Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • O ODOR DO REFÚGIO E A DOR DA FUGA

    O ODOR DO REFÚGIO E A DOR DA FUGA

    O ambiente das entranhas é escuro e sua fuga cheira a feno pisado por muitos. O espaço é redondo e o tempo é curvo  no chão perverso de nosso espanto. Pessoas dormem refugiadas da morte que as espreita no centro da sala em um conto sírio.

    Maureen Bisilliat e Nair Benedicto na mostra Avessos e Paradigmas.

    Da imagem que brota no chão, o silêncio dói entre a nova fotografia brasileira e antigos mestres em tempos sombrios. No Museu da Imagem e do Som http://www.mis-sp.org.br/icox/icox.php?mdl=mis&op=programacao_interna&id_event=2338, na cidade de São Paulo, Mauricio Lima, que recebeu o Prêmio Pulitzer, em 2016, e sua exposição Farida, de robusta câmera, está acompanhado de  Maureen Bisilliat, Nair Benedicto, German Lorca e Penna Pearo, que mostram suas habilidades com os portáteis e voláteis smartphones, novos brinquedos para antigos sábios em perspectivas.

    German Lorca.

    Será a história o tempo de uma fotografia ou é a fotografia que nos ensina que temos uma história. O que conduz um homem ao ato de fotografar? Mauricio Lima é severo conosco, a poesia é feita de pedras, barro amassado e mato pisado por milhões de pés sem pátria e viver é uma busca entre bestas que dividem a terra.

     

  • ÍNDIO NA ESCOLA

    ÍNDIO NA ESCOLA

     

    Quinze anos atrás, quando, nos horários de folga, a equipe que eu integrava ia descansar um pouco durante o intenso trabalho em área indígena, víamos muitos grupos de crianças andando pela aldeia ou nadando na beira do rio a qualquer momento do dia, um jovem amadurecimento nos aprendizados tradicionais. Hoje em dia há um certo silêncio na aldeia, não se ouve mais o zumzumzum dos pequenos, estão na escola a entender nosso mundo sem entendimentos. A escola virou um lugar importante na comunidade, tudo se perfila.

    O índio na escola revela novas perspectivas na aldeia, a paisagem sendo reelaborada em suas alternativas, ou como escreveu Bartomeu Melià,  não há um problema de educação indígena, há sim uma solução indígena ao problema da educação.

    Novos caminhos interpelam os povos indígenas e o desafio se coloca na proteção da transmissão de seus saberes primordiais. Como sentar-se em uma cadeira estática por horas a fio e manter aceso o conhecimento tradicional para a sobrevivência?

    A racionalidade dos povos tradicionais foi por séculos negada e apenas agora vemos uma possível aceitação de uma filosofia indígena por parte da academia. O ocidente desqualificou toda a capacidade originária na América do Sul ou África, território de colônias seculares, os caminhos da liberdade e a idade da razão encontram aqui seu dilema. A escola é sem dúvida um instrumento para os povos indígenas se resguardarem  no avanço de outras culturas, mas o que há de sorrateiro nesse modelo?

    Antes eram arco e flecha com bola de cera na ponta que se entregavam às crianças para aprenderem a caçar em diversão. Hoje é caderno e lápis, horários para atividades e o momento para a merenda, nem tão admirável é o mundo novo que se apresenta na beira de rio.

    A educação indígena viceja nas aldeias, e talvez esse seja o grupo de estudantes mais bilíngue do país, pois todos falam de dois a três idiomas, mas a poesia raleia entre os nativos. Na aldeia se estagia em outras formas e vicissitudes. Tudo desafia e se reinventa de A a Z, entre cartilhas e necessidades. 

    Como o poeta Manoel de Barros, usarão a palavra para compor silêncios.

  • FRAGMENTO E SÍNTESE

    FRAGMENTO E SÍNTESE

     

    Ligar a tv logo cedo num pequeno quarto de hotel no interior do país é desentender-se dos fatos nos telejornais matutinos. Abre-se a janela e uma menina vai à escola à beira do rio, um menino faz gol de bicicleta entre guris e o homem ergue a parede de sua casa.  Tudo tão distinto das ruas em alvoroço de protestos urbanos ou políticos insanos.  No rincão o que se busca é continuar vivo entre chuvas e trovões, sem não ou talvez. Tudo é certo. Sem modernidades calam ou arremedam nossa urbanidade, gente que se defende com pimentas e ervas, oração e vizinhança. Voz sem boca, boca sem voz, essa gente não é parte nas notícias selvagens dos jornais distantes.  Se resolvem entre cozidos, arte, bola e santos. No país de tantos cantos, muitos voam fora da asa e sem golpes entre si vão tocando suas mazelas e graça.

