretário na prefeitura de Pacaraima.
Alvino Andrade da Silva, da etnia Macuxi, também foi vítima da doença uma semana mais tarde. Nascido na Comunidade Indígena Boqueirão/Região do Tabaio, município de Alto Alegre, atuou como assessor técnico da Associação dos Povos Indígenas do Estado de Roraima (APIRR), entre 2005-2011. Dulcirene Freitas de Lima, 47 anos, da etnia Taurepang, da Comunidade Canauanin; Irinel Melquior, da etnia macuxi, da Comunidade Ticoça; e Maika Ferreira Melo, da etnia Macuxi, da Comunidade Sucuba, também morreram vítimas do vírus.
Professora Taurepang Dulcirene Freitas de Lima (reprodução Facebook)
Professora Macuxi Bernita Miguel (reprodução Facebook)2
Professor Macuxi Irinel Melquior (reprodução Facebook)
Professor Macuxi Fausto Mandulão(reprodução Facebook)
luciano peres ReproduçãoInstagramConselho Indígena de Roraima
Como o vírus têm chegado às comunidades?
Segundo a APIB, em muitos casos o vírus tem chegado pelo próprio governo federal, como no caso da região do Alto Solimões e no Vale do Javari onde a covid-19 foi levada por pessoas da equipe da SESAI que estavam contaminadas. No Parque Tumucumaque (Pará e Amapá), o vírus chegou com o Exército. Em regiões do Sul e Centro-Oeste, o agronegócio tem sido um dos principais vetores da disseminação da doença entre povos indígenas. O garimpo ilegal e outras ações criminosas que invadem as terras indígenas têm levado a doença para territórios em Roraima e Pará. A exposição ao vírus na tentativa de acessar o auxílio emergencial do governo também tem sido uma das formas de chegada nas aldeias.
Todas as vidas indígenas importam
Segundo o CIR, há mais de mil professores seletivados no estado de Roraima. “Independente da quantidade, se existissem dois professores seletivados, a gente ia lutar pela vidas desses dois. Se existisse um professor concursado indígena, a gente ia lutar pela vida desse professor concursado indígena. Todas as vidas importam! São as pessoas que estão dando a vida e o sangue todos os dias dentro das escolas indígenas pra fazer a educação acontecer, pra fazer com que o aluno jovem ou a criança possa ter o entendimento maior do mundo em que a gente tá vivendo. Então essas pessoas importam e são muito preciosas pra comunidade”. Ele explica que tanto os professores mais jovens, quanto os professores mais velhos têm um grau de conhecimento imenso e que ambos são vidas essenciais nas comunidades.
Tratamentos tradicionais contra o vírus
Para o CIR o número de professores contaminados pode ser muito grande, levando em conta os que estão recebendo tratamento dentro das comunidades. Há contaminados que estão em isolamento e seguindo tratamento com medicamentos farmacêuticos e tradicionais.
Silvana voltou da comunidade em que dá aulas com sintomas de covid-19. Depois de 17 dias conseguiu realizar o exame, que deu negativo, e acredita que o vírus não foi encontrado em seu corpo porque tomou algumas garrafadas – um medicamento tradicional – por muitos dias seguidos.
As garrafadas podem ser produzidas de diversas formas. Silvana se tratou com a Garrafada de Quina Quina (a casca da árvore com água) e com a Garrafada de Limão e Laranja (são batidos no liquidificador dois limões com casca e sem sementes e uma laranja com casca, se adiciona água e bebe-se 3 vezes ao dia).
A nossa bandeira é a vida!
“O CIR tem a obrigação, e a gente faz com gosto, de defender o direito do parente, defender o direito do profissional indígena, defender o direito do pai, da mãe, do filho, do neto, do indígena em geral. Quantas vezes forem necessárias, o CIR vai se manifestar e vai dizer não à morte, não ao genocídio do povo indígena! Não! Basta! A gente quer viver! A gente quer ver o parente feliz! A gente quer ver o parente com saúde! A gente quer ver o parente autônomo, de todas as formas! Essa é a nossa bandeira, a vida, o bem-viver das comunidades”, finalizou Enock.
