Por Maria Carolina Trevisan, especial para os Jornalistas Livres
Na manhã desta sexta-feira (4/3), o juiz Sérgio Moro, responsável pelas investigações da Operação Lava Jato, em atitude contrária aos princípios do devido processo legal, obrigou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a prestar depoimento sob “condução coercitiva”. Agiu como um justiceiro, à revelia do que propõe um Estado Democrático de Direito. A atitude foi desnecessária e leviana. Lula declarou que falaria se tivesse sido convocado, como o fez outras vezes. Para conduzi-lo coercitivamente, o ex-presidente teria de haver recusado duas vezes o convite para depor, mas não houve nem a primeira intimação.
Paulo Sérgio Pinheiro é presidente da comissão independente internacional da ONU de investigação sobre a República Árabe da Síria, em Genebra. Professor Titular de Ciência Política e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, nunca foi petista. | Foto: Jean-Marc Ferre/ UN
O depoimento de Lula nada trouxe de novo às investigações. Porém, a atitude do juiz fez borbulhar ainda mais a raiva – cada vez menos contida – de defensores da direita, o que provocou reações também violentas de militantes petistas. Na roda gigante que move as discussões políticas no Brasil hoje, estamos na iminência de uma guerra. O que se viu ontem no Aeroporto de Congonhas e diante da casa de Lula nas horas que antecederam a fala do ex-presidente, é um aviso de que o próximo capítulo, previsto para o dia 13 deste mês, pode ter ainda mais violência.
Nesse perigoso jogo, Moro sucumbiu ao espetáculo. Vaidoso, submeteu-se e foi ator central na escalada de “revelações” capitaneadas pelo “Jornal Nacional” em parceria com a revista IstoÉ. Na balança da ética jornalística, sabe-se que para publicar vazamentos é também necessário apurar as acusações descritas. Não bastam supostas delações. As declarações de uma única fonte não servem como atestados de verdade absoluta.
A atitude arbitrária do juiz, com reforço da mídia, acabou por expor a própria população a um limbo em que não se reconhece nem a Justiça e nem a verdade (que seria o propósito da fase de investigações apelidada de “aletheia”, ou “busca da verdade”, na versão heidggeriana da palavra). E daí para aprofundar as vertentes fascistas da nossa elite, não falta nada. O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), que também é advogado, acompanhou o testemunho do ex-presidente e classificou a condução coercitiva como “um baú de ilegalidades”.
Junte-se a isso o fato de que levar Lula para depor no Aeroporto de Congonhas remete inevitavelmente à atitude de militares golpistas que conduziram familiares de Getúlio Vargas a depor, em 1954, no Aeroporto do Galeão, dias antes de seu suicídio.
“Temos hoje a República de Congonhas, da Polícia Federal e do Ministério Público. Com exibicionismo atrabiliário, Moro se equivocou sesquipedalmente, justamente por fazer um bis da coreografia da República do Galeão”, afirma Paulo Sergio Pinheiro, cientista político, membro da Comissão Nacional da Verdade e ex-secretário de Estado de Direitos Humanos no governo FHC. “Não há nenhuma defesa que caiba para essa decisão desnecessária e autoritária do juiz Moro. Com a desculpa de evitar confrontos, estimulou tumultos e brigas”, completa Pinheiro.
Tumulto em Congonhas | Foto: Mídia Ninja
Não cabe aos Jornalistas Livres defender Lula, como supuseram alguns leitores no decorrer do dia de ontem. Nosso papel é defender a democracia e mostrar também a versão que poucas vezes tem atenção dos jornalões e das TVs: compreender os fatos desde o ponto de vista do povo, dos trabalhadores, daqueles que historicamente são os mais oprimidos no país. Também faz parte da nossa responsabilidade como jornalistas traduzir o caminhar de uma operação do tamanho da Lava Jato. Porque o perigo para a democracia pode não aparentar monstruoso. Vem travestido de sensato, fundamentado no combate à corrupção, como um “heroi” que salva a pátria amada.
No golpe moderno, a onda que reforça o fascismo que vive na sociedade brasileira à espreita de uma brecha parece vestir terno e camisa – pretos – e dispor da gigantesca máquina midiática. Está onde não se enxerga: no “jornalismo” e na “Justiça”. “Todos esperam ver um monstro ou uma criatura do inferno, mas na verdade veem um banal burocrata da morte cujas personalidade e atividade são testemunhos de uma extraordinária normalidade e até de um elevado senso de dever moral”, escreveu Leonidas Donskis no livro “A Cegueira Moral”, de sua autoria e do sociólogo Zygmunt Bauman.
É hora da resistência e defesa da democracia se levantarem fortemente. “Nesta sexta vimos um grande passo para um golpe final contra a democracia no Brasil. Portanto, a resistência democrática precisa agir rápido, se manifestar no Brasil inteiro, formar uma corrente em defesa do Estado Democrático de Direito e fazer respeitar a eleição”, alertou o deputado Jamil Murad (PCdoB), que acompanhou a ação no aeroporto de Congonhas desde o início. “Aqui não é 1964, não. Precisamos impedir o golpe.” Ou, como orientou o ex-presidente Lula, eleito com mais de 58 milhões de votos (no segundo turno de 2006), “é preciso recomeçar”.
