Jornalistas Livres

Autor: Márcio Anastácio

  • MÔNICA CUNHA: Apesar das marcas em nossos corpos, me levanto

    MÔNICA CUNHA: Apesar das marcas em nossos corpos, me levanto

    Mônica Cunha é ativista de Direitos Humanos e fundadora do Movimento Moleque

    Ainda assim me levanto, para ter direito à quarentena como prevenção à Covid-19.

    Ainda assim me levanto, para ter acesso a uma alimentação de qualidade e não ser condenado à fome pela inércia deste governo genocida.

    Ainda assim me levanto, para respirar e, assim, mostrar que estamos vivos e, enquanto povo negro, seguiremos resistindo.

    Ainda assim me levanto, para provar que nossa história e cultura são valorosas, não apenas para o povo negro, mas para toda a humanidade.

    Ainda assim me levanto, para denunciar que, se vivemos em favelas e periferias, sem acesso a saneamento básico, saúde e a outros direitos sociais, é porque a abolição de 13 de maio de 1888 não passou de uma fake.

    Ainda assim me levanto, para dizer que, se negros e negras recebem salários menores que brancos e brancas, é porque existe o racismo é estrutural e se manifesta na relações de trabalho e econômicas.

    Ainda assim me levanto, para lutar para que outras mulheres negras não chorem por seus filhos, sobrinhos e companheiros. Vidas negras não são descartáveis.

    Ainda assim me levanto, para que jovens mulheres negras possam pensar em ser mães sem ter medo do racismo institucional das polícias que insiste em matar jovens negros.

    Ainda assim me levanto, para dizer que, enquanto houver tiros e mortes nas periferias e favelas, nos manifestaremos de todas as formas para denunciar o racismo da violência de Estado e exigir uma política de segurança centrada na garantia de direitos.

    Ainda assim me levanto, para dizer a negros e negras que somos descendentes de reis e rainhas escravizados pelo colonialismo europeu e que é necessária a reparação ao povo negro pela diáspora africana.

    Ainda assim me levanto, para respirar fundo e gritar aos quatros cantos do mundo: VIDAS NEGRAS IMPORTAM!!!

     

  • Orgulho LGBT: coloridos demais para serem invisíveis

    Orgulho LGBT: coloridos demais para serem invisíveis

    Você já foi invisível? Mas invisível mesmo? Não estou falando daqueles momentos na vida em que gostaríamos de desaparecer e sim daqueles momentos em que mais gostaríamos de ser vistas.

    É desta invisibilidade que falo. Num jantar de família, num natal na casa dos pais, na festa do trabalho… Ausente em tantas fotos… Nos momentos em que todos dão as mãos, apresentam seus pares e contam seus planos de futuro ou apenas expressam livremente sua identidade.

    Esse silenciamento e invisibilidade ainda é uma realidade para incontáveis pessoas LGBTI+. Até hoje, muitos momentos alegres se tornam situações de dor, ausências e silêncios. O simples fato de assumir a si próprio e/ou ao seu amor perante a família pode representar rejeição e até violência. Do adoecimento psíquico à submissão a violência psicológica e física, as vidas das pessoas LGBTI+ são, por si só, uma luta política.

    A maioria das pessoas não entende por que são tão fortes os reflexos dessa invisibilidade na vida de cada um de nós. É que ela faz parte de um conjunto de microagressões que LGBTI+ sofrem por toda a vida, muitas vezes por ação das pessoas com quem têm vínculos afetivos mais fortes, suas famílias. O mais perverso efeito da invisibilidade é sua permanência. Mesmo quando já conseguimos viver uma vida plena, os anos em que fomos negados, impelidos a sentir vergonha ou nos desculparmos por sermos quem somos formam marcas indeléveis.

    Como se não bastasse, setores de poder público a todo tempo contestam os direitos duramente conquistados por nós e afirmam que nossas famílias não deveriam assim ser chamadas nem tampouco ter proteção jurídica.

    O que está em jogo é a história da civilização humana. Homossexualismo sempre existiu, nós sabemos disso. O que querem é dar um status de família (…)”.[1], disse Silas Malafaia em audiência na Câmara dos Deputados sobre o Estatuto da Família em 2015.