    Mas vivemos tempos obscuros, a noite persiste em nossos avançados quinhentos e tantos anos e muitos santos. Dizem que burro velho é difícil se corrigir nos hábitos. Em manhã chuvosa na grande São Paulo, ligo a tv e o notbook, as janelas se abrem antes que a cortina deixe entrar o novo dia. Surpreendente ver na tv o deputado Jair Bolsonaro afirmando em um clube israelita na cidade do Rio, que se presidente for, não teremos mais terras indígenas no país. Ao mesmo tempo o computador expõe na rede social a opinião de meu amigo Ianuculá Kaiabi Suiá, jovem liderança do Parque Indígena do Xingu, onde leio ao som do deputado que ladra:

    Jair Bolsonaro, obrigado por você existir. Graças a você, hoje, temos noção de quanto a população brasileira carece de conhecimento, decência, consciência, juízo, amor e que carrega um imenso sentimento de ódio sem saber o porque. Sim, sim, não sabem. Um exemplo? Veja a bandeira de quem te aplaude, é de um povo que, assim como nós, sofreu as piores atrocidades cometidas pelas pessoas que pensavam como você. Enfim, eu não sei se essa parcela do povo brasileiro pode ser curada, mas vou pedir para um pajé fumar um charuto sagrado e revelar se o espírito maligno que se apossou da tua alma pode ser desfeita com uma grande pajelança.

    Ianuculá sabe o que diz, sabe de todo martírio vivido pelos povos originários, e mesmo assim se propõe a consultar o mundo dos espíritos.

     

    É deus e diabo na terra do sol, a mesma terra que ofende também abriga e anuncia uma mostra de cinema indígena nos próximos dias. Terra de etnias e corpos na terra, a cidade maravilhosa do Rio não se calará diante do fascismo desses tempos sombrios, acompanhe.

  • A CARNE FRACA DOS PEIXES

    A CARNE FRACA DOS PEIXES

    A  brusca água pura do Rio Juruena, nas quedas do Salto Augusto, na fronteira entre o Mato Grosso e Amazonas, terra virgem de brancos e sertão dos índios Rikbaktsá.

    Tempo difícil para os bichos no país em ponte para o futuro. Está um azougue a paisagem vindoura e em seu punhal perdem-se as árvores, os biomas se aniquilam para a morada dos animais, finda-se nosso romantismo no terceiro milênio. De repente chegou a pílula do desenvolvimento novamente para nossa estima em evidente enfermidade.  Palavra longa e cheia de meandros, o conceito de desenvolvimento surge na biologia, empregado como processo de evolução dos seres vivos para o alcance de suas capacidades genéticas, mas hoje escandaliza a bicharada que teme o tal.

    Tucano tenta apagar os resultados.

    E se quer mais, de muito mais desenvolvimento carecem os que mandam na nação. Bicho é ser sem noção dos mercados do sistema, mesmo sendo nós humanos bichos também. Vontade de bicho não conta.

    Entre todos os reinos é o das águas que sente primeiro a mudança de humor dos homens. Das águas partiram-se em pegadas os seres conquistadores das terras, diz a lenda.  Répteis partiram para  vôos no céu, se fazendo ave também. Na verdade é o macaco, é o tucano, é o tucunaré que conversam entre si na Amazônia, todos estão em dúvida em suas vicissitudes na Terra.

    Entre tudo de surpreendente que vi nas artimanhas e graças que na natureza insiste,  lembro-me dos peixes em abundância nas águas, dos macacos que nas árvores iam em bando, mas neste momento são perseguidos pelos que temem a febre, matando os deserdados próximos às cidades; e os tucanos,  bichano bonito , lembrado a todo momento na mídia porque é mascote de impura legenda partidária.

      Tucano é abatido por flecha certeira. Na culinária tradicional dos povos originários, muitos animais são comestíveis e fartos num ambiente saudável, propiciando plena segurança alimentar.