O artigo 5o da Constituição Brasileira garante a inviolabilidade do direito à vida. Mas as conclusões apresentadas pela Anistia Internacional no relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, que será lançado hoje, revela que estamos violando sistematicamente o direito à vida no Brasil. São cerca de 58 mil homicídios por ano no país. É uma letalidade altamente seletiva: 77% das vítimas são jovens negros, moradores da periferia. Como se essas vidas não tivessem valor algum para a nossa sociedade e para o Estado. Ao invés de o Brasil reagir com políticas públicas para enfrentar uma situação duas vezes superior à considerada epidêmica pela Organização Mundial de Saúde, o Congresso avança em pautas que tendem a dirimir direitos conquistados e a expor ainda mais essa população à violência, como a tentativa de reduzir a maioridade penal e a proposta de revogação do Estatuto do Desarmamento. “Há uma focalização dos homicídios e da penalização em um certo tipo de pessoa, de um determinado território”, explica Átila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. “São sujeitos considerados ‘matáveis’, quase descartáveis. É como se a cada dois dias derrubássemos um avião lotado de jovens – e isso não é notícia no jornal.”
A boa notícia é que a sociedade brasileira, por meio dos movimentos sociais, está reagindo aos retrocessos e omissões. Leia, a seguir, a entrevista completa com Átila Roque.
Por Maria Carolina Trevisan, especial para Jornalistas Livres
Jornalistas Livres – O relatório apresentado pela Anistia Internacional este ano evidencia uma série de graves violações a direitos humanos e revela que o parlamento reforça medidas conservadores, na contramão do enfrentamento às violações. Há alguma surpresa, na sua opinião?
Átila Roque – O que chamou a atenção da Anistia no caso do Brasil no ano passado, foi a agressividade da agenda conservadora no âmbito do Legislativo, que fez avançar a sua pauta. Terminamos o ano com muitos direitos importantes sob risco. São propostas que estão em tramitação ou já foram aprovadas na Câmara e aguardam confirmação do Senado. Percebemos que, diante de um certo vazio de lideranças no Congresso, acabou acontecendo a ascensão de uma liderança muito oportunista no sentido de engavetar uma série de propostas que significam um grave retrocesso em várias áreas importantes para a agenda de direitos humanos e que agora estão sujeitos a serem aprovados pelo Congresso.
Jornalistas Livres – É possível destacar algum avanço na garantia de direitos humanos no país?
Átila Roque – Um ponto positivo foi que houve uma mobilização importante da sociedade na defesa desses direitos, especialmente de parcelas bastante significativas da juventude, tanto no que diz respeito à tentativa de redução da maioridade penal, como no que se refere aos direitos das mulheres e, mais para o final do ano, a mobilização dos estudantes, com várias manifestações importantes. Isso mostra que apesar do enorme baixo astral da agenda legislativa e do enorme descrédito que as instituições e os partidos estão sofrendo devido à crise do próprio modelo político, existe ainda uma força de participação da sociedade muito disposta a não recuar nas conquistas da democracia.
Jornalistas Livres – Diante desse cenário conservador atuante no Congresso, qual a importância das Comissões Parlamentares de Inquérito que se instauraram e se mantiveram ativas, como, por exemplo, a CPI contra o genocídio da juventude negra?
Átila Roque – Tivemos duas CPIs tratando especificamente do genocídio da juventude negra, uma na Câmara e outra no Senado. A Anistia vem tentando, há um ano e meio, mobilizar a sociedade e pautar, no marco da campanha Jovem Negro Vivo, a agenda do alto índice de homicídios no Brasil, o impacto que isso tem sobre a juventude brasileira e a juventude negra em particular. A gente vem demandando, por um lado, que a própria sociedade rompa essa cortina de silêncio e invisibilidade sobre essa agenda e por outro lado que o Estado coloque esse tema no marco de prioridades que a gente acha que ele deve ter. O fato de o Congresso ter respondido com as CPIs merece destaque. Foram momentos em que essa agenda entrou de maneira muito qualificada no debate parlamentar. Em geral, esse debate chega no parlamento por vias muito tortas e marcadas por estereótipos e preconceitos, com uma visão conservadora, como aconteceu no debate sobre a redução da maioridade penal. Foram momentos em que esse debate pode chegar à agenda do Legislativo de maneira muito mais qualificada.
Jornalistas Livres – Em relação aos índices de homicídio, quais as tendências observadas pela Anistia?
Átila Roque – Os dados mais recentes mostram uma assustadora continuidade no crescimento desses índices. No último Mapa da Violência, a curva dos últimos 10 anos, referentes ao homicídio de jovens entre 15 e 29 anos, há uma situação bastante dramática. Quando você olha os jovens brancos, há um decréscimo da ordem de 33%. Quando você olha, nessa mesma faixa de idade, os jovens negros, há um crescimento de 33%. Ou seja é um espelho invertido, o que leva a gente a pensar que em grande medida, a taxa de homicídios de jovens negros é o que está sustentando a taxa de homicídios na faixa tão alta de 56 mil, ou 58 mil, segundo o Fórum de Segurança Pública Brasileiro.
“São quase 60 mil mortos por homicídio. Embora tenha caído em grandes cidades como no Rio de Janeiro e em São Paulo e tenha se interiorizado, de certa maneira, você não vê uma redução significativa para o patamar de calamidade que nós vivemos.”
