Jornalistas Livres

Autor: Aloisio Morais

  • Djonga é o primeiro rapper brasileiro indicado a disputar o BET Hip Hop

    Djonga é o primeiro rapper brasileiro indicado a disputar o BET Hip Hop

    O músico mineiro Djonga foi indicado para concorrer ao troféu de melhor artista internacional no BET Hip Hop Awards, especializado em hap e hip hop. O rapper, compositor e historiador é o primeiro brasileiro a ser reconhecido pelo evento. O BET Hip Hop Awards é uma premiação norte-americana anual realizada pela Black Entertainment Television e voltada para rappers, produtores e diretores de videoclipes de hip hop e Rap. 

    Ele vai disputar o prêmio com Kaaris (França), Khaligraph Jones (Quênia), Meryl (França), MS Banks (Reino Unido), Nasty C (África Do Sul) e Stormzy (Reino Unido). O BET Hip Hop Awards revelará os vencedores do ano no dia 27 de outubro.

    Neste ano, Djonga lançou seu quarto álbum de estúdio, Histórias da Minha Área, onde conta um pouco sobre o bairro Santa Efigênia, onde mora em Belo Horizonte. O trabalho conta com participações de MC Don JuanBia NogueiraCristal, NGC Borges e FBC

    Depois de surgir como grande astro na cena do hip hop nacional e colocar seu nome entre os principais personagens da cena do rap no país, Gustavo Pereira Marques (seu nome de batismo) acaba de fazer história aos 26 anos tornando-se o primeiro brasileiro a ser indicado ao prestigiado BET Hip Hop Awards, premiação musical focada na cultura negra. 

    A indicação de Djonga aconteceu nesta terça-feira, 29, e ele concorre na categoria Melhor Artista Internacional. “Cravando o nome na pedra, sem emocionar!”, escreveu Djonga no Twitter ao dar a notícia. Na postagem, ele publicou um vídeo em que fala à MTV sobre a importância do rap no período da pandemia: “O rap tem que continuar fazendo o papel de sempre. O primeiro papel, e mais importante, é o papel de arte, de música, de levar alegria e reflexão para as pessoas. Em segundo lugar, continuar denunciado o que a gente sempre denunciou. Dedo na ferida, dedo na cara de quem tá errado”.

  • O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, nos interpela

    O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, nos interpela

    A convite do ator Celso Frateschi assisti e comentei a peça teatral “O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, que é de leitura indispensável. O Grande Inquisidor é um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski: “Os Irmãos Karamazov”, publicado como uma série no Mensageiro Russo, de janeiro de 1879 a novembro de 1880.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Assistir à belíssima apresentação de O Grande Inquisidor com Celso Frateschi foi para mim um momento inesquecível e fez passar um filme na minha cabeça. Recordou-me as muitas vezes em que, como a maioria do povo brasileiro, eu também senti na pele estar sob certo tipo de inquisição por algum Grande Inquisidor. A peça O Grande inquisidor me fez recordar quando eu trabalhava em latifúndios como família agregada. Ao ver nossa produção, fruto da mãe terra e do nosso trabalho, sendo levada no caminhão do fazendeiro, dois gritos irrompiam no meu coração: “Isso não é justo!”,  “Isso não é justo!” e “Deus não quer isso!”, “Deus não quer isso!”  Esses gritos retinam nos meus ouvidos para sempre. Marcado por essa experiência de ser explorado pelo latifúndio e por latifundiários, tenho dedicado minha vida a lutar por justiça no seu sentido mais profundo: justiça agrária, justiça urbana, justiça ambiental e respeito aos direitos humanos fundamentais. A violência perpetrada pelo Grande Inquisidor, seja ele cardeal, latifundiário ou outro carrasco gera indignação nas pessoas violentadas.

    Andar na contramão do Grande Inquisidor exige muito amor, paixão pela causa dos violentados e coragem. Segundo Dostoiévski, em O Grande Inquisidor, em Sevilla do século XVI, na Espanha, em tempos de chumbo e auge da mais terrível inquisição, Jesus Cristo reaparece esbanjando ternura, amor, afabilidade, com uma luz irradiante de amor que humanizava o ambiente. Porém, Jesus é submetido a um cruel processo inquisitorial por um cardeal. Eis uma metáfora da nossa realidade de mundo sob cruel superexploração, em 2020, e especialmente do Brasil, país imerso novamente em violência generalizada, tortura, com relações sociais escravocratas e ditadura, de mil formas. Muitas afirmações e perguntas de O Grande Inquisidor são emblemáticas e nos interpelam, tais como: “Por que vieste para nos estorvar?”, “Como pode um rebelde ser feliz?”, “Que liberdade é essa se a obediência é comprada com pão?”, “Os homens anseiam por comunidades de culto”, “Tu vieste só para os eleitos?”, “Quem retém o pão em suas mãos?”, “Mesmo que haja outra vida, não será para escravos obedientes”, “Não digas nada”, “Cala-te!”, “Te julgarei e te condenarei como o maior dos hereges”, “Não existe nada mais insuportável para a humanidade que a liberdade”, “Nada é mais irresistível que a atração do pão”, “Existem três poderes, três forças na terra: o milagre, o mistério e a autoridade”, “O homem busca muito mais o milagre do que Deus”, “Tu mereces ser queimado na fogueira da inquisição”, “Os grãos de areia são fracos, mas se amam”, “Amanhã eu te queimarei”, “Vá e não voltes nunca mais!”, e tantas outras afirmações e perguntas que cortam como navalha.

    O ator Celso Frateschi

    Realmente, há no meio do povo ânsia imensa por “comunidades religiosas de culto”. O fundamentalismo religioso do neopentecostalismo está sendo trombeteado aos quatro ventos por igrejas eletrônicas que reduzem Deus a um quebra-galho, autoajuda e fomentando uma falsa teologia, que é a chamada Teologia da Prosperidade, afundando as pessoas em água benta, em desencarnação da fé cristã e em amputação da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Orar faz bem, mas não qualquer tipo de oração, pois há determinados tipos de oração que transferem para Deus responsabilidades que são nossas.

    Faz necessário recordar que o bom pastor do capítulo dez do Evangelho de João, na Bíblia, convida as ovelhas para saírem do curral e as conduz para verdes pastagens, para campo aberto – espaço de liberdade, não abstrata, mas com condições objetivas que viabilizem o ser livre efetivamente. Lamentavelmente, no neopentecostalismo brasileiro, os falsos líderes religiosos, sejam padres ou pastores, incitam o povo a ficar entocado nos espaços religiosos, tiram as pessoas dos espaços públicos e, assim, aprisionam as pessoas domesticando-as com moralismos que são Grande Inquisidor, chegando a aberrações tais como furtar do povo doações para construir templos luxuosos e até sino de 17 milhões de reais. Absurdo! Idolatria! Não esqueçamos: o neopentecostalismo foi exportado dos Estados Unidos para o Brasil e América Latina, como analisa o mineiro Délcio Monteiro de Lima, no livro Os demônios descem do norte, e fomentado pelos papas João Paulo II e Bento XVI.

    Há vários sentidos para Religião: no sentido original, Religião vem de re-ligar, re-ler, re-eleger e, assim, pode nos religar com o mistério de amor infinito e profundo que nos envolve com o próximo, com todos os seres vivos e com o nosso Eu mais profundo. Entretanto, com o andar histórico, as Religiões se tornaram Instituições com dogmas, doutrina, funcionários e tendem a se autorreproduzirem em estruturas de poder opressor.

