Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • NÃO VERÁS ÍNDIO NENHUM

    NÃO VERÁS ÍNDIO NENHUM

    Crianças Yudjá observam o Rio Xingu, fortemente ferido em sua integridade com a construção da hidrelétrica Belo Monte. Qual futuro está reservado às gerações futuras das etnias do Brasil?

    Novas dificuldades seguem sendo criadas ao processo de demarcação das terras indígenas habitadas pelas etnias, ao reconhecimento das terras ancestrais das quais foram expulsas ou dos territórios ocupados, ainda não homologados. O ministro da justiça, Alexandre de Moraes, em portaria nº 68, de 14 de janeiro de 2017, publicada no Diário Oficial da União em dia 18 de janeiro, dá continuidade ao intuito de desempoderamento da FUNAI e ao  desmantelamento dos direitos dos povos originários às terras tradicionais. Essa atribuição sempre coube à Fundação Nacional do Índio e toda competência ao seu corpo técnico, mas agora o ministério pretende atrelar as demarcações à uma comissão de averiguação, nitidamente para dificultar o já penoso processo.

     

    Na prática a portaria abre a porteira para um novo ciclo de etnocídio e desrespeito aos direitos dos povos indígenas, ameaça a dignidade humana e articula facilidades para o agronegócio e mineração nas terras tradicionais desses povos.

     

    Após a CPI do CIMI, INCRA, FUNAI e a PEC 215 proposta, essa portaria surpreende a todos. Fica estabelecido à sociedade civil um momento reflexão e de união e vigilância a todos os povos indígenas e movimentos indigenistas no país frente aos ataques que se anunciam. O Estado brasileiro continua a se movimentar na constituição de interesses anti-indígenas, reforça o preconceito sobre o indígena no Brasil, elaborando soluções que afetam a construção de uma unidade nacional e dificultam a integração de nossa diversidade cultural.

    Leia mais:

    http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-muda-regra-de-demarcacao-para-terras-indigenas,70001633615

    http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=19&data=18/01/2017

  • DA MORADA QUE NEGAM

    DA MORADA QUE NEGAM

     

    Era uma rua longa e um comprido muro, sem fim de se ver no deserto em dilúculo. O que trazia aquelas pessoas ali altas horas, perto da madrugada? A morada. Da morada se diz que é reunião das coisas da vida, em uma única palavra, do que se tem apreço. Pai, mãe, filhos, as cunhadas e toda rede de vínculos que se chama família, e seus pertences. É casa sobre a terra que se quer aqui, o que se pede é uma porta sem aluguéis e uma chave como direito.

     

    Há um cheiro forte de abandono nesse chão. Aqui e agora todos se misturam em um sonho absurdo, tal buraco de tatu aberto no céu com a cidade ao longe, em muro longo de inútil defesa. Deveras que aqui reside o descaso com o uso social da terra e os homens pulam o muro em direito de morada no solo renegado e seus impostos devidos.

     

    O poder provisório dos homens ressalta na cara humilde de todos. Vejo velhos  chapéus na cabeça de homens idosos, senhoras avós de vestidos estampados, jovens casais em duro penar e suas crianças a entrar pelo buraco no muro na passagem única, como em casa de índio no Xingu, onde todos passam pela mesma entrada e saída, cada um à sua vez, em grande casa coletiva como morada, transparente prazer cidadão, tudo tão simples.

     

    Ergue-se um acampamento em poucas horas, as panelas se ajeitam no fogão, as crianças são logo abrigadas, põe-se o café no fogo enquanto a tropa não chega.

     

    Há uma angústia no céu que amanhece, em todo horizonte a luz vai moldando o firmamento e sei que a repressão também amanhece. A paz presente nesse momento de ocupação se reluz em posse, não será equilíbrio em seu desfecho, todos sabem, mas a necessidade move os homens e suas mulheres e desistir é verbo que não cabe entre casais, aqui. Ao contrário, em canto afirmam: quem tem medo de formiga não atiça o formigueiro.

     

    A pele da gente se acostuma ao ferrão, de dores e toda a privação se fortalece o destino. Punhos cerrados apenas demonstram que a vontade é motriz e que luta não é doce. Antigamente, aqui muitos se lembram, senhor de engenho vendia açúcar e muitos cortavam a cana. Entre tantos um velho senhor me pronuncia, erguendo a frágil tenda de plástico preto: quando se prepara a terra se a gente plantar espinho colhe espinho. Quando se planta milho a gente come bolo.Quem mexe com ventos atiça tempestade. Quando pessoas choram, tristes ou felizes, algo germina, esperança é o nome que damos. O que é do homem o bicho não come, conclui.