O fato é que o Brasil vive uma situação que pode ser considerada de emergência, de epidemia de homicídio. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, uma taxa de homicídios por cem mil habitantes, acima de 10, já pode ser considerada epidêmica. O Brasil, em média, está em mais ou menos 25 homicídios por cem mil habitantes. Ou seja, nós estamos mais no patamar da calamidade, porque 60 mil mortos por homicídio no ano é muito acima de várias guerras.
Jornalistas Livres – É uma taxa muito expressiva e que preocupa por sua seletividade racial e geracional.
Átila Roque – A taxa absoluta de quase 60 mil homicídios por ano é muito alta sob qualquer aspecto. A taxa relativa, de 25 homicídios por 100 mil habitantes também é muito alta, porque está muito acima do patamar de epidemia. A taxa por idade e o registro por cor também são muitos elevados. Mais de 50% dessas mortes são de jovens. E entre os jovens, 77% são negros. Isso significa uma focalização da vitimização de jovens negros e pobres, da periferia. Mostra que há uma letalidade altamente seletiva.
Jornalistas Livres – Como o Estado reage? Há um desenho de política pública para enfrentar essa situação?
O Juventude Viva [programa federal com desdobramentos municipais, desenhado especialmente para enfrentar o homicídio de jovens negros] é uma gota no oceano. É um programa que, quando você olha o conceito, é um meritório. Agora, o alcance dele, diante da tragédia que estamos vivendo é absolutamente pífio, para não dizer quase ridículo, considerando o tamanho do problema que a gente enfrenta no Brasil. O Governo Federal, o ministro da Justiça, vem há anos prometendo e adiando a publicação de um Plano Nacional de Redução de Homicídios, que traria um conjunto de iniciativas integradas, que envolveria o Estado e a União, focados na redução de homicídios. Nós estamos esperando isso há oito anos. A última vez que o ministro Cardoso prometeu isso foi no ano passado, no encerramento do encontro anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quando ele disse que o plano estaria pronto e seria apenas questão de fechar os detalhes, para lançar não um “plano” mas um “pacto”. Estamos até agora esperando esse pacto. Já passou um ano desse momento.
Então, isso tudo sugere que estamos vivendo um impasse: o Estado brasileiro não está conseguindo focar e dar prioridade àquilo que é a maior emergência humanitária que o Brasil vive. É uma situação que, daqui a 10 anos, vai nos deixar na mesma ou pior. Porque se você não fizer alguma coisa, de forma organizada para reverter isso, isso não vai se reverter naturalmente. Pelo contrário. O que a gente deve assistir é o que estamos começando a ver nos dados: uma focalização cada vez maior dos homicídios, com a penalização cada vez maior de um certo tipo de pessoa, de um determinado território, que estão sendo considerados sujeitos ‘matáveis’, quase descartáveis, e a sociedade, o Estado consegue dormir todos os dias com essa tragédia. São 30 mil mortes de jovens por ano, é como se a cada dois dias você estivesse derrubando um avião lotado de jovens, 77% negros, e isso não é notícia no jornal.
Jornalistas Livres – O relatório diz que um dos pontos importantes para combater essa violência é a transparência na área da segurança pública. Como o senhor vê o posicionamento do governador Geraldo Alckmin, que impôs sigilo de 50 anos aos registros dos Boletins de Ocorrência?
Átila Roque – Essa medida do governador Alckmin é inacreditável. Vai na contramão do que pedem os especialistas e dessa reivindicação por maior transparência e por maior sistematização dos dados. São Paulo, que já foi um evento nessa área, está entre os estados que no passado deram exemplo, junto com o Rio de Janeiro. Hoje está caminhando a passos largos para um retrocesso gravíssimo. Se essa medida se confirmar, vai ser realmente assustador.
O que temos hoje no Brasil é uma situação em que a participação da polícia nos índices de homicídios é muito alta, ainda que os dados sejam fragmentados. Mostram que a participação do Estado, através da polícia, nesse total de homicídios é altíssima. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, olhando apenas os “autos de resistências”, ou seja, não estamos falando de todas as mortes que envolvem policiais, mas se a gente olhar apenas a situação em que a própria polícia diz que matou em legítima defesa, nós tivemos uma média nos últimos quatro anos de 15%. Ou seja, cerca de 15% do total de homicídios ocorridos no Rio de Janeiro são de pessoas mortas pelas mãos da polícia, supostamente em ações de legítima defesa. Mas diversas pesquisas mostram que essas mortes tratam-se de execuções sumárias e não de resistência seguida de morte. O relatório “Você matou meu filho”, lançado pela Anistia no ano passado, faz uma análise dos autos de resistência ocorridos no Rio em 2014 e também uma análise histórica desde 2011: há fortes indícios que a maioria dos casos de auto de resistência se tratou, na verdade, de execuções.
Foto: Lina Marinelli
Jornalistas Livres – Então é correto afirmar que uma parte importante dos homicídios no Brasil é causada pela polícia.