    Parece-me que Dostoiévski critica de forma contundente não o ensinamento e a práxis de Jesus de Nazaré, vista da perspectiva da Teologia da Libertação, mas critica a versão do ensinamento e da práxis de Jesus, segundo a teologia dogmática clássica, que sob muitos aspectos deturpa o que o Galileu revolucionário ensinou e testemunhou. Dostoiévski denuncia de forma implacável a Igreja Instituição e a diabólica inquisição que excomungou Jesus de Nazaré revolucionário, porque ele estorvava e estorva os podres e violentos poderes. Para se deleitar em podres poderes e comodismo, muitos não mudam de vida como propõe Jesus, mas mudam Jesus adocicando-o ou enquadrando-o a escusos interesses. Se Jesus voltasse agora, ele não teria lugar na estrutura do próprio Cristianismo, como tanta gente marginalizada e violentada na sua dignidade. Por exemplo, as três palavras com as quais, segundo O Grande Inquisidor, se domina todos: “milagre, mistério e autoridade”. Para a Teologia da Libertação, milagre não é mágica, não é algo feito por Jesus que seja impossível de ser feito por outra pessoa humana. Milagre não estupra a natureza. “A graça supõe a natureza”, já dizia o filósofo e teólogo Tomás de Aquino. Jesus não tinha um superpoder sobrenatural inacessível aos outros humanos. Jesus não nasceu Cristo, mas se tornou Cristo, porque se humanizou de forma esplêndida. Milagre é um processo de solidariedade gratuita que questiona dogmas, leis e regras que geram marginalização e, por isso, liberta as pessoas, mas sempre nas entranhas das relações humanas e sociais. Um aparente bom pastor, mas na realidade inquisidor, opressor, dominador, muitas vezes invoca o mistério para impor um “cale-se!”, porém diante do mistério, conforme dizia o filósofo Wittgenstein, “devemos nos calar somente após dizermos a última palavra”. Assim como Jesus revolucionário estorva os Grandes Inquisidores da história, sigamos estorvando os inquisidores da atualidade. (Obs.: Na próxima semana publicaremos a 2ª parte deste texto).

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Fernando Francisco de Gois, outro Cristo e Servo de Deus no meio dos excluídos, outro bom samaritano, em entrevista a frei Gilvander – 09/9/2020.

    2 – Mov. Negro, Quilombolas e Pescadores do Baixo São Francisco se REBELAM contra mais barragem. Vídeo 6 – 22/9/2020

    3 – “O anjo das ruas”, Padre Júlio Lancellotti com André Trigueiro – 22/9/2020

    4 – Padre Júlio Lancellotti, uma vida dedicada a amar e defender os irmãos em situação de rua – 19/9/20

    5 – “Saga do Velho Chico”, de Quitéria Gomes. NÃO à barragem de Formoso, Pirapora/MG –Vídeo 5 – 07/9/20

    6 – “Basta de barragens!”, grita o Povo do Baixo São Francisco. UHE de Formoso, NÃO! Vídeo 4 – 07/9/2020

    7 – Muitos Gritos do Brasil contra a construção da Barragem de Formoso, em Pirapora/MG -Vídeo 3 -07/9/20

    8 – “Não aceitamos barragem de Formoso em Pirapora/MG”, gritam no Baixo São Francisco -Vídeo 2 – 07/9/20

    9 – Povo do Baixo São Francisco NÃO ACEITA mais barragem: Não à de Formoso, Pirapora/MG-Vídeo 1 -07/9/20

  • Dilma: As 12 falsificações do discurso de Bolsonaro na ONU

    Dilma: As 12 falsificações do discurso de Bolsonaro na ONU

    Por Dilma Rousseff

    Praticamente não há uma sentença no discurso de Bolsonaro na ONU que não cometa pelo menos uma falsificação, uma manipulação, uma adulteração dos fatos. O Brasil que Bolsonaro descreve não existe, e não existe por causa dele.

    As maiores florestas brasileiras ardem em chamas, com recordes de incêndios, e ele culpa os índígenas, que são as primeiras vítimas desses crimes ambientais.

    Os maiores biomas do país são consumidos pelo desmatamento ilegal, e ele diz que exerce controle rigoroso sobre a ação dos destruidores das florestas, o que é falso.

    O Brasil voltou a registrar a mazela da fome, que maltrata mais de 10 milhões de pessoas, e ele se jacta de estar alimentando o mundo.

    Quase 140 mil brasileiros já morreram de Covid-19, e ele diz que agiu com rigor para combater a doença. ao mesmo tempo em que culpa os governadores pelas mortes.

    Bolsonaro dissimula de maneira contumaz e o faz por cálculo, não por ignorância. Mesmo quando fala na ONU, não é ao mundo que está se dirigindo, mas ao seus seguidores mais radicalizados, que ele mantém mobilizados à base de fake news e deturpações da verdade. Seu objetivo é manter a iniciativa política e a polarização. Foi assim que, na Itália dos anos 1910 e 1920 e na Alemanha dos anos 1930, o fascismo e o nazismo cresceram até chegar ao poder: mobilizando permanentemente uma minoria de seguidores agressivos, capazes de intimidar o campo democrático da sociedade.

    O mundo já não acredita em Bolsonaro. Parte dos brasileiros já não acredita nele. Mas não há sinal de que ele pretenda parar. Terá de ser parado.

    No texto a seguir, é possível verificar pelo menos 12 falsificações que Bolsonaro apresentou ao mundo, ontem, no seu discurso.

    Por Nei Lima

    1

    A fala – “Desde o princípio, alertei, em meu país, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade.”

    A verdade – Bolsonaro negou a gravidade da doença. Tratou-a com desdém, afirmando que era uma gripezinha. Não tomou medidas efetivas para garantir o emprego, propôs R$ 200 de auxílio emergencial e foi apenas diante da pressão da sociedade e da iniciativa da oposição no Congresso que acabou sendo aprovado o valor de R$ 600. Por culpa do governo, o Brasil foi o país que menos aplicou testes. Bolsonaro foi contrário ao isolamento e distanciamento social, ele próprio promovendo e participando de aglomerações e desprezando o uso de máscaras. Defendeu e expandiu a produção de cloroquina, enquanto deixava de adquirir analgésicos para a implantação de tubos respiratórios nos doentes graves.

    2

    A fala “Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao Presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País.”

    A verdade – Bolsonaro vem se escondendo por trás de uma decisão do STF que, supostamente, transferia o poder de enfrentar a Covid-19 para estados e municípios. Trata-se de uma versão inverídica e absurda, pois há uma clara obrigação constitucional da Presidência da República de coordenar ações diante da gravidade da crise sanitária, que já matou 138 mil pessoas; também somos uma Federação e, assim, há o dever intransferível de a União articular a ação dos 26 estados, o Distrito Federal e os 5.570 municípios. O Supremo nunca eximiu o governo federal do dever de agir, nem transferiu seu poder. Apenas deu a estados e municípios o direito de também tomar decisões sobre medidas sanitárias, de isolamento e de distanciamento social, segundo suas circunstâncias específicas.

    3

    A fala – “Nosso governo, de forma arrojada, implementou várias medidas econômicas que evitaram o mal maior: concedeu auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente 1000 dólares…”

    A verdade – Não houve arrojo, mas mesquinharia. Bolsonaro tentou impor um auxílio emergencial de apenas R$ 200 por mês. O auxílio só foi de R$ 600 por decisão do Congresso, proposta pelo PT e demais partidos de oposição, impondo uma derrota ao governo. Bolsonaro insinua, na fala, que pagou mil dólares por mês. Mas mesmo somadas, as parcelas do auxílio emergencial estarão longe de totalizar mil dólares. Se cumprir o que anunciou, o governo terá pago, até o fim de dezembro, 5 parcelas de R$ 600 e no máximo 4 parcelas de R$ 300. Isto totalizará, na melhor hipótese, R$ 4.200, muito abaixo de mil dólares, que são R$ 5.470. A iniquidade do governo também se fez sentir no tratamento dado aos que têm direito ao auxilio emergencial, na forma de milhões de exclusões injustificadas, atrasos, filas e aglomerações nas agências da Caixa, aplicativos que não funcionam — um labirinto burocrático que transformou a busca por ajuda num grande sofrimento.