     

    Reconheço na área um solo sagrado escuso, terreno de orixás, pequenos cântaros jogados no mato, assentamentos de exu e os ebós entre o pequeno bosque. Terra preguiçosa da cidade voltada à rituais e oferendas, onde alguns choram de amor ou dor, há carcaças de carros, entulhos nas calçadas, antigas construções em ruínas.

     

    Na manhã de sábado a polícia faz sua parte, expulsa todos. Tudo volta a monotonia da fuga e desabrigo. Ficam os santos, suas oferendas e todos suplícios. Não haverá crianças olhando a paisagem, apenas um muro sujo.

    Cântaros são usados para levar água fresca da fonte à sede dos homens, e conduzir oferenda aos orixás das águas.
  • O AGRO, AS TERRAS INDÍGENAS E O CARNAVAL

    O AGRO, AS TERRAS INDÍGENAS E O CARNAVAL

    O carnavalesco Cahê Rodrigues, ontem em seu perfil no Facebook, publicou o seguinte texto:

     

    SALVE O VERDE DO XINGU, A ESPERANÇA…

    Quando a Imperatriz Leopoldinense decidiu levar para a Avenida o enredo Xingu, o clamor que vem da floresta, assumiu o desafio de apresentar muito mais que um desfile voltado à cultura e às tradições das etnias indígenas que ocupam o coração do Brasil.
    O clamor, destacado no título, pode ser traduzido como a voz que teimamos em não ouvir desde o dia em que os europeus descobriram oficialmente estas terras, batizadas com o nome da madeira que, antes da cana-de-açúcar, do ouro, dos diamantes e da escravaria, começou a enriquecer os cofres de Portugal.
    Ao longo dos séculos, aprendemos que o povo brasileiro é resultante de três raças: o índio, o negro e o branco. No entanto, nossa História sempre foi contada pelos brancos, pois negros e índios raramente tiveram a chance de expressar tudo que tiveram de enfrentar para ajudar a construir essa História. Infelizmente, pouco sabemos sobre eles, além da certeza de que milhões de vidas foram ceifadas para dar passagem ao que os colonizadores do passado e do presente rotulam como “progresso”.
    Antes de entrarmos no âmago do enredo que a Imperatriz, orgulhosamente, prepara para o Carnaval 2017, é importante reavivar a memória.
    No Carnaval 2015, com o enredo Axé,Nkenda!, a Imperatriz fez um alerta sobre atitudes racistas que ainda ferem a raça negra. Para isso, fizemos uma viagem à África, mostrando de onde vem boa parte de nossas raízes culturais. Mostramos ao público o orgulho que devemos ter da genética negra que carregamos em nosso DNA.
    No ano passado, pela primeira vez na história do Carnaval Carioca, a Imperatriz ousou em exaltar a música sertaneja, personificada na dupla Zezé Di Camargo e Luciano. Para falar de sertanejos, também mostramos a lida do homem do campo e da importância da agropecuária do Centro-Oeste brasileiro no abastecimento de alimentos para a nossa população. A mão que revolve a terra é a mesma que ponteia a viola e traz à mesa os alimentos que garantem a nossa sobrevivência.
    Quando decidimos falar sobre o índio e, em especial, sobre a importância da reserva do Parque Indígena do Xingu, nosso objetivo não é outro senão fazer um alerta sobre os riscos que ainda ameaçam as 16 etnias que ali resistem e, indiretamente, muitas outras espalhadas pela Amazônia.
    Cabe lembrar que os povos xinguanos são originários de territórios vizinhos ao Parque e foram transferidos para a reserva depois de um longo e exaustivo trabalho de convencimento feito pelos Irmãos Villas-Bôas, exaltados em nosso enredo. Não fossem os Villas-Bôas, esses povos indígenas, como tantos outros, já teriam desaparecido em função de doenças, envenenamento e atos de extrema violência cometidos por invasores de terras das mais variadas espécies, como madeireiros, mineradores e até fazendeiros.
    Seria, no mínimo, estranha a nossa posição exaltarmos o trabalho de produtores rurais num Carnaval e criticá-lo no outro. Nem vamos sustentar números ou comparações entre os territórios ocupados pelas etnias indígenas, demarcados por leis federais, com as terras produtivas. Cada uma dessas áreas possui a sua finalidade e devem ser respeitadas como tal. Nunca foi nossa intenção agredir o agronegócio, setor produtivo de nossa economia a quem respeitamos e valorizamos. Combatemos sim, em nosso enredo, o uso indevido do agrotóxico, que polui os rios, mata os peixes e coloca em risco a vida de seres humanos, sejam eles índios ou não, alem de trazer danos em alguns casos irreversíveis para nossa fauna e flora.
    Mas também chamamos a atenção para o medo e a preocupação permanentes dos xinguanos, que a cada noite temem uma nova invasão de suas terras. Ou imaginam a catástrofe que a usina de Belo Monte desencadeará no ecossistema de toda aquela região, inundando aldeias, igarapés e levando na força de suas águas as chances de sobrevivência de sua gente. Tive a oportunidade de ver isso pessoalmente. Conversei com eles, ouvi a sua angústia.
    Quando a Imperatriz decidiu levar o Xingu para a Avenida, tinha uma razão muito forte. Ela quer dizer apenas: respeitem o nosso índio e aprenda, com ele, a amar o que chamamos de Brasil.
    Viva o Xingu! Viva os Irmãos Villas-Boas e todos aqueles que lutam pela causa indígena! Viva o Índio Brasileiro! Viva a Imperatriz Leopoldinense! Para sempre…