Átila Roque – Temos uma situação em que a polícia é parte do problema. A gente tem dificuldade de falar do conjunto do Brasil porque não há transparência, coleta uniformizada por parte das instâncias do estado, que têm responsabilidade sobre o controle e o monitoramento das ações policiais, com medidas efetivas nesses casos. O Ministério Público se omite e não atua no marco da sua responsabilidade constitucional, afinal de contas cabe ao MP o controle externo da ação policial, que não está fazendo isso. A Justiça, por sua vez, atua de maneira lenta, quase parada. Então, o número de situações que chega a qualquer tipo de responsabilização é quase nulo e a Polícia Civil também não investiga esses episódios. É quase uma cadeia de cumplicidade. Embora seja uma palavra forte, é como se tivesse todo um sistema funcionando para manter e autorizar a má atuação da polícia, no sentido de que ela pode continuar exercendo um papel de executora de pessoas consideradas traficantes ou bandidos, ou que quer que seja.
Jornalistas Livres – Como isso se reflete no sistema prisional?
Átila Roque – O campo da Segurança Pública e da Justiça no Brasil, que em qualquer sociedade funciona como um termômetro, um importante patamar de cidadania, está se revelando num enorme déficit de Justiça, uma enorme violência. O que a gente vê é esse sistema funcionando para penalizar um certo tipo de pessoa, muito mais como um fator de repressão, controle e até eliminação de um certo perfil de cidadão do que uma instância recuperadora, garantidora de um patamar de civilidade e eventualmente de punição e responsabilização daquela pessoa que está em confronto com a lei.
“É um país que está prendendo as pessoas erradas”
É, na verdade, um instrumento de controle e supressão de direitos da própria vida de uma certa parte da população. Ao traçar um paralelo entre a taxa de homicídios (quase 60 mil por ano) e a taxa de resolução de homicídios (entre 5 e 8%), ou seja, menos de 8% obtém qualquer resultado da Justiça, encontra-se um número altíssimo de impunidade. Como pode um país em que o crime contra a vida é praticamente impune, ter, esse mesmo país, a quarta maior população prisional do mundo? É um país que está prendendo a pessoa errada! A maior parte dessas quase 600 mil pessoas que estão hoje nas prisões, nas piores condições possíveis, não cometeram crimes violentos, não cometeram crimes contra a vida. São pessoas que cometeram crimes contra o patrimônio ou o chamado “tráfico de drogas”, porque o usuário é enquadrado como traficante, e 40% dos presos estão em prisão provisória – passam mais tempo na prisão do que no final das contas é a pena.
“Basicamente o sistema de Justiça ou prende ou mata o jovem negro pobre. E a população do território de favela. Essa é a situação. Quem está morrendo são eles e quem está sendo preso também são eles – e cada vez mais elas.”
Jornalistas Livres – Sobre o posicionamento político do Brasil, o que significa o país não ter se candidatado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, como chama a atenção o relatório?
Átila Roque – Isso foi visto como uma surpresa negativa. Desde o início o Brasil tem participado e ocupado assento na Comissão de Direitos Humanos. Pela primeira vez, o Brasil declinou da participação. É muito surpreendente que um país como o nosso, que tem reivindicado uma posição de protagonismo internacional político e econômico, no momento em que tem a oportunidade de ocupar um lugar de importância como essa comissão, espaço em que os Estados membro das Nações Unidas exerce seu mandato fundamental de monitorar as condições de direitos humanos do mundo, se furte voluntariamente a ocupar esse lugar. O Brasil está quase dizendo para o mundo que ele é um ator secundário. Quase declarando e assinando com firma reconhecida que não tem competência para estar em um espaço global de defesa dos direitos humanos tão importante como a comissão.
Jornalistas Livres – O Brasil também não ratificou o Tratado sobre Comércio de Armas.
Átila Roque – Quando o tratado foi aprovado, o Brasil foi um dos primeiros países a assinar, aderiu imediatamente. Mas desde então, a ratificação ainda não foi feita. O que cria uma enorme frustração e uma reversão de expectativas. Havia uma expectativa de que o Brasil fosse um dos primeiros a ratificar, dada a importância desse tratado no mundo de hoje. É mais fácil exportar arma do que banana. Existe muito mais controle do comércio internacional sobre banana do que armas de porte médio e pequeno, as que mais matam. Hoje o Brasil está mandando uma sinalização muito negativa ao não priorizar, não pressionar o Congresso.
Foto: Bruno Miranda/Na Lata
Jornalistas Livres – No conjunto dos países pesquisados pela Anistia, como vai o Brasil? Há algum motivo de orgulho?
Átila Roque – A Anistia não faz ranking. Normalmente não traçamos esse paralelo porque a gente prefere não comparar países. Mas podemos dizer que nós estamos entre os países que mais mata no mundo. Provavelmente em termos absolutos corre o risco de ser o país que mais mata e está entre os mais desiguais e mais violentos, mantendo um nível muito alto de violência de defensores de direitos humanos.
Se você olha o volume de pessoas mortas no campo ou lideranças indígenas camponesas que são assassinadas, o Brasil é dos países que mais mata no mundo. Então, se você traçar um paralelo, o cenário dos direitos humanos no Brasil não nos orgulha. Tem avanços pontuais, mas estamos vivendo um momento em que tem uma grave ameaça de retrocesso. Ainda não se configurou porque ainda não foram medidas aprovadas, foram parcialmente aprovadas.
