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  • Passei dois meses dentro de grupos bolsonaristas durante a pandemia

    Passei dois meses dentro de grupos bolsonaristas durante a pandemia

    De início, já deixo bem claro que a intenção desse texto não é atingir ou expor ninguém. O objetivo é simples: analisar o comportamento dos grupos em tempo de pandemia (que ainda vivemos). A princípio, eu só ficaria um mês nos grupos, mas como meu celular resetou durante a produção da matéria, tive que ficar por mais um período . O texto será dividido em duas partes: a primeira será uma pequena análise do comportamento de determinados grupos, no Whatsapp e no Facebook. Na segunda parte, vou falar da minha experiência pessoal, até porque estamos em meio a uma pandemia e certas coisas afetam demais a gente.

    Por Sergio Pantolfi*

    Para ser bem sincero, eu acho que comecei a ter essa ideia a partir de um sentimento de inconformismo diante de tudo o que tem acontecido no meio da quarentena, em que o principal assunto do país não é o novo coronavírus, e sim a crise política instaurada no Brasil. Ver o que se passa dentro desses grupos foi algo chocante. O que se passa ali é muito pior do que eu poderia imaginar.

    Segundo João Guilherme Bastos, doutor em comunicação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), grupos com convite aberto ou grupos segmentados não vão além de discursos e mensagens feitos por meio de conteúdos replicados.

    Em 2018, João pesquisou 90 grupos de Whatsapp relacionados aos seis principais candidatos à presidência na época, e conseguiu analisar que alguns estão em posições estruturais dentro da cadeia do aplicativo.

    Pessoas presentes em mais de um grupo conseguem montar uma estrutura de grupos interconectados no WhatsApp, tornando possível que a desinformação se viralize rapidamente. Dentro do processo de viralização de uma fake news, a desinformação vai de nós (hubs) centrais para periféricos, adquirindo uma amplitude muito maior, diz Bastos.

    Grupos abertos com convites e links disponíveis são fáceis de entrar, uma vez que não exista nenhum tipo de barreira ou inspeção.

    Whatsapp

    Entrei em três grupos de Whatsapp no domingo dia 24 de maio e, a partir daí, é simples entrar em outros, já que sempre aparecem links e convites dos mais variados. No total, entrei em dez grupos, com nomes genéricos voltados para o patriotismo ou palavras de apoio ao presidente — e que são alterados constantemente. Por exemplo: “100% Patriotas Bolsonaro”; “Patriota contra corruptos”; “Ordem e progresso” e “#somostodosbolsonaro”.

    Dentro dos dez grupos dos quais eu fiz parte, a maioria estava cheio, ou seja, com 256 participantes em cada. Em todos, haviam mais homens (majoritariamente brancos) do que mulheres. Conforme Bastos, existem alguns motivos para isso:

    “Os grupos, em sua maioria, são formados por homens, porém existem aqueles em que só mulheres participam, por exemplo o ‘Mulheres com Bolsonaro’. Isso acontece, porque em muitos dos grupos que têm homens, outros tipos de conteúdos são compartilhados como pornografia e similares.”

    É necessário afirmar que a maioria desses grupos é bombardeada de “informações” 24 horas por dia. São fotos, vídeos, notícias de fontes duvidosas e divulgações de canais de Youtube, e de longe, são os grupos que mais compartilham conteúdo encaminhado. Muitos destes conteúdos já foram encaminhados tantas vezes, que foram limitados ao envio para somente um contato ou grupo.

    Além disso, se a opção de baixar vídeos automaticamente não estiver desabilitada, provavelmente a memória do celular vai ‘entupir’ rapidamente. Em um mês e meio (aproximadamente ), o armazenamento do meu smartphone já estava quase tão cheio, que tive de excluir alguns aplicativos e fotos para liberar espaço.

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    Print Celular com os Grupos de Whatsapp de apoiadores de Jair Bolsonaro.

    Já dentro dos grupos, logo de cara, algumas coisas chamam atenção. Uma das primeiras mensagens no grupo “#somostodosbolsonaro” era sobre o menino João Pedro, assassinado por policiais dia 18 de maio deste ano em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro.

    A mensagem que foi encaminhada, dizia o seguinte: “João Pedro, o adolescente ‘coitadinho’ que está sendo defendido no Fantástico”. Em seguida vinha um vídeo em formato Lomotif, mostrando um garoto (aparentemente menor de idade) acompanhado de armas, drogas, dinheiro, prostitutas e bebidas no meio de uma favela. Olhando o vídeo rapidamente, fica claro que o menino em questão não é o João Pedro e, mesmo assim, o vídeo foi compartilhado em quatro, dos dez grupos em que eu estava.

    Print do momento em que a mensagem foi enviada
    Print do grupo #somostodosbolsonaro

    Em seguida, mais comentários como:

    “É normal a Globo defender bandido”

    “Globo sempre refém dos esquerdistas!!”

    Depois, ao encaminhar a mensagem para mim mesmo, apareceu a notificação no Whatsapp avisando que esse conteúdo já havia sido replicado muitas vezes e que, por isso, eu só conseguiria mandar para um contato por vez, assim como contei anteriormente .

    Segundo a professora de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) Flávia Rios, o Brasil tem profundas desigualdades de natureza racial que fazem aflorar esse tipo de discurso, sempre marginalizando o negro —e isso vale para quase todos os aspectos básicos da nossa sociedade.

    “As disparidades acontecem dentro do mercado de trabalho, nos rendimentos, no acesso à educação, nos ciclos educacionais, principalmente no ensino médio. Existe uma evasão escolar ligada à questão racial de maneira muito forte, à violência de maneira igualmente muito forte. Isso influencia até no acesso à saúde, que impacta no número de mortos devido ao novo coronavírus por exemplo.”

    Além de professora, Flávia é doutora em sociologia e é associada ao projeto Race and Citizenship in the Americas e integra o projeto “Vozes do Genocídio da Juventude Negra” (CNPq/2019). Tem experiência na área de Sociologia Política e da Cultura, com ênfase nos estudos sobre ação coletiva, teorias interseccionais, relações raciais e de gênero, educação e políticas de ações afirmativas no ensino superior.

    De volta aos grupos, a maioria dos comentários feitos, em sua grande maioria, tem cunho racista, misógino, machista, além de uma quantidade absurda de mensagens contra a imprensa e em apoio à volta da ditadura militar.

    Movimentos antirracistas como o Black Lives Matter Global Network, movimento indígena, feminista e LGBTQI+ são constantemente desacreditados e criticados de maneira incisiva. Por várias vezes, a morte de George Floyd, homem negro assassinado por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, foi ironizada enquanto se multiplicavam protestos nas cidades norte-americanas.

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    Prints bolsonaristas relacionados a George Floyd

    De acordo com Flávia, abordagens como essas legitimam a violência policial também dentro do Brasil, uma vez que o próprio presidente e seus ministros as reproduzem, reverberando os discursos de grupos neonazistas e de extrema direita.

    Nesse contexto, é importante apontar que é proibido discordar dentro dos grupos, uma vez que o presidente e seus apoiadores sempre estão corretos por definição. Sérgio Moro virou comunista e até mesmo Donald Trump, um dos queridinhos de bolsonaristas passou a ser criticado por questionar as medidas de prevenção do Estado brasileiro contra a Covid-19. É bom lembrar que tanto os Estados Unidos como o Brasil lideram o ranking de mortes e casos da doença.

    Outro ponto importante é a quantidade enorme de fake news distribuídas em áudio, vídeo, links, imagem e texto. Em tempos de pandemia, era de se esperar que muitas mensagens seriam relacionadas ao coronavírus. O problema é a falsa interpretação dos textos e de vários conteúdos. Como nos exemplos abaixo.

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    Prints de grupos bolsonaristas relacionados a Covid-19

    Na última imagem, é mostrada uma matéria do site Jornal da Cidade, portal de notícias que é o queridinho em basicamente todos os grupos bolsonaristas. Foi o mais compartilhado em todos os dez em que participei, e, de longe, o de maior influência também.

    O texto publicado no dia 6 de julho de 2020 tem um tom agressivo e é composto de informações duvidosas sem a mínima base de comprovação. Há inclusive uma parte que diz assim:

    Hoje também sabemos, mas muitos “especialistas” infectologistas sabiam desde o início que a contaminação não poderia ser freada e que considerando um vírus que já circulava em meio à população, só poderia contaminar mais gente numa adoção de Lockdown. Portanto: adotar Lockdown foi um dos incontáveis crimes praticados contra a população (não só em termos de contaminação, como pela destruição da economia) … e ainda há quem os defenda, e o que é pior, os imponha.” — Jornal da Cidade

    O que se provou, na verdade, foi o oposto disso, pois em países que adotaram medidas como o lockdown , os resultados foram expressivos no combate à pandemia. Por exemplo, a Nova Zelândia e países europeus como Portugal e Alemanha já começaram a retomar as rotinas de ‘’normalidade’’.