O aeroporto de Boa Vista recebe voos em apenas dois horários, durante a madrugada ou ao meio-dia. Enquanto em São Paulo o voo partia em uma alvorada fria, chegava-se ao estado nortista com a marca de 37º. Havia um grande contraste de temperatura no mês de março. A viagem por avião e a rápida mudança de clima, no entanto, não eram a realidade da maioria das pessoas que entravam no estado de Roraima naquele momento. A maioria doa imigrantes venezuelanos realizava o caminho a pé ou em automóveis. A cidade fronteiriça do lado brasileiro, Pacaraima, era o reduto de alguns deles. Outros caminhavam, pediam carona, pegavam ônibus ou táxis até a capital Boa Vista, que fica a 214 km e, aproximadamente, 4h30 de distância de carro.
Por Martha Raquel e Michele de Mello, do Brasil de Fato | Boa Vista (RR) e Caracas (Venezuela)
O aeroporto internacional de Boa Vista é um dos únicos do país que mantém um posto fixo da Defesa Civil com agentes sanitários. / Michele de Mello
A reportagem do Brasil de Fato acompanhou por 18 dias a situação de Roraima, entre o momento da chegada à capital do estado até o fechamento da fronteira terrestre com o país vizinho, motivado pela pandemia da covid-19, em março.
Segundo os últimos dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), existem cerca de 45 mil venezuelanos no Brasil que solicitaram o pedido de refúgio. Destes, mais de 33 mil residem em Roraima, seguido do Amazonas, com cerca de 8,4 mil pessoas.
A crise econômica aprofundada pelo bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos desde 2015 à Venezuela, assim como a crise do mercado petroleiro, foram os principais fatores que levaram à precarização da vida da população do país vizinho. O boom dos pedidos de refúgio aconteceu em 2018, quando o Conare avaliou que havia uma situação “grave e generalizada de violação de direitos humanos” na Venezuela, facilitando a entrada e documentação dos imigrantes.
Caminhar por Boa Vista ao longo do mês de março era como estar em uma cidade venezuelana. Pelas ruas do Centro da cidade, o idioma predominante era o espanhol e as calçadas eram preenchidas com centenas de barracas, mesas, toalhas no chão ou pequenas estruturas para venda de produtos. Abridores de latas, canetas, pirulitos, bombons, pentes de cabelo, sabonetes, desodorantes, panos de prato, espigas de milho, frutas, água. Era possível comprar tudo direto das mãos dos imigrantes venezuelanos.
Boa Vista é uma capital com clima de interior, que tem um quarto de seu território demarcado como área indígena. A cidade também é a segunda com maior número de venezuelanos no país, ficando atrás apenas de Pacaraima, que faz divisa com Santa Elena de Uairén, na Venezuela.
Em ambas as cidades, havia venezuelanos que moravam em casas alugadas ou compradas, outros viviam em abrigos e uma boa parte dormia nas ruas, por exemplo, as do entorno da rodoviária de Boa Vista, por onde também chegavam diariamente centenas de imigrantes.
Uma das ocupações independentes que servem de abrigo aos venezuelanos é a Ka Ubanoko, “lugar de morada” na língua indígena Warao. Esta é uma é uma das 11 casas independentes e autogestionadas de Boa Vista. Com regras rígidas de organização, a ocupação sobrevive há quase um ano e meio em um terreno público que já foi a tentativa de construção de um clube de trabalhadores, obra que nunca foi terminada.
Uma das construções da ocupação Ka Ubanoko, que abriga indígenas venezuelanos em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato
No mês de março, o local abrigava cerca de 850 pessoas, que dividiam cinco áreas, entre espaços reaproveitados da construção do parque, casinhas de madeira, barracas e redes. Eram povos crioulos e indígenas de quatro etnias diferentes: Warao, Enepà, Karina e Pemon. A maioria falava espanhol, mas outros se comunicavam apenas na língua originária. Não havia estrutura de banheiros e cozinha para todas as famílias. Uma mesma torneira era usada para tomar água, banho de balde, cozinhar, além de lavar roupas e utensílios.
Muitos dos indígenas que ali estavam foram parar na ocupação por falta de vaga nos abrigos da Operação Acolhida do Exército brasileiro, mas hoje valorizam a autonomia que conquistaram no espaço. Lá, eles continuam mantendo seus costumes e sua cultura, por meio de suas línguas originárias, músicas e cultos.