    4

    A fala – “[Nosso governo] assistiu a mais de 200 mil famílias indígenas com produtos alimentícios e prevenção à Covid.”

    A verdade – Do projeto aprovado no Senado de apoio às comunidades indigenas, Bolsonaro vetou artigos que obrigavam o governo federal a fornecer água potável, material de higiene e limpeza e cestas básicas às aldeias. Em outro momento, proibiu a entrada de equipes da organização Médicos sem Fronteiras nas comunidades indigenas.

    5

    A fala – “Não faltaram, nos hospitais, os meios para atender aos pacientes de covid.”

    A verdade – O governo federal falhou fragorosamente no planejamento e na distribuição de máscaras, EPIs e respiradores aos hospitais de todo o país. A testagem é uma das mais baixas do mundo. A falta de testes suficientes é uma das causas de o Brasil ter se tornado um dos epicentros da doença no mundo. A maior parte dos recursos federais destinados ao combate à pandemia nos estados não foi liberada de fato, segundo várias reportagens. A maioria das máscaras e equipamentos prometidos não chegou aos hospitais e os estados e prefeituras foram obrigados a agir por conta própria. Faltaram equipamentos e medicamentos nos hospitais, sobrou cloroquina nas prateleiras do ministério da Saúde, comandando por um militar especializado em logística.

    6

    A fala – “O caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas. Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação.”

    A verdade – Praticamente todos os casos de incêndios na Amazônia e no Pantanal identificados ou suspeitos de ação criminosa foram cometidos por fazendeiros, grileiros e invasores de terras públicas e reservas florestais e terras indigenas. Sentiram-se autorizados para tal diante do desmonte das políticas de contenção do desmatamento e da fiscalização. Os caboclos e os indígenas são, sabidamente, vitimas dos incêndios e do desmatamento criminosos, não seus autores. Dados obtidos pelo sistema de monitoramento da NASA mostram que 54% dos focos de incêndios na Amazônia estão relacionados ao desmatamento. No Pantanal, organizações de proteção ambiental informam que incêndios iniciado em 9 fazendas particulares destruiram 141 mil hectares, quase a área da capital de São Paulo. Cinco destas fazendas estariam sendo investigadas pela PF.

    7

    A fala “Lembro que a Região Amazônica é maior que toda a Europa Ocidental. Daí a dificuldade em combater, não só os focos de incêndio, mas também a extração ilegal de madeira e a biopirataria. Por isso, estamos ampliando e aperfeiçoando o emprego de tecnologias e aprimorando as operações interagências, contando, inclusive, com a participação das Forças Armadas.”

    A verdade – A extração ilegal de madeira e os incêndios criminosos não são combatidos devidamente por causa da leniência deliberada do governo Bolsonaro, que desde ao assumir desautorizou, fragilizou e desmontou a fiscalização, assim como cometeu ataques contra o INPE, tendo, inclusive, demitido seu diretor, um dos cientistas mais respeitados do Brasil. O ministério do Meio Ambiente não apenas suspendeu o trabalho de fiscalização, e cancelou operações, como tem protegido os verdadeiros criminosos ambientais. Chegou a trazer a Brasília, em aviões da FAB, para reunião com o ministro, um grupo de garimpeiros ilegais que atuava em reserva indígena. Em famosa reunião ministerial, filmada e divulgada, o ministro defendeu que o governo aproveitasse a distração criada pela pandemia para, como disse, “passar a boiada” de decretos e portarias que facilitem os crimes ambientais.  

    8

    A fala “Somente o insumo da produção de hidroxicloroquina sofreu um reajuste de 500% no início da pandemia.”

    A verdade – No Brasil e no mundo, a comunidade científica séria e conceituada alertou o tempo todo, desde o início da pandemia, para o fato de que a cloroquina e a hidroxocloroquina não têm eficácia contra a Covid-19, em nenhum estágio da doença, e podem, ao contrário, acarretar efeitos colaterais que levam à morte. Até mesmo Trump, a quem Bolsonaro imitou agindo como garoto-propaganda de um remédio perigoso, abandonou a defesa da cloroquina e, para livrar-se do medicamento que parou de indicar, despachou o estoque para o Brasil.

    9

    A fala “No campo humanitário e dos direitos humanos, o Brasil vem sendo referência internacional.”

    A verdade – Só se for referência negativa. Desde a posse de Bolsonaro, a situação dos Direitos Humanos no Brasil vem se deteriorando, a ponto de provocar advertências da Alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, que denunciou a miliarização de instituições civis, a violência policial, e ataques a ativistas, líderes comunitários e jornalistas.

    10

    A fala “Em 2019, o Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano, vendido sem controle.”

    A verdade – Não há nenhuma conclusão ou prova de que a Venezuela tenha contribuído para o derramamento de óleo no Atlântico, trazido pelas correntes marítimas à costa brasileira. O que ficou demonstrado, sobejamente, foi a demora e a inação do governo brasileiro, que levou quase três meses para tomar as primeiras providências em relação ao desastre que atingiu o litoral de 10 estados.

    11

    A fala “No primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificamos um aumento do ingresso de investimentos, em comparação com o mesmo período do ano passado. Isso comprova a confiança do mundo em nosso governo.”

    A verdade – A imprensa informa hoje que do ano passado para cá houve, na verdade, uma queda de 30% nos Investimentos Estrangeiros Diretos no Brasil. E nos primeiros oito meses deste ano o Brasil sofreu uma fuga recorde de capitais, que chegou a US$ 15,2 bilhões. Outra notícia dá conta de que, por causa do estado de paralisia do MEC desde a posse de Bolsonaro, o país deixou de receber os repasses de um empréstimo de US$ 250 milhões do Banco Mundial para dar suporte à reforma do ensino médio.

    12

    A fala “O homem do campo trabalhou como nunca, produziu, como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado.”

    A verdade – O Brasil de fato continua sendo um grande produtor e exportador agropecuário, mas dilapidou a agricultura familiar, que até 2014 era responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelo povo brasileiro. Por esta e outras escolhas de índole neoliberal, o Brasil voltou a registrar a calamidade da fome, que aumentou em 43,7% em cinco anos, atingindo mais de 10 milhões de brasileiros.

  • A difícil escolha entre cozinhar ou tomar banho

    A difícil escolha entre cozinhar ou tomar banho

    O Brasil concentra 53% da água doce da América do Sul e 12% do mundo. Esse recurso, essencial para a vida humana e cada dia mais cobiçado pelas grandes potências, corre sérios riscos de ser privatizado em nosso país. Depois que o Congresso Nacional aprovou e Bolsonaro sancionou, com vetos, há pouco mais de dois meses, o Novo Marco Legal do Saneamento (PL 4.162/2019), o governo federal tem feito gestões para que os governos estaduais apressem esse processo.