    Por sua vez, o Brasil sozinho contava no dia 27 de julho de 2020 com mais de 87 mil mortes, enquanto o resto da América do Sul contabilizava cerca de 45 mil mortes. Isso levando em consideração que a população brasileira é de 210 milhões, enquanto o continente sem o Brasil, tem 219 milhões de pessoas. Os dados apresentados foram divulgados no dia 27 de julho de 2020 pela Organização Mundial da Saúde.

    Com isso, o Jornal da Cidade foi recentemente exposto pelo perfil Sleeping Giants no Twitter. A página mostrou casos de empresas que anunciavam no site do Jornal. Grandes conglomerados, como Americanas, Avon, Claro, Mercado Livre, entre outras, promoviam seus produtos no Jornal da Cidade.

    Para o jornalista e professor da Unesp de Bauru, Juarez Xavier, existem dois pontos fundamentais para a disseminação de notícias falsas. A primeira delas é que a veiculação de informação mentirosa distorce a percepção que a esfera pública tem sobre determinado problema. Segundo Xavier, a propagação de informações com mentiras, tira a possibilidade de entendimento, compreensão e o contexto.

    “A sua função não é informar e sim desinformar. Ao desinformar, a notícia falsa não está pautada na realidade factual. A função dela é criar uma percepção de caráter ideológico no sentido de não ter correspondência com a realidade e, a partir daí, se constrói uma narrativa falsa e mentirosa. São essas fake news que têm sido objeto de investigação do STF e condenadas por organizações de jornalistas.” — Juarez Xavier, jornalista e docente universitário

    Dentro dos grupos, também era constantemente compartilhada uma lista de sites, portais e canais do Youtube que deveriam ser seguidos. Todo o conteúdo consumido deveria estritamente vir desse tipo de comunicação, a exemplo da foto abaixo.

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    Prints dos Grupos Bolsonaristas e as recomendações para se ‘’informar de verdade’’.

    Além de terem canais com um discurso beligerante contra opositores do governo, as deputadas Carla Zambelli (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF) e o blogueiro Bernardo Küster estão sendo investigados pelo inquérito (4.781),das fake news, no qual respondem pela disseminação de notícias falsas. O blog Terça Livre, de Allan dos Santos, também aparece na lista como uma indicação de fonte confiável. Allan teve sua casa revistada pela Polícia Federal , que cumpriu mandados de busca e apreensão como parte da ação conduzida pelo STF.

    Segundo Juarez Xavier, existe uma grande diferença entre a imprensa profissional (e também independente ) e os criadores de conteúdo, uma vez que a imprensa profissional é regida por um código de ética regulamentado na Constituição. Caso o veículo ou jornalista venha a divulgar notícias mentirosas e sem conexão com a realidade factual, ele pode ser penalizado, segundo o código.

    “Não se pode dizer que existam ataques contra a imprensa profissional. O que se pode dizer, é que há setores descontentes com o trabalho independente, autônomo e crítico da imprensa e, por conta disso, têm uma ação beligerante em relação aos profissionais. O problema é quando esses setores atuam sobre participantes sociais que partem para a violência contra os profissionais de imprensa”, diz Xavier.

    No caminho da criação de conteúdo, existem portais bolsonaristas que funcionam exatamente como uma fonte independente de notícias. É o caso do grupo chamado Zap Bolsonaro. Em uma de suas mensagens, o administrador mostrou preocupação com o inquérito das fake news e fez um alerta para os integrantes de que muitas das informações deveriam ser apagadas.

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    Prints do Grupo ZapBolsonaroSP.

    Esse grupo é relativamente novo, criado em maio de 2020 e é vinculado ao site https://zapbolsonaro.com/. Existe um total de 27 grupos, um para cada estado brasileiro mais o Distrito Federal, e neles a interação e divulgação de mensagens é restrita apenas ao administrador. Os demais membros são proibidos de interagir.

    No grupo, encontram-se muitos links e mensagens defendendo a tese segundo a qual o coronavírus é uma invenção chinesa, ou até mesmo de que João Dória (PSDB-SP), governador do estado de São Paulo, teria um escritório na China. Esses posts foram veiculados pelo dono do grupo.

    O administrador é um homem chamado Newton Martins. Além do site e dos grupos, ele também possui perfis em todas as redes sociais e um canal no Youtube. Pelo seu número, é possível ver que ele mora fora do país, mais especificamente nos Estados Unidos. O curioso também é que muitos dos números dos integrantes são do exterior. O vídeo abaixo, feito pelo próprio autor em seu canal, mostra como fazer para entrar nos grupos.

    https://youtu.be/cWF4RqfNzUE

    A maioria dos links compartilhados nos grupos de Whatsapp provém do Youtube e está ligada a algum canal, site ou conteúdo de fora. Então é necessário que a desinformação já esteja alocada em outra plataforma pra poder ser compartilhada” — João Guilherme Bastos doutor em comunicação social e pesquisador.

    É esse o caso do grupo ZapBolsonaro, uma vez que o seu autor alimenta e compartilha vídeos do seu próprio canal nos grupos de Whatsapp.

    Facebook

    No Facebook, a estrutura é completamente diferente. Apesar de existir uma variedade enorme de grupos dentro da plataforma, é muito fácil filtrar os que são mais famosos e relevantes, justamente pela quantidade de pessoas dentro do grupo e pelos administradores responsáveis.

    A maioria dos nomes dos grupos também é algo genérico e utiliza a alcunha de “Aliança pelo Brasil” em alusão ao partido que Bolsonaro quer criar desde que se desligou do PSL. A página tem constantes ataques a opositores e informações falsas que são amplamente divulgadas por lá. Apesar disso, não encontrei o perfil ligado diretamente aos grupos em que entrei. Muitos desses grupos têm o selo de verificação do Facebook, o que parece ser contraditórios com as medidas de combate a notícias falsas já anunciadas pela rede.

    Conforme as próprias diretrizes da rede social, uma página é verificada quando:

    Além de seguir os termos de serviço do Facebook, sua conta também precisa ser:

    Autêntica: sua conta deve representar uma pessoa real ou uma entidade/empresa registrada.

    Única: sua conta deve ser a única presença da pessoa ou da empresa que representa. Apenas uma conta por pessoa ou por empresa pode ser verificada, com exceções para contas específicas de idiomas. Não verificamos contas de interesse geral (por exemplo, Puppy Memes).

    Completa: sua conta deve ser pública e ter uma biografia, uma foto de perfil e pelo menos uma publicação.

    Notável: sua conta deve representar pessoas, marcas ou entidades bastante conhecidas e pesquisadas. Analisamos contas que aparecem em várias fontes de notícias. Não consideramos conteúdo promocional ou pago como fontes para análise.

    Se você fornecer informações falsas ou enganosas durante o processo de verificação, removeremos seu selo de autenticidade e poderemos adotar medidas adicionais para excluir sua conta — Leis de privacidade do Facebook.

    Destaque para esse último parágrafo em relação à página “Aliança pelo Brasil”, perfil que também compartilha notícias falsas.

    Mas, voltando aos grupos. Inicialmente, participei de dez. Em todos eles existe um certo filtro ou questionário, que deve ser respondido antes de entrar no grupo para, segundo as próprias descrições dessas comunidades, afastar “comunistas, socialistas e esquerdistas que vão de encontro com as normas do grupo”.

    Outra característica é a existência de regras dentro dos grupos que, ou você segue, ou é banido rapidamente pelos administradores. Em geral, as normas são quase que um padrão, por exemplo ‘’cuidado com fake news’’ ou ‘’sem posts esquerdistas no grupo’’, etc.

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    Prints de regras e requisitos para fazer parte de grupos Bolsonaristas.

    Algo que me impressionou, com certeza, foi o número de publicações e de participantes nos grupos. Diferentemente do Whatsapp, o Facebook não limita o número de pessoas e nem a quantidade de publicações que podem ser feitas naquele mesmo espaço.