Também atuante em solo roraimense, a Agência de Refugiados das Nações Unidas (Acnur) gerencia outros 13 abrigos temporários e um espaço emergencial, onde viviam, em março, cerca de 6 mil pessoas, entre refugiados e migrantes. Esses espaços são administrados pela Acnur junto à Força-Tarefa do Exército brasileiro. A reportagem do Brasil de Fato esteve em dois dos abrigos da Operação Acolhida.
Composto por casinhas compartilhadas por duas famílias cada, mais espaço de banheiros, mesas para refeições, bicicletário, horta comunitária e estrutura para aulas de português para imigrantes, o abrigo São Vicente 2 é um dos mantidos pela Operação.
Josiah Okal K’Okal, da ordem dos Missionários da Consolata, é oriundo do Quênia e já trabalhou por 22 anos na Venezuela, sendo nove deles acompanhando o povo Warao. Atualmente, cursa mestrado em Antropologia na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), em Quito, Equador. Os estudos acadêmicos o motivaram a passar dois meses no Abrigo Pintolândia, organizado pelo Exército brasileiro em Boa Vista, para pesquisar o processo migratório dessa etnia. Além disso, fez visitas ao Abrigo Janokoida, em Pacaraima.
“Nos dois abrigos que estive, os moradores são todos indígenas, Warao e Enepá. A primeira coisa que me impressionou foi o número de atores na administração do abrigo. Posso classificar em grupos aqueles que administram o abrigo: os que estão fisicamente presentes todo o tempo – a Fraternidade Internacional e o Exército –, e os que tomam decisões e quase nunca estão presentes no espaço do abrigo – outros órgãos estatais, governo regional, governo municipal, ACNUR, OIM [Organização Internacional para as Migrações]”, afirma.
K’Okal também lista outras agências que, segundo ele, estão em alguns momentos, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Médicos Sem Fronteiras, entre outros.
Segundo o missionário, há críticas dos migrantes quanto à ausência física de acompanhamento, o que acarreta em problemas cotidianos. “A comida servida vem de fora do abrigo, já embalada em marmitas. Geralmente, o menu consiste em carne com salada crua e arroz, acompanhado de uma bebida industrial, suco. A comida é a mesma para todos, até para crianças recém-nascidas. A carne é frequentemente frita e sempre muito seca. Às vezes, eles comem frango ou peixe, mas é bem raro isso acontecer”, relata o pesquisador.
O Exército é o responsável pela contratação de quem fornece a alimentação dos abrigos, mas a administração diária é incumbência da Fraternidade Internacional. A rotina diária, além da distribuição dos alimentos, envolve horários rígidos para despertar, café da manhã, almoço e jantar, bem como horários para entrada e saída do local. Todas as pessoas devem portar um documento com foto e o cartão com o código de barras do abrigo ao qual pertencem. Não é permitida a entrada de terceiros nem de moradores que estejam alcoolizados.
“Em geral, no abrigo, há uma atmosfera de alegria, mas também de angústia. Os indígenas são sempre pessoas muito gratas e não exigem muito. Pintolândia tem mais características de comunidade do que de um campo de refugiados. Observei que a equipe da Fraternidade tenta fazê-los sentir que o abrigo é o lar deles. Há muita flexibilidade, muita proximidade, muita irmandade. Mas, seu contexto lhes tira a alegria às vezes”, conta K’Okal.
Abrigo oficial do Exército São Vicente 2, no bairro São Vicente, em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato
O plano da reportagem do Brasil de Fato era conhecer todos os 13 abrigos e o centro de acolhida emergencial da Operação Acolhida, mas não houve tempo. O Estado brasileiro tinha cinco casos suspeitos de coronavírus já em 13 de março, mesmo dia em que o governo brasileiro anunciou que avaliaria o fechamento da fronteira terrestre com a Venezuela.
Segundo o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a medida teria como estratégia conter o avanço do coronavírus no Brasil. No entanto, do lado venezuelano, no estado de Bolívar, nenhum caso havia sido registrado sequer como suspeito até então.