    Triste destino para macacos e tucanos, bichos tão inteligentes e, sinceramente, perdoem-me os que não sentiram fome em suas trilhas,  saborosos em suas carnes distintas, tenro alimento, muito apreciado entre os indígenas. Tucano comi em caldo, caldo forte de energias entre a carne azul de seu sangue. O macaco sempre assado, bicho que morre com sorriso nos dentes, é carne tradicional entre as etnias. Entre os índios o apetite da comunidade não afasta todo apreço aos animais também. Esses se tornam muitas vezes membro do clã, companhia das crianças.

     

    Andam matando macacos entre as cidades, uma vingança contra os bichos que insistem. Tucanos, ao contrário, cruzam os céus fugindo das lavouras, entre nós se mostram. A natureza anda confusa e os peixes lamentam o rio que seca, se suja ou se estanca em busca do tal desenvolvimento. Não há muito a se esperar dos bichos em época de protestos, animais não se revoltam ou fazem passeata, quando muito ficam tristes, amuados num canto, ou saem boiando por aí.

    Na natureza tão farta da América Latina vemos que tudo míngua. Até a piaba que por todos os rios nadava agora entristece. São as águas que trazem a mensagem nesse tempo. É Doce, é São Francisco, é Xingu, todos  os rios lamentam e as chuvas secam suas margens e pranto.

    A ponte não terá muita serventia em terra seca de leitos. As cigarras cantam quando a chuva volta à terra. Cada vez calam mais.

  • O CÉU NÃO BEIJA

    O CÉU NÃO BEIJA

    No céu os indígenas trazem suas tradições e constelações, como a onça e o veado, no firmamento desenhados, um a caçar o outro. Vejo no céu do Xingu muitas estrelas, pequenos pontos de luzes brilhantes como OVNIs cruzam sempre o espaço, em grande número fazem trânsito, mas prontamente um amigo me desilude ao anunciar que os tais pontos são os satélites em movimento. De fato, é nosso lixo cósmico a circular na abóbada celeste. O céu não beija os homens, descubro nas noites do interior do país, mas encantados, temos a ilusão de tocar o firmamento com os dedos.

    Luís Camara Cascudo diz, na História de Nossos Gestos, que o indígena não beijava. Langsdorff explicava que o tabetá, adorno labial, impossibilitava o ósculo. Dezenas de dezenas de Povos não sabiam o que era o beijo. Nas regiões amorosas, sexuais, genesíacas, do Taiti, da Nova Zelândia, papuas, tasmanianos, arandas do centro australiano, os Semang da Malaia, os hotentotes namáquas da África sudoeste, eram inocentes dos beijos, ensinados, sem grande aproveitamento, pelo europeu de chapéu de cortiça e pedra no coração financeiro, afirma Cascudo.

    Agora, de volta à cidade, não ponho os pés no riacho caudaloso entre as chuvas de verão e, em imagens de satélites, certifico o quanto se perde de nossa natureza ancestral em seus variados biomas. Em terra de onça sei também que os índios sempre souberam iludir os felinos, e disso resultam inúmeras lendas, inclusive a do índio Konewó, relatada por Ademilson Franchini:

     

    Konewó também gostava de passar a conversa nos homens brancos, pois era crença de muitos índios que as onças haviam sido gente antes de virarem o que são hoje. Certo dia Konewó achou um gambá e introduziu debaixo do seu rabo um punhado de moedas de prata. Depois, andando por ali, cruzou com um homem branco carregando uma rede novinha em folha.

    – Bela rede! – disse Konewó. – Quer trocá-la por um gambá que bota moedas de prata?

    – Está me achando com cara de bobo, é? Então, Konewó apertou a barriga do gambá, e as moedas saltaram por debaixo do rabo. O homem branco ficou pasmo.

    – E esse fedorento faz isso muitas vezes por dia? – perguntou ele.

    – Quantas vezes lhe apertarem o ventre – respondeu o índio, apertando outra vez o bucho do gambá. As moedas saltaram outra vez, e o homem branco fez o negócio na hora. Assim que o índio afastou-se, o homem branco ergueu o rabo do gambá e quase enfiou o olho lá dentro.

    – Vamos ver isto! – disse ele, apertando com toda a força a barriga do coitado. Só que, desta vez, a única coisa que espirrou foi um jato fedorento de fezes.