    Um grupo chamado “Eduardo Bolsonaro Oficial” com 600 mil perfis, tinha a incrível marca de 160 mil publicações por dia. Durante esses dois meses, o grupo caiu e foi refeito no dia 14 de junho de 2020 e hoje já conta com 38 mil pessoas e mais de 127 mil publicações em um mês.

    O grupo “Aliança pelo Brasil — Presidente Jair Messias Bolsonaro” é administrado pela página SomostodosBolsonaro, que conta com mais de 1 milhão e 800 mil curtidas. O perfil foi criado em fevereiro de 2017 e ficou conhecido entre os apoiadores do presidente muito antes das eleições presidenciais de 2018.

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    Informações básicas sobre os grupos apoiadores de Bolsonaro.

    Apesar de ser estruturalmente diferente do Whatsapp, ainda existem algumas semelhanças, principalmente no tipo de conteúdo publicado. Assim como as mensagens encaminhadas no aplicativo de mensagens, muitas das postagens dos grupos do Facebook são de páginas de fora da rede social ou links do Youtube. Ou seja, são compartilhadas para dentro dessas comunidades.

    Em específico, acompanhei as publicações na época de pandemia sobre o coronavírus e o início das votações para a PL 2630/2020, que investiga notícias falsas.

    A “PL da censura” — como era descrita na maior parte das postagens — movimentou os grupos rapidamente com uma “enxurrada” de mensagens contra o projeto de lei no seguinte sentido:

    ‘’Não podem nos calar, isso é censura.’’

    ‘’Estão querendo censurar o povo brasileiro.’’

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    Prints de Grupos Bolsonaristas

    O mesmo aconteceu acerca da Covid-19 . Enquanto o país atravessa uma média de mais de mil mortos por dia, muitas matérias eram compartilhadas afirmando que a Covid-19 é uma mentira, assim como o lockdown e o isolamento social. Até mesmo o uso de máscaras foi recriminado dentro dessas comunidades.

    O foco é basicamente combater dados científicos, apostar em teorias mirabolantes e na inversão de valores noticiosos. No entanto, da mesma forma que no Whatsapp, vários desses grupos são apenas grandes replicadores de notícia e a estrutura é simplesmente compartilhar mais vezes possível.

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    Prints com matérias de grupos bolsonaristas.

    Importante destacar que, diferentemente do Whatsapp, o “Jornal da Cidade” não apareceu entre os portais mais veiculados, apesar da grande quantidade de notícias falsas.

    No grupo “Estou com Bolsonaro Presidente 2022 no Aliança pelo Brasil”, o site mais compartilhado é o welessonoliveira.com.br . O portal é publicado pelo próprio Welesson, que é jornalista e apresentador da TV Rio Doce em Governador Valadares, Minas Gerais. Além do seu perfil pessoal, ele possui uma página com mais de oito mil curtidas na qual divulga entrevistas com políticos ligados ao PSL.

    Afora lives e comunicados, Welesson também faz links para aparições ao vivo do presidente e enche o grupo com matérias para o seu site. O jornalista também é dono da página “TV Bolsonaro Presidente”, que conta com mais de 85 mil curtidas e é lotada de vídeos do programa que apresenta, o “Na Integra”.

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    Prints de Welesson no Facebook

    Como Experiência Pessoal

    Apesar de ser fácil permanecer nos grupos sem ser incomodado, é basicamente um desperdício de saúde mental, por isso não recomendo de forma nenhuma.

    Se você realmente pensa em fazer algo parecido, eu sugiro que seja para fazer algum estudo ou tentar tirar algum proveito para analisar determinados segmentos, se não, é como ficar se flagelando em um momento em que as coisas já não estão boas por conta da pandemia.

    No Facebook, foi uma situação menos pior, já que não uso mais a rede com tanta frequência e conseguia ignorar a atuação dos grupos bolsonaristas; no Whatsapp o problema era maior, pois usava a plataforma também para falar com amigos, família e trabalho. Nesse meio tempo, acabei me afastando de lá por um tempo e até de outras redes sociais, como Twitter e Instagram.

    Entretanto, algumas vezes pode até ser engraçado, a exemplo de quando mandam mensagens de bom dia que se assemelham com aqueles gifs que provavelmente sua tia te manda, ou quando aparecem pessoas que “invadem” o grupo para travar o aplicativo ou mandar stickers comunistas, além de partidos e políticos ligados à esquerda brasileira. Porém, são prontamente removidos e o grupo se fecha novamente.

    Também acontece de dar risada com mensagens enviadas pelos próprios integrantes dos grupos. São coisas tão absurdas e surreais que você acaba por pensar: “Como tem gente que acredita nessas coisas?” Sim, você volta para si mesmo e se lembra que eles não só acreditam, como replicam esse tipo de conteúdo. Vou dar um exemplo com imagens abaixo.

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    Prints com imagens de grupos bolsonaristas.

    Porém, isso acaba sendo até bem triste, na verdade. Primeiro por utilizarem a imagem de Jair Bolsonaro comparando-o com um messias ou alguém abençoado por Deus. Inclusive, uma de suas maiores estratégias durante sua campanha presidencial foi a utilização de discursos religiosos como chance de obter votos. Em segundo lugar, é lamentável ver que eles compartilham (e acreditam) em uma imagem totalmente sem nexo, colocando Hitler como um antagonista das armas –justo ele!

    Imagens assim aparecem “a torto e a direito” na maioria desses grupos. É normal chegar no fim do dia (lá pelas 22h) com 600, 700 mensagens para visualizar porque, simplesmente, eles não param de bombardear conteúdo o dia inteiro.

    E as imagens que eu trouxe são só a ponta do iceberg , porque o tanto de vídeos, áudios e links que são expostos por lá também não é brincadeira. Além disso, optei por não colocar os vídeos aqui pois são muito pesados, (geralmente chegam a ter mais de 7 ou 8 minutos) e sempre é algo como “Bolsonaro bota deputado esquerdista no seu lugar”, “PT não consegue mais governar e agora quer armar golpe para tirar presidente Bolsonaro” , “Atenção patriotas, caminhoneiro convoca greve contra o presidente, vamos ajudá-lo e expulsar os esquerdistas do país, viva a ditadura!!”. Isso vale tanto para Whatsapp, quanto para Facebook.

    Sem falar nas grandes correntes e teorias conspiratórias que rondam o imaginário bolsonarista. Como falei, muito do conteúdo que circula nesses grupos são mensagens repassadas e que acabam virando correntes de uma forma ou de outra.

    Frivolidades, como a disputa da final do campeonato carioca transmitida pelo SBT, virou objeto de “luta” e “resistência” contra a Globo. Integrantes que nem torciam para Flamengo ou Fluminense estavam vendo o jogo, porque era em uma rede de televisão concorrente da emissora carioca.

    Particularmente, uma das correntes que eu mais gostei foi a do estado da Bahia que é o “centro da China no Brasil”. Acho que nada explica melhor que as imagens, né?

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    Prints da corrente sobre a Bahia ser o núcleo chinês no país

    Isso é apenas uma parte dessa corrente que passou por, literalmente, todos os grupos do qual eu participei. Durante o processo, demorou, mas fui expulso de dois grupos por falta de atividade . Eu não escrevia nada e raramente interagia, já que estava ali apenas para observar. Ainda sim, questionei algumas coisas triviais e fui removido por não colaborar diretamente com o grupo.

    Como já disse, certamente não recomendo isso a ninguém, nem para “ver como é”. Desgasta bastante ser bombardeado com um monte de notícia falsa e discurso de ódio o dia inteiro e, provavelmente, a análise que você vai fazer, é parecida com essa que eu trouxe. É horrível de verdade. Não façam.

    Links úteis:

    Aqui, deixo alguns links de trabalhos e matérias sobre o assunto, incluindo a pesquisa do João Guilherme Bastos que detalha muito mais o comportamento dos grupos e como funciona a cadeia da plataforma no Whatsapp.

    WhatsApp, política mobile e desinformação: a hidra nas eleições presidenciais de 2018 — https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/CSO/article/view/9410

    Sergio Pantolfi, 24 anos, é jornalista formado pela Unesp. Autor do Livro ”Quando a Água Toca a Terra”, escrito em parceria com Giovanna Bonfim de Castro.
    Instagram: @sergiopantolfi
    Twitter: @serjeuros
    Facebook: Sergio Pantolfi

  • Oposição de esquerda joga parada guerra de informação e disputa pelo domínio da comunicação

    Oposição de esquerda joga parada guerra de informação e disputa pelo domínio da comunicação

    Por Yuri Silva*

    As ‘fake news’, elemento definidor das eleições presidenciais de 2018, exploradas principalmente pelo então candidato Jair Bolsonaro (à época no PSL) e pelos seus asseclas, continuam sendo parte marcante do dia-a-dia da sociedade brasileira, quase dois anos depois do resultado eleitoral.