A solicitação para o fechamento da fronteira do Brasil com a Venezuela e com a Guiana havia sido feito dois dias antes, em 11 de março, pelo governador de Roraima, Antonio Denarium. Na ocasião, o ministro da Saúde à época, Luiz Henrique Mandetta, disse que a fronteira com a Venezuela era “a única que realmente dava preocupação ao governo brasileiro”.
Ao jornal O Estado de S.Paulo, Denarium disse que o grau de preocupação com a fronteira era “muito grande”. “Em Roraima estão entrando de 500 a 700 venezuelanos todos os dias. Se tiver um foco de novo coronavírus na Venezuela, e com essa migração desordenada, pode se tornar uma epidemia”, afirmou o governador no dia 12 de março. O fechamento da fronteira foi decretado na manhã do dia 18 de março.
Àquela altura, o temor já estava generalizado pelo Brasil. Na capital de Roraima já não era mais possível encontrar máscaras, luvas ou álcool em gel nas farmácias. Em Pacaraima, apenas um lugar vendia máscaras. A unidade que, antes da pandemia, custava R$ 0,35, agora custava R$ 2. Um cartaz de oferta divulgava a caixa com cem máscaras por R$ 180,00.
Proporcionalmente, Roraima possui a maior população indígena do Brasil, quase 50 mil pessoas, que também habitam a região próxima à fronteira / Michele de Mello
No paço fronteiriço, por volta das 8:30 da manhã, venezuelanos foram impedidos de entrar no Brasil. Já os venezuelanos que estivessem em solo brasileiro poderiam voltar ao seu país de origem. Carregadores do país vizinho que viviam em Roraima e trabalhavam levando produtos de um lado a outro da fronteira não puderam retornar às suas casas.
Um desses trabalhadores impedidos de retornar ao Brasil contou à reportagem que não sabia o que fazer. Pai de duas filhas, ele havia acabado de cruzar a fronteira para fazer uma entrega e estava impedido de retornar para a sua família. Junto a ele haviam pelo menos mais 30 carregadores na mesma situação.
Ao Brasil de Fato, pedindo para não ser identificado, ele declarou que fazia mais de quatro horas que ele e outros carregadores estavam sob um sol de 34º, sem comida ou água. “Trabalhamos do lado brasileiro e, assim, sustentamos a família. A situação vai ficar pior do que está. A maioria de nós trabalha para nossas famílias, se não nos deixam passar, não trabalhamos nem comemos”, disse.
Do lado brasileiro, havia barreiras da Força Nacional, da Polícia Federal e do Exército. Já do lado venezuelano, havia uma Brigada Itinerante de Prevenção à Contaminação pelo coronavírus, que contava com representantes da Milícia Nacional, do Exército, da Guarda Nacional, da Polícia do Estado Gran Sabana, além de médicos venezuelanos e estudantes de medicina brasileiros que fazem a graduação na Venezuela.
A fronteira estava fechada apenas do lado brasileiro aos venezuelanos. Brasileiros tinham livre circulação. Um único agente da Polícia Federal checava a nacionalidade e liberava a passagem.
Com o passar dos meses, o decreto inicial que estabelecia 15 dias de fechamento da fronteira terrestre foi alterado algumas vezes. A situação dos imigrantes venezuelanos, tanto os que vivem nas ocupações independentes quanto os que estão nos abrigos oficiais da Operação Acolhida, também mudou durante a pandemia.
Os moradores da Ka Ubanoko estão recebendo visitas diárias de profissionais do Médicos Sem Fronteiras. Porém, ainda falta infraestrutura, com reclamações de dificuldades para exames, testagem e atendimentos especializados.
Segundo a Acnur, houve a instalação de oito pias com água para os imigrantes que vivem em assentamentos espontâneos realizarem a higienização constante, além disso, o órgão afirma que distribuiu 7,3 mil kits de higiene e limpeza, colchões, redes, fraldas e roupas de ajuda emergencial.
A ONU também investiu na construção de um hospital de campanha em Boa Vista, com capacidade para 1,2 mil leitos. A Área de Proteção e Cuidados (APC) deverá atender até 2,2 mil pessoas.
