Jornalistas Livres

Autor: Caio Santos

  • IV ENA: um encontro construído por mãos feministas

    IV ENA: um encontro construído por mãos feministas

    Por Patrícia Adriely e Pedro Lovisi

    O IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado entre os dias 31 de maio a 03 de junho em Belo Horizonte, reuniu agricultores, agricultoras e ativistas de diversas regiões brasileiras. O evento, que ocorreu principalmente no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, teve como tema central “Agroecologia e democracia unindo campo e cidade”. Entretanto, ao longo dos debates, uma questão específica se mostrou extremamente forte: o feminismo. Onde quer que olhássemos, víamos mulheres – jovens, senhoras, negras e brancas. Porém, essa constatação ia além de um público notório e massivamente feminino. Naquele espaço de discussão, um lema era crucial: “Sem feminismo, não há agroecologia”.

    Fotografia por Lucas Bois / Jornalistas Livres

    Para que o IV ENA se tornasse realidade, um batalhão feminino colocou a “mão na massa” e assumiu posições de liderança, conforme explicou Leninha de Souza, que faz parte do núcleo executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e atuou em diversas comissões para realização do ENA. “A organização foi composta por mais de 50% de mulheres. Na comissão organizadora local, 70% do grupo era feminino. Em todas as frentes de organização, elas estavam no comando”.

    Fotografia por Lucas Bois / Jornalistas Livres

    Para a secretária executiva da Articulação Mineira de Agroecologia (AMA), Anna Cristina Alvarenga, que trabalhou na articulação política do encontro, “isso significa que as mulheres não estão vendo um protagonismo apenas em quantidade, mas em qualidade, e estão assumindo o seu papel de protagonistas nas construções políticas da agroecologia no Brasil”.

    Anna também ressaltou o trabalho feito para estimular a participação feminina no evento. Segundo ela, houve uma atuação para que os grupos participantes do ENA fossem compostos por 50% de mulheres, no mínimo. “Pensamos as delegações a partir de um processo político, para garantir a participação efetiva das mulheres do campo”.

    Segundo Lorena Anahí, que atuou na comissão de metodologia e na comissão executiva nacional, esse fato é uma marca do encontro. “Ficou muito claro a força das mulheres e que sem feminismo não há agroecologia. Elas estiveram em todos os espaços de construção do ENA. Assim como comer é um ato político, a nossa prática cotidiana é um ato político”.

    A programação do encontro contou com diversas atividades com foco nas mulheres. Logo no primeiro dia, foi realizada uma plenária destinada a elas. Além disso, o Grupo de Trabalho Mulheres da ANA comandou um seminário com o tema “Sem feminismo, não há agroecologia”.

     

     

    Fotografia por Lucas Bois / Jornalistas Livres
  • Contra o Aumento da Tarifa do Metrô em Belo Horizonte

    Contra o Aumento da Tarifa do Metrô em Belo Horizonte

    Análise por André Veloso,
    economista e ativista do Tarifa Zero

    Bom, o governo Temer acaba de atacar uma das últimas e únicas políticas públicas progressistas na área de mobilidade urbana (e no geral também) que faltavam. Cortou recursos para a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) e está acabando com o subsídio tarifário, enfiando nossa goela abaixo um aumento de quase 100%, sob a chantagem de parar o metrô de Belo Horizonte, caso não ocorra. Outras quatro capitais, Recife, João Pessoa, Natal e Maceió, também terão aumento no valor da tarifa de metrô.

    É evidente que, assim como tem feito com outras estatais, o governo federal está seguindo a lógica de sucatear para depois privatizar.

    É uma merda, mas infelizmente era ingenuidade achar que a CBTU ia passar incólume antes do fim do mandato do temeroso.

    O mais cruel, de novo, é que todas as políticas do governo vão na carne dos mais pobres. Em Belo Horizonte, a tarifa do metrô estava congelada desde 2006, a R$1,80. Ainda vou fazer o cálculo detalhado, mas é fácil dizer que em 12 anos o preço real do metrô diminuiu pela metade, enquanto o preço real da tarifa de ônibus aumentou. Isso porque para o busão houve reajustes acima da inflação.