    Desta vez, as crises política, sanitária e social, provocadas pela pandemia do Coronavírus e pela gestão pública controversa sobre o assunto, são os temas prioritários dos conteúdos que circulam nas redes sociais digitais.

    Numa intensa disputa de narrativas envolvendo questões como a eficácia da utilização (ou não) da Hidroxicloroquina, a demissão sequencial de ministros da Saúde, a crise envolvendo a demissão do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, as formas de tratamento contra o COVID-19 e até mesmo a necessidade do isolamento social, bolsonaristas novamente aparecem em vantagem no placar dos debates contra as forças de oposição, aqui incluídas muito mais as forças de esquerda (desintegradas e vacilantes nesse quesito) e muito menos os setores da direita e da ultradireita que mostram-se anti-Bolsonaro.

    Defendendo a abertura dos comércios e serviços não-essenciais e fúteis como se essenciais fossem, o uso de remédios sem comprovação científica e absurdos outros semelhantes no campo das pautas ideológicas, informações compartilhadas pelas milícias digitais relacionadas a Bolsonaro — e comandadas no topo da cadeia pelo filho do presidente Carlos Bolsonaro, vereador e chefe do Gabinete de Ódio — têm surtido efeito práticos que, ainda que se queira, não podem ser negados.

    O nível de isolamento social no país tem sido reduzido dia após dia, conforme dados oficiais; as mortes devido à contaminação pelo vírus também têm chegado a patamares cada vez maiores; e o número de casos cresce vertiginosamente, aproximando o Brasil do posto de epicentro da doença.

    São esses apenas alguns dos claros elementos que apontam o triunfo das ‘fake news’ – nome estrangeiro utilizado nos últimos tempos para denominar as mentiras propagadas por grupos neofascistas que ganharam espaço (aparentemente permanente) na disputa sociopolítica e ideológica nacional.

    Enquanto isso, na era da pós-verdade, as “bolhas” da esquerda seguem transmitindo e alimentando outro sentimento sobre o placar desse jogo, completamente ilusório. Fechados em nossas redes repletas de posicionamentos próximos, iludimo-nos sobre quem está em vantagem. Divulgamos memes de humor contra o presidente e sua trupe da ópera-bufa do Palácio do Planalto; compartilhamos artigos bem escritos e que parecem pensados para serem consumidos (e elogiados) por outros intelectuais, pseudo-intelectuais, militantes e mais gente já convertida às nossas teses; arrotamos argumentos com linguagem pouco acessível, com citações acadêmicas, sociológicas ou filosóficas; e nos regojizamos com leituras que têm a função exclusiva de reafirmar aquilo no que já cremos.

    Na prática, contudo, pouco refletimos sobre como atingir de fato a massa da população, que ainda segue correndo riscos sanitários, por dureza financeira ou por ter sido alcançada e convencida pelas mentiras propagandeadas pelo outro lado. Pouco ou nada nos movemos para alcançar a “ralé brasileira” que continua nas filas da Caixa Econômica Federal em situação de exposição, sub-humanidade ou subcidadania e, ainda assim, acredita piamente que está sendo beneficiada por causa do esforço do Governo Federal dirigido pelo ser ignóbil eleito nas últimas idas às urnas. Nada ou pouco fazemos para dialogar e mudar o pensamento daqueles que seguem acreditando na necessidade de realizar-se o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) mesmo em condições de desigualdade do tamanho de um abismo, ou para trazer para o nosso lado aqueles que defendem a volta ao trabalho por medo dos crescentes desemprego e desalento que afligem o Brasil há pelo menos quatro anos.

    Fato é que produzimos conteúdo para nós mesmos e somos tímidos “café-com-leite”, como dizíamos na infância, na batalha da comunicação. Evitamos engrossar a audiência dos canais da grande imprensa, pois discordamos da linha editorial destes, mas sequer somos capazes, enquanto partidos políticos e movimentos sociais, de construir alternativas de massa pra substitui-los.

    Jogamos para a pequena audiência que consideramos, nas nossas cabeças preconceituosas, qualificada. E é nesse ponto que somos derrotados pelas ‘fakes news’, pela pós-verdade, pelas mentiras ou seja lá o nome que queiram adotar para esse fenômeno. Pois elas são feitas para a massa e consumidas por ela, pelo povão que tem pouco hábito de leitura e aprendeu a se comunicar prioritariamente pelo zap (e não por textões, como esse que você lê, publicados em GGN’s, Brasil247’s e outras plataformas afins).

    Ao aderir a essa prática, dando volume a ela por meio de seus grupos de WhatsApp que funcionam como pirâmides de transmissão de inverdades, o bolsonarismo coloca em prática, mas de forma muito mais eficaz (embora criminosa) o que sempre desejamos fazer na esquerda: desintermediar a informação, a comunicação, o poder de pautar a sociedade.

    O que seria isso? Explico: desintermediar a informação trata-se do ato ou da capacidade de comunicar-se, produzir conteúdo, sem que este conteúdo/informação precise de órgãos tradicionais de imprensa/comunicação para que seja chancelado ou tidos como verdade. Inverte-se, aqui, a lógica tradicional pela qual tal fato só é verdade se há um veículo ou um profissional de comunicação por trás daquela informação. O bolsonarismo fez isso com brilhantismo: o zap é o canal de transmissão de comunicação e conteúdo e ele mesmo, por si só, dá teor de verdade ao que é compartilhado, sem necessidade de quasiquer chancelas.

    É verdade que até tentamos (acredito que de forma mais tímida e pela metade) colocar em prática um processo semelhante de desintermediação (que mais era uma tentativa de mudança dos intermediadores da comunicação). Criamos e “vitaminamos” veículos progressistas que até hoje produzem qualificados materiais jornalísticos e opinativos para a reflexão sobre política, economia e também sobre comunicação e a necessidade de democratizá-la. Mas, repito, falamos quase sempre para nós mesmos, fincados em certa arrogância e em “intelectualismos” embranquecidos, eurocêntricos e pequeno-burgueses.

    Veículos de informação negros e periféricos, a exemplo deste Mídia 4P (mais jovem) e de outros (mais antigos), também tentaram esse caminho, mas igualmente pela metade e esbarrando nas bolhas constituídas involuntariamente e dentro da qual ecoam seus escritos e registros audiovisuais — que reafirmo serem de qualidade, mas que, não digo isso com prazer, atingem apenas os cerca de 35% que já compõem nosso campo ideológico.

    Por mais incrível que possa parecer, são justamente os veículos de mídia considerados tradicionais e ideologicamente alinhados ao neoliberalismo e à direita tradicional brasileira que, neste contexto de crise sanitária e sociopolítica, conseguem melhor combater as ‘fake news presidenciais’ e colocar-se como alternativa na batalha da informação. Movidos obviamente pelo poder econômico, pelo alcance de massa e pelo prestígio que já detêm e pelo desejo de encrustar no poder uma alternativa “civilizada” de direita, derrubando assim Jair Bolsonaro do Planalto, grupos empresariais como Rede Globo, Folha de S. Paulo e outros tratam de “re-intermediar” a comunicação.

    Ou seja, em meio à enxurrada de mentiras, brigam pela retomada de parte do poder que possuíam e que perderam ao longo da última década: o poder de dizer o que é verdade e o que é mentira. Combatem o discurso anti-ciência, desmentindo o presidente, seus filhos e seus aliados constantemente; constroem plataformas de checagem de informações junto a parceiros do jornalismo nacional e internacional; e, ainda que vivam dificuldades financeiras antes mesmo da COVID-19, conseguem avançar na disputa de ideias na sociedade.

    Em resumo, aqueles que sempre falsearam as informações ao bem querer dos seus interesses agora emergem como opositores da mentira. Contradições?! Temos.

    Redes sociais como Instagram e Twitter, que ostentam milhões de usuários e até então foram tubos de transmissão de informações falsas sem mover-se do lugar, também seguem a mesma estrategia dos meios tradicionais: apostam em ser novos intermediadores da informação ao passarem a dizer, por meio de novas tecnologias recém-lançadas, se um conteúdo publicado pelos usuários é mentira ou verdade.

    Não fica atrás o WhatsApp, canal principal das ‘fake news’, que, embora tenha fechado os olhos para as disseminações de inverdades que influenciaram em eleições presidenciais nos Estados Unidos e no Brasil, agora limitam envio de mensagens em massa para combater essa prática.