Espera-se que a reação da sociedade possa reverter a situação. Mas estamos falando de grandes riscos. A situação brasileira não corresponde aos avanços que nós logramos em outras esferas, como o protagonismo global, a luta contra a pobreza, o avanço da democracia. O Brasil obteve grandes avanços ao longo dos últimos 30 anos do ponto de vista da Constituição, mas mantém ainda um patamar alto de violação, devido à dificuldade de implementação desse marco legal avançado, que não corresponde ao que nós gostaríamos de ver.
Átila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil
Reportagem e edição: Jennifer Mendonça, Fernando Sato, Lisa Costa, Marcela Montserrat e Maria Carolina Trevisan, para Jornalistas Livres
O coração de Mãe Gilda começou a morrer no segundo em que viu sua foto estampada na capa da Folha Universal, jornal da Igreja Universal do Reino de Deus, ao lado da manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. Era outubro de 1999 e a publicação ligava a iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, responsável pelo terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador (BA), a práticas ilícitas. Nos dias que se seguiram, sua casa foi invadida, seu marido foi agredido verbal e fisicamente, e seu terreiro foi incendiado. O coração de Mãe Gilda parou para sempre no dia 21 de janeiro de 2000, em um infarto fulminante. O ódio a matou.
Para reverenciar a memória de Mãe Gilda e lembrar que intolerância religiosa é crime, foi criado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa em 2007. Diversos atos pacíficos aconteceram pelo país. Veja, no vídeo em destaque, a manifestação em São Paulo, que aconteceu no vão do MASP, na Avenida Paulista, e teve a participação de cerca de 600 pessoas.
Religiões de matriz africana
Foto: Fernando Sato/Jornalistas Livres
A liberdade de crença é garantida pela Constituição. Os principais alvos são as religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. Boa parte dos atos de intolerância são motivados pelo racismo.
No ano passado, a iyalorixá Mãe Dede de Iansã teve um ataque cardíaco fulminante na Bahia. Sua família alega que o coração da nonagenária parou de bater por causa de perseguições sofridas durante um ano inteiro. na noite anterior a sua morte, fiés de uma igreja evangélica teriam passado a madrugada em vigília proferindo ofensas contra seu terreiro.
As denúncias de discriminação religiosa recebidas pelo Disque 100 atingiram em 2015 seu maior número desde 2011, quando o serviço passou a receber esse tipo de denúncia. No ano passado, foram reportados 252 casos, um aumento de 69% em relação a 2014. Os estados do Sudeste concentram a maioria das denúncias.
Entre os casos de intolerância religiosa, as religiões de matriz africana são os principais alvos.
No Rio de Janeiro, casos compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro, mostram que mais de 70% dos 1.104 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Rio entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matriz africana.
Uma menina de 11 anos foi atingida na cabeça por uma pedrada na Zona Norte do Rio de Janeiro quando voltava de um culto, vestida com as roupas dos candomblecistas.
No Distrito Federal, o governador, Rodrigo Rollemberg, sancionou uma lei, nesta quinta-feira (21/1), que cria a 1a delegacia para investigar crimes de intolerância religiosa. Nos últimos meses, quatro terreiros de religiões de matriz africana foram incendiados no Distrito Federal e entorno. Durante a assinatura da lei, policiais civis do DF fizeram uma manifestação contra a criação da delegacia especializada alegando déficit de funcionários.
Direito de liberdade de crença
Foto: Fernando Sato/jornalistas Livres
A Constituição Brasileira prevê, em seu artigo 5o, a liberdade de crença religiosa, a proteção e o respeito às manifestações religiosas:
“VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”
O Código Penal brasileiro também define discriminação religiosa como crime:
“Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso;”
Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.
“Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.”
É obrigação do Estado (que supostamente é laico) garantir esses direitos. “Para esse país aprender a ser um país laico, ele precisa ter amor pelas pessoas, independente de qualquer coisa”, explica a sambadeira Dulcineia Cardoso, a Nega Duda, há 10 anos cantora do bloco afro Ilu Obá de Min, e importante voz na luta pelos direitos das mulheres negras. “Estamos aqui na luta, como a gente faz todos os dias.”
É preciso respeitar o coração. O ódio faz o coração parar.
Nenhum passo atrás. O recado das ruas nesta quarta-feira deixou claro: o povo não vai negociar os direitos sociais e humanos conquistados, não quer lotear o pré-sal e não admite o ajuste fiscal às custas das políticas sociais. Para quem ocupou a avenida, Dilma fica e Cunha sai
Por Maria Carolina Trevisan, especial para Jornalistas Livres
São Paulo, a capital mais conservadora do Brasil, começou a quarta-feira, 16 de dezembro, com um ato de “Professores contra o impeachment e pela democracia”, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, cenário da resistência estudantil à Ditadura. Foi uma reação à manobra que deu início ao processo de impeachment da presidenta Dilma, perpetrada pelo deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados. “O que está em jogo agora são a democracia, o Estado de Direito e a República, nada menos”, afirma o manifesto dos intelectuais, oficializado no evento.
Mas a expressão mais contundente desse contra-peso aconteceu entre a Avenida Paulista e a Praça da República, no centro da capital paulista. Cerca de 100 mil pessoas, segundo o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e 55 mil, de acordo com o Datafolha, marcharam contra a tentativa de golpe. Cartazes e cantos de luta pediam a manutenção e o fortalecimento das políticas que favorecem a maioria da população brasileira, mas não privilegia a elite conservadora. Um contraste evidente em relação à demanda da passeata do domingo, 13/12, intitulado “Natal sem Dilma”, e rebatizado de “esquenta”, quando da iminência de seu fracasso.