    Ana Luisa Naghettini, estudante de Matemática Computacional na UFMG e militante independente em defesa do meio ambiente, e Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Um forte lobby na mídia também está em ação. O objetivo, na linha da privatização imediata proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é que os governos estaduais vendam, rápido e a qualquer preço, as suas empresas. O objetivo é convencer a população de que a privatização das companhias de água e saneamento é “o único caminho para o Brasil enfrentar o grave déficit no setor”. Para tanto, dados alarmantes são apresentados quase diariamente: “48% da população brasileira não tem coleta de esgoto”; “o país convive com 3.257 lixões a céu aberto”; “é necessário investir R$ 753 bilhões até 2033 para enfrentar esses problemas”.
    Antes mesmo de a nova legislação ser aprovada, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), já dava um largo passo nesse sentido, com a Copasa, a estatal mineira de águas e saneamento, informando aos seus acionistas e ao mercado que iria contratar serviços para começar o processo de desestatização.

    A situação se torna mais grave ainda quando se sabe que, caso o Congresso Nacional não derrube os 11 vetos de Bolsonaro a esta legislação, as empresas estatais, responsáveis por 70% desse serviço, não poderão mais assinar contrato com os municípios, sendo obrigadas a se submeterem às licitações, sob a ótica do mercado. Além disso, a obrigação de realizar licitações e as metas de desempenho para contratos tenderão a prejudicar as empresas públicas locais, piorando a qualidade dos serviços prestados.

    Os vetos eram para ter entrado em pauta no Congresso em setembro, com muitos governadores e prefeitos trabalhando pela derrubada deles. Até agora não foram apreciados e não falta quem aposte que, por conta das eleições municipais, dificilmente isso acontecerá em 2020. O que complicará ainda mais a situação das empresas de saneamento, a começar pela Copasa.

    Risco

    Num momento em que o governo Bolsonaro é mundialmente criticado pelo desmonte das políticas ambientais e pela negligência no combate aos incêndios na Amazônia e no Pantanal, além do negacionismo em relação ao vírus do covid-19, não só a nova legislação sobre saneamento virou lei, como o risco agora é que essas empresas sejam privatizadas sem que as pessoas se deem conta da gravidade do que está em jogo.
    Uma das principais causas da rápida proliferação do covid-19 no Brasil (o país ostenta o triste recorde de terceiro no mundo em mortes) reside exatamente na falta de acesso de expressivos contingentes da população à água tratada e ao saneamento.
    Some-se a isso que estudo do Observatório Fluminense Covid-19 (formado por sete instituições de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro, entre elas a UFRJ e a UFF) aponta que a própria estabilização do vírus na América Latina deve se dar em patamares elevados e permanecer atuando na região por mais dois anos.

    Ao defender a privatização imediata de suas empresas de saneamento, o Brasil coloca-se na contramão do que acontece no mundo. Segundo estudo do Instituto Transnacional da Holanda (TNI), entre 2000 e 2017, cerca de 1700 municípios de 58 países, entre eles Berlim (Alemanha), Paris (França) e Budapeste (Hungria) reestatizaram seus serviços. Só na França, 106 cidades fizeram isso. Fora do continente europeu, Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia) são alguns dos casos sul-americanos que reestatizaram serviços públicos básicos, entre eles o de fornecimento de água e ampliação de redes de esgoto.

    Lucro

    As principais razões para as reestatizações foram a colocação do lucro acima dos interesses das comunidades, o não cumprimento dos contratos, das metas de investimentos – principalmente nas áreas periféricas e mais carentes -, e os aumentos abusivos de tarifas.
    O governo Bolsonaro e a mídia corporativa brasileira que o apoia ignoram esse tipo de alerta e destacam apenas que “a livre concorrência no setor permitirá mais investimentos – são esperados R$ 600 bilhões, grande parte internacionais, até 2033” – e que “a universalização dos serviços de saneamento ocorrerá em 30 anos”. Acena-se com promessas, para quebrar resistências e ganhar a opinião pública.

    Não foi por falta de recursos, como alega o governo Bolsonaro, que se optou pela privatização. Um total de R$ 1,2 trilhão acaba de ser repassado para os bancos privados a título de auxiliá-los durante a pandemia. Um terço desse valor por ano seria mais do que suficiente para resolver o problema do saneamento no Brasil.
    Nada foi dito sobre a nova legislação possibilitar que os pobres fiquem cada vez mais distantes do acesso à água tratada e ao saneamento e que o alegado prazo próximo a vencer, para o fim dos lixões, foi prorrogado. Não foi dito, igualmente, que as empresas multinacionais dispõem agora de uma chance de ouro para controlar também as cobiçadas águas brasileiras.

    Esse, aliás, parece ser o ponto essencial, porém obscuro nessa legislação.

    A nova lei trata da questão do saneamento, mas empresas de saneamento são também as que fornecem água. Assim, a privatização das primeiras traria, como consequência, também a privatização das águas, cujo fornecimento ficaria a cargo de quem visa apenas o lucro.

    Dos atuais 5.571 municípios brasileiros, no máximo 500 têm condições de atrair investimentos no setor. Sem dúvida haverá disputa pela privatização de empresas estatais em grandes metrópoles como Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Curitiba e Brasília.

    Mas quais empresas se interessarão por fornecer serviços em municípios pobres do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, no sertão nordestino ou no interior da Amazônia? Esses, certamente, serão abandonados à própria sorte, pois o chamado “investimento cruzado”, que determina que o lucro obtido pelas empresas estatais nas áreas mais ricas seja aplicado nas regiões pobres e carentes, não existirá mais.

    Jereissati e sua Coca-Cola

    Não há também justificativa social para a pressa com a qual essa nova legislação foi aprovada. O relator da matéria, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), rejeitou todas as emendas de mérito propostas para que o texto não voltasse à Câmara dos Deputados para uma nova apreciação. A oposição propôs que a matéria fosse debatida após o fim da pandemia. Deveria ter sido o caminho natural, diante de uma medida de tamanha
    importância, mas foi derrotada.
    De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Sinis) de 2018, mais de 83% da população brasileira tem acesso a serviços de abastecimento de água e 53,2% usam serviços de esgotamento sanitário. O marco legal anterior, estabelecido por lei de 2007, definia diversos princípios fundamentais como universalidade, integralidade, controle social e utilização de tecnologias apropriadas.
    Também estabelecia funções de gestão para os serviços públicos, como planejamento municipal, estadual e nacional e a regulação, que devem ser usados como normas e padrões. Uma das mudanças mais significativas introduzida pelo novo Marco foi a retirada da autonomia dos estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão água para as populações e cuidarão dos resíduos sólidos.
    Em síntese, o que foi aprovado é um enorme retrocesso sob a ótica dos interesses da maioria da população. Razão pela qual a aprovação desse novo marco legal provocou reação imediata apenas nas redes sociais, pois a mídia corporativa o apoia e o endossa, bem como a toda a agenda ultraliberal de Paulo Guedes.

    “Sobreviverá quem puder pagar”, escreveu a destacada jornalista Hildegard Angel, ao frisar que “a água de nossas nascentes, fontes, rios, lagoas não pode ter dono. Querem engarrafar a água (…) colocar uma etiqueta e botar preço”.

    Já o deputado e ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias (PT-MG), preferiu lembrar que “a privatização das águas foi votada no dia em que morreram mais de 1100 brasileiros”, acrescentando que é “assustador observar esse tipo de prioridade, que é do grande capital e do mercado, não dos brasileiros”.

    Mais contundente, a presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, a companhia estatal de águas e saneamento do Estado de São Paulo, socióloga Francisca Adalgisa, garantiu que “é bala na cabeça da população mais pobre”, pois se essas empresas não forem privatizadas, também não receberão mais recursos do governo para os investimentos de que necessitam.
    Nada disso parece ter sensibilizado uma população anestesiada em meio a várias pandemias simultâneas. E o lobby pela privatização cresce e aposta na vitória de candidatos “sensíveis” ao mercado nas eleições desse ano nas principais capitais para facilitar as vendas.