    Essa trata-se de uma guerra muito maior e mais importante para a disputa política e ideológica do que parece. É a guerra para definir quem deterá o poder da comunicação, no mundo, quando esse “caos da desinformação” passar ou mesmo que ele siga como parte constituinte dos processos sociais. Nós da esquerda, até agora, continuamos perdendo esse jogo. E parece, para mim, que usamos a estratégia de jogar parados.


    *Yuri Silva é jornalista formado pela UNIJORGE, especialista em mídias sociais digitais, consultor de comunicação e política, editor-chefe do portal Mídia 4P eassessor de comunicação. Já atuou como repórter freelancer de veículos como o jornal O Estado de São Paulo (Estadão), The Intercept Brasil e Revista Piauí. É ex-repórter do jornal A TARDE e ex-correspondente do Estadão na Bahia. Também é ativista antirracista, ocupando as funções de coordenador nacional do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e de conselheiro de Direitos Humanos do Estado da Bahia.

  • Editorial: Conhecereis os fatos e a verdade aparecerá

    Editorial: Conhecereis os fatos e a verdade aparecerá

    O jornalismo, assim como a ciência, não se pretende detentor da “verdade”. Nossa matéria-prima são os fatos. E os fatos bem apresentados a leitores, ouvintes e telespectadores são fundamentais para cidadãos tomarem decisões políticas. Jornalistas sérios, como a colega Patrícia Campos Mello, apuram, documentam e relatam fatos importantes para a compreensão da realidade cotidiana. Foi exatamente isso que ela fez na premiada série de reportagens que demonstrou, com dados, fatos e documentos, a contratação de empresas de “marketing” para o ilegal e milionário disparo em massa de mensagens de WhatsApp destinadas a favorecer a candidatura de Jair Bolsonaro e outros políticos de extrema direita  nas eleições de 2018. Como atestaram entidades do porte da Organização dos Estados Americanos, o Brasil foi o primeiro caso documentado em que as fake news (MENTIRAS, em bom português) distribuídas massivamente por celulares tiveram papel decisivo nas eleições majoritárias de uma grande democracia. Mais tarde, reportagem do jornal britânico The Guardian trouxe uma pesquisa provando que 42% de mais de 11 mil mensagens virais utilizadas durante a campanha eleitoral no Brasil traziam conteúdo falso (MENTIRAS) que favoreciam o então candidato de extrema direita à presidência.

    Os fatos, portanto, são que campanhas de extrema direita por todo país, incluindo a presidencial, se utilizaram de recursos ilegais e fake news para eleger seus candidatos. Os fatos são que os órgãos de fiscalização das eleições, como o Tribunal Superior Eleitoral, viram isso acontecer e não tomaram, à época, as atitudes que deveriam tomar. Os fatos são que o homem que ocupa a presidência e seus asseclas se elegeram e governam por meio de mentiras e ilegalidades. O fato é que por meio dessas mentiras, o governo caminha rapidamente para um fascismo aberto e ataca diariamente todas as instituições democráticas brasileiras, especialmente as que trabalham com fatos, como o jornalismo. E os fatos são que, apesar de gostarem de usar um versículo bíblico associando verdade e liberdade, o que se tem são mentiras e agressões diárias contra pessoas que trabalham com fatos, como cientistas e jornalistas.

    Ontem, o Brasil viu estarrecido a escalada de um novo patamar nas mentiras, baixarias, calúnias e difamações, apoiadas e divulgadas pelo governo, contra uma jornalista e, portanto, contra toda a imprensa séria nacional. Patrícia Campos Mello foi alvo, em pleno Senado da República, não somente de mentiras sobre sua atuação profissional impecável no caso, mas também de calúnias de conteúdo sexual, o que demonstra, mais uma vez com fatos, que esse governo não apenas é fascista e mentiroso, como também machista e misógino. A Patrícia, toda a nossa solidariedade e apoio, tanto pessoal como profissional.

    É passada a hora de a imprensa brasileira dar um basta nas mentiras e agressões desse governo que tomou posse há mais de um ano num evento grotesco em que os jornalistas foram confinados longe dos políticos e ameaçados de serem baleados se tentassem se aproximar. Não é possível que os colegas da mídia hegemônica sigam aceitando as “coletivas” da porta do Palácio do Planalto em que o homem que ocupa a presidência os xinga, manda calarem a boca, destrata os veículos para os quais trabalham e foge cada vez que é feita uma pergunta diferente da que ele quer responder. É urgente que jornais, rádios, TVs e portais noticiosos PAREM de tratar esse governo como “normal” e usem as palavras corretas para designar os fatos. Mentiras são mentiras. Fascismo é fascismo. Extrema direita é extrema direita. Retirada de direitos é retirada de direitos. Autoritarismo é autoritarismo. Corrupção é corrupção. Milícia é milícia. E bandidos são bandidos.

    A sociedade e os democratas brasileiros devem exigir das autoridades que ainda não foram totalmente cooptadas por esse governo fascista que façam funcionar as instituições democráticas. Os mentirosos e caluniadores precisam ser processados. Os crimes, inclusive de morte como da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, precisam ser investigados e punidos. Os políticos que se beneficiaram de esquemas de corrupção, financiamento ilegal de campanhas e difusão em massa de mentiras precisam ser cassados, ainda que se faça necessário anular as eleições de 2018.

    Não é a mentira manipulada com o uso versículos bíblicos para enganar a população de boa fé que vai nos libertar. Nossa libertação como nação virá da VERDADE proveniente dos FATOS. E para isso, uma imprensa forte e independente é fundamental.

  • Projetos de poder se alimentam das suas emoções e as redes sabem disso

    Projetos de poder se alimentam das suas emoções e as redes sabem disso

    Por Selma Bellini para os Jornalistas Livres

    Estamos vivendo hoje um governo eleito via WhatsApp e redes sociais. Este é um fato. Por mais que a análise dos motivos que levaram Bolsonaro ao poder seja ampla e complexa, não há dúvidas de que as redes sociais e aplicativos de mensagens foram os meios de comunicação que influenciaram o resultado. Muitos estudiosos estão dedicados a analisar tal estratégia, que segue o que tem acontecido em outros países onde a extrema direita tem se destacado. O objetivo deste texto não é, portanto, discutir o que a campanha de Bolsonaro fez nas redes sociais para chegar ao poder. O que se pretende aqui é discutir o futuro dessa dinâmica nas redes sociais, com foco no papel que nossas emoções desempenham nesse sistema.

    O peso das redes sociais e aplicativos de mensagem tende a ser cada vez maior em nossa vivência política e também na comunicação do novo governo, assim como também seguem presentes as possibilidades de manipulação que esses meios têm propiciado. O novo governo utiliza suas redes sociais da mesma forma que o fez durante a campanha e as consequências disso podem ser bastante cruéis. A possibilidade de enxergar cenários políticos com alguma clareza, por menor que ela seja, pode ser cada vez mais difícil; a confusão entre verdade e mentira pode aumentar consideravelmente e as bolhas podem ficar cada vez mais fortes. O principal ponto deste texto é considerar que há algo muito importante sustentando e alimentando toda essa dinâmica: nossos medos, raivas, desejos de aceitação, necessidade de vínculos e inseguranças. Nossas emoções formam o “combustível” que impulsiona as velozes engrenagens de manipulação na comunicação digital.

    Antes de falar sobre como nossas emoções são o alimento dessa dinâmica das redes, um breve recuo sobre o cenário geral no que se refere à manipulação política nas redes. No ano passado, a Universidade de Oxford divulgou o estudo “Challenging Truth and Trust: A Global Inventory of Organized Social Media Manipulation”, que analisou as novas tendências de manipulação organizada pelas mídias sociais e as crescentes capacidades, estratégias e recursos que sustentam o fenômeno. Segundo o estudo, há evidências de campanhas manipulatórias das mídias sociais, formalmente organizadas, em 48 países. Na 1ª edição do estudo, eram 28. E o Brasil está nessa lista. Em 20% dos 48 países, incluindo o Brasil, pesquisadores encontraram evidências de campanhas de desinformação por meio de aplicativos de bate-papo, como WhatsApp. O estudo menciona ainda o uso de bots, conNtas-fake, automação de comentários, entre outras estratégias.