Não se pode ameaçar a democracia, que custou a vida de tanta gente na nossa história recente. Por isso, as ruas cheias. O impeachment é um instrumento reservado para situações extremas, destinado a proteger o Estado de Direito. Não pode fazer parte de um jogo pelo poder. “Nós estamos lutando para acabar com a história de golpes durante a democracia brasileira”, afirmou a professora Ermínia Maricato, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Nós estamos lutando também para avançar no processo civilizatório. Por um processo civilizatório de generosidade, de paz, de uma sociedade menos desigual. Estamos lutando contra muita coisa, mas a favor de muita coisa também”, disse Maricato.
Foi exatamente o que se viu no ato contra o golpe nesta quarta-feira: milhares de pessoas defendendo as políticas sociais e os direitos humanos, sobretudo. Gente comum, que não é filiada a nenhum partido político, se misturava a militantes de direitos indígenas, a defensoras dos direitos das mulheres, a ativistas do movimento LGBT, aos que lutam por moradia digna, por escolas públicas de qualidade, aos integrantes do movimento negro.
Lucia Udemezue e Patricia Rodrigues | Foto: Fernando Cavalcanti/Jornalistas Livres
Querem evitar o retrocesso e garantir avanços. “Um golpe significa retroceder mais de 50 anos de luta histórica pela democracia no país, retroceder em direitos que avançaram em grande medida em 12 anos de governo democrático e popular. Precisam ser respaldados”, defende Patrícia Rodrigues, socióloga e militante pelos direitos indígenas. É a população em situação mais vulnerável — indígenas, negros e pobres — quem mais perderia com uma mudança autoritária de governo à direita.
“A questão racial no Brasil apesar de todas as dificuldades persistentes, experimentou avanços nos últimos anos justamente porque encontrou lugar nas bases dos partidos de esquerda, embora estes também apresentem grandes restrições para tratar da pauta. O fato é que a conquista de direitos trabalhistas para trabalhadoras domésticas, a maioria de mulheres negras, a inserção de pessoas negras nas universidades, a disputa com cotas a cargos públicos, tudo isso tem incomodado demais aqueles que nunca tiveram como pauta os direitos para esse segmento populacional”, explica a socióloga Tricia Calmon, militante do movimento negro da Bahia.
“Pensar e implementar políticas para o segmento populacional negro no Brasil fortalece a democracia na medida em que aos poucos vai desmontando o monopólio do usufruto dos bens produzidos pela sociedade apenas pelo segmento populacional branco. Um golpe, portanto enfraquecerá esse projeto”, afirma.
Foto: Roberto Setton/Jornalistas Livres
Escuta, Dilma
Um outro aspecto importante da passeata pela democracia desta quarta (16/12) foi marcado por críticas severas ao governo. “Ser contra o impeachment não significa defender a política desse governo. Nós entendemos que essa política é indefensável. O governo Dilma precisa ouvir a voz das ruas. Se não interromper esse ajuste fiscal só vai aprofundar a crise e vai gerar grande revolta social”, alerta Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
José Alves de Castro, militante histórico do PCdoB. Há 55 anos. Foto: Fernando Cavalcanti/Jornalistas Livres
Um ajuste fiscal baseado nos juros do pagamento da dívida externa e a defesa do pré-sal como patrimônio brasileiro foram bandeiras levantadas na manifestação. “Querem que o povo pague a conta. O Brasil está gastando 500 bilhões de dólares para pagar juros da dívida para os grandes investidores. É esse o verdadeiro ajuste que tinha que ser feito”, reivindica o jornalista Chico Malfitani. “Não é tirando 10 milhões do Bolsa Família. O ajuste é a sangria. Todos nós precisamos fazer alguma coisa para não deixar o país andar para trás. Ou vai ter uma guerra civil”, alerta Malfitani. Para a professora e filósofa Marilena Chauí, se o golpe acontecer, a tendência é a privatização da Educação, da Saúde e da Cultura. “E vão entregar o pré-sal para os Estados Unidos. O pré-sal é a nossa soberania”, defende.
Foto: Mídia NINJA
No mesmo instante em que a manifestação marchava em direção à Praça da República, o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, pedia o afastamento cautelar de Eduardo Cunha do cargo de deputado federal e de presidente da Câmara. Janot listou 11 razões para isso e encaminhou ao Supremo.
O médico Reinaldo Morano, 70 anos, participa da manifestação | Foto: Fernando Cavalcanti
Diante desse quadro político palpitante, o posicionamento popular é fundamental para desmistificar a ideia de que a maioria dos brasileiros quer o impeachment, cenário defendido por Cunha e companhia, e superdimensionado pela velha mídia. O contrário do que se viu nas ruas ontem. “Se você olhar, tem gente de todas as cores e tem muita gente”, observa o médico Reinaldo Morano. Participante do movimento estudantil nos tempos de terror da ditadura, Morano viu muita gente ser presa, perseguida e torturada, amigos e colegas assassinados. “Eu não quero isso de volta. Meu recado é ‘Dilma, coragem’!” A direita é insaciável.