    Ribs


    Atualmente no Brasil os serviços de água e esgoto são prestados, em sua grande maioria, por empresas estatais, não sendo vedada a possibilidade de associações entre entes estatais e o setor privado, através das chamadas parcerias público-privadas (PPPs). Nesse sentido, a Sabesp, a empresa de saneamento de São Paulo, é um mau exemplo, que a mídia corporativa brasileira esconde. Mesmo pública, a empresa tem 50% de seu capital privado. Os acionistas dão as cartas e deixam milhões de pessoas sem coleta e tratamento de esgoto na maior cidade do Brasil e da América Latina.

    Outro mau exemplo do que faz o setor privado nessa área é Manaus. Com 20 anos de gestão privada, a capital amazonense tem apenas 12,5% de cobertura de esgoto, dos quais só 30% são tratados. Mais de 600 mil pessoas – um terço do total da população -, continuam sem acesso à água potável. Não por acaso Manaus liderou a primeira onda de mortes por coronavírus no país e o risco de um retorno do vírus, mais forte ainda, na cidade é real.
    Por isso, o economista Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), consultor de agências da ONU e autor de mais de 40 livros sobre desenvolvimento econômico e social, propõe que diante do Covid-19 e da situação caótica da economia brasileira sob a gestão Bolsonaro é fundamental o resgate do papel do Estado, a adoção da renda básica generalizada, o reforço da saúde pública e o financiamento local, com a transferência, de maneira organizada, de
    recursos a cada município. “É no nível local que se sabe qual bairro é mais ameaçado, onde falta água ou saneamento, quais famílias estão mais fragilizadas”, afirma.
    O que Dowbor defende é o oposto do que define a nova legislação. Na mesma linha, o economista francês Thomas Piketty, autor de “Capital e Ideologia”, seu mais recente trabalho lançado no país, diz que as elites brasileiras cometem um erro ao perpetuar o abismo social, comprometendo o futuro da nação.
    Diferentemente do que pensa Piketty, as elites brasileiras sabem o que querem. Em 2009, no XXIII Fórum da Liberdade, promovido pelo Instituto Millenium, um think tank brasileiro ultraliberal, o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, figura reverenciada pela mídia nacional, proclamava: “jamais os direitos humanos irão suplantar o direito à propriedade”.

    Nos oito anos em que governou o Brasil (1995-2003) isso foi verdade. Seu governo privatizou mais de 100 empresas, entre elas a mineradora Vale do Rio Doce, rebatizada como Vale S.A. O argumento era o de sempre: “ineficiência” e falta de recursos para investir no setor.

    Doze anos depois, a Vale foi responsável pelos dois maiores crimes humanos e ambientais da história brasileira: o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais, com a morte de duas centenas e meia de pessoas e a destruição da bacia do rio Doce, um dos maiores da região Sudeste. As famílias dos mortos, desaparecidos e dos atingidos pela lama e água contaminada ainda lutam para receber indenizações. Enquanto isso, as ações da vale seguem nas alturas.
    Foi também no governo de Fernando Henrique Cardoso que o Brasil passou a ter agências reguladoras para fiscalizar a atuação das empresas recém-privatizadas. O resultado é que essas agências, Anatel, na área da telefonia, Anac, na aviação civil, e Aneel, nas águas e energia, rapidamente foram colonizadas pelo capital privado, por aqueles a quem deveria fiscalizar. E acabam não fiscalizando nada. Resultado: serviços de péssima qualidade, tarifas caras e cidadãos transformados em meros consumidores. E os serviços, antes um direito social, viraram atividade econômica regulada pelo mercado, possibilitando basicamente acúmulo do capital privado.

    Durante a realização do 8º Fórum Mundial da Água, em 2018 em Brasília, empresas como a gigante nacional de refrigerantes e cervejas Ambev, e as multinacionais Nestlé e Coca-Cola participaram do evento como financiadoras, mas também fizeram várias sugestões. Coincidentemente, essas sugestões, pelas mãos do senador Tasso Jereissati, foram transformadas em projeto de lei e agora integram o novo Marco do Saneamento. Para quem não sabe, Jereissati é acionista da Coca-Cola Brasil e um dos maiores interessados em entregar à iniciativa privada os bens comuns nacionais.
    Duramente criticadas pelos brasileiros em suas redes sociais, essas empresas apressaram-se em dizer que não têm nada a ver com a privatização de águas no país. A Coca-Cola Brasil divulgou um longo texto em que considera “boato” qualquer relação com o novo Marco Legal do Saneamento Básico. Já a Nestlé, há anos, vem desmentindo, também por redes sociais, que tenha interesse em privatizar o aquífero Guarani, uma reserva de 1,2 milhões de quilômetros quadrados, compartilhada por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

    Esse assunto, claro, nunca é tratado nas TVs ou emissoras de rádio.

    O então presidente da República, Michel Temer, que chegou ao poder depois do golpe, travestido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff em 2016, também negou que houvesse qualquer entendimento nesse sentido. Mas não deixa de ser coincidência que tenha sido em seu governo que o primeiro projeto de lei alterando a legislação de 2007 sobre saneamento fosse enviado ao Congresso.
    Igualmente não deixa de ser coincidência que esse novo marco tenha sido aprovado a toque de caixa pelo governo Bolsonaro, em plena pandemia, quando a população brasileira está assustada com o número crescente de mortos e sem condições de protestar nas ruas e praças públicas, como sempre fez.
    Pelo visto, o governo Bolsonaro está seguindo à risca a proposta de seu mundialmente criticado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para quem a pandemia deveria ser aproveitada “para passar a boiada”.
    As medidas impopulares não só estão sendo aprovadas, como se preparam para sair do papel sem que a maioria das pessoas se dê conta disso. Quando perceberem, poderão já estar pagando muito mais caro pela água que utilizam. Ou, pior ainda: tendo que escolher entre cozinhar e tomar banho.

    Charge de Bacellar


  • As eleições nos EUA e Bolsonaro na ONU

    As eleições nos EUA e Bolsonaro na ONU

    Acompanhamos as convenções dos partidos democrata e republicano nos Estados Unidos que decidiram pelas candidaturas de Joe Biden/Kamala Harris e Donald Trump/Mike Pence respectivamente. Como era de se esperar, os protestos de rua, associados ao movimento Black Lives Matter e à derrubada de estátuas, foram mencionados mais de uma vez em diversos discursos em ambas as convenções.

    Mayra Marques – Mateus Pereira – Valdei Araujo (UFOP)*

    Em novembro saberemos se os eleitores estadunidenses escolherão viver em seu presente em constante atualização, como promete o discurso quase mágico de Donald Trump ou continuar a história imperfeita e inconclusa que Barack Obama descreveu em seu próprio discurso na convenção democrata:

    “Estou em Filadélfia, onde a Constituição foi escrita e assinada. Não foi um documento perfeito. Ela permitiu a desumanidade da escravidão, e falhou em garantir às mulheres  – e mesmo àqueles homens sem propriedade –  o direito de participar do processo político. Mas inserido neste documento estava a estrela polar que guiaria as gerações futuras; um sistema de governo representativo – uma democracia – através do qual podemos compreender melhor nossos mais elevados ideais. Através da Guerra Civil, e amargas disputas, aperfeiçoamos esta Constituição para incluir as vozes daqueles que foram deixados de fora. Gradualmente fizemos esse país mais justo, mais igualitário e mais livre”.[1]

    Em um contexto em que os personagens históricos estão no centro de polêmicas, Obama escolheu cuidadosamente o lugar (o Museu da Revolução Americana), ao canto dedicado à escrita da Constituição.[2] A intenção imediata era reforçar o diagnóstico de que Trump representa um risco aos fundamentos da democracia estadunidense. O retrato que aparece no painel de fundo talvez não tenha sido tão planejado, embora pudesse ter sido excluído da imagem com uma simples mudança de ângulo. Trata-se de James Madison, considerado o pai da Constituição e presidente dos Estados Unidos entre 1809 e 1817. As posições de Madison a respeito da escravidão estavam longe de serem avançadas para o período. Como outros pais fundadores, esteve de vários modos envolvido com a infame instituição. A presença de Madison ao fundo do cenário de Obama ilustra bem a imperfeição da Constituição a que ele se refere no discurso, e uma disposição de comemorar a história sem esconder seus defeitos. 