     

    O que motivou tal manifestação? O samba enredo da escola Imperatriz Leopoldinense que trará ao desfile a Terra Indígena do Xingu e o belo monstro que se instalou em suas águas para gerar energia em terras e negócios envolventes à região e que sufoca e desconstrói os povos tradicionais.

    Certas palavras tem ardimentos, observava Manoel de Barros em certo poema. Agro talvez seja uma dessas que arranham goela abaixo quando se come, ou fere os tímpanos alheios quando se fala. Antigamente era o campesinato e as famílias habitando o campo e produzindo alimentos. Hoje grandes máquinas afortunadas aram o campo após o desmatamento, e o agro empresário deu lugar ao camponês que mudou-se para a cidade e compra seu alimento nos mercados. Algumas palavras também provocam medo, vagamente adivinhado, específicos males a quem não tem saúde de ferro para o desmatamento e agrotóxicos. Corpos frágeis são os que pedem rebeldia e esses sempre irrompem nos enredos da avenida.

    Agro não é tudo, nem o será, pois antes dele há as mãos dos homens, sua cultura e sobrevivência.

     

    Confira os links abaixo para entender a polêmica:

    http://odescortinardaamazonia.blogspot.com.br/2017/01/enredo-da-imperatriz-leopoldinense-gera.html

    http://radios.ebc.com.br/natureza-viva/edicao/2017-01/samba-enredo-da-imperatriz-leopoldinense-causa-polemica

  • A FALSA NOTÍCIA

    A FALSA NOTÍCIA

    O poeta Manoel, andando no meio do mato, teve seu delírio. Alguns dizem que foi picada de cobra sem veneno, outros dizem que é mal de mente, ideias reversas, doença arraigada nos pensamentos, males sem cura.

     

    O fato é que o homem pichou o muro da cadeia, em surto, meteu palavras sem sombras ou dúvidas na cara de todos. O muro sujo de lodo até que ficou bonito, dizem as visitas aos presos, em aprovação do gesto delirante.

     

    O poeta decretou: onde estiver homem confinado que ele fique acorrentado aos livros. Sua ideia será munição, sua vontade será fortaleza, seu sonho será liberdade. Fica decretado que os presídios serão escolas e que o batalhão de choque será uma cavalaria com cavalos brancos trazendo diplomas ao final de cada ano.

     

    Manoel foi conduzido ao hospital após responder ao delegado que não entendia seu ato, apenas de uma luz puríssima que lhe vedou as vistas quando caminhava vendo passarinhos, recordava vagamente.

    O hospital informou que Manoel segue sendo medicado sem previsão de alta.

  • A TERRA DESERTA DE DEUS ENTRE TRATORES E PRESÍDIOS

    A TERRA DESERTA DE DEUS ENTRE TRATORES E PRESÍDIOS

    A Pequena Central Hidrelétrica (PCH) no Rio Culuene inundou a energia das terras sagradas: “O resultado da experiência com a PCH Paranatinga foi traumático para o Território Indígena do Xingu. A imensa maioria das etnias, ao se verem excluídas do processo de discussão, se mobilizaram para impedir sua construção, chegando a ocupar o canteiro de obras. Ao mesmo tempo, as lideranças que participaram das negociações com os empresários e governantes foram fortemente criticadas pelos seus próprios parentes, gerando graves desentendimentos políticos entre as etnias do TIX. Durante todo o processo de construção do Protocolo de Consulta, os índios das quatro regiões do TIX lembraram desse caso como exemplo de como a consulta não deve ocorrer.” https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/indios-do-xingu-aprovam-protocolo-de-consulta-inedito