Colaboraram: Laura Capriglione, Allan Ferreira, Henrique Cartaxo, Bruno Miranda, Katia Passos e Iolanda Depizzol
Com a mesma força com que lutou e resistiu Dandara, a companheira de Zumbi dos Palmares, a histórica Marcha das Mulheres Negras levou milhares de mulheres à capital do país. A manifestação pauta as demandas do movimento de mulheres negras para os próximos 20 anos e mostra que é preciso um novo pacto civilizatório. São as Dandaras de hoje.
Reportagem: Maria Carolina Trevisan
Fotos: Vinícius Carvalho / Vídeo: Mídia NINJA Especial para Jornalistas Livres
A Marcha das Mulheres Negras avançava lentamente em direção ao Congresso Nacional levando cerca de 15 mil pessoas pelas avenidas de Brasília (DF). Na linha de frente, em respeito à ancestralidade que ancora as religiões de matriz africana, estavam as mulheres mais velhas, abrindo os caminhos sob a proteção dos orixás. Vestiam seus trajes sagrados. Ao apontar na beira do gramado da Esplanada dos Ministérios, as senhoras entoaram em coro o “Canto das três raças”, canção eternizada na voz de Clara Nunes. Foi um dos momentos mais emocionantes do ato.
A música lembra que o povo desta terra ainda “canta de dor”.
As senhoras negras precisaram ultrapassar o acampamento dos manifestantes a favor da intervenção militar para chegar diante da Câmara dos Deputados. O choque de ideologias gerou confusão. Um dos acampados (depois se soube que é um policial civil que já havia sido preso com munição letal há algumas semanas) deu tiros no meio da multidão e dos três caminhões de som. Justificou-se dizendo ter se sentido ameaçado pelas mulheres negras que marchavam por direitos.
A ação — triste e também reveladora — foi simbólica da violência a que esse grupo social é submetido diariamente. Em nenhuma manifestação de rua, desde 2013, um participante sacou uma arma no meio do ato. Mas contra a marcha de mulheres negras, sim. É como se os corpos negros continuassem, seguidamente, a não ter valor algum. “Nós decidimos que vamos viver. Vamos fazer isso tendo condições de decidir no poder. Não vamos delegar nossa representação a ninguém”, afirma a socióloga Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia. “Essa é a grande virada que a Marcha das Mulheres Negras faz.”
A atitude da Polícia Militar do DF — muito mais de controlar o cortejo do que de proteger quem estava ali, oposta ao festival de selfies nos protestos da direita — demonstra também a violência de Estado a que estão sujeitas as personagens brasileiras com mais história de resistência e de luta do país. É o racismo explícito e que mata. “O racismo no Brasil insiste em cobrar em vida”, afirma a advogada Ana Luiza Flauzina, doutora em Direito e pós doutora pelo Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas. “Aquele momento é muito simbólico para compreendermos o que é a vida das mulheres negras neste país. É uma vida completamente desprotegida, que pode ser assaltada até no momento em que esse sujeito político está, de alguma forma, empoderado, gritando suas reivindicações na Esplanada dos Ministérios”, completa Flauzina.
O som dos estampidos ecoa noite e dia, ensurdecedor.
Por instantes, a agressão fez do canto de alegria “um soluçar de dor”. Acontece que não existe História do Brasil sem considerar a participação das mulheres negras. Sua força é muito maior do que a crueza do racismo brasileiro. Como a de Dandara, guerreira do Quilombo dos Palmares que resistiu à escravidão. Naquele momento, as mulheres que marchavam cuidaram umas das outras e, quando se certificaram de que estavam todas bem, seguiram adiante. Com a mesma dignidade com que enfrentam o dia a dia. “Certamente nós carregamos sobre os nossos corpos um conjunto de contradições e determinações que se superadas são pré-requisitos para fazer deste país uma verdadeira democracia racial, com igualdade e justiça social”, afirma a filósofa e doutora em Educação Sueli Carneiro, fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra de São Paulo e importante liderança do movimento negro.
“Ser mulher negra é estar localizada estrategicamente nesse lugar de onde se tem que compreender todos o processos de exclusão, desigualdade e marginalização social. Mas é também o lugar em que pode estar a condição de libertação de todos e de todas nós.” Sueli Carneiro.
Contra o racismo, a violência e pelo Bem Viver
Desde 2008, as mulheres negras são maioria no Brasil: correspondem a 50% do total de brasileiras. Em 2009, segundo o “Dossiê Mulheres Negras”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), já havia cerca de 600 mil negras a mais que brancas. Representam 25,5% do total de pessoas no país. A população negra (pretos e pardos) é composta por quase 104 milhões de pessoas, cerca de 51% da população total do Brasil. Portanto, a Marcha das Mulheres Negras não se refere a reivindicar políticas para uma minoria. Trata da maioria da população brasileira. Esse é o ponto de partida.
“É a primeira vez que mulheres negras ousam ir às ruas para apresentar um novo pacto civilizatório para o povo brasileiro e não apenas para as mulheres negras”, explica Valdecir Nascimento, do Odara — Instituto da Mulher Negra, de Salvador (BA). “Se for bom para as mulheres negras será bom para todo o povo brasileiro”, completa. Uma das demandas específicas da marcha diz respeito à situação de violência que esse grupo social vem sofrendo. A violência letal contra mulheres no Brasil tem taxa muito elevada. Segundo o Mapa da Violência 2015, são 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, índice 48 vezes maior do que no Reino Unido.
As vítimas de homicídio feminino são predominantemente negras. Foram quase 2.875 mulheres negras assassinadas em 2013. O estudo também mostrou que enquanto a violência letal contra mulheres brancas vem diminuindo, entre 2003 e 2013, houve 54% de aumento no númerode homicídios contra mulheres negras. Significa que ser mulher e ser negra, nessa sobreposição que se junta à opressão de classe, é o lugar mais vulnerável da sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo, são elas que abrigam as maiores fortalezas da nossa estrutura. “Nós estamos nos piores extratos sociais, com menor nível de salário, com menor acesso à educação e à saúde, com menor mobilidade social”, alerta a psicóloga Maria Lucia Silva, do Instituto Amma — Psique e Negritude, de São Paulo. “Nós, mulheres negras, fomos o esteio e a construção deste país. Queremos ocupar um lugar de poder, de mobilidade e de acesso para que a gente possa dizer como a gente pensa o Brasil democrático e efetivamente bom para brancos, negros, indígenas, para todos os grupos sociais.
Depois da caminhada até o Congresso Nacional, um grupo de representantes formado majoritariamente pelas senhoras da Irmandade da Boa Morte (as anciãs, em respeito à ancestralidade) puderam se encontrar com a presidenta Dilma Rousseff. Ela recebeu a “Carta das Mulheres Negras: o Bem Viver como nova utopia”, documento que detalha as proposições do movimento de mulheres negras e demarca as prioridades para os próximos 20 anos. O conceito de “Bem Viver”, no qual se baseia a Marcha, é uma construção conjunta com mulheres indígenas da América Latina e se caracteriza pela luta coletiva que prioriza a complementaridade, em que todos têm direitos. “Marchamos pelo direito de estar no mundo sem violência e sem racismo. Nós marchamos pela vida e não pela sobrevivência”, explica a enfermeira, blogueira e militante Emanuelle Góes, no texto Dialogando sobre o Bem Viver e as Mulheres Negras.
Ponto de inflexão
Há 20 anos, a primeira Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida reuniu 30 mil pessoas em Brasília. Naquele momento, o movimento negro denunciava a ausência de políticas públicas para a população negra. Marcou também os 300 anos do assassinato de Zumbi, principal liderança do Quilombo dos Palmares, um território de resistência na capitania de Pernambuco (que se tornaria Alagoas), durante o regime escravista.
A primeira marcha rompeu com o mito da democracia racial e evidenciou as graves desigualdades a que essa parcela da população estava submetida. Pela primeira vez, o Brasil reconheceu seu racismo. Dez anos depois, aMarcha Zumbi + 10 voltou a juntar milhares de pessoas na capital do país. Começaram aí as primeiras ações afirmativas, que culminaram nas cotas para ensino superior e no Estatuto da Igualdade Racial, entre outras conquistas.
Agora, a Marcha das Mulheres Negras, que começou a ser articulada há três anos, pretende dar um passo firme, ser um ponto de inflexão nas conquistas de direitos para a população negra no Brasil. “Essa marcha não tem uma pauta conjuntural. É para falar de uma situação histórica no Brasil, que apesar dos avanços que a gente possa perceber no nível sócioeconômico de exclusão social, as mulheres negras continuam na base da pirâmide”, explica Tricia Calmon, socióloga e militante do movimento negro na Bahia.
Para Vilma Reis, a Marcha organizou a pauta para os próximos 20 anos. “O objetivo é termos mulheres negras dirigindo as empresas públicas e de capital misto, que são as maiores do Brasil, com equilíbrio na representação política, nas artes e produção de conteúdos de comunicação, e, definitivamente, dando fim ao genocídio”, explica Reis.
Significa que a Marcha das Mulheres Negras amplia uma concepção de reivindicações isoladas para um conjunto de condições que seriam necessárias na sociedade brasileira, não apenas para um processo de inclusão das mulheres negras, mas da população negra em geral e dos outros grupos que compõem a sociedade brasileira. São demandas mais complexas. “Não se trata de trabalhar especificamente determinados pontos ou determinadas áreas que são desvantajosas para as mulheres negras, mas uma concepção de que a situação da mulher negra só se modifica na medida em que a sociedade brasileira se modifica também”, explica Luiza Bairros, doutora em Sociologia e ex-ministra chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), entre 2011 e 2014. “O racismo não está mais protegido pela ideia da existência de uma democracia racial. Portanto, fica agora muito mais evidente que a questão negra não é uma questão específica. Precisa ser tratada no âmbito das grandes questões nacionais. Chegamos num determinado limite em termos das conquistas para a população negra no Brasil”, diz Bairros.
O recado da Marcha das Mulheres Negras está dado: para que o país avance, a presença negra nos espaços de tomada de decisão é fundamental. “A ocupação do poder político institucional eu vejo como sendo a parte central da nossa estratégia daqui para frente. Ou você faz que essas concepções que o movimento negro construiu ao longo do tempo cheguem nas instituições através das pessoas que têm efetivamente esse tipo de interpretação e análise da sociedade brasileira, ou então você não vai muito mais adiante. Não tem mais como você pensar o país desconsiderando a população negra, que é a maioria da população. Você não estaria fazendo nada, não estaria pensando nada”, afirma Bairros.