    Não é novidade: campanhas políticas sempre buscam manipular emoções com mensagens que alcançam diretamente nossos medos e esperanças. As grandes manifestações políticas da história sempre estiveram imersas em nossos medos, desejos, amores, ódios e esperança. Da mesma forma, a disseminação de informações falsas sobre adversários não é criação bolsonarista ou das redes sociais. O que há de novo, além da velocidade das redes e de sua constante presença em nossas vidas, é o fato de que há uma gigantesca quantidade de informações a nosso respeito, com uma capacidade de processamento de dados que cresce a cada dia e permite desenhar análises de cenários complexos e específicos cada vez mais rápido. Ao lado disso, a mobilização emocional dos usuários possibilita a distribuição viral e rápida de notícias falsas, sobretudo em grupos privados, o que dificulta o rastreamento, além de manter o buzz distante dos “olhos” da sociedade e da mídia.

    Cada post, curtida ou comentário nas mídias sociais alimentam os algoritmos, que aprendem sobre a forma como pensamos, os nossos desejos e fragilidades. A Cambridge Analytica surgiu assim (vale ler aqui este ótimo artigo, publicado em dezembro de 2016, sobre o nascimento da Cambridge Analytica). E não são apenas os dados de redes sociais: nossas pesquisas, compras e acessos na internet, por exemplo, dão pistas sobre nossos comportamentos e emoções.

    O livro “Psicopolítica digital – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder”, do filósofo Byung-Chul Han, lançado em 2014, discute justamente como os dados que fornecemos às redes podem ser interpretados e transformados em cenários conclusivos até mesmo sobre nossos desejos inconscientes que, então, poderiam ser facilmente explorados. Vale resumir aqui as próprias palavras de Byung-Chul Han: “Como uma lupa digital, o data-mining ampliaria as ações humanas e revelaria, por trás do espaço de ação estruturado pela consciência, um campo de ação estruturado de maneira inconsciente. A microfísica dos big data tornaria visíveis actomes, isto é, microações que escapariam à consciência. Os big data também poderiam promover padrões coletivos de comportamento dos quais não seríamos conscientes como indivíduos. Com isso, o inconsciente coletivo ficaria acessível. (…) A psicopolítica digital seria então capaz de aproveitar o comportamento das massas em um nível que escapa à consciência”.

    No recém-lançado “No Enxame”, o autor volta ao tema da psicopolítica digital. Ele reafirma que “a possibilidade de decifrar modelos de comportamento a partir do Big Data enuncia o começo da psicopolítica” e alerta que a “sociedade digital de vigilância, que tem acesso ao inconsciente-coletivo, ao comportamento social futuro das massas, desenvolve traços totalitários”, entregando-nos à programação e ao controle psicopolítico.

    Para entender o peso da análise de Byung-Chul Han é importante considerar o crescimento exponencial da quantidade de informações que compartilhamos nas redes, algo que fazemos em grande medida sem questionar os porquês que nos levam a isso. O filósofo avalia tal comportamento sob a ótica neoliberal, a qual nos tem levado a uma necessidade de exposição e transparência cada vez maior em função do crescimento do poder das novas tecnologias.

    “A transparência também é reivindicada em nome da liberdade de informação. Na verdade, ela não é nada mais que um dispositivo neoliberal. Ela vira tudo violentamente para fora, para que possa produzir informação. Nos modos atuais de produção imaterial, mais informação e mais comunicação significam mais produtividade, aceleração e crescimento. A informação é uma positividade que, por carecer de interioridade, pode circular independente do contexto. Isso permite que a circulação de informação seja acelerada à vontade”, avalia Han. A fronteira que protege nossa intimidade vai ficando cada vez mais apagada e nós estamos ajudando nesse processo ao nos engajarmos de boa vontade, com dados preciosos para as redes.

    Não basta, portanto, termos consciência de como nossas emoções alimentam as redes sociais. Também é preciso compreender o ambiente em que tais mudanças estão acontecendo e que tem nos influenciado. Como nos lembra o filósofo, o poder não necessariamente se opõe à liberdade. Ele pode até mesmo usá-la, tornando as pessoas dependentes, em vez de obedientes. Ora, em que medida a nossa “liberdade” nas redes sociais está sendo utilizada para projetos de poder? O que não estamos enxergando nessa suposta transparência de livre escolha em que os algoritmos definem o que queremos ver? Até que ponto somos realmente livres ao utilizar as redes sociais se não sabemos exatamente como elas funcionam ou como nossos dados são utilizados? Seria possível pensar em uma espécie de educação digital para que as pessoas tivessem um pouco mais de consciência sobre como suas emoções alimentam o sistema?

    Também importante considerar neste cenário a rapidez da análise e processamento de dados, um ponto abordado por Jamie Susskind em “Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech”, publicado pela Universidade de Oxford em setembro de 2018 (ainda sem título no Brasil). O crescimento da quantidade de dados a nosso respeito nas redes, aliado ao aumento da capacidade de processamento e a evolução das análises por inteligência artificial podem criar novas formas de poder e alterar drasticamente nossa vivência política (entendendo aqui política num sentido mais amplo, de convivência, não apenas no sentido partidário, eleitoral ou de governos).

    De forma geral, o que o autor demonstra, e ele não é o único a fazer isso, é que quem controlar as tecnologias terá um enorme poder nas mãos – um poder maior do que o dos governos ou aliado a eles. Tal poder será exercido de formas variadas e não será perceptível para muita gente, levando a um grau de controle sem precedentes em nossas ações, pensamentos, emoções e formas de ver o mundo, 24 horas por dia e com ares de liberdade e evolução. Insights sobre nossa psiquê, algoritmos e análises por inteligência artificial formam um cenário em que poder, justiça e liberdade poderão ser vividos de forma tão diferente, que sequer podemos imaginar com exatidão como será tal futuro. O que ele faz no livro é ir colocando as peças desse quebra-cabeça na mesa para que possamos ter alguma ideia do que pode acontecer.

    A hipótese que guia Jaime em “Future Politics” é que a forma como reunimos, armazenamos, analisamos e comunicamos informações está fortemente relacionada com a forma como organizamos e fazemos política. Ou seja, quando a sociedade desenvolve tecnologias disruptivas para informação e comunicação, também devemos esperar efeitos políticos. O perigo central que Jaime aponta é que gradualmente, e talvez inicialmente sem nos darmos conta, nos tornemos cada vez mais subjugados a sistemas que não só não entendemos direito, mas que não poderemos controlar. Neste cenário, ficamos à mercê dos que controlam esses sistemas, com implicações para a política, para a democracia e para nossas emoções.

    Firehosing e as nossas emoções

    Como dissemos anteriormente, as emoções impulsionam em grande medida a viralização de notícias falsas. Não é nossa avaliação sobre a veracidade ou utilidade do fato que impulsiona grande parte dos compartilhamentos, mas sim nossas emoções. Os jornalistas têm apontado, por exemplo, a utilização de uma técnica de manipulação que estudiosos chamam de firehosing, que consiste em divulgar mentiras em grande escala, por variados canais, em um fluxo constante, mergulhando as pessoas em tantas informações que fica difícil sair da confusão. O nome da técnica vem de firehose, que em português seria mangueira de incêndio. E é isso que a técnica faz: uma grande mangueira de incêndio espalhando falsidades em alta velocidade e de forma ininterrupta, por vários canais. Durante a campanha política, era fácil enxergar essa técnica no dia-a-dia, mas ela volta sempre em momentos importantes. Como exemplos recentes, podemos citar a dinâmica de fake news sobre a decisão de Jean Wyllys de deixar o Brasil e sobre Brumadinho (MG).

    Só que o Firehosing só funciona completamente se as pessoas compartilharem as informações falsas. Por sua vez, estas mentiras só serão compartilhadas em grande escala se despertarem emoções no indivíduo – algo suficiente para que ele nem reflita a respeito daquele conteúdo. E aí vem a parte mais cruel dessa história: com os nossos dados cada vez mais mapeados, processados e compreendidos, as nossas emoções passam a ser facilmente identificáveis e as mensagens falsas são produzidas sob medida para impactar nossas emoções já previamente identificadas, amplificando, mais do que tudo, ódio, raiva e medo. Isso foi dito com todas as letras pelo próprio Presidente da Cambridge Analytica (CA), em uma gravação escondida realizada pela Channel 4, do Reino Unido. Em março de 2018, o canal exibiu reportagem contando como CA atuava. A matéria foi fruto de uma investigação de 4 meses. Uma das frases do CEO dá bem o tom da estratégia: “Não é bom lutar numa eleição com fatos porque no fundo é tudo emocional. O grande erro dos principais partidos é que eles tentam ganhar no argumento, ao invés de localizar o centro emocional da questão”. Sem nossas emoções mobilizadas a ponto de não podermos parar para questionar, podemos imaginar que a mangueira do firehosing não se sustentaria por muito tempo.