    Esse discurso e prática permanecem hoje no Governo Federal. No mês do Orgulho LGBT, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos lança o Observatório Nacional da Família. Por todo o histórico de declarações e atuações da Ministra, não há dúvidas de que está ali legitimado apenas o modelo tradicional de família. Damares Alves é uma das fundadoras da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, ANAJURE[2] que conta com amplo lobby no Congresso em defesa da família tradicional.[3]

    A contestação do status de família as relações LGBTI+ têm consequências jurídicas perversas, mas é apenas um reflexo da LGBTIfobia estrutural. O ódio as pessoas LGBTIs rendem muitos votos. Garantiu a eleição de muitos atores políticos com o objetivo primordial de combater a ideia de uma ideologia de gênero que não existe. Mas para estas pessoas o problema de tal ideologia é a legitimação como normais das homossexualidades e transgenialidades.

    A LGBTIfobia é também institucional, expressando-se em parlamentares, membros do Executivo e até no Sistema de Justiça. Embora, neste último se tenha hoje a arena mais efetiva de luta da comunidade LGBTi+, onde os direitos hoje garantidos foram-lhes assegurados.

    Todos estes fatores ajudam muitos LGBTI+ a se manterem quietos, calados, invisíveis. Porém, já que “o silêncio não nos protegerá” como sabiamente afirmava Audre Lorde, escritora lésbica negra, há anos as paradas do Orgulho LGBTI+ ocupam alegremente as ruas de cidades nos diversos continentes. Esse ano, devido a pandemia, as paradas LGBTI+ ocorrerão por meio virtual.

    Nas ruas ou nas redes o importante é sempre lembrar que nossas cores não permitem que sejamos invisíveis. Sabemos que cada direito obtido foi conquistado por meio de décadas de luta, portanto, não abdicaremos deles mesmo diante das ameaças da intolerância. Mais uma vez recorro a Audre Lorde “a menos que alguém viva e ame dentro das trincheiras, é difícil se lembrar que a guerra contra a desumanização é interminável”[4].Não perderemos nossa humanidade. Pelo contrário, nos manteremos orgulhosamente altivas, pois só nossa visibilidade nos protegerá!

    Por: Ivanilda Figueiredo

    Professora Adjunta de Direito e Pensamento Político da Faculdade de Direito da UERJ e coordenadora da URDIR (Universidade, Resistência e Direitos Humanos) Núcleo de Direitos Humanos da UERJ

     

    [1] Silas Malafaia em audiência sobre o Estatuto da Família em 2015. Disponível em: https://escriba.camara.leg.br/escriba-servicosweb/html/39619 Acesso em 15.06.2020

    [2]https://apublica.org/2019/06/associacao-de-juristas-evangelicos-fundada-por-damares-alves-amplia-lobby-no-governo/; https://anajure.org.br/dra-damares-alves-um-dos-homenageados-no-lancamento-da-anajure/

    [3] https://anajure.org.br/?s=estatuto+da+fam%C3%ADlia

    [4] LORDE, Audre. Irmã Outsider. São Paulo: autêntica, 2019, p. 147.

  • MÔNICA CUNHA: Não lave as mãos para as operações policias nas favelas

    MÔNICA CUNHA: Não lave as mãos para as operações policias nas favelas

    Vivemos a maior crise humanitária em mais de 100 anos. Já são mais de 20 mil mortos em decorrência da COVID 19 no Brasil, sendo o Rio de Janeiro o segundo estado em número de óbitos e infectados. Este momento de terror é compartilhado por todas as pessoas, independente de gênero, raça ou classe, embora de formas diferentes, evidentemente.

    A nós, enquanto não se desenvolve tratamento efetivo ou vacina, só resta seguir à risca as recomendações de especialistas para a redução dos riscos, como permanecer em casa, higienizar as mãos e usar máscaras.

    João Pedro seguia estas recomendações. Estava dentro de casa, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, quando policiais atiraram e o mataram. Em sua casa, foram encontradas marcas de 72 disparos.

    Não bastasse isso, os policiais, ao socorrê-lo, deixaram sua família sem nenhuma informação, obrigando-a a peregrinar por mais de 17 horas em vários hospitais à sua procura, em vão, pois seu corpo encontrava-se no Instituto Médico Legal.