    Talvez entre o beijo desconhecido e o cheiro dos gambás reste o bom senso dos índios que resistem ilusionistas e sendo levados ao engodo. As imensas capitanias e sesmarias distribuídas entre poucos em séculos passados até hoje vertem nos rincões. Entre arquivos históricos releio um artigo de 29 de fevereiro de 1968 da Folha de S.Paulo, sobre a denúncia de Gama Malcher, funcionário do SPI e FUNAI, da alienação e venda de um quinto de terras indígenas e parques nacionais iniciadas no governo Vargas, no antigo Estado de Mato Grosso, terras vendidas aos estrangeiros. Em entrevista ao jornal Opinião, de 13 de junho de 1975  http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=123307&pagfis=3087&url=http://memoria.bn.br/docreader#, Gama Malcher diz que “a negociata de terras em Mato Grosso foi uma vergonha tão grande que se você pegar um mapa daquela época vai ver que é um verdadeiro mosaico, todo esquadrinhado em pequenos lotes, às vezes um em cima do outro, dois ou três donos em um mesmo lugar.”

    Novamente prepara-se a legislação para aquisição de terras pelo capital internacional, objeto da PL 4059/12, pronta para pauta no Plenário, tramitando em conjunto.

    Os solos da Amazônia, pobres em nutrientes, não resistirão à produção intensiva sem suas florestas ou sem os milhares de toneladas de corretivos, adubos e agrotóxicos que propiciam boas colheitas. O conhecimento indígena tradicional de produção para subsistência vive ao sabor dos ventos e canto dos pássaros. Sem eles essa terra será um gambá a iludir seus proprietários e a condenar sua fertilidade.

    O índio ficará mais uma vez chupando o dedo, tudo anuncia e se completa nesses tempos incertos.

  • RORO WALU, O LUGAR DOS ANTEPASSADOS

    RORO WALU, O LUGAR DOS ANTEPASSADOS

     

    Tarde dessas nadava eu no porto Encantado, assim nomeado por Maria, a companheira de trabalho e fé em local diário, entre o vespertino e o noturno,  em apaziguamento banhávamo-nos. Equilibrar a temperatura do corpo nas águas frescas de ribeirão é conhecimento salutar, pois assim com os indígenas evidencia-se o hábito sem incongruências: banhar-se é bom.

    Sem temer arraia ou sucuri, com os pés suspensos em pequeno afluente do Rio Xingu, em terras dos Ikpeng, algo enroscou-se entre meus pés. Puxei-o à tona e entre os dedos uma embalagem de sabonete vertia o título: la Fruta. Me surpreendi, pois, em vago momento surrealista pensei que seria alguma publicidade aos tucunarés, que agora em época de cheias, passeiam entre a mata alagada, ou aos jacarés que adoram os tucunarés.

     

     

    Já não se fazem rios como antigamente, por mais puro que seja. Só os leitos e sua terceira margem sabem o que corre por baixo das águas, nossos resíduos. Mas algo é certo: as águas mudam suas cores por todos os lados, lentamente.

    Canoa tradicional sai à pesca no Xingu, num amanhecer das águas de março.
    Assoreamento das margens do Xingu reduzem a oferta de peixes, após as instalação de lavouras no entorno e a demanda de energia para a região, com a edificação de PCHs e a arrogante Belo Monte.

    Na idade da terra algo anuncia-se entre águas e a terra, que esquenta: o presente é nosso tempo, o futuro a outros trará seu pertencimento. Vimos às águas banhar-se, na curva desse tempo onde a esperança dança e se equilibra, é necessário sujeitar-se aos riscos.

    A água é aos Ikpeng, bem fundamental, transporte e um supermercado a céu aberto. Os índios daqui há muito deslocaram-se do Rio Jatobá, que em grande parte teve sua nascente excluída da área demarcada do PIX. Foram deslocados para o Xingu no início da década de 60 após desastroso contato , quando quase desapareceram entre doenças trazidas pelos garimpeiros. Hoje  fortalecidos, reivindicam e retomam em epopéia de vivas lembranças do  território original à beira da devastação, no Vale do Jatobá, cujo processo está em estudo na Funai.  Retomar uma terra tem uma dor libertadora exposta na vontade, luz firme nos olhos dos anciões, que brilha como caramujo esculpido em forma de peixe no brinco dos velhos.

     

    Há imagens do contato com os Txicão, autodenominados Ikpeng, os marimbondos bravos. O  conselho com caciques e velhas senhoras  é momento reconfortante entre tempos difíceis.

    Navegar é preciso, Banhar-se também.