     Mesmo que possamos criticar Obama confrontando seu discurso de progresso da igualdade com os resultados pífios e contraditórios de seus dois mandatos, podemos reconhecer o êxito de seu esforço em recuperar aspectos do passado que parecem ainda servir à sua história, neste caso o legado democrático, revolucionário e a consciência das injustiças raciais, aspectos que podem estar associados à Revolução Americana e a nomes mais avançados na crítica da escravidão como Alexander Hamilton a partir de qualquer análise historicamente fundamentada. Este caso é um exemplo de como podemos elevar nossas exigências éticas e políticas com relação ao passado e ainda assim encontrar nele elementos de orientação para o futuro.

    Dos dois lados do espectro político nos EUA se explora hoje uma retórica de tempos de crise, fora da normalidade, e, por isso, decisivos para o futuro. Alguns analistas chamam essa linguagem de retórica existencial, no sentido de produzir um clima de que é a própria sobrevivência de um estilo de vida que estaria em jogo nas eleições. Estes analistas lamentam que essa atmosfera esteja esvaziando a campanha do debate de temas mais diretamente ligados aos problemas cotidianos da maioria dos cidadãos. A disputa aberta nos últimos dias pelo preenchimento de mais uma vaga na Suprema Corte, a versão estadunidense de nosso STF, tende a agravar a polarização. Mas é indubitável que Trump é ainda quem melhor tem explorado a linguagem da ameaça existencial: “Apesar de toda nossa grandeza como nação, tudo o que alcançamos está agora ameaçado. Esta é a mais importante eleição da história de nosso país”.[3] 

    O discurso de Obama, e em menor medida, também o de Biden, promovem uma visão liberal de progresso transformativo a partir de um legado histórico ambivalente, o mal e o bem estão inscritos na história estadunidense, luzes e trevas, cabe a cada geração escolher o caminho correto. Em um dos momentos mais graves de seu discurso, marcado por imagens de luz e trevas e por um combate pela alma da nação, Biden afirma: “A História nos confiou mais uma tarefa urgente. Seremos nós a geração que finalmente irá limpar a mancha do racismo de nosso caráter nacional?”[4] 

    Discursando alguns dias após Biden, Trump responderia a diversos pontos do discurso do seu oponente, pintando uma imagem muito mais simplificada e homogênea da história. Em sua visão mítica, os Estados Unidos e seu povo são a maior e talvez única fonte de grandeza, justiça e liberdade no mundo, tudo isso garantido por eleição divina. Não há em seu discurso qualquer vestígio de crítica ao passado, a história surge como algo uniforme e a luta não é interna, entre anjos e demônios em uma mesma alma, mas entre a verdadeira América e seus detratores. O bem e o mal aqui representam polos opostos e uniformes: “Entendemos que a América não é uma terra  mergulhada em trevas, a América é a tocha que ilumina o mundo inteiro”.

    Enquanto as narrativas da história apresentadas pelos Democratas são facilmente enquadradas no repertório do pensamento histórico moderno, no discurso de Trump o recurso à história é algo mágico, o tempo é apresentado como a atualização de uma essência miraculosa do ser americano. A única alternativa a essa atualização é a sua destruição por forças externas à sua essência. Assim, em seu discurso, ouvimos incessantemente a promessa de mais do mesmo, não há um princípio transformativo ou um campo de possibilidades, apenas mais América para os verdadeiros americanos, conduzidos a um “futuro maior e mais brilhante”.

    “O que uniu gerações passadas foi a inabalável confiança no destino Americano, e uma fé inquebrantável no Povo Americano. Eles sabiam que nosso país é abençoado por Deus, e que tem um propósito especial no mundo. Foi essa convicção que inspirou a formação de nossa união, nossa expansão para o oeste, a abolição da escravidão, a aprovação dos direitos civis, o programa espacial e a derrocada do fascismo, da tirania e do comunismo”.

    Como se vê, não é um princípio histórico (como o governo representativo e a democracia em Obama) o que guia a história dos Estados Unidos para Trump, mas a eleição divina. No lugar de um progresso transformativo, a história é apenas a atualização desse destino em expansão – sempre mais. Por isso ele recusa em diversos planos o tema do resgate da alma americana levantada por Biden; Deus é a única garantia da pureza nacional e a cruzada moral democrata é transformada em uma guerra cultural que pretende obrigar a população a uma forma de pensamento único, submetê-los a novos códigos de linguagem e comportamento que seriam essencialmente alheios à verdadeira alma nacional:

    “Precisamos recuperar nossa independência dos mandatos repressivos da esquerda. Os americanos estão exaustos de tentar acompanhar a última lista de palavras e frases aprovadas, e dos decretos políticos cada vez mais restritivos. Muitas coisas têm nomes diferentes agora, e as regras estão em constante mudança. O objetivo da cultura do cancelamento é fazer com que os americanos decentes vivam com medo de serem demitidos, expulsos, envergonhados, humilhados e excluídos da sociedade como a conhecemos”.

    Em outras seções do discurso, Trump repete sua crença de que os Estados Unidos são únicos e superiores a qualquer outra nação, reforça o mito da terra das oportunidades para todos, independente de suas origens. Diríamos, terra das oportunidades, mas não das possibilidades, nesse pacto mítico, seu sucesso ou fracasso depende apenas do quanto você decidiu ser como todo e qualquer americano eleito por Deus. O seu fracasso só pode ser sinal de que não conseguiu ser americano o bastante, pois não há falhas no projeto nacional. A forma como em seu discurso ele descreve a conquista do Oeste é emblemático, alguns aventureiros juntaram seus pertences, a Bíblia e ocupando as terras ilimitadas, abrindo cidades, indústrias e comércio como em um passe de mágica – nenhuma palavra sobre o massacre aos nativos americanos, apenas a sentença mágica: “Os americanos constroem o futuro, não destruímos o passado!”. O passado e o futuro de quem, cara pálida?

    Embora em seu discurso hoje na ONU Bolsonaro tenha se afastado da retórica antiglobalização e feito pequenos acenos aos órgãos de governança global, sua matriz discursiva e seu recurso à história tem semelhanças estruturais inequívocas com o imaginário de Trump. Em nenhum outro lugar isso fica tão evidente quanto em suas palavras de encerramento: “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família a sua base”.[5] Todos os brasileiros que sejam diferentes dessa descrição não são brasileiros o suficiente, são provavelmente candidatos a inimigos da nação, sob constante ameaça de extermínio. Qualquer história do Brasil que possa ser contada a partir dessa definição será uma peça de ficção violenta e excludente. As raízes do sucesso dessas ilusões autoritárias precisam ser buscadas no fracasso das políticas neoliberais e na imensa crise de coesão social que nos legou.