    Mas não foi só João Pedro. No Complexo do Alemão, em um só dia, uma operação policial deixou 13 mortos: uma verdadeira chacina! Na Cidade de Deus, foi João Victor. Na providência, Rodrigo Cerqueira. Ao mesmo tempo que a COVID se espalha e chega próximo ao pico de infecções, o Governador manda suas polícias para matar preto favelado, agravando ainda mais a precariedade com a qual os moradores de favelas estão enfrentando esta Pandemia. Nessas ações desastrosas, o Estado ainda interrompeu a doação de cestas básicas feita, em mutirão, pelos próprios moradores: além de não ser o agente da distribuição, o Estado ainda imprime cenas de terror quando a população se auto-organiza para salvar vidas.

    Não há ninguém que considere a possibilidade de a polícia matar 13 pessoas em um condomínio da Barra da Tijuca, nem mesmo naquele em que, sabidamente, houve flagrante de tráfico de fuzis. Mas, no Complexo do Alemão, não foi a primeira e, infelizmente, pode não ter sido a última chacina. Apesar da Constituição dizer que todos os seres humanos são iguais, quando falamos de acesso a estes direitos, sabemos que não é assim que banda toca. CEP e cor são, sim, obstáculos para o exercício da cidadania e de direitos.

    Isso porque a formação da sociedade brasileira se deu com base na escravidão e em uma cultura que oficialmente atribuiu a negros e negras a condição de sub-humanos. A luta pela sobrevivência diante da violência do Estado é a história do povo preto no Brasil. A negação e violação de direitos é a marca do tratamento que o Estado nos dedica desde antes e mesmo após a abolição.

    Matar e torturar negros está, historicamente, autorizado no Brasil. O Estado nunca garantiu a sobrevivência dessas pessoas, pelo contrário, contribuiu desde sempre para o seu extermínio. O desmonte do SUS, a falta de controle externo das polícias, a não investigação dos autos de resistência, a precarização das relações de trabalho, o sucateamento da educação pública, todas estas políticas são racistas, pois negros e negras são a maioria da população que depende exclusivamente das políticas públicas para acessar seus direitos e, consequentemente, os mais afetados pelo seu desmonte e seletividade.

    Neste momento, diversos coletivos de jovens de favelas tentam salvar as pessoas dos territórios em que nasceram e foram criados. Mais uma vez, a auto-organização do povo negro e favelado é a tona da luta pela sobrevivência diante das ofensivas do Estado. É assim que resistimos e resistiremos: nos defendendo e lembrando dos nossos. 

    Por isso, na última terça, dia 26 de maio, realizamos um ato, virtual, em memória de João Pedro e todas as vítimas fatais do racismo do Estado, no qual os familiares dos jovens mortos foram os protagonistas, mas contou, também, com a participação de diversas organizações, intelectuais e artistas engajados na luta antirracista. Ao todo, mais de 74 mil pessoas participaram do ato em todo o Brasil.

    A realização de operações policiais como estas, em especial numa pandemia como a que vivemos, nada mais é que o Racismo agindo objetivamente na forma de Necropolítica, em sua face ainda mais potente. Diante do aumento do número de mortos por COVID, desvia-se o foco para a violência de Estado que conta com a conivência de grande parte da população. Seguindo de forma torpe as recomendações das autoridades sanitárias, o Estado e parte da população lavam as mãos com o sangue dos negros e negras.

    Mônica Cunha é colunista dos Jornalistas Livres e fundadora do Movimento Moleque. Atualmente coordenada a Comissão de Direitos Humanos da Alerj 

     

  • Favela da Maré registra operação policial violenta há 10 horas 

    Favela da Maré registra operação policial violenta há 10 horas 

    O Complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, amanheceu em guerra nesta terça-feira (18). Uma operação da Polícia Militar matou um pessoa e causou terror aos moradores que se preparam para ir ao trabalho ou para o início das aulas. 

    Moradores do Complexo da Maré usaram as redes sociais para relatar um grande tiroteio no local e denunciaram abusos e invasões de casas por parte de policiais:

    “Arrombaram o portão daqui de casa, eu estava na sala com fone de ouvido e eles conseguiram entrar aqui. Revistaram a casa toda depois foram embora”.

    “Estão arrombando os carros aqui na (rua) Ari Leão”.

    “Eles estavam na minha porta com a arma apontada pra dentro da minha casa só pra perguntar de quem era a moto (moto da minha filha), apontando a arma pro meu filho. Só Deus!!!!

    A coordenadora do Movimento Moleque, Mônica Cunha, que dá assistência às mães que perderam seus filhos vítimas de violência do estado, contesta a política de segurança pública do governador Wilson Witzel (PSC). “O que esse governo não faz dentro das favelas é segurança pública. As mães não aguentam mais chorar a morte dos seus filhos”, disse a ativista que também teve seu filho assassinado. 

    Segundo relatório da Redes da Maré, só no ano de 2019, a Maré teve mais de 300 horas de operações policiais, o que representou uma operação a cada 9 dias. Foram 49 mortes: aumento de mais de 100% em relação a 2018. Delas, 34  foram em decorrência de ação policial e 15 por ação dos grupos armados. Além das mortes, houve 45 feridos por arma de fogo na região em 2019.

    Até o fechamento desta matéria, às 16h, moradores ainda registram a presença de blindados da PM pelas ruas da Maré. 

    *Com informações de Maré Vive

  • Nadine Borges: O poder perpendicular das milícias no Rio de Janeiro

    Nadine Borges: O poder perpendicular das milícias no Rio de Janeiro

    Nadine Borges

    Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ

     

    Enfrentar uma discussão sobre o poder da milícia é sempre uma árdua tarefa, pois a existência desses grupos organizados no Rio de Janeiro tem pelo menos 40 anos. Desde a década de 80 as milícias constituem o que comumente é chamado de um poder paralelo, o que não nos parece correto, porque esses grupos de extermínio, esquadrões da morte fazem parte de um crime organizado que ocupa as estruturas do poder público municipal de diferentes formas, ou seja, são parte do Estado e quem é parte não tem poder paralelo, tem poder que pode até ser central. O conceito de paralelismo implica não haver pontos de encontro. Diz-se que uma reta é paralela a outra justamente porque não se encontram, nem no infinito. Portanto, não se deve falar que o poder da milícia é um poder paralelo do Estado porque de alguma forma esse crime organizado profissionalizado se encontra com a estrutura estatal em diversos momentos e perpassa a vida política na cidade do Rio de Janeiro.

    A questão central é que esse encontro perpendicular acontece em um ângulo de 90 graus e cabe a nós identificar em que momentos essas práticas (retas) se encontram. Desde a ditadura militar os esquadrões da morte são conhecidos e reconhecidos na Baixada Fluminense e na Zona Oeste e foram sustentados pelo regime militar, como identificamos nas pesquisas desenvolvidas no âmbito da Comissão Estadual da Verdade do Rio. Muitos ou quase todos dos porta vozes da ditadura militar nessa região alcançaram postos de representação política em cidades da Baixada em uma aliança profissionalizada com o jogo do bicho e algumas escolas de samba, como nos mostra a obra Os Porões da Contravenção, dos jornalistas Aloy Jupiara e Chico Otávio.

    Se analisarmos as informações que constam na Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Mil%C3%ADcia_(criminalidade_no_Brasil)) sobre milícia veremos a cronologia somente a partir de 2007, mas essas ações vem de longa data. A prática de execuções sumárias por grupos privados com o aval do poder público no Rio de Janeiro durante a ditadura militar é algo notório e eis aqui o primeiro quadrante desse poder perpendicular das milícias. Com o fim do regime na década de 90 três locais do Rio de Janeiro apareceram como nascentes desses grupos: Rio das Pedras, Campo Grande ( onde a milícia é conhecida como “Liga da Justiça”) e Duque de Caxias . A ideia de normatizar, regular, fiscalizar o acesso à terra, a venda de lotes, o transporte “clandestino”, o acesso ao gás, a TV à cabo com os famosos “gatos” não é de hoje e há muito está nas mãos da milícia com o aval do poder público.

    Portanto, não se pode afirmar que a milícia tem poder paralelo, já que cada um desses exemplos são encontros dessas técnicas com a estrutura de poder do Estado estampados hoje com a ascensão da ultradireita, que sempre defendeu essas práticas. Os milicianos exercem poder sobre os territórios, combatem os inimigos (não necessariamente o tráfico, prova disso são os narco-milicianos), ajudam os aliados (moradores)  e obviamente cobram taxas pelos serviços prestados à população. O detalhe é que quem não paga, pode morrer. A institucionalização da execução penal extrajudicial, figura inexistente no ordenamento jurídico pátrio, se consolida nessas execuções sumárias sempre endereçadas para os mesmos nas regiões controladas por milicianos: negros e pobres.