    No caso da política brasileira, não está claro até que ponto a estratégia adotada pela campanha vencedora e, agora, na comunicação do novo governo, é altamente estratégica e organizada ou se, por outro lado, é uma mistura tupiniquim da estratégia “Cambridge Analytica” com loucuras individuais do grupo que assumiu o poder. O que é inegável é que as técnicas utilizadas são similares, com a manipulação de afetos como o ódio e o medo por meio de informações falsas distribuídas massivamente.

    Além das emoções negativas, a nossa necessidade de vínculo e pertencimento também alimentam em grande medida o funcionamento de toda essa estratégia com emoções mais “positivas”. Cada meme que você compartilha, cada piada ou comemoração te ligam a um determinado grupo, que dá a sensação de pertencimento. Essa é uma tendência natural do ser humano e não há nada de errado com isso, mas quanto mais tempo passamos nas redes, mais nossa necessidade de vínculos vai sendo transferida para cliques, curtidas e compartilhamentos, num ambiente em que algoritmos escolhem muito do que você vê, potencializando o que já seria uma “bolha” normal sua.

    As grandes mentes por trás das redes sociais sabem de toda essa dinâmica. Os botões de tristeza e raiva/indignação, por exemplo, não foram criados apenas para adicionar uma liberdade a mais para os usuários, mas sim porque eles permitiriam o engajamento emocional além do simples “curtir”, dando vazão para outras emoções. Muitos dos profissionais que estiveram no desenvolvimento destas ferramentas já levantam a voz em críticas. O caso mais recente é o de Roger McNamee, investidor de tecnologia que foi um dos mentores de negócio de Mark Zuckerberg e que assina, na revista Time de 17 de janeiro, o texto “Eu fui mentor de Mark Zuckerberg. Eu amei o Facebook. Mas eu não posso ficar em silêncio sobre o que está acontecendo”, em que relata um pouco dos bastidores da empresa.

    Roger resume muito bem em que ponto estamos de nosso relacionamento com o Facebook e acredito que, com algumas diferenças, o que ele fala se aplica a todas redes sociais e aplicativos de mensagem: “Você poderia pensar que os usuários do Facebook ficariam indignados com a forma como a plataforma foi usada para minar a democracia, os direitos humanos, a privacidade, a saúde pública e a inovação. Alguns estão, mas quase 1,5 bilhão de pessoas usam o Facebook todos os dias. Eles o usam para ficar em contato com parentes e amigos distantes. Eles gostam de compartilhar suas fotos e seus pensamentos. Eles não querem acreditar que a mesma plataforma que se tornou um hábito poderoso também é responsável por tantos danos. O Facebook usou nossa confiança em familiares e amigos para construir um dos negócios mais valiosos do mundo, mas, no processo, foi descuidado com os dados dos usuários e agravou as falhas em nossa democracia, deixando os cidadãos cada vez menos capazes de pensar por si mesmos, sem saber em quem confiar ou como agir em seu próprio interesse. Os maus atores tiveram sucesso explorando o Facebook e o Google, alavancando a confiança do usuário para disseminar a desinformação e o discurso de ódio, para suprimir o voto e polarizar os cidadãos em muitos países. Eles continuarão a fazê-lo até que, em nosso papel de cidadãos, reivindiquemos nosso direito à autodeterminação”.

    As redes sociais têm um potencial extraordinário para o bem, mas elas são armas poderosíssimas de poder se, do outro lado, os usuários não se preocuparem em entender como elas funcionam. Não é fácil, eu sei, tudo isso demanda tempo e interesse. A outra opção, no entanto, é simplesmente entregar suas emoções de bandeja para os algoritmos e viver a falsa sensação de liberdade da bolha ou, ainda pior, habitar um mundo paralelo de informações produzidas sem qualquer compromisso com a realidade.

  • Neoliberalismo, Distopias e Bolsonaro presidente

    Neoliberalismo, Distopias e Bolsonaro presidente

    A eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república do Brasil deixa o mundo estarrecido. Seu estilo autoritário e agressivo, sua apologia à tortura, suas continuadas ofensas a determinados grupos ao longo de seus quase 30 anos de vida parlamentar (mulheres, negros, LGBTQs) e seu desprezo aos princípios democráticos são tão impressionantes que mesmo para um nome de destaque mundial da extrema-direita, como a francesa Marie Le Pen, ele causa repulsa: “suas declarações são inaceitáveis”, ela diz. Não por acaso, só Trump parece relevar tudo isso e louva, pelo Twitter, a conversa alvissareira que teve, em 30 de outubro, com o presidente eleito.

    Considerando que o Brasil não é um país pequeno e sem importância no cenário mundial, bem ao contrário, e considerando, portanto, que essa eleição significa o voto de mais de 57 milhões de pessoas em alguém como Bolsonaro (ainda que esse contingente represente apenas 39,2% dos eleitores do país), cabe uma reflexão profunda e que mobilize todo o arsenal teórico à disposição para que se possa identificar as causas desse terremoto anticivilizatório. Evidentemente não é possível fazê-la no curto espaço de um artigo e, seguramente, independentemente do que possa vir a acontecer a partir de agora, esse resultado será discutido e estudado, analisado e dissecado por décadas a fio. É possível, contudo, antecipar alguns elementos, que podem jogar alguma luz em episódio tão sombrio.

    Um fenômeno dessa magnitude nunca é isolado, de modo que não pode ser explicado mobilizando-se apenas variáveis relativas às questões sociais e políticas internas ao país. Além disso, o mundo é hoje cada vez mais integrado, seja por conta da forma que foi tomando o processo de acumulação de capital desde o início dos anos 1980, num sistema econômico que é hoje (depois da transformação capitalista da China) verdadeiramente mundial, seja pelo estupendo desenvolvimento das assim chamadas tecnologias de informação e comunicação (elemento, por sinal, de extrema importância no resultado das eleições brasileiras).

    O cenário externo

    Nosso primeiro olhar vai, portanto, para o cenário externo.Depois de mais de três décadas de ascensão e difusão da cartilha e das políticas neoliberais mundo afora (como se sabe, mesmo países europeus geridos por longos períodos por partidos social democratas acabaram por sucumbir a essas políticas – e o Brasil comandado pelo Partido dos Trabalhadores tampouco foi diferente), o neoliberalismo parece ter chegado num ponto de saturação e sem ter entregue aquilo que prometera.

    No início dos anos 1980, as teorias da “repressão financeira” alegavam que a estrutura institucional herdada do pós-segunda guerra mundial – com seus controles, regras, tributos e quarentenas – era deletéria para o desenvolvimento, e que a liberalização financeira, ao tornar mais eficiente a alocação de capitais no globo, traria melhores tempos para todos os países, potenciando o crescimento.

    O mesmo se dizia da generalização da abertura comercial, pois que a economia mundial viria a ser então uma harmônica aldeia global, em que todos os países, beneficiados por suas vantagens comparativas mútuas, sairiam ganhando materialmente.

    O resultado após três décadas de neoliberalismo

    Mas o resultado dessas políticas, três décadas depois, foi o aumento da desigualdade (inclusive entre os países), o crescimento muito lento e o surgimento de um desemprego que tem características estruturais. Tudo isso piorou substantivamente com o advento da crise financeira internacional de 2008-09, que não só tornou ainda mais indigestos os resultados desse modelo, como, ao longo da última década e graças aos meios segundo os quais se tentou equacionar os problemas, aprofundou as contradições que estão em sua base.

    O voto antissistema é uma consequência imediata dessa situação. É por aí que devem ser explicados, a meu ver, a eleição de Trump nos Estados Unidos, o Brexit britânico e a ascensão de partidos e políticos de extrema direita em todo o planeta (Hungria, Polônia, Itália, Filipinas, Turquia, Bulgária, e agora, infelizmente, também o Brasil – que já estava nesse caminho, deve-se notar, desde o injustificável impeachment da presidenta Dilma em 2016 e o início do governo Temer). O cenário é distópico.

    Cabe, no entanto, perguntar:  por que o sentimento antissistema vem resultando majoritariamente numa aposta que parece antes contribuir para o aprofundamento do modelo que é o responsável pela geração dessa situação ruim e desguarnecida de perspectivas, do que no sentido contrário?