    Como essa escolha pode afetar o futuro das esquerdas?

    Acreditamos que nossa crise de coesão social tem causas reais, presentes no nosso cotidiano: um exemplo é o aumento da população carcerária, especialmente de jovens negros; isso mostra que o passado-presente da escravidão e do racismo não é apenas uma memória/passado sensível, mas uma presença estrutural na vida social brasileira e estadunidense. Também a pandemia de Covid-19 mostrou que, durante uma crise sanitária, as pessoas pobres e negras se tornam mais vulneráveis. Sem resolver este problema estrutural, a disputa cultural tem seus limites.

    O debate sobre as estátuas e sobre a história é importante para revelar esse passado-presente, e não apenas disputar representações sobre um suposto passado morto. A crise de solidariedade que vivemos resulta do fracasso de certos projetos nacionais em realizar suas promessas para a maior parte da população. Falta emprego e oportunidades; a concentração de renda atinge patamares inéditos; ainda não há tratamento igual para homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres. Estes ideais e valores, além de incompletos e imperfeitos, parecem até mesmo retroceder em nosso tempo.

    Em um momento em que a crítica ou o elogio dogmático e naturalizante a um genérico “projeto ocidental” entrou na ordem do dia na disputa política, é preciso reforçar avaliações mais cuidadosas. Contra os que, vestidos de novos cruzados, celebram a sacralidade da civilização ocidental e consagram Donald Trump ou Jair Bolsonaro seus novos paladinos, pouco temos o que dizer. Mas, no campo daqueles que de boa fé buscam formas de enfrentar o grande desafio de defesa da democracia, vale insistir sobre a necessidade de diferenciarmos duas matrizes de crítica ao projeto moderno-ocidental. Há elementos fundamentalmente autoritários, racistas e aporéticos no projeto que devem ser revisados e abandonados, mas também há valores e ideais que ainda podem nos servir, que no lugar de serem abandonados precisam ser aprofundados e atualizados.

    Parte do “novo sentimento antidemocrático” e da frustração causada pela desigualdade social é fruto da não realização desses valores modernos, em especial, da democracia, ao menos não de forma satisfatória: a igualdade prometida pela universalidade, a fraternidade prometida pelo reconhecimento do mérito e a liberdade, não apenas permanecem como promessas não plenamente cumpridas, como foram distorcidas para legitimar projetos de opressão. É possível que esses valores sejam atualizados em sentido propriamente histórico para atender as demandas do presente e o aprendizado das ruas.

    O futuro da esquerda passa por enfrentarmos a perda de solidariedade social aberta pela crise entre o capitalismo e valores democráticos, em especial, atacar as causas da concentração de renda e da piora nos indicadores sociais, e avançar na compreensão dos modos de produção da desinformação, para alargar o controle social das fontes de produção e circulação de informação, combatendo o negacionismo da história, da ciência e dos valores éticos.

    Isso deverá levar a uma ocupação cidadã das novas estruturas da esfera pública e ampliar as oportunidades para o debate franco e honesto como forma de mediar conflitos e produzir novas solidariedades. Desde que possamos levar a sério o desafio proposto pela ideia de interseccionalidade de gênero, raça e classe, respeitando e conscientes dos limites e potencialidades da vivência e da experiência do lugar social de fala e ação. Afinal, conforme Géssica Guimarães e Amanda Danelli, “no interior do discurso pela igualdade deve haver espaço para o respeito à diversidade e o combate às opressões estruturais que ainda hoje assolam as vidas de tantas pessoas”.[6] 

    Assim, para sobreviver à ansiedade e à nostalgia do atualismo, assim como poder sair do fluxo contínuo de apropriações violentas do passado e do futuro pelo tempo presente, é necessário criar possibilidades de desatualização e de atualizações próprias, o que é mais do que desacelerar o tempo. Oscilar entre o atual e o inatual é entender que podemos ainda ter um papel sobre o futuro, que o presente pode ser futurizado e passadizado por decisões que podemos tomar coletivamente.

    (*) Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e aos grupo Proprietas pelo apoio e interlocução neste projeto.


    [1] A transcrição pode ser lida no site https://edition.cnn.com/2020/08/19/politics/barack-obama-speech-transcript/index.html.

    [2] É possível fazer um tour virtual pelas salas do museu em seu site: https://museumvirtualtour.org/

    [3] A transcrição do discurso de Trump na convenção do partido republicano pode ser lida no link – https://edition.cnn.com/2020/08/28/politics/donald-trump-speech-transcript/index.html 

    [4] A transcrição do discurso de Biden pode ser lida no link https://edition.cnn.com/2020/08/20/politics/biden-dnc-speech-transcript/index.html

    [5]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/22/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-na-assembleia-geral-da-onu.htm

  • DEUTERONÔMIO: NÃO à idolatria, ao trabalho escravo e à agiotagem

    DEUTERONÔMIO: NÃO à idolatria, ao trabalho escravo e à agiotagem

    Religião alienada das questões sociais escraviza o povo, hoje e no passado. Quando tendências religiosas intimistas, espiritualistas, amputadoras da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo e desencarnadoras da fé cristã são alardeadas por líderes religiosos, sem pastores, padres ou leigos/as, levam as pessoas a cruzar os braços e apenas orar pedindo que Deus resolva de forma mágica as injustiças sociais, o que só piora a situação de injustiças reinantes.

    Gilvander Moreira[1]


    Assim, sem perceber, as pessoas alienadas religiosamente se tornam cúmplices dos processos de opressão do povo. Ao contrário, quando tendências religiosas que animam o povo a buscar na luta coletiva e comunitária a superação dos dramas e das injustiças que se abatem sobre o povo injustiçado, as lutas populares libertárias são potencializadas, pois o povo descobre que só na luta coletiva pode conquistar seus direitos. Valorizando a dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo e a opção de Javé pelos oprimidos, a fé cristã mobiliza para lutas libertárias. Do contrário, de fato, certos tipos de expressões religiosas se transformam em ópio do povo.

    O livro de Deuteronômio não tolera idolatria, uso indevido do nome de Deus. “Não pronuncie em vão o nome de Javé seu Deus” (Dt 5,11), exortam de modo enfático os levitas, animadores das comunidades, que não podiam ter terra para não adquirir poder. O problema não está simplesmente em pronunciar o nome de Deus em vão, mas em usar para fins escusos o nome de Deus, pois, invocar o nome de Deus induz as pessoas a acreditar que quem o invoca é de fato um enviado de Deus. Sabemos que em um país com povo eminentemente religioso, nas eleições, quem se pronuncia como ateu perde voto e quem se apresenta como religioso ganha um grande volume de votos. Portanto, no Brasil, se apresentar como pessoa religiosa tornou-se uma estratégia eleitoral. Trata-se de um tipo de assédio religioso para fisgar as pessoas e induzi-las a acreditar que, pelo simples fato de alguém usar linguagem religiosa e ter aparência piedosa, já é digno de confiança. Ledo engano. A realidade demonstra que isso não é verdade.

    Os estragos aos direitos trabalhistas, previdenciários e ambientais foram aprovados no Congresso Nacional com os votos da Bancada da Bíblia – mais de cem pastores que se tornaram deputados federais – atuando junto com as Bancadas do Boi (Bancada dos latifundiários e do agronegócio) e da Bala (os que absolutizam o direito à propriedade só para eles mesmos e mentem afirmando que é com repressão que se resolverão problemas sociais). Portanto, cuidado com os que falam muito o nome de Deus, mas não cultivam atitudes coerentes com o Deus Libertador. As primeiras Comunidades cristãs, segundo o Evangelho de Mateus, já alertavam sobre as falsas promessas e para a necessidade de prática libertadora: “Cuidado com os falsos profetas: eles vêm a vocês vestidos em peles de ovelha, mas por dentro são lobos ferozes” (Mateus 7,15). “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor”, entrará no reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu” (Mateus 7,21).