    O fenômeno parece não enfrentar obstáculos, pois mesmo com a possibilidade ventilada no  debate anterior de criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de indiciar os autores das graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar, o texto final do relatório da CNV não considerou essa perspectiva e esses algozes seguem anistiados, o que é uma autorização social, política e jurídica da matança pelo próprio Estado em todas as suas esferas de poder, já que ao não responsabilizar torturadores mantém a autonomia do crime organizado dentro ou fora das estruturas do poder público. Podemos comparar o fenômeno das milícias em outros locais do Brasil e até do continente sul americano, mas de fato o que se vê no Brasil e no Rio de Janeiro não nos deve causar estranhamento, já que em outros países os agentes do Estado adeptos da tortura, do desaparecimento e da ocultação de cadáveres foram processados, condenados e presos, menos no Brasil. Aqui as práticas seguem autorizadas, mesmo que tacitamente.

    Com um discurso palatável de enfrentamento ao tráfico, os milicianos ampliaram rapidamente seu poder construindo narrativas e se colocando como guardiões da segurança para não terem seus negócios prejudicados. O lucro sempre dependeu da construção desses inimigos que oscilam conforme o momento. A lógica do “se não é possível vencê-los, junte-se a eles” justifica a figura dos narco-milicianos. Aquele perfil inicial das milícias da década de 90 e dos anos 2000 foi se adaptando para ampliar a conquista de territórios e hoje os símbolos existentes nas portas das casas para dizer quem paga e quem não paga a milícia são marcas deste poder perpendicular. O Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro já identificou que aproximadamente 180 localidades na cidade são exploradas pela cobrança ilegal de serviços de segurança com o apoio dos pontos de vendas do tráfico de drogas, as “ bocas de fumo”. A expansão não é apenas na cidade do Rio de Janeiro, mas em todos os municípios da Baixada Fluminense e em cidades próximas, como São Gonçalo, Maricá, dentre outras.

    Outro quadrante deste cruzamento é com representantes no Parlamento e no Poder Executivo, fato que ocorre desde a década de 80, como é o caso de um torturador confesso da ditadura militar entrevistado durante os trabalhos da Comissão da Verdade do Rio. Além de ser um dos mentores e cuidadores da Casa da Morte em Petrópolis, um centro extraoficial de tortura em Petrópolis, que matou e desapareceu com lideranças políticas contrárias ao regime militar durante a ditadura, o torturador foi incorporado ao jogo do bicho após o fim da ditadura em 1985. Paulo Malhães era coronel da reserva e trabalhou no jogo do bicho. Sua atuação na Baixada chefiando a segurança de empresas de ônibus e sua aproximação com o bicheiro “Anísio” é outra prova dessa perpendicularidade de poder. Essa migração da ditadura para o jogo do bicho o levou a ser alguém com poder na Baixada. Não é por acaso e nem algo recente que as narco-milícias possam contar com o apoio dos políticos.

    Como o negócio envolve dinheiro e poder, a prática de alugar bocas de fumo e a autorização de alguns roubos são formas de sustentar economicamente os grupos milicianos que buscam cada vez mais aprimorar seus mecanismos para fortalecer lideranças e ter uma gestão financeira e administrativa desses territórios. Portanto, a ideia de que os milicianos enfrentam o tráfico é facilmente desmontada. A existência de policiais nas folhas de pagamento dos traficantes nas investigações do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro confirma essa hipótese.

    Há que se considerar também o suposto envolvimento do Escritório do Crime (grupo miliciano de Rio das Pedras) na morte da vereadora Marielle Franco, assassinada em Março de 2018, quando estava à frente de investigações sobre a Milícia na cidade e atuando ativamente durante a Intervenção Militar do mesmo período, além das lentas investigações sobre o caso.

    Diante das interseções demonstradas entre milícia, tráfico, poder público e instituições remanescentes da ditadura militar, fica claro que o poder miliciano está longe de ser paralelo, senão que é perpendicular ao Estado. É imprescindível que se investigue minuciosamente as estreitas conexões entre esses grupos a fim de eliminar a possibilidade de que estes criminosos cheguem aos poderes legislativo, executivo e judiciário e, ainda, que corrompam as corporações e instituições de segurança, cujo papel único é proteger a população, ainda que atue de maneira, aí sim, paralela a este propósito.