    É verdade que o voto antissistema também flui para esse último lado: Bernie Sanders quase se tornou candidato nas últimas eleições presidenciais americanas, Obrador venceu no México, temos a primavera socializante e alvissareira de Portugal e a surpreendente vitória de Jeremy Corbin no tradicional e ainda poderosíssimo Labour Party inglês. O predomínio, contudo, parece estar no primeiro movimento. Por quê?

    A vitória ideológica do neoliberalismo

    A resposta a essa pergunta passa por caminhos que vão além das variáveis e análises puramente econômicas e/ou políticas. É preciso aqui mobilizar os filósofos, os pesquisadores de costumes, os antropólogos urbanos, os sociólogos. Lendo Pierre Dardot e Christian Lavall, Nancy Fraser, Dany-Robert Dufour, Wolfgang Streeck, Naomy Klein, André Gorz dentre outros, vai sendo possível perceber que, na quadra histórica que se inicia ao final dos anos 1970, não foram apenas as máximas e as políticas neoliberais que ganharam proeminência: a vitória ideológica foi também retumbante.

    A insistente pregação neoliberal, quase nunca desacompanhada do mote there is no alternative, foi transformando corações e mentes e instituindo, no ideário de boa parte da população, sobretudo daqueles mais negativamente afetados pela ascensão das políticas neoliberais, os valores da concorrência, do cada um por si, do self made man, do mérito próprio, do empresário de si mesmo, do cidadão como “cliente” do Estado.

    A cooperação, a solidariedade, a importância do coletivo, do comum, da comunidade, foram atirados nos desvãos da história junto com o muro de Berlim e os “velhos” e empoeirados expedientes do Estado-Nação, da sociedade de classes, das políticas universais, dos controles sociais/estatais impostos à sanha acumulativa.

    Como lembra Nancy Fraser, mesmo as chamadas pautas identitárias (mulheres, LGBTQs, minorias raciais) foram inteiramente capturadas pelo espírito the winner takes it all. Não é de espantar que a reação às mazelas do mundo neoliberal, aprofundadas pela crise de 2008-2009, se virem “contra” o sistema na direção errada e acabem por fortalecê-lo, arrastando para os mesmos desvãos da história a própria democracia.

    Elementos domésticos

    No caso da vitória de Bolsonaro somaram-se a esse espírito de época decorrente das quase quatro décadas de neoliberalismo, alguns elementos domésticos não menos importantes para o resultado funesto produzido em 28 de outubro.

    Entre 2003 e meados de 2016 (até o impeachment de Dilma Rousseff) o Brasil foi governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Sob esses governos, a economia brasileira, apesar de continuar submetida, em boa parte do tempo, a uma política econômica de corte neoliberal, que beneficiava continuamente a riqueza financeira, floresceu e conseguiu resultados positivos impulsionados pela boa fase da economia mundial pré-crise e pelo efeito multiplicador dos massivos programas de renda compensatória (Bolsa Família), associados à substantiva elevação do valor real do salário mínimo.

    Contra o sentido neoliberal, esses governos também brecaram as privatizações e, a partir de 2006, deram forte impulso aos investimentos públicos. No mesmo sentido, a política externa “ativa e altiva” do país ao longo desse período recusou a ALCA, fortaleceu os BRICS e o Mercosul e retirou o país do costumeiro alinhamento direto com os interesses dos países centrais, EUA em destaque.

    Apesar do sucesso em termos de crescimento, nível de emprego e redução da desigualdade, sem que os interesses dos muito ricos tivessem sido afetados, as elites do país, de feição ainda extremamente senhorial, nunca aceitaram o PT e sua maior liderança, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

    O sentimento de “perda” de poder se instalou e, no caso das classes médias altas, esse sentimento foi magnificado por conta das políticas públicas dos governos do PT, que colocaram os mais pobres em espaços antes exclusivos das elites: os aeroportos, as universidades, os shoppings mais chiques.

    O “combate à corrupção”

    Assim, desde pelo menos 2005, iniciou-se, com a inestimável colaboração da grande mídia, uma implacável campanha de difamação e demonização do Partido dos Trabalhadores e de suas principais lideranças. Sempre ao abrigo da justa demanda social pelo combate à corrupção, o sistema judiciário do país, com o beneplácito das elites econômicas e dos partidos mais à direita, foi empreendendo uma “operação de limpeza” seletiva, que passou a “julgar” e punir apenas os políticos e partidos de esquerda, sobretudo do PT, enquanto os demais políticos e partidos continuavam a ser tratados com a habitual camaradagem.

    É nesse sentido que se deve entender a ação penal 470 (no processo conhecido como “mensalão”), o infundado impeachment da presidenta Dilma, a operação Lava Jato, a juridicamente insustentável prisão de Lula no bojo da citada operação, e seu impedimento de concorrer às eleições – sendo o candidato de longe favorito e aparecendo com quase o dobro das intenções de voto de Bolsonaro no início do processo eleitoral (e isto mesmo com a determinação, duas vezes enviada ao governo brasileiro pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, de que se garantisse a Lula o exercício de todos os seus direitos políticos).

    No corpo a corpo com os eleitores que as forças democráticas do país empreenderam nas últimas semanas do segundo turno para tentar virar as intenções de voto em Bolsonaro, um dos argumentos que mais se ouvia era que o PT era sim o partido mais corrupto do país, porque afinal a maior parte dos políticos condenados era ou havia sido ligada ao partido.

    Mesmo argumentando que o PT, por qualquer critério que se escolha (políticos cassados, processados etc.) está sempre em 9º ou 10º lugar, aparecendo na frente dele a maior parte dos partidos de direita e aqueles que estão hoje no comando do país, sob o governo Temer, os eleitores continuavam desconfiados, preferindo continuar a crer na imagem do partido em que foram sendo doutrinados a acreditar por mais de uma década.

    A marcha da agenda rechaçada nas urnas

    A crise econômica internacional, que atinge o Brasil a partir de 2011, ajudou a engrossar as críticas ao PT e a seus governos. Os movimentos de maio de 2013, iniciados por uma juventude de esquerda horizontalista e apartidária, tendo como foco reivindicações ligadas ao transporte público, foram rapidamente capturados pela direita, com o auxílio sempre determinante da grande mídia.

    A quarta vitória consecutiva do PT nas eleições presidenciais de 2014, que ainda assim acontece, detonou a operação conjugada do judiciário, grande mídia, empresariado e partidos de direita para usurpar o poder delegado a Dilma Rousseff pelo voto de mais de 54 milhões de brasileiros e pôr em marcha uma agenda fortemente neoliberal, que havia sido rechaçada nas urnas (privatizações, entrega do patrimônio natural do país, cortes nos direitos dos trabalhadores).

    Os interesses do grande capital internacional, com destaque para o petróleo das camadas do pré-sal, também tiveram papel determinante. É hoje de conhecimento público o fato de magistrados brasileiros como Sérgio Moro, o todo poderoso juiz de primeira instância, comandante da operação Lava Jato, que quase destruiu a Petrobras e a respeitada indústria de construção pesada do país, terem sido treinados nos Estados Unidos e apetrechados com os instrumentos e as ferramentas da chamada lawfare.

    Tampouco é por acaso que uma das primeiras medidas do governo de Temer foi a alteração de algumas regras do regime de exploração do pré-sal, buscando dar maior espaço para as grandes petroleiras mundiais.

    Despolitização, teologia da prosperidade e fake news

    Finalmente não se pode deixar de mencionar a relação despolitizada da população beneficiada pelas políticas implantadas pelos governos do PT com essas mesmas políticas e programas, por culpa, é preciso que se diga, do próprio partido.

    Combinada com a irrefreável ascensão das igrejas pentecostais e sua teologia da prosperidade (não estranha, muito ao contrário, ao referido ideário do neoliberalismo), essa despolitização foi decisiva para a aceitação totalmente acrítica do tsunami de fake news advindo da campanha de Bolsonaro contra o candidato do PT no segundo turno, Fernando Haddad –  que ele incentivaria o incesto, que teria estuprado uma menina de 11 anos, para mencionar apenas duas das incontáveis mentiras sobre ele que foram sendo persistentemente propagadas por milhares de robôs, cujos links apresentavam como local de origem os EUA.

    Há 10 dias da realização do segundo turno, a divulgação pela imprensa do financiamento desse ataque digital nas fechadas redes de WhatsApp por dinheiro de caixa 2 proveniente de empresas, o que é proibido pela atual legislação brasileira e considerado crime eleitoral, deu alguma esperança de que o fascismo da campanha de Bolsonaro seria afinal derrotado, mas esse desