Era uma van que virou estúdio de cinema. Ela guardava segredos profundos. Ao fechar a porta, o silêncio, a escuridão e uma câmera recebiam mulheres que sofreram assédio. Para muitas delas, era a primeira chance de falar sobre o trauma que envolve a violência de quem passou por esse abuso. Casos que variavam entre uma cantada de mal gosto até o estupro.
A caixa escura da van recebeu os testemunhos de 140 mulheres, de 14 a 85 anos. Vinte e seis desses depoimentos compõe o documentário “Precisamos falar do assédio”, da diretora Paula Sacchetta, com produção da Mira Filmes. A película estreia na noite de hoje, no Festival de Brasília, às 19h.
Em uma sociedade que naturaliza o assédio, a dureza das declarações pode ser notada pelo olhar de medo, pela respiração aflita e pelo desabafo de quem percebe – finalmente – que não está sozinha. “Uma começa a falar e encoraja a outra a falar”, conta Paula, que caminhou com a van por nove locais, em São Paulo e no Rio de Janeiro, oferecendo uma rara escuta. “Por um lado, havia o acolhimento e por outro lado, o grito, a denúncia. Vamos começar a falar, juntas, para tentar mudar alguma coisa.”
A diretora, Paula Sacchetta | Foto: divulgação
Há, por exemplo, o caso de uma jovem mulher que, usando uma máscara azul simbolizando a tristeza, contou ter sofrido abuso aos 13 anos. Ela nunca teve coragem de contar a ninguém a violência que sofreu, nem para a psicóloga, nem para a psiquiatra, mesmo muitos anos depois. “Elas tratam algo que elas nem sabem o que é”, desabafa. “Enquanto eu não tratar isso em mim, não tem remédio que possa ajudar. Eu não consigo”, ela diz. Percebe-se também, ao longo da exibição, que na maioria dos casos os abusos partem de pessoas conhecidas e que geralmente exercem uma espécie de poder sobre a mulher, como professores, chefes, superiores hierárquicos ou médicos.
O filme é apenas uma parte do projeto “Precisamos falar do assédio”. A ideia de gravar os depoimentos veio da percepção de que muitas mulheres sofreram assédio e se calaram, sem saber que é tão comum. Quando as redes sociais exibiram as hashtags #meuprimeiroassédio e #meuamigosecreto, durante o que se chamou de Primavera das Mulheres, o que ficou explícito foi o fato de que o assédio – e a violência sexual – é muito mais comum do que pensamos.
Em parceria com a Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres de São Paulo, quem participava da gravação também podia ser atendida por uma funcionária da secretaria, que encaminhava os diferentes casos para instâncias de apoio jurídico e psicológico. No sitewww.precisamosfalardoassedio.com é possível assistir a todos os depoimentos e enviar outros testemunhos. A plataforma também oferece caminhos para denúncia e acolhimento, com endereços de todas as Delegacias de Defesa da Mulher, cetros de referência para a violência doméstica, além dos dispositivos legais que protegem as pessoas desse tipo de agressão.
A culpa é da vítima
O documentário é extremamente atual e relevante diante de uma sociedade que se demonstra machista, misógina e intolerante. Nesta quarta-feira (21), o Datafolha divulgou uma pesquisa sobre violência sexual contra mulheres. Os números revelam que um terço dos brasileiros acredita que a culpa pelo estupro é da própria mulher. Os dados, encomendados pelo Fórum de Segurança Pública, mostram que o problema é muito maior do que se pode imaginar: a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Estima-se que apenas 10% dos casos sejam notificados, o que sugere que anualmente aconteçam 500 mil estupros.
O quadro se torna mais assombroso quando se constata que 70% das vítimas desse tipo de agressão são crianças e adolescentes de acordo com dados do SUS (Sistema Único de Saúde). O estudo aponta ainda que 85% das mulheres têm medo de ser estuprada.
Por isso é tão importante falar sobre o assédio. “Toda mulher, sem exceção, tem uma história para contar”, lembra Paula. “Isso é assustador.” No Brasil, a cultura do estupro está muito viva.
Serviço
Precisamos falar do assédio
21/09/2016 – 19h – première nacional 49º festival de brasília do cinema brasileiro, cine brasília (brasília)
22/09/2016 – 17h cine cultura liberty mall (brasília)
27/09/2016 – 19h30 – pré-estreia circuito spcine olido (são paulo)
27/09/2016 – 20h – pré-estreia caixa belas artes (são paulo)
29/09/2016 – estreia caixa belas artes (são paulo)
30/09/2016 – 20h – exibição ao ar livre mirante 9 de julho (são paulo)
05/10/2016 – 19h – exibição centro de formação cultural de cidade tiradentes (são paulo)
05/10/2016 – 19h30 – exibição com debate cine arte uff (niterói)
Circuito spcine: aricanduva (são paulo) circuito spcine butantã (são paulo) circuito spcine caminho do mar (são paulo) circuito spcine feitiço da vila (são paulo) circuito spcine jaçanã (são paulo) circuito spcine meninos (são paulo) circuito spcine paz (são paulo) circuito spcine perus (são paulo) circuito spcine quinta do sol (são paulo) circuito spcine três lagos (são paulo) circuito spcine vila atlântica (são paulo)
Por Maria Carolina Trevisan, com fotos de Lina Marinelli, de Brasília
Foto: Lina Marinelli/Jornalistas Livres
A manhã da segunda-feira (29) foi confusa no Senado Federal em Brasília. Antes das 7h30 já havia filas de jornalistas na entrada da Casa, que buscavam credenciais para acompanhar a defesa da presidenta Dilma Rousseff. Nem todos tinham autorização para acompanhar a discussão no plenário. Mas o cercadinho destinado aos profissionais de imprensa estava abarrotado de gente. Aguardavam a chegada da presidenta afastada.
Às 9h01, em ponto, ela entrou no Congresso Nacional. Visitou a sala do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), com sua comitiva de convidados, enquanto o ministro Ricardo Lewandowiski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), abria a sessão para o momento mais importante da defesa de Dilma no processo de impeachment.Antes, porém, jornalistas teciam comentários sobre os parlamentares presentes. Falou-se da morte da sogra do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), do vestido em petit pois gigante da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), da self tirada pela senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-MA) com o compositor Chico Buarque. Nada do que importasse à democracia. Enquanto isso, o senador Jorge Viana (PT-AC), em entrevista para uma rádio, indagava: “Por que não convidaram o Eduardo Cunha pra cá? Ele é o heroi do golpe.”Rapidamente as galerias do senado se encheram de fotógrafos, cinegrafistas e alguns repórteres, que se posicionaram no andar de cima. Também ocuparam esses espaços os convidados de defesa e de acusação de Dilma. Ficaram frente a frente na tribuna. Dilma trouxe o ex-presidente Lula, o compositor Chico Buarque, o coordenador do MTST, Guilherme Boulos, ex-ministras como Tereza Campello, Eleonora Menicucci e Nilma Lino Gomes e ex-ministros como Aldo Rebelo, Aloizio Mercadante e Eugênio Aragão, entre outros. Do lado oposto, entre as 30 pessoas convidadas pela acusação, as presenças ilustres foram Rogério Chequer, líder do Vem pra Rua, Nilton Junior, integrante da loja maçônica Grande Oriente Paulista, Joice Hasselmann, jornalista, Fernando Holiday, do Movimento Brasil Livre, e seu líder, Kim Kataguiri. Até gente da família real brasileira foi convidada.
Foto: Lina Marinelli/Jornalistas Livres
Silêncio no plenário. A presidenta Dilma chegou e cumprimentou a mesa em um ritual solene. Ao fazer sua defesa, foi contundente mas se emocionou ao lembrar que sobreviveu a um câncer linfático e a seguidos dias de tortura. “Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência. Hoje eu só temo a morte da democracia”, disse, com a voz embargada e os olhos marejados. E agradeceu às mulheres brasileiras: “me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade.” Afirmou que, caso consiga passar pela sabatina desta semana e manter seu governo, convocará um plebiscito para consultar a população sobre o desejo de novas eleições.
A partir daí seguiram-se 40 perguntas dos senadores. A presidenta respondeu uma a uma com a força, a resiliência e a coragem de quem sobreviveu à tortura – e a outros golpes. Entre as principais indagações, a questão econômica foi central, chamada por alguns senadores de “mágica fiscal”. Faz sentido. A presidenta está sendo julgada por supostos crimes de responsabilidade. No pano de fundo, a constante queixa pela falta de diálogo com diversos setores da sociedade. Dilma reconheceu a escuta rara. E se desculpou. Disse, entre muitas outras afirmações, que Michel Temer, o presidente interino, sempre foi “um coadjuvante”. Segundo ela, “o líder é Eduardo Cunha”. Os que defendem Dilma declararam estar honrados pela trajetória e firmeza da presidenta.
As previsões para o desfecho do interrogatório variaram. A princípio parecia que a única saída seria o impedimento se consolidar. Mas à medida em que a presidenta Dilma seguia respondendo com clareza a cada pergunta, a balança foi mudando. Ao mesmo tempo, outros indícios mostraram que o jogo não está definido: o Palácio do Planalto continuou se movimentando para garantir os votos necessários, convidou indecisos como José Maranhão, Edison Lobão e João Alberto, todos do PMDB, para conversas privadas, barganhou cargos para agradar senadores, fez manobras para garantir que o julgamento de Cunha aconteça depois do processo de impeachment. Os aliados de Temer não estavam relaxados.
Foto: Lina Marinelli/Jornalistas Livres
Por outro lado, na contagem dos senadores simpáticos à presidenta, o impeachment não passará. O motivo seria o fato de não ter havido crime de responsabilidade, o que justificaria o impedimento. Ao senador Telmário Mota (PDT-RR), um dos indecisos que se mostrou favorável à Dilma, a presidenta disse: “Deus me livre do que o senhor chamou do ‘PMDB do mal’.” Ela sabe do que são capazes.
Ainda não se sabe se o desfecho do processo de impeachment será nesta terça-feira (30), como era o desejo do presidente provisório, Michel Temer, para que pudesse viajar à China – caso se torne presidente de fato – ou se segue até a madrugada de quarta-feira (31). Na próxima etapa, haverá argumentações da defesa e da acusação e em seguida os 81 senadores deverão votar. Para que o impeachment se consolide, pelo menos 54 senadores precisam votar a favor.
Há quase três meses no poder, o governo provisório decidiu adotar a lupa do equilíbrio das contas públicas para determinar suas prioridades. Esse caminho tem implicações importantes, não apenas em impactos econômicos. As consequências serão sentidas pela parcela mais vulnerável de brasileiros. São mudanças de recursos e acesso à Saúde e Educação – direitos sociais garantidos pela Constituição –, nas ações de combate à pobreza, segurança pública, segurança alimentar e agricultura familiar, entre outras.
A justificativa é uma retórica simplista que afirma que “a Constituição não cabe no Orçamento”. A tendência conservadora vai além das contas públicas e atravessa todos os ministérios, numa ofensiva (às vezes silenciosa) que se reflete em recuos nos direitos sociais e humanos. Para analisar esses efeitos, a equipe da ex-ministra do Desenvolvimento Social Tereza Campello, que comandou a pasta no governo Dilma Rousseff e é também uma das técnicas responsáveis pela concepção do Programa Bolsa Família, montou uma plataforma que tem como objetivo chamar a atenção para esses retrocessos. É o “Alerta Social – Qual Direito Você Perdeu Hoje?”, que detectou, até o final de julho, mais de 40 ameaças à área social. Cumpre o papel de registrar esses acontecimentos em uma linha do tempo. “Como a velocidade da desestruturação do Estado e do desmonte é muito grande, o ‘Alerta Social’ é uma ferramenta fundamental para contar a história da desorganização do Estado brasileiro”, explica Campello.A ferramenta é uma maneira de expor também sua opinião diante das tentativas de silenciar os ganhos sociais do governo Dilma. “Acho dramático que durante esse período, com tantas mudanças sociais, a imprensa tradicional não tenha me procurado para escutar o contraditório. Não existe a menor preocupação”, revela a ex-ministra. “Não é necessário concordar com a minha opinião. Mas não sou só uma ex-ministra que comandou a área do desenvolvimento social por cinco anos, com reconhecimento no Brasil e no mundo. Fui também a técnica que estava na origem do trabalho do Bolsa Família. Desapareci, a história do Bolsa Família, de 14 anos, desapareceu. Isso é muito grave.”Infográfico: Revista Brasileiros
É inquestionável o sucesso do programa Bolsa Família. Quando começou, em 2003, o Brasil tinha 23,6% de sua população em situação de pobreza e 8,2% em contexto de extrema pobreza (famílias com renda abaixo de R$ 77 mensais por pessoa). Os dados mais recentes, de 2014, demonstram que a pobreza caiu a 7% e a extrema pobreza a 2,5% do total de brasileiros. Os que mais sentiram essas mudanças foram as crianças de até 5 anos.
Significa que 36 milhões de pessoas saíram da linha de extrema pobreza e entraram para o sistema de garantia de direitos do Estado: passaram a ter acesso à Saúde, Educação (condicionalidades para integrar o Bolsa Família), Assistência Social e alimentação. É muito mais que a transferência de renda e tem impactos amplos e profundos. Por exemplo, no primeiro semestre do ano passado, 5,5 milhões de crianças receberam atenção médica básica, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; a mortalidade infantil por desnutrição teve queda de 65% nos municípios onde o Bolsa Família mais se concentra, segundo a ONU; entre 2002 e 2014, a fome no Brasil diminuiu 82%, de acordo com o relatório O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2015; o déficit de estatura, reflexo da desnutrição, das crianças beneficiárias do programa caiu pela metade, indica estudo dos ministérios da Saúde e Desenvolvimento Social com 360 mil crianças entre 2008 e 2012; cerca de 99% das mulheres inscritas no Bolsa Família recebem acompanhamento pré-natal. Com a melhora nas condições de vida, por volta de 3,1 milhões de famílias se desvincularam espontaneamente do programa.
Do ponto de vista da governança, o Bolsa Família também estabeleceu parâmetros complexos que correm o risco de ser desarticulados. Os programas do governo eleito, de todos os ministérios, eram integrados e transversais. “Há, neste momento, uma tentativa de desmembrar e isolar as ações. Construímos um ambiente sofisticado de ação integrada entre Educação, Saúde e Assistência Social. E isso é muito fácil de desorganizar, desmontar, basta não estar mais atento e não valorizar esse trabalho”, alerta Campello.
Não é o Bolsa Família que pesa sobre o Orçamento da União. A dotação de R$ 28,1 bilhões para o programa foi aprovada em agosto de 2015 por deputados e senadores. Esses gastos representam 0,46% do PIB do País ao ano.
Brasília – DF, 21/06/2016. Presidenta Dilma Rousseff acompanhada da Ministra Tereza Campello durante Face to Face no Palácio da Alvorada. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
Saúde e EducaçãoMovimentos recentes do governo Temer indicam que o que deve guiar os investimentos públicos será o congelamento do teto de gastos, Proposta de Emenda Constitucional (PEC 241/2016) anunciada em 15 de junho pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. A medida será votada no Congresso e propõe congelar despesas em todas as áreas por 20 anos. Os gastos do ano seriam corrigidos pela inflação do ano anterior. Segundo Meirelles, caso não seja aprovada, haverá aumento de impostos.
As despesas em Saúde e Educação também seriam reguladas pela PEC. Para investir acima da inflação, o governo teria de remanejar recursos de outra área. “Haverá vinculação das despesas da saúde e educação a esse teto”, afirmou Meirelles. Atualmente, esses gastos da União são vinculados a percentuais mínimos da receita.
É uma medida de austeridade. Tende a cortar benefícios sociais e a compreender o desenvolvimento com foco na redução de gastos e não na diminuição da desigualdade. Essa corrente defende que a dívida pública não pode aumentar mais, sob pena de reduzir investimentos e catapultar para gerações futuras prejuízos graves de emprego e renda. O outro lado sustenta que há ajustes tributários que poderiam preservar os programas e políticas sociais e ao mesmo tempo ajudar a reduzir a dívida pública.
“Ao congelar o gasto federal, a PEC 241 desestrutura o financiamento da política social brasileira ao eliminar a vinculação de receitas destinadas à educação e ao orçamento da seguridade social, que compreende as políticas de saúde, previdência e assistência social”, escreveu o professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo Daniel Arias Vazquez, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, em artigo publicado na Plataforma Política Social. “Trata-se de um duro golpe que quebra a espinha dorsal da Proteção Social no Brasil, estabelecida na Constituição de 1988 e ainda em consolidação”, concluiu, a partir de um estudo que simulou os efeitos da proposta.
O governo Temer dá também outros indícios de um viés conservador. Ideias como um plano de saúde popular, que ameaça a universalidade do sistema público de saúde, vão marcando os primeiros meses de governo interino. Para o ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), o conceito de direito à Saúde também precisa se adequar aos limites orçamentários e essa seria uma maneira de desafogar os gastos com o Sistema Único de Saúde (SUS). “Quando uma pessoa tem um plano, ela está contribuindo para o financiamento da Saúde no Brasil”, disse Barros. “Ela participa dos custos de atendimento da Saúde. Como os planos terão menor cobertura, parte dos atendimentos continuará sendo feita pelo SUS.”
O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, que ocupou o cargo de 2007 a 2011, considera “uma barbárie” essas sinalizações do governo Temer. “Pela primeira vez temos um ministro que fala de maneira clara que quem vai ditar uma política de Saúde é o mercado”, constata Temporão, que foi um dos criadores do SUS. Grazielle David, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), organização da sociedade civil que trata de direitos humanos, afirma que o resultado será a precarização do sistema. “Enquanto as demandas sociais aumentam, com o crescimento e envelhecimento populacional, e com novas tecnologias de saúde cada vez mais caras, a proposta de um novo modelo fiscal que reduz investimentos no setor destina o povo brasileiro à morte com o sucateamento definitivo do SUS”, alerta Grazielle, mestre em Saúde Coletiva e especialista em orçamento público, direito sanitário e bioética.
Na Educação, o governo Temer também acena com mudanças que parecem privilegiar o setor privado. Dos 12 novos nomes indicados para o Conselho Nacional de Educação pelo presidente provisório, após revogar grande parte das indicações de Dilma Rousseff, quatro são pessoas ligadas à iniciativa privada. “Estamos diante de um processo de focalização sobre um determinado nível escolar e privatização dos demais”, afirma Sergio Haddad, economista, doutor em Educação e coordenador geral da ONG Ação Educativa. “Há também um aceleramento de uma lógica de condenação e vigilância do papel do professor do ponto de vista ideológico e que entende o aluno como mero receptor de conteúdo”, completa. Haddad acredita que um dos resultados será a falta de diversidade nas escolas e universidades.
Diante desse cenário, a situação é preocupante. Tramita no Senado o Projeto de Lei 192/2016, do senador Magno Malta (PR-ES), que implementa a “Escola sem Partido” e impede o exercício do pensamento crítico no ambiente escolar. Apesar de negar que apoia a proposta, o ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM-PE), em seu primeiro encontro com representantes da sociedade civil, recebeu o ex-ator Alexandre Frota e participantes do movimento Revoltados Online, defensores da “Escola sem Partido”, tema que teria sido tratado durante a reunião no ministério.
Políticas públicas
A extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário é um sinal óbvio de escolha de prioridades. Com a mudança, as políticas públicas voltadas à agricultura familiar foram alocadas em secretarias especiais ligadas à Casa Civil, assim como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que antes da admissibilidade do impeachment estava no MDS. “Pelo sucesso na erradicação da fome e pelos avanços conquistados em termos de segurança alimentar, tornando-se uma referência internacional, é fundamental que o Brasil mantenha sua capacidade de executar e aprimorar políticas públicas no campo da agricultura familiar resultantes de diálogo entre governo, movimentos e atores sociais”, diz Jorge Romano, coordenador executivo da ActionAid no Brasil, doutor em Ciências Sociais e Desenvolvimento e especialista em desenvolvimento rural. A Action Aid é uma organização internacional que atua no combate à pobreza. Fundada na Inglaterra em 1979, está no Brasil há 17 anos e atua em 13 estados.
No mesmo caminho, a pasta de Direitos Humanos perdeu status de ministério e está sob direção do Ministério da Justiça. Essa reorganização, com o perfil do ministro, Alexandre de Moraes, coloca os direitos humanos no guarda-chuva da segurança pública, e não o contrário. Traz de volta resquícios de uma política que tratava a questão social como “caso de polícia”, herança do ex-presidente Washington Luís (1926-1930). Sinaliza para a possibilidade de apoio à proposta que aumenta a pena de adolescentes que cometerem crimes hediondos, além de reduzir a maioridade penal nesses casos. A PEC 33/2012, do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), aguarda desfecho no Senado e trata exatamente dessas diretrizes. “No campo dos direitos humanos, o propósito é radicalizar o projeto conservador”, define o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp, para quem o presidente interino pratica a “democracia de resultados”.
O quadro atual se afasta muito da teoria de um dos grandes intelectuais brasileiros, o economista Celso Furtado. Segundo Furtado, “o que caracteriza o desenvolvimento é o projeto social subjacente. O crescimento, tal qual o conhecemos, funda-se na preservação dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização. Quando o projeto social dá prioridade à efetiva melhoria das condições de vida da maioria da população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento. Ora, essa metamorfose não se dá espontaneamente. Ela é fruto da realização de um projeto, expressão de uma vontade política.” Entre Celso Furtado e a República Velha, o governo de Michel Temer dá mostras de escolher o segundo caminho no que diz respeito aos direitos e às políticas sociais.
Na manhã desta quinta (2), o ministro do Supremo Tribunal Federal José Antonio Dias Tóffoli reconduziu o jornalista Ricardo Melo à presidência da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). A decisão suspende a nomeação de Laerte Rimoli pelo presidente interino Michel Temer. O presidente em exercício ignorou a lei 11.652/2008, que autoriza a criação da EBC, e garante mandato de quatro anos a seu presidente, independentemente de troca de governo.
A ação faz parte do mandado de segurança impetrado por Melo para garantir o cumprimento do exercício do cargo. A decisão diz “suspender o ato impugnado, até decisão final do presente mandado de segurança, garantindo-se ao Impetrante o exercício do mandato no cargo de Diretor-Presidente da EBC. Notifique-se a autoridade coatora para que preste as informações no prazo de lei. Após, voltem-me os autos conclusos, para apreciação da petição nº 26797/2016.”
Ricardo Melo. Foto: Agência Brasil.
A nomeação de Rimoli foi um ato arbitrário do presidente interino, Michel Temer, no dia 20 de maio. A decisão causou indignação e revolta entre funcionários e servidores da empresa de comunicação pública e reações de seu conselho, com manifestações em diversos dias e locais. A sociedade civil também se manifestou.
Na ocasião, em nota, o Conselho Curador e a Diretoria Executiva da EBC afirmaram: “Ao longo do intenso debate público que levou à criação da EBC, firmou-se a concepção de que o diretor-presidente deveria ter mandato fixo, não coincidente com os mandatos de Presidentes da República, para assegurar a independência dos canais públicos, tal como ocorre nos sistemas de radiodifusão pública de outros países democráticos”, diz a nota. “A exoneração do diretor-presidente da EBC antes do término do atual mandato viola um ato jurídico perfeito, princípio fundamental do Estado de Direito, bem como um dos princípios específicos da Radiodifusão Pública, relacionado com sua autonomia em relação ao Governo Federal.”
Em poucos dias no cargo, Rimoli demitiu cerca de 50 pessoas, fez mudanças radicais na grade de programação (extinguiu três programas) e proibiu o uso do termo “presidenta”, um pedido de Dilma Rousseff cujo uso é correto na língua Portuguesa.
Segundo o manual de redação da EBC, construído coletivamente e em consulta pública, a importância da comunicação pública e sua defesa devem ser superiores aos interesses político-partidários.
Por Gioconda Bretas e Dayanne Holanda, de Brasília, especial para Jornalistas Livres
Nesta sexta-feira (20), foi publicada no Diário Oficial da União nomeação do jornalista Laerte Rimoli como presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). A atitude do presidente interino Michel Temer é uma arbitrariedade, uma vez que o jornalista Ricardo Melo, presidente da EBC até ontem (19), teria mandato de quatro anos, garantido pela lei que criou a EBC.
Rimoli assumiu a empresa dizendo que estava devolvendo a EBC à sociedade, sugerindo que a organização estivesse aparelhada pelo governo de Dilma Rousseff. “Nós vamos devolver esta empresa para a sociedade brasileira e vamos fazer o básico, que é jornalismo. Jornalismo como nós todos conhecemos, arroz com feijão. A empresa não pode servir a outros propósitos que não seja o propósito da informação”, disse Rimoli.
Laerte Rimoli era assessor da secretaria de comunicação na Câmara dos Deputados – e portanto trabalhava muito próximo a Eduardo Cunha, presidente afastado da Câmara – e também coordenou a equipe de comunicação da campanha de Aécio Neves à Presidência, em 2014.
Trabalhadores e trabalhadoras da EBC protestaram em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. “O papel dos veículos de comunicação pública é dar voz aos seguimentos que não encontram voz nos veículos de comunicação privada”, explicou Rita Freire, presidenta do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação. “O conselho curador está aguardando posição da Justiça, estamos numa situação atípica de uma exoneração questionada no Supremo e uma nomeação no Diário Oficial que ja está na empresa, assumindo a gestão, tomando medidas. Essa situação é de um impacto muito grande para a vida dos trabalhadores da EBC”, alerta.
A EBC teve construção participativa e está baseada na lei Lei 11.652/2008, que garante mandato de quatro anos a seus presidentes, indicados pelo Presidente da República. O conselho da EBC tem justamente o papel de preservar a independência da produção editorial de ingerências dos governos. Não nomeia, mas pode indicar a saída de presidentes que não seguirem as diretrizes da empresa. Agora, o governo interino de Temer pode extinguir também o conselho curador da instituição.
“A EBC é um espaço que mostra o Brasil da forma que ele é”, diz uma editora da EBC que não quis se identificar. “A gente tem um receio muito grande de que todo esse projeto que construímos desde a publicação da lei seja extinto ou muito prejudicado.”
Em São Paulo, a censura já começou: a transmissão ao vivo da Virada Cultural, que acontece a partir desta sexta-feira (20) e é realizada pela Prefeitura de SP, foi cancelada na tarde de hoje, assim como toda a cobertura do evento.
O ministro das Cidades, Bruno Araújo (PSDB-PE), revogou nesta terça-feira (17) decisão do governo Dilma Rousseff que autorizava a Caixa Federal a contratar a construção de até 11.250 unidades habitacionais do programa Minha Casa, Minha Vida.
A medida, que faz parte da terceira etapa do programa Minha Casa, Minha Vida, era uma demanda de movimentos de moradia desde o início deste ano e havia sido publicada no Diário Oficial no último dia 11, na véspera do golpe.
Essa etapa seria administrada por entidades escolhidas pelo Governo Federal e atenderia famílias com renda mensal de até R$ 1.800.
Em seu primeiro discurso como presidente interino, Temer garantiu que manteria os programas sociais “que dão certo” –como, segundo ele, o Minha Casa, Minha Vida–, mas disse que iria “aprimorar a gestão”. Segundo ele, nenhuma reforma iria alterar “os direitos adquiridos pelos cidadãos brasileiros”.
“O que aconteceu hoje revela a natureza do governo golpista que se estabeleceu no país”, afirma Guilherme Boulos, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). “Até alguns dias atrás, o discurso do Michel Temer era de que não haveria cortes nas políticas sociais. Hoje vimos que esse governo tem como política cortar programas sociais.”
Para Carmen Silva, dirigente da Frente de Luta por Moradia (FLM), o corte no Minha Casa, Minha Vida representa um retrocesso total. “É sangrar a população carente que não tem onde morar. Isso atinge diretamente mais de 20 mil famílias, significa em torno de 60 mil pessoas, crianças, idosos, pais e mães de família. A atitude desse governo tem que ser avaliada por um tribunal superior e até fora do Brasil. Ele quer respingar todo o ódio conservador em cima de cidadãos honestos que não tem nada a ver com os problemas políticos”, completa. Carmen e Boulos afirmam que os movimentos sociais irão para as ruas denunciar retrocessos, reivindicar diretos e conquistas.