    A consequência, pelo menos durante o período de redistribuição de renda dos últimos anos, foi um enorme aumento no uso do transporte e número de viagens realizadas pela população de mais baixa renda (ver tabela). Uma política democrática, de inclusão, que agora está na mira de quem quer ver o pobre longe da cidade.

    Essa política pública (que era também uma política de preços) era real e concreta, mudou a vida das pessoas em seu cotidiano. É por isso, que apesar da barbárie crescente, temos que nos organizar, resistir, tomar a política pública para nós na marra.

     

    Hoje, 11/05, tem ato unificado contra o aumento tarifário. Às 17h, na Praça Sete. Bora lá, pras ruas, de novo. Resistir e construir.

  • Žižek: A atualidade de Marx

    Žižek: A atualidade de Marx

    Por Slavoj Žižek.
     ARTIGO ENVIADO PELO AUTOR DIRETAMENTE PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO.
    A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO

    Quando penso no bicentenário de Karl Marx comemorado este ano, logo me ocorre uma deliciosa piada soviética sobre a rádio Yerevan. Um ouvinte pergunta: “É verdade que Rabinovitch ganhou um carro novo na loteria?”. E a rádio responde: “A princípio, é verdade, sim. Só que não foi um carro novo, foi uma bicicleta velha, e ele não ganhou ela, ela lhe foi roubada.” Não seria possível dizer que algo semelhante não vale também para o destino do ensinamento de Marx hoje, 200 anos após seu nascimento?

    Perguntemos à rádio Yerevan: “É verdade que Marx ainda é atual hoje?”. E já dá para adivinhar que tipo de resposta teríamos: “A princípio, sim, ele descreve maravilhosamente a dança louca das dinâmicas do capitalismo, que só atingiu seu auge hoje, mais de um século e meio depois de seus escritos, mas… Gerald A. Cohen enumerou os quatro atributos fundamentais da noção marxista clássica de classe trabalhadora: (1) ela constitui a maioria da sociedade; (2) ela produz a riqueza da sociedade; (3) ela consiste dos membros explorados da sociedade; (4) seus membros são os necessitados da sociedade. Quando combinam-se esses quatro atributos, geram-se mais dois: (5) a classe trabalhadora não tem nada a perder com uma revolução; (6) ela pode e irá iniciar uma transformação revolucionária da sociedade.1 Não se pode dizer que os quatro primeiros atributos se aplicam à classe trabalhadora atual. É por isso que não se pode produzir os enunciados (5) e (6). (Ainda que algumas das características possam ser válidas para certas partes da sociedade atual, elas não estão mais unificadas em um único agente: os necessitados na sociedade não são mais os trabalhadores, etc.)

    O impasse histórico do marxismo não repousa apenas no fato de que ele contava com a perspectiva da crise derradeira do capitalismo e portanto não podia dar conta de explicar como o capitalismo saía de cada crise fortalecido. Há um equívoco ainda mais trágico em operação no corpo clássico do marxismo, descrito de maneira muito precisa por Wolfgang Streeck: o marxismo estava certo a respeito da “crise final” do capitalismo; é evidente que estamos adentrando ela hoje, mas essa crise é simplesmente isso, um processo prolongado de corrosão e desintegração, sem que haja uma Aufhebung hegeliana fácil à vista, sem que haja nenhum agente para conferir a essa corrosão uma virada positiva e transformá-la em passagem para algum nível mais elevado de organização social:

    “É um preconceito marxista – ou melhor, modernista – que o capitalismo enquanto época história somente irá se encerrar no momento em que uma sociedade nova e melhor estiver à vista, e em que houver um sujeito revolucionário disposto para implementá-la para fazer avançar a humanidade. Isso pressupõe um grau de controle político sobre nosso destino comum com o qual não podemos nem sonhar depois da destruição da autonomia coletiva (e inclusive da esperança por ela) realizada na revolução neoliberal-globalista.”2

    A visão de Marx era a de uma sociedade gradualmente se aproximando de sua crise final, uma situação marcada pela simplificação da complexidade da vida social a um grande antagonismo entre os capitalistas e a maioria proletária. No entanto, até mesmo um rápido panorama das revoluções comunistas do século XX já deixa claro que essa simplificação nunca efetivamente chegou a ocorrer: os movimentos comunistas radicais sempre estiveram circunscritos a uma minoria vanguardista que, para obter hegemonia, precisava aguardar pacientemente uma crise (geralmente uma guerra) que fornecia uma estreita janela de oportunidade. Em tais situações, uma autêntica vanguarda tem a chance de pode aproveitar o momento, mobilizar o povo (ainda que não a maioria de fato) e tomar o poder. Aqui, os comunistas sempre se mostraram totalmente “não-dogmáticos”, prontos para se colarem a outras pautas: terra e paz na Rússia, libertação nacional e unidade contra a corrupção na China, por exemplo… Eles sempre tiveram plena consciência de que a mobilização acabaria logo e tratavam de preparar cuidadosamente o aparato de poder para garantir sua manutenção no poder naquele momento. (Em contraposição à Revolução de Outubro, que explicitamente tratou os camponeses como aliados secundários, a Revolução Chinesa sequer fingiu ser proletária: ela abordou diretamente os agricultores como sua base.)

    grande problema do marxismo ocidental (e até mesmo do marxismo como tal) era a ausência do sujeito revolucionário: como explicar que a classe trabalhadora não conclui a passagem do em-siao para-si de forma a constituir enquanto agente revolucionário? Esse problema fornecia a principal raison d’être do recurso à psicanálise, evocada no interior dessa tradição precisamente para dar conta de explicar os mecanismos libidinais inconscientes que bloqueiam o surgimento da consciência de classe inscrita no próprio ser (situação social) da classe trabalhadora. Dessa forma, salvou-se a verdade da análise socioeconômica marxista: não havia motivo para renunciar a teorias “revisionistas” sobre a ascensão das classes médias etc.

    É por essa mesma razão que o marxismo ocidental também sempre se mostrou atento a outros atores sociais que poderiam desempenhar o papel de agente revolucionário, como o suplente substituindo a classe trabalhadora indisposta: campesinos do Terceiro Mundo, estudantes e intelectuais, os marginais excluídos… A versão mais recente dessa ideia recorre aos refugiados: somente um influxo de um número muito grande de refugiados seria capaz de revitalizar a esquerda radical europeia. Essa linha de pensamento é profundamente obscena e cínica. Para além do fato de que tal desdobramento certamente impulsionaria enormemente a violência contra os imigrantes, o aspecto realmente insano dessa ideia é o projeto de se preencher a lacuna dos proletários ausentes importando-os do exterior, de forma que teríamos a revolução por meio de um agente revolucionário substituto terceirizado.

    É possível identificar o fracasso da classe trabalhadora enquanto sujeito revolucionário já no próprio núcleo da revolução bolchevique. A arte de Lênin foi saber detectar o “potencial de raiva” (Sloterdijk) dos camponeses insatisfeitos. A Revolução de Outubro foi vitoriosa em larga medida por conta do lema “paz, terra e pão” direcionado para a vasta maioria de camponeses, agarrando o breve momento de radical insatisfação desse setor. Lênin já estava pensando nessa linha uma década antes das Teses de Abril, e por isso temia o possível êxito das reformas agrárias de [Piotr] Stolypin que visavam criar uma nova e forte classe de camponeses independentes. Ele escreveu que se o projeto de Stolypin fosse bem sucedido, estaria perdida, por décadas, a oportunidade de uma revolução.

    Todas as revoluções socialistas exitosas, da cubana à iugoslava, seguiram esse modelo: agarrou-se a oportunidade em uma situação crítica extrema, cooptando a libertação nacional ou outros “capitais de raiva”. Aqui, é claro, um partidário da lógica marxista hegemônica prontamente assinalaria que essa é justamente a lógica “normal” do processo revolucionário: é única e precisamente através de uma série de equivalências entre múltiplas demandas, sempre radicalmente contingentes e dependentes de um conjunto específico (singular, até) de circunstâncias, que atinge-se efetivamente a “massa crítica” necessária. Uma revolução nunca ocorre quando todos os antagonismos se reduzirem ao grande antagonismo, mas quando eles combinam sinergicamente suas forças.

    O ponto não é apenas que a revolução perdeu o bonde da História e deixou de seguir as suas leis imanentes, pois na verdade não há História, pois a história é um processo contingente, aberto. O problema é outro: é como se houvesse uma Lei da História, uma linha mestra predominante mais ou menos clara de desenvolvimento histórico, e que nesse contexto uma revolução só poderia ocorrer nos interstícios desse processo enquanto um fenômeno “contra a corrente”. Por isso, os revolucionários precisam aguardar pacientemente surgir o momento (geralmente muito breve) em que o sistema abertamente entra em pane ou colapsa, se aproveitar da janela de oportunidade, agarrar o poder que naquele momento se apresenta como que caído no chão, suscetível a ser reivindicado, e depois logo cuidar de fortificar seu domínio sobre o poder, construindo aparatos repressivos etc. de forma que quando passar o movimento de confusão e a maioria retomar a sobriedade e se desapontar com o novo regime, já será tarde demais para se livrar dele, dado seu firme enraizamento.

    Os comunistas também sempre calcularam cuidadosamente o momento certo para interromper a mobilização popular. Tomemos o caso da Revolução Cultural Chinesa, que sem dúvida continha elementos de uma utopia efetivamente encenada. Logo no seus últimos momentos, antes da agitação ser barrada pelo próprio Mao (já que ele já havia atingido seu objetivo de re-estabelecer seu pleno poder e se livrar da mais alta concorrência da nomenclatura), ocorreu a “Comuna de Shanghai”: um milhão de trabalhadores que simplesmente levaram a sério os lemas oficiais, exigindo a abolição do Estado e até mesmo do próprio partido, e queria uma organização comunal direta da sociedade. Não é à toa que foi justamente nesse momento que Mao optou por convocar o exército para intervir e restaurar a ordem. Trata-se do paradoxo do líder que suscita um levante incontrolável ao mesmo tempo em que busca exercer pleno poder pessoal: a sobreposição entre ditadura extrema e emancipação extrema das massas.

    A questão da continuada relevância da crítica da economia política de Marx na nossa era atual de capitalismo global precisa portanto ser respondida de maneira propriamente dialética. Afirmemos não apenas que ainda hoje a crítica da economia política de Marx, seu raio x das dinâmicas do capital, permanece totalmente atual, mas mais do que isso, afirmemos que é apenas hoje, com o capitalismo global, que, Marx atingiu sua plena atualidade. Ou, para falar em hegelianês, apenas hoje a realidade atingiu seu conceito. Dito isso, no entanto, intervém aqui uma inversão propriamente dialética: pois é neste exato momento de plena atualidade que precisa aparecer a limitação, o momento do triunfo é também o da derrota. Depois de superar os obstáculos externos, a nova ameaça vem de dentro, assinalando a inconsistência imanente. Quando a realidade atinge plenamente seu conceito, esse conceito mesmo precisa ser transformado. Aí reside o paradoxo propriamente dialético: não se trata de dizer que Marx estava simplesmente errado, ele muitas vezes se provou acertadíssimo, mas mais literalmente do que ele imaginava.

    Tomemos a questão do “fetichismo da mercadoria”, por exemplo. Há uma clássica piada sobre um homem que acredita ser um grão de milho e é levado a uma instituição mental em que os médicos fazem de tudo para finalmente convencê-lo de que ele não é um grão de milho mas sim um ser humano. Quando ele recebe alta (convencido de não ser um grão de milho mas sim um homem) e permitem que ele saia do hospital, ele imediatamente volta tremendo. Há uma galinha na porta e ele teme que ela irá comê-lo. “Meu caro”, diz o médico, “você sabe muito bem que você não é um grão de semente e sim um homem.” “É claro que eu sei”, responde o paciente, “mas a galinha sabe disso?” O que isso tem a ver com o conceito de fetichismo da mercadoria? Leiamos o que dizem as palavras iniciais do subcapítulo sobre o fetiche da mercadoria n’O capital, de Marx: “Uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Mas sua análise a revela como uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e caprichos teológicos.” (p. 146) O fetichismo da mercadoria (nossa crença de que as mercadorias são objetos mágicos dotados de poder metafísico inerente) não está situado em nossa mente, na forma distorcida pela qual percebemos a realidade, mas em nossa própria realidade social. Podemos até saber a verdade, mas agimos como se não a soubéssemos – na nossa vida real, agimos como o sujeito da piada.

    É assim que a ideologia opera na nossa era de cinismo: não é preciso “crer” nela. Ninguém leva a democracia ou a justiça a sério, todos nós estamos cientes de como essas instâncias são corruptas, mas mesmo assim nós participamos delas – em outras palavras, nós demonstramos nossa crença neles – porque assumimos que elas funcionam mesmo que nós não acreditemos nelas. O mesmo vale para a religião: nós “realmente cremos” nelas, apenas seguimos (alguns dos) rituais e costumes religiosos como parte do respeito pelo “estilo de vida” da comunidade à qual pertencemos (judeus não-crentes obedecendo as regras da alimentação kosher “em respeito à tradição”, por exemplo). “No fundo, eu não acredito nisso, é só parte de minha cultura” parece ser o modo predominante da crença deslocada característica de nossos tempos. É por isso que dispensamos os crentes fundamentalistas como “bárbaros” ou “primitivos”, como anticulturais, como uma ameaça à cultura: eles ousam levar a sério suas crenças. A era cínica em que vivemos não surpreenderia em nada Marx. As teorias de Marx portanto não estão simplesmente vivas: Marx é um fantasma que continua a nos assombrar, e a única forma de mantê-lo vivo é concentrarmos nos insights deles que hoje são mais verdadeiros do que em seu próprio tempo.

    Então como ficamos? Devemos descartar os textos de Marx como documentos interessantes do passado e nada mais? Em um paradoxo dialético, os próprios impasses e fracassos do comunismo do século XX, impasses que eram claramente ancorados nas limitações da visão de Marx, ao mesmo tempo comprovam sua atualidade: a solução marxista clássica fracassou, mas o problema permanece. Hoje, o comunismo não é o nome de uma solução, é o nome de um problema, o problema dos comuns em todas as suas dimensões: os comuns da natureza enquanto substância da nossa vida, o problema de nossos comuns biogenéticos, o problema de nossos comuns culturais (“propriedade intelectual”), e, last but not least, os comuns enquanto espaço universal da humanidade do qual ninguém deve ser excluído. Qualquer que seja a solução, ela terá necessariamente de enfrentar esses problemas.

    Nas traduções soviéticas, o famoso comentário de Marx a seu genro Paul Lafargue, “Ce qu’il y a de certain, c’est que moi je ne suis pas marxiste”, ficou “Se isso é marxismo, então eu não sou marxista”. Esse erro de tradução transmite perfeitamente a transformação do marxismo em um discurso universitário: para o marxismo soviético, até mesmo o próprio Marx seria um marxista que participava do mesmo conhecimento universal que constitui o marxismo. O fato de que ele tenha criado o ensinamento posteriormente conhecido como “marxismo” não constitui exceção alguma de forma que a negação expressa por ele só se refere a uma versão específica equivocada que falsamente se proclamaria “marxista”. Na verdade, o que Marx queria dizer era algo mais radical: uma lacuna separa o próprio Marx – o criador que possui uma relação substancial diante de seus ensinamentos – dos “marxistas” que seguem seus ensinamentos. Há uma conhecida piada dos irmãos Marx em Os Galhofeiros (1931) que transmite bem essa lacuna. O capitão Spaulding pergunta: “Você se parece muito com o Emanuel Ravelli. Você é irmão dele?” Ao que o sujeito responde: “Mas eu sou Emanuel Ravelli.” E Spaulding simplesmente rebate: “Então não é à toa que você se parece com ele! Mas insisto, há uma semelhança.” O sujeito que é Ravelli não se parece com ele, ele simplesmente é Ravelli. E, da mesma forma, o próprio Marx não é um marxista (um dentre os marxistas); ele é o ponto de referência eximido da série. É a referência a ele que faz dos outros marxistas. E a única forma de se permanecer fiel a Marx hoje é de não ser mais um “marxista”, mas sim de repetir o gesto fundador de Marx de uma nova maneira.

     

  • Pistoleiros cometem atentado contra ocupação rural no Norte de Minas

    Pistoleiros cometem atentado contra ocupação rural no Norte de Minas

    Uma ocupação rural foi atacada por pistoleiros nessa quinta-feira, 8 de março, em uma fazenda no município de Capitão Enéas, no Norte de Minas Gerais. Homens armados renderam as famílias que estavam no local, agredindo mulheres e crianças. Ao todo, seis pessoas ficaram feridas, quatro foram golpeadas com coronhadas e duas baleadas. Entre os feridos, o mais grave é a liderança do movimento, Thiago Coimbra Silva, 31 anos. Ele chegou a correr risco de perder a vida e, atualmente, respira com ajuda de aparelhos.

    O atentado aconteceu durante a tarde na Fazenda Norte América, a 6 km da cidade. Jagunços levados por um caminhão-baú chegaram disparando contra famílias ligadas ao FNL (Frente Nacional de Luta) que ocupam a propriedade. Somente após o incidente a Polícia Militar chegou ao local. Nove pessoas foram presas, dentre elas um advogado a serviço do suposto proprietário do terreno. Nenhum órgão público divulgou seu nome, mas o MST, que também atua na região, o identificou como o ruralista Leonardo Andrade: “A fama sobre a violência deste latifundiário e seu envolvimento em casos de corrupção, ligados a Ruy Muniz, ex-prefeito de Montes Claros, é amplamente conhecida nas terras mineiras”, afirmou a direção do movimento.

    Em coletiva de imprensa, o delegado Jurandir Rodrigues César Filho afirmou que tudo indica que o atentado foi encomendado pelo suposto dono. Após interrogatório, o motorista do caminhão assumiu que tinha recebido R$ 400 para ajudar na fuga dos pistoleiros.

    LEONARDO ANDRADE E TIROTEIOS

    Não é a primeira vez que sem-terras recebem bala em Capitão Enéas. A propriedade é ocupada desde janeiro do ano passado tanto pelo Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) quanto pelo FNL. A área era improdutiva e os movimentos apontaram diversos indícios que era utilizada como lavagem de dinheiro por Ruy Muniz e seus sócios. A fazenda possui uma dívida milionária com um banco após ser arrematada pelo grupo Soebrás (Sociedade de Educativa do Brasil). A dívida nunca foi paga. A Soebrás seria uma das várias entidades filantrópicas e empresas utilizadas por Ruy Muniz para desviar recursos federais e da prefeitura de Montes Claros. Por tais desvios, o ex-prefeito foi detido em setembro de 2016, assim como seus sócios. Leonardo Andrade se destaca porque além de ser sócio do grupo, ocupou o cargo de secretário de Desenvolvimento Sustentável, Meio Ambiente e Agricultura durante a gestão de Muniz.

    O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) assume que foi procurado por um advogado, supostamente representando Leonardo Andrade. Ele havia se disposto a vender as terras ao Instituto, que, por sua vez, as destinaria à criação de um assentamento. No entanto, o ruralista nunca entregou documentos comprovando a posse da terra e, por isso, o processo nunca avançou.

    O ataque ao FNL não é o primeiro do fazendeiro. Em abril de 2017, Leonardo Andrade organizou uma emboscada contra militantes do MST. Os sem-terra se dirigiam para uma reunião proposta pelo ruralista na sede da fazenda, mas, no meio da estrada, eles foram recebidos a balas. Várias pessoas se feriram, inclusive uma criança de dez anos, atingida de raspão no rosto. Mais três pessoas foram baleadas e levadas ao hospital. Testemunhas indicam que Leonardo Andrade estava no local assistindo enquanto seus capangas disparavam contra as famílias.

  • Indígenas, Negros, Periféricos, Feministas: novas forças políticas se preparam para 2018

    Indígenas, Negros, Periféricos, Feministas: novas forças políticas se preparam para 2018

    “Sou mulher, sou indígena e trago a voz dos povos calados pelas forças do agronegócio, pelas forças do capitalismo”, discursava Sonia Guajajara, enquanto anunciava sua pré-candidatura à presidência da República em 2018. Coordenadora executiva da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e uma das principais lideranças indígenas do Brasil, seu nome já havia sido proposto pelo Setorial Ecossocialista do PSOL, mas foi apenas neste sábado que a índia maranhense aceitou publicamente entrar na corrida eleitoral. “Está na hora de reavaliarmos: até quando vamos ficar apenas na linha de resistência? Acho que é sim hora de dar um passo à frente, de ocupar a política desse país. Então, por que não uma indígena? ”.

    Sonia Guajajara. Fotografia por Caio Santos/ Jornalistas Livres

    A notícia foi dada no #OcupaPolítica, evento que reuniu diversos ativistas e movimentos sociais para debater os caminhos para as eleições de 2018. O encontro ocorreu neste fim de semana em Belo Horizonte e trouxe mais de 300 ativistas de 21 estados brasileiros, 50 cidades e cinco países. “Temos que ampliar nossa presença em espaços de poder”, explica Áurea Carolina, vereadora (PSOL) em Belo Horizonte e participante do movimento Muitas pela Cidade que Queremos. “Nós deixamos um espaço na programação para que todos aqui que tenham intenção de se candidatar em 2018 se coloquem. Assim, podemos ver como colaborar para que essas candidaturas se viabilizem”.

    Dezenas de pessoas manifestaram seu desejo de se candidatar, entre indígenas, quilombolas, periféricos, mulheres, negros e LGBTs. No entanto, menos do que o lançamento de um indivíduo como representante, as candidaturas e os eventuais mandatos servirão para a construção de uma experiência democrática mais radical e participativa.

    Mandatos e Candidaturas coletivas para 2018

    A advogada Anjuli Tostes, do grupo O DF é Nosso,anunciou sua pré-candidatura pelo PSOL ao governo do Distrito Federal. Ela, junto com outros três ativistas, propõe construir um programa de forma coletiva, inspirando-se na experiência da Muitas pela Cidade que Queremos, em Belo Horizonte. O movimento mineiro chamou atenção durante a campanha eleitoral de 2016. A legenda se comprometia em construir mandatos coletivos, transparentes e representativos e dedicava-se à inclusão de mulheres, negros e LGBTs. Com a bandeira “votou em uma votou em todas”, a iniciativa deu certo: a cientista política Áurea Carolina, com um discurso antirracista e feminista, foi a candidata mais votada na cidade, com 17.420 votos. Ela e a dramaturga Cida Falabella, que também conseguiu se eleger, retiraram a divisória de seus respectivos gabinetes ao chegarem na Câmara Municipal e criaram um espaço comum para as duas vereadoras. A “Gabinetona” se sustenta por um princípio de horizontalidade, que serviu para inaugurar diversas práticas e para construir um mandato mais participativo e inclusivo, como a criação de laboratórios e grupos fortalecedores.

    O desafio agora será ver se essa experiência também consegue funcionar em uma escala maior. A Muitas anunciou que vai lançar nomes para disputar cargos legislativos nas esferas estaduais e federais em 2018, sendo Áurea Carolina a pré-candidata para o congresso federal. “Vamos fazer uma gabinetona universal poligabinetona, plurigabinetona. O amor vencerá. O amor vai ser nossa chave” discursou a vereadora.

    Movimento Muitas pela Cidade que Queremos anuncia pré-candidaturas para congressos estadual e federal. Fotografia por Pedro Maia.

    Outra frente compromissada com a defesa dos direitos humanos e da construção de um mandato transparente, a Bancada Ativista conseguiu eleger em 2016 a vereadora mais jovem na cidade de São Paulo: a líder feminista Sâmia Bonfim. Para o próximo ano, eles planejam tentar algo ainda mais radical. “A gente precisa se desafiar a construir um processo coletivo, que ouse identificar uma unidade naquilo que parece muito diverso e muito disperso”, disse a vereadora. Inspiradas na experiência belorizontina, a Bancada propõe fazer uma candidatura coletiva para deputado estadual no próximo ano. “Serão entre 10 a 15 candidatos, compostos por vários ativistas, cobrindo o maior número possível de causas, lutas e territórios”, explica Márcio Black, membro da Bancada Ativista. “A ideia é que para todos esses nomes haja somente um número, para dar unidade. Todas as decisões serão feitas com base no diálogo e no consenso”.

     Pensando para além das eleições

    A maioria das atividades do #OcupaPolítica aconteceram em uma ocupação urbana, a Ocupação Carolina Maria de Jesus. Reivindicando o direito constitucional à moradia digna, cerca de 200 famílias ocuparam um prédio no Bairro Funcionários, região nobre de Belo Horizonte. Umas das representantes da ocupação, Poliana Souza reconhece a importância das eleições de 2018, no entanto, pensa que vitórias nas urnas não é o suficiente para melhorar a atual conjuntura do Brasil. “Eu não acredito que uma eleição vá resolver os problemas da classe trabalhadora. Precisamos sim disputar esse espaço, mas ele não é a solução de nossos problemas. A solução é o povo organizado na rua fazendo luta”.

    Já o analista político e editor do site Outras Palavras, Antônio Martins, considera que independentemente de quem assumir os cargos executivos em 2018, eles estarão limitados a vários retrocessos impostos pelo Governo Temer. “Por mais de esquerda que seja o presidente, ele estará submetido a PEC de Teto de Gastos Sociais, a contrarreforma trabalhista, a contrarreforma do Ensino Médio, a entrega do Pré-Sal”.  Como alternativa, ele defende unificar as diversas frentes da esquerda com o compromisso de colocar as principais medidas de Temer à consulta popular. “Essas medidas são ilegítimas porque foram propostas por um governo não eleito e por um congresso corrupto. Então, precisamos submetê-las a referendos revogatórios, em que a sociedade pode decidir diretamente sobre seu futuro”.

    Para o analista político, Antônio Martins, é necessário se unificar na proposta dos referendos revogatórios. Fotografia por Mídia Ninja.
  • Fotografias da Passeata contra a Intolerância Religiosa em Belo Horizonte

    Fotografias da Passeata contra a Intolerância Religiosa em Belo Horizonte

    O fotógrafo dos Jornalistas Livres, Maxwell Vilela, documentou a manifestação pela liberdade religiosa na capital mineira, ocorrida durante a tarde deste domingo, 22 de Outubro de 2017. A marcha percorreu a região central de Belo Horizonte, reunindo diferentes grupos religiosos. Apesar da diversidade de fés presentes na manifestação, houve consenso entre os devotos que as religiões mais atacadas são as de matriz africana, como a Umbanda, o Candomblé entre outras crenças.

    Segundo dados apurados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e divulgados no começo de 2017, o Brasil teve quase 700 denúncias de intolerância religiosa entre os anos de 2011 e 2015. Destes casos, 71,15% foram contra religiões  afro-brasileiras. O Rio de Janeiro é o estado que lidera em número as agressões, seguido por Minas Gerais e São Paulo.