    Em 2004, a soja e seu negócio carecia urgente de energia e os campos do senhor pediam luz, trabalho, segurança e fé. Blairo Maggi, grande empresário (co-presidente do Grupo Amaggi, o maior produtor privado mundial de soja) e proprietário de latifúndios verdes e serenos como carpete, onde antes era floresta no Mato Grosso, ex-governador, senador e atual Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, fechou acordo com os povos tradicionais do Mato Grosso para a construção de PCH´s (pequenas centrais hidrelétricas) necessárias ao algodão, sorgo, milho, arroz, soja e toda necessidade de grãos ao alimento dos homens pelo mundo. A demanda só faz crescer, temos fome no mundo de Deus e seus servos.

    Para a segurança ergueram-se presídios, para o trabalho compraram-se tratores, para a fé formaram-se pastores e na luz para todos apagaram-se as velas e paga-se a conta.

    Onde segue o conflito de fé e utilidade? Para o agro a terra é renda, renda é trabalho e justifica os meios. Para as populações tradicionais trabalho é vida, e a vida são vínculos sociais, simbólicos e ritualísticos, que justificam toda a labuta diária dos fazeres.

    Após 2004, os negócios do campo só frutificam e os pastores germinam entre as pequenas cidades.

    Dados de julho de 2016 mostravam que a população carcerária de Mato Grosso chegava a 10.138 detentos para 5909 vagas. Mais alarmante é o balanço que expõe que 75,51% dessa população é parda ou negra. No tocante ao grau de instrução 63,93% vão do analfabetismo ao ensino médio incompleto. O agronegócio não foi tão fértil aos saberes dos homens, nem as igrejas os redimiram.

    Em abril de 2013, a presidenta Dilma Rousseff foi interrompida várias vezes em protesto de ruralistas, num pronunciamento em Campo Grande. Ela não imaginava que entre as colheitadeiras sua pessoa não era bem vinda. Muitos não gostam de falar de direitos humanos ou valores de ambientalistas no processo de ocupação de determinada área. Povos indígenas e as garantias de seu modo de vida são entraves. Há um fino fio de seda que liga a implantação do agronegócio, a expansão dos templos e os muros das penitenciárias. Muito além das grandes cidades, onde era mato o campo mostra-se afortunado e os tempos sombrios para quem não crê nesse desenvolvimento econômico, sustentado na voracidade do capital, como panaceia sócio-político-econômica, suplantando hábitos, aniquilando rudimentos, onde o rabadão e o delegado definem o futuro entre os governos.

    O massacre de Manaus expõe uma Amazônia não verde, mas negra como noite de lua nova, um sistema miserável e inconsequente, uma multidão abandonada à própria sorte, um sistema que quer desenvolver, mas não quer se envolver. O perdão dos pecados não está nos números produzidos no campo ou na astúcia do soybean king (rei da soja) como o ministro foi definido em Seul pelo grupo midiático Chosun Ilbo. Cabeças, pernas e braços, destroçados, denunciam algo sorrateiro na Amazônia.

  • É UM NAVIO HUMANO

    É UM NAVIO HUMANO

    Reveillon na avenida expõe a alegria de viver de muitos. Até o fim. Tudo se mostra em credos, confianças e movimentos que celebram. O asfalto vira bar, a guia é passarela e o companheiro é um ilustre desconhecido. Seus gêneros são muitos. Caras, bocas, braços sem retoques querem apenas paz, pedido reto todos os anos. É multidão, é desconhecido. A face de muitos observa, porque observar quieto, cantar só, é senda de paulista, encanto perverso que faz todos fazerem futuro, sonho de busca.

     

     

    Para onde todos olham na rua? Para o céu, vejo bem. A cara de todos é fusão, seu cheiro é suor de fé, descrenças, espera. Sua cor é café, é fumaça de carro, é gente que ocupa. Na cidade não há espaço para vazios, sem receio o meio do mundo se faz aqui e tudo se ajunta e rebola. Segregação se mostra palavra vazia, uma avenida sem contramão em madrugada primeira do ano.

     

    Não quero falar do lixo no asfalto, mas do luxo que treme entre todos  quando a deusa do fim do mundo canta, Elza Soares reina na madrugada, anunciando que o navio humano, quente guerreiro, irá partir, novo ano se anuncia:

     

    “Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida

    Na avenida dura até o fim

    Mulher do fim do mundo

    Eu sou e vou até o fim cantar”