     

    Referências:

    https://oglobo.globo.com/rio/narcomilicias-traficantes-milicianos-se-unem-em-180-areas-do-rio-segundo-investigacao-24007664

    https://www.plural.jor.br/documentosrevelados/wp-content/uploads/2015/12/cev-rio-relatorio-final.pdf

    http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/587500-as-milicias-crescem-velozmente-por-dentro-do-estado-entrevista-especial-com-jose-claudio-alves

     

  • Chico Alencar: “Lula seguirá prisioneiro de seu extraordinário carisma”

    Chico Alencar: “Lula seguirá prisioneiro de seu extraordinário carisma”

    O presidente da República Jair Bolsonaro está preso. Não é premonição. É uma situação simbólica que atinge todos: estamos sempre aprisionados, em certa medida, por nossas mazelas e virtudes.

    O atual chefe do Executivo nacional cultivou, ao longo de sua vida pública, amizades perigosas. O mais notório dos parceiros íntimos é o indigitado Fabrício Queiroz. O policial militar reconhece, em linguajar grosseiro, que está ameaçadíssimo por investigações de negócios espúrios.

    Os valores que Queiroz explicitou são claros – e obscuros: mandatos parlamentares como “boquinha” para amigos, espionagem de inimigos, blindagem de próximos contra apurações. Espírito e prática miliciana. Poder e dinheiro. Impossível não enxergar aí a cosmovisão dos Bolsonaro, tamanha a força que esse senhor tinha na vida pública da família hoje no vértice da hierarquia da República.

    Bolsonaro, que se construiu como antissistema sendo visceralmente dele, saudoso das capitanias hereditárias e do AI-5, com sua “filhocracia”, é prisioneiro do que o fez crescer em popularidade: a palavra irrefletida, a raiva incontida, a destruição do adversário diuturnamente pregada.

    Retrógrado, ressuscita a Guerra Fria e vê em todos os que o criticam o “comunismo solerte”, na linguagem dos chefes militares do regime autoritário que tanto admira – como a tortura, implementada como política de Estado naqueles ásperos tempos.

    “Leão”, se vê cercado por “hienas”, que vão de entidades religiosas, como a CNBB, a ONGs e ao STF. Com voracidade de predador faminto, promete destruir, qual biomas a serem explorados, quem denuncie suas escolhas e sua visão tosca de mundo. Quando alguma mensagem o desagrada, ameaça eliminar o mensageiro.

    Bolsonaro é prisioneiro de sua base extremada, que não chega a um terço da população brasileira. Servidão voluntária: só fica à vontade quando fala para ela. Os “bolsocrentes” o estimulam a seguir nessa marcha insensata, patrimonialista, autocentrada e antirrepublicana. Bolsonaro é um líder tão algemado pelo êxito do seu “espontaneísmo” que se desgasta até com setores dominantes, adeptos dos aspectos ultraliberais do modelo econômico que aprofunda.

    Na outra ponta da polarização política está Lula – que ficou efetivamente preso desde abril do ano passado. Lula está em liberdade, por erros processuais e por direito, após um trâmite judicial seletivo e de rara celeridade, para evitar sua candidatura à presidência.

    Representante de um outro padrão de política, Lula seguirá prisioneiro de seu extraordinário carisma. Tomara que combata o senso comum que “acredita em pessoas, não em partidos”. À parte a riqueza de sua trajetória e a capacidade de comunicação que fez dele o maior líder popular da história do país, isso encerra riscos: tornar-se uma espécie de “oráculo”, portador único do caminho a ser percorrido. Lula locuta, causa finita. Faria bem a volta daquele Lula aberto à autocrítica, que rejeitava o “lulismo” e se reconhecia como “fruto da consciência política da classe trabalhadora”. Aliás, foram seus “novos amigos” grandes empreiteiros os primeiros a denunciá-lo…

    Em perspectiva de futuro, não é adequada para nenhuma sociedade a disputa personalizada, em torno de nomes, ainda que eles simbolizem ideias e sistemas de valores antagônicos. Isso só agravaria a tendência contemporânea do individualismo, das “bolhas” egoístas de proteção e indiferença, negadoras da sociabilidade e da política. Polarização é natural na política, desde que nutrida pela disputa de projetos.

    O melhor caminho na senda republicana e democrática é o fortalecimento de processos coletivos, implementados por movimentos e partidos, por mais que estes andem enfraquecidos e desgastados. Será sempre pior a “egolatria”, a personificação do embate entre projetos em “mitos” falíveis e finitos.

    Há caminhos, há saídas. Mas só sujeitos coletivos poderão trilhá-lo, rumo à sociedade igualitária, fraterna e republicana.

    *Chico Alencar é professor e escritor