Após ter o funcionamento adiado cinco vezes, o Hospital de Campanha de Roraima foi inaugurado no dia 19 de junho, três meses após o fechamento inicial da fronteira. O atraso foi devido ao não cumprimento, por parte do governo estadual, da compra de equipamentos e contratação de funcionários.O funcionamento será custeado através da união dos governos municipal e estadual.
Para atender aos refugiados que perderam seus empregos durante a pandemia, a Agência assegura que ampliou seu programa de assistência financeira. Para a Irmã Telma Lage, advogada e coordenadora do Centro de Migração e Direitos Humanos da Diocese de Roraima, o esforço feito ainda é insuficiente diante da situação precária em que vivem os imigrantes venezuelanos no estado brasileiro.
“A gente tem um número grande de invisíveis, pessoas que estão fora do radar, principalmente das agências da ONU e da Força-Tarefa. São as pessoas que estão pagando aluguel ou em situação de rua. Essa tem sido nossa maior preocupação durante a pandemia da covid-19, porque estes são os vulneráveis dentro dos vulneráveis, já que a maioria está na periferia da cidade”, conta.
O último centro da Operação Acolhida em Pacaraima (RR) tem capacidade para atender cerca de duas mil pessoas, no entanto abriga apenas 50 venezuelanos. / Michele de Mello
Atualmente, Roraima tem aproximadamente 22 mil casos confirmados com o novo coronavírus. Boa Vista tem a grande maioria das confirmações, mais de 16,4 mil. Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela, é a segunda do estado, com mais de 900 casos confirmados. O estado registrou 396 mortes. Os dados são da Secretaria de Estado da Saúde de Roraima, desta sexta-feira (10).A reportagem buscou contato com o governo estadual para um panorama da situação do estado, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
Como último estado do Brasil a confirmar casos de infecção pela covid-19, Roraima recebeu o vírus não pela fronteira com a Venezuela, espaço de grande preocupação de mandatários brasileiros, mas por duas pessoas contaminadas oriundas de São Paulo, no dia 21 de março. Naquela data, segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil contava com 1.128 casos confirmados de coronavírus e 18 mortes (três no Rio de Janeiro e 15 em São Paulo). Na Venezuela, de acordo com dados oficiais, o país registrava 70 casos em todo o território nacional; a primeira morte só veio a acontecer no dia 26 de março.
Fronteira entre Brasil e Venezuela, no dia 18 de março de 2020 / Martha Raquel/Brasil de Fato
Do lado de lá da fronteira: Venezuela
As bandeiras entre os dois países são o último símbolo que marca o limite invisível da fronteira entre Brasil e Venezuela. No lado tupiniquim, um agente da Polícia Federal, com seu telefone celular, fotografa os caminhões e cidadãos que tentam cruzar o passo fronteiriço. Este é o último rastro do Estado brasileiro. A sede do órgão está fechada para atendimentos presenciais por conta da pandemia. Tampouco existe qualquer equipe de saúde realizando controle sanitário.
Dois passos adiante, numa tenda instalada a céu aberto, soldados da Força Armada Nacional Bolivariana (Fanb) solicitam documentos e fazem a primeira entrevista ao viajante. Em seguida, militares transportam malas e passageiros na caçamba de camionetes para evitar o contato até o próximo posto de controle.
Chegando à primeira estrutura dos Pontos de Atenção Social Integral (Pasi), todos são desinfectados com uma solução de água e hipoclorito de cloro. Em seguida, equipes de médicos, muitos deles cubanos, novamente entrevistam os recém-chegados e realizam os testes rápidos, do tipo PCR (sigla em inglês para “reação em cadeia de polímeros”).
Aqueles que testam positivo são imediatamente afastados. Entre as sete pessoas presentes naquela tarde do dia 29 de maio, quatro estavam infectadas, o que corrobora com o dado oficial de que cerca de 78% dos casos registrados na Venezuela são importados e, muitos deles, chegam pelas fronteiras terrestres com a Colômbia e o Brasil, ou pelos voos humanitários que aterrissam em Caracas.