    Trabalhar, sim, mas repousar no sábado. E honrar a memória dos ancestrais. O livro de Deuteronômio repudia trabalhar como escravo. “Não faça trabalho algum no sábado…” (Dt 5,12-13). Muito eloquente o modo como o livro de Deuteronômio enfatiza e alerta a todos/as, com detalhes, para não trabalhar todos os dias e nem de forma extenuante. Ninguém da família deve trabalhar no sábado, nem pessoas escravizadas e nem algum animal. Para que deixar de trabalhar todos os dias? – indagam os exploradores do trabalho alheio. “Que todos repousem no sábado, como você” é a resposta do deuteronomista em Dt 5,14.  Um princípio básico da Constituição do povo de Deus é garantir o direito ao repouso e ao ócio, o que é algo tremendamente anticapitalista, pois quanto mais se desenvolve o sistema capitalista mais se superexplora o trabalho por metas de produção e pela intensificação de exigências, impondo trabalho extenuante. A experiência histórica da escravidão no Egito, sob o Império dos Faraós, e das opressões ao longo da história da humanidade jamais pode ser esquecida. Jamais a história lida sob a perspectiva dos violentados pode ser encoberta ou apagada. Os novos opressores sempre insistem em apagar a história alegando mentirosamente que “não houve escravidão”, “não houve ditadura”, “não houve tortura”, porque tramam reinventar novas escravidões e novas ditaduras sangrentas.

    O livro do Deuteronômio prescreve também: honrarmos os nossos ancestrais. “Honre seu pai e sua mãe…” (Dt 5,16) não se refere apenas ao nosso pai e à nossa mãe, mas refere-se a todos/as nossos/as ancestrais e antepassados/as. Honrar “pai e mãe” implica honrar todos os profetas e as profetisas da Bíblia, todos/as os/as mártires de todos os tempos, todas as pessoas que contribuíram para que fôssemos quem somos e tivéssemos acesso ao que temos. Tudo o que existe: direitos individuais e sociais, bem como grandes descobertas e cultura em geral, é obra dos/as nossos/as antepassados/as.

    Verdadeira Constituição dos Povos de Deus da Bíblia, o Decálogo, que está em Êxodo 20,1-17 e em Deuteronômio 5,6-22, é formado de princípios que visam assegurar a construção de uma sociedade que não mate, não roube, não adultere, não calunie e nem desrespeite os direitos das mulheres e nem invada terras que são, por origem, do povo, pois “a terra pertence a Deus”. Ozorino Pires, camponês de 75 anos, atualmente assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa, MG, gosta de dizer, evocando sua motivação de fé em Deus para estar na luta pela terra: “A Escritura diz que a terra foi criada por Deus sem cerca e sem porteira para todo mundo viver dela. Pelo que eu sei, Deus quando fez a terra não passou escritura para ninguém não. Somos filhos da terra e filhos de Deus”.

    No meio do livro do Deuteronômio, em Dt 15,1-23, temos o núcleo das relações sociais defendidas pelos Deuteronomistas: “Não deve haver pobre entre vocês, porque Javé vai abençoar você na terra que Javé seu Deus dará a você, para que a possua como herança” (Dt 15,4). Ou seja: Deuteronômio defende a construção de uma sociedade sem explorados e sem exploradores, com todos tendo acesso à terra “como herança”, uma sociedade justa economicamente e com sustentabilidade ecológica. Aqui os autores do Deuteronômio defendem três aspectos imprescindíveis das relações sociais: a) Não pode haver na sociedade relações sociais que empobreçam as pessoas; b) Todos terão acesso à posse da terra. Não se permite concentração da terra em poucas mãos; c) Ninguém será proprietário de terra. Somente o usufruto da terra, “como herança” dada por Deus, é defendido pelo Deuteronômio.

    Ao defender relações sociais que não gerem desigualdade social, o livro de Deuteronômio está em sintonia com o livro de Levítico, que prescreve a realização do Ano do Jubileu, de 50 em 50 anos (Lv 25,8-17): revolução geral da sociedade, com a terra sendo devolvida aos seus antigos possuidores e herdeiros (Lv 25, 10.13) ao defender que a “terra pertence a Deus” (Lv 25,23) e com I Reis que prescreve que a “terra é herança de Deus” (1 Rs 21,3), não sendo passível de ser comprada e nem vendida. Ninguém deve se considerar proprietário de terra, mas apenas posseiro, com direito ao usufruto.

    Ao prescrever relações sociais que não causem empobrecimento de ninguém, acesso à terra para todos/as e proibição de se transformar a terra em mercadoria, privatizando-a, o livro de Deuteronômio está sugerindo que de fato a causa matriz da desigualdade social é a apropriação da terra em processos de grilagem ou em propriedade privada capitalista. A grilagem e a latifundiarização dos territórios se tornam a âncora que sustenta todas as engrenagens de exploração que se desenvolvem em uma sociedade capitalista.

    As Comunidades que estão por trás do Deuteronômio, por experiência própria e pelas lições da história, sabem que não bastam leis justas, mas que é preciso cultivar relações de solidariedade libertadora permanentemente. Isso é defendido em Dt 15,7-11. Estejamos sempre atentos e dispostos a acolher quem por um motivo ou outro se tornou vulnerável. Porém, a solidariedade não pode ser assistencialista e nem gerar dependência. Precisa ser solidariedade aliada à luta pela justiça no seu sentido mais profundo. No caso de políticas públicas, não apenas políticas compensatórias ou de quotas, mas também políticas re-estruturadoras das bases da sociedade.

    De sete em sete anos se deve fazer um Ano Sabático, durante o qual as dívidas deverão ser perdoadas. “Todo credor que tenha emprestado alguma coisa a seu próximo, perdoará o que tiver emprestado. Não explorará seu próximo, nem seu irmão, porque terá sido proclamado um perdão geral em honra de Javé” (Dt 15,2). Esta utopia está sendo buscada pela comunidade dos povos que fizeram Aliança com Javé, Deus solidário e libertador. Isso implica que a sociedade que Deus quer não pode ter espaço para agiotagem, nem de banqueiros, nem de empresas e nem de pessoas que preferem viver sem trabalhar e só emprestando dinheiro.

    Enfim, por tudo exposto acima, percebemos que o livro de Deuteronômio pugna pela vivência da Aliança de Javé, Deus solidário e libertador, com seu povo escravizado, mas adverte: Se aparecerem empobrecidos na sociedade, é o SINAL: a ALIANÇA com JAVÉ está sendo rompida…

    Belo Horizonte, MG, 22/9/2020

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander – 15/01/2020

    2 – Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral – 18/6/2020

    3 – Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia – CEBI/MG – Parte I

    4 – Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa – Parte II

    5 – Livro do Deuteronômio – chaves de leitura – Mês da Bíblia de 2020 – por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

    5 – Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 – 02/2/2020

    6 – Livro do Deuteronômio – Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues – Entrevista completa

    7 – Live – CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020

    8 – Live – Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia

    9 – Deuteronômio 1 parte (Por Sandro Galazzi)

    10 – Deuteronômio 2 a redação profética (Por Sandro Galazzi)

    11 – Deuteronômio 3 a redação de Josias (Por Sandro Galazzi)

    12 – Deuteronômio 4 a história deuteronomista (Por Sandro Galazzi)