No estado de Bolívar, divisa com Roraima, 992 venezuelanos permaneciam nas instalações do Pasi de Santa Elena de Uairén, até o dia 10 de junho, parte sendo tratada nos hospitais de campanha e outra cumprindo a quarentena obrigatória de 14 dias nos alojamentos do Estado, em pousadas e hotéis alugados. Depois de passar por novos testes, os venezuelanos são levados às suas regiões de origem em ônibus fretados pelo governo nacional.
A Venezuela foi o primeiro país do continente americano a decretar quarentena em nível nacional e o fechamento de fronteiras. Desde março até junho, 59 mil cidadãos retornaram ao país pelos corredores humanitários terrestres e aéreos organizados pelo Estado. Desse total, 3.626 regressaram do território brasileiro, e, entre eles, 441 estavam contaminados.
Em Caracas, capital do país, foram recebidos ao menos 36 voos com cerca de 1,8 mil venezuelanos. Para atender os cidadãos em regresso e a população local, foi criada uma equipe de resposta imediata sentinela, que faz quatro processos: desinfecção; mapa dos contágios positivos, conversas de reeducação, onde foram registrados casos positivos; além de um cerco epidemiológico para evitar o contágio de vizinhos.
Existem quatro protocolos para o atendimento da população venezuelana. Um deles é a atenção de casa em casa para poder verificar se existem pessoas com sintomas. Tal medida é apoiada pelos questionários da Plataforma Pátria, que atende mais de 8 milhões de habitantes, com isso o Estado busca realizar um procedimento massivo para descartar a possibilidade de transmissão.
Em seguida, são realizados testes rápidos nos pacientes suspeitos, aqueles que dão positivo são atendidos em algum dos 46 hospitais de referência instalados no país.
“Na Venezuela ninguém vai morrer por negligência ou por falta de atenção médica”, assegura Jessica Lalana, coordenadora da força-tarefa do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), em Caracas.
O país mantém uma média de 45.258 testes de diagnósticos para cada 1 milhão de habitantes, chegando a um total de 1.257.732 milhão de exames realizados. Já no Brasil a proporção é de 22.800 para cada milhão.
O Brasil é o segundo país em número de mortos e infectados com a covid-19 em todo o mundo, concentra mais de 50% dos casos registrados na América Latina. Alegando a situação de crise sanitária e o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), os imigrantes têm relatado dificuldades para ser atendidos nos hospitais.
Em novembro do ano passado, a Câmara de Vereadores de Boa Vista aprovou o projeto de lei 452/2019, que limitava em 50% o atendimento de estrangeiros na rede pública da capital. A proposta de autoria do vereador Júlio Medeiros (PTN) culpava “o aumento desenfreado de migrantes no estado de Roraima, o que veio a impactar em diversos setores na vida da população local, tais como saúde, educação e segurança”. A lei entrou em vigor em janeiro deste ano.
“Quando os compatriotas passam para o lado venezuelano e recebem atendimento médico eles manifestam que do lado brasileiro, nos municípios próximos, Pacaraima, Boa Vista, não lhes prestam atendimento para descartar se estão com covid-19”, confirma Maria Abad, militante da Frente Francisco Miranda, no estado de Bolívar. A frente é um dos movimentos populares que apoia nas comissões multidisciplinares do corredor sanitário da fronteira.
Brigada Itinerante de Prevenção à Contaminação pelo Coronavírus do Estado venezuelano na fronteira com o Brasil / Martha Raquel/Brasil de Fato
A realidade novamente confirma os dados. Um dos jovens que testou positivo ao chegar no território venezuelano, no dia 29 de maio, relatou à reportagem do Brasil de Fato que decidiu retornar pela falta de emprego e porque não foi atendido pelo SUS, em Boa Vista. Viajou 210 km com o pé fraturado.
“Muitos desses companheiros vieram com a esperança de que na Venezuela possam ser atendidos com todos esses protocolos. Tanto atenção médica, como hospitalização e hospedagem de maneira totalmente gratuita”, assegura Jessica Lalana, coordenadora de grandes missões do PSUV em Caracas.
Em maio, María Teresa Belandria, que responde como embaixadora venezuelana no Brasil nomeada pelo autodeclarado presidente Juan Guaidó, também deputado venezuelano, afirmou que existiam “mais de 280 mil venezuelanos” em território brasileiro, e pediu ajuda financeira às vésperas da Conferência Nacional de Doadores, realizada em 26 de maio.
Mesmo sendo reconhecida pelo presidente Jair Bolsonaro, Belandria não tem autoridade para emitir documentos, vistos e, segundo relatos de venezuelanos no Brasil, os enviados de Guaidó tampouco oferecem algum tipo de suporte econômico para quem chega, apesar dos anúncios constantes de “ajuda humanitária” recebida do exterior.
“A nossa pátria e o nosso governo revolucionário estão dispostos a seguir recebendo esses compatriotas com amor, com uma atenção de primeira e todos os elementos necessários para garantir o direito à vida. Porque a Revolução Bolivariana se propôs desde o dia zero da pandemia a garantia da vida ao ser humano, ao nosso povo. Acredito que essa é uma das posturas mais heróicas que se apresentaram nesse período, porque isso não acontece no Brasil, Colômbia, Chile ou Equador”, assegura Jessica Lalana, membro do PSUV.
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, assegura que a Venezuela é um dos únicos países que está sofrendo “migração reversa” durante a pandemia da covid-19, considerando os números do programa social Vuelta a la Patria (De Volta à Pátria).
Para entender o retorno
Apesar de os dados, desde 2018, terem parado de subir, a oposição regional ao governo de Nicolás Maduro aponta uma crise migratória e acusa o país de ser uma ameaça para a América Latina.
Uma reunião no dia 2 de fevereiro de 2018, convocada pelo Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos, foi o primeiro espaço a levantar o tema do refúgio para os venezuelanos. Em seguida, foram disparadas medidas adotadas pelos governos do chamado Grupo de Lima para facilitar a imigração venezuelana. Apenas nove dias depois da reunião em Washington, o então presidente Michel Temer viajou até a fronteira afirmando que “não faltariam recursos para os venezuelanos que fogem”.
Nesse mesmo ano, foi lançada a Força Tarefa Logística do Exército, incentivada pela administração Trump. Em visita ao Brasil, em junho de 2018, o vice-presidente estadunidense, Mike Pence, visitou os abrigos da Operação Acolhida em Manaus (AM), quando afirmou que doaria US$ 1 milhão para apoiar o governo do então presidente brasileiro Michel Temer.
Em abril daquele mesmo ano, a Casa Branca já havia anunciado o envio de US$ 16 milhões ao Brasil e à Colômbia para apoiar a imigração venezuelana.
Também para Jessica Lalana, o discurso de crise migratória faz parte de uma guerra híbrida contra a Venezuela e também parte do bloqueio midiático internacional contra o seu país.
“Na Venezuela, os direitos humanos são garantidos. Apesar do bloqueio ideológico, financeiro, naval, de toda a tergiversação de informações divulgadas no mundo sobre a Venezuela, este é um país que garante os direitos humanos, garante a recepção de homens e mulheres que se foram com esperança, talvez com alguma situação econômica, mas que hoje regressam. E nós vamos recebê-los como povo e como revolução, de braços abertos”, finaliza a coordenadora do grupo que recepciona os imigrantes na capital do país.
Por conta da pandemia do coronavírus, o ato em solidariedade ao povo venezuelano organizado pelos Comitês General Abreu e Lima, de Brasília, Cabano Bolivariano, do Pará, Solidariedade a Revolução Bolivariana, do Rio de Janeiro, e Comunicação Nacional Zequinha Barbosa, aconteceu on-line. Com a participação de representantes do Uruguai, Argentina, República Dominicana, Venezuela e de diversos estados brasileiros, o ato durou quase 3 horas.
A manifestação marcou o fim do prazo determinado pelo governo Bolsonaro para que o corpo diplomático venezuelano deixasse o Brasil. No último dia 30, um documento assinado por Wellington Alberto Silva Mendes, Comandante em Exercício do Comando de Policiamento Regional Metropolitano II da Policial Militar do Distrito Federal, determinou que caso não se retirassem, os diplomatas seriam considerados “persona non grata” pelo Estado brasileiro e que teriam o prazo de 48 horas, até dia 04, para que saíssem do país. Segundo ele o documento foi redigido seguindo as decisões de Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores, e André Mendonça, novo Ministro da Justiça.
Já na noite do dia 01 a Polícia Militar colocou uma viatura em frente a Embaixada da Venezuela em Brasília. A ordem é que os policiais permaneçam no local até segunda-feira.
Também participaram do ato os deputados Paulo Pimenta, do Brasil, e Omarlena Abreu, do MET, Estado de Miranda, da Venezuela.
Entenda o caso
Na última terça-feira, o Itamaraty enviou um ofício à Embaixada da Venezuela para pressionar a saída dos diplomatas até o próximo dia 02 de maio, amanhã. Mas a saída não deve ocorrer no dia 02, e já que o prazo é de 48h horas após a notificação, que ainda não aconteceu. Segundo o documento, quem permanecer no país, será considerada “persona non grata” e perderá os direitos diplomáticos.
A determinação vem dois meses após Jair Bolsonaro declarar que todos os diplomatas e funcionários do governo venezuelano deveriam deixar o Brasil, e, curiosamente, vem, também, de encontro com os crimes que Trump e os Estados Unidos tramam contra a Venezuela. Todos os diplomatas brasileiros que trabalhavam na Venezuela retornaram para solo brasileiro em 17 de março por determinação de Bolsonaro.
Na tarde da última quinta-feira, 30, o governo da Venezuela se negou a abaixar a cabeça à determinação sem-sentido para retirar o corpo diplomático do Brasil. Em nota denunciou que Jair Bolsonaro faz “pressões desnecessárias” e que as supostas “negociações prévias” entre os dois países, ditas pelo governo brasileiro, nunca aconteceram de fato.
“O corpo diplomático e consular da Venezuela no Brasil não abandonará suas funções sob artifícios fora dos parâmetros do direito internacional”, diz um trecho do texto, que também acusa Bolsonaro de ser “abertamente subordinado” aos Estados Unidos. O texto também exemplifica a crueldade bolsonarista que irá aumentar, com uma manobra para fechar os escritórios consulares da Venezuela, a negligência com comunidade venezuelana no Brasil.
De forma covarde, o governo brasileiro reconhece Juan Guaidó, presidente autoproclamando que vive de selfie, e não Nicolás Maduro, presidente eleito pelo povo.
O ofício documento do Comando da Polícia Militar prevê que o corpo diplomático, caso se recuse sair, seja expulso.
O texto pede “reforço de policiamento (em ambas extremidades da Embaixada) e apoio das tropas especializadas para estarem em condições de atuar a partir da madrugada do dia 03 para o dia 04 de maio de 2020, até que a embaixada seja desocupada”. E informa que já foi feita uma “ordem de serviço prevendo uma viatura fixa do dia 01 ao dia 04/05/2020” mas reclama que “apenas uma viatura no portão frontal da Embaixada pode não ser suficiente para evitar a entrada de manifestantes e movimentos sociais pró-Maduro, em especial na madrugada de Domingo (03/05) para Segunda-feira (04/05) e manhã desta, a qual pode também vir a ocorrer paulatinamente e pelo portão de pedestres de trás da Embaixada”.
Atravessando uma pandemia que já matou mais de 6 mil pessoas só no Brasil, Bolsonaro assume agora que, além de não se importar com o povo brasileiro que dia a dia enterra seus entes queridos, também não se importa com os imigrantes. Ainda que a situação na Venezuela seja muito melhor para quem enfrenta o coronavírus – o país tem apenas 10 mortes, neste momento é impossível retornar ao país, uma vez que a fronteira está fechada e não há voos previstos entre Brasil e Venezuela.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, enviou um ofício nesta sexta-feira, 01, ao Ministério das Relações Exteriores pedindo que o Itamaraty suspenda a decisão que determinou a saída de diplomatas venezuelanos do país. No texto a PGR afirmar que a medida pode contrariar tratados e convenções internacionais diante da situação dos serviços de saúde na Venezuela em decorrência da pandemia do coronavírus.
Bolsonaro, fazendo o papel que já era esperado dele diante de Trump, coloca em risco a vida de idosos, mulheres, homens e crianças para causar um factoide que, além de endossar as atrocidades propostas pelos Estados Unidos, ainda serve para tirar o foco do fiasco da política federal de contenção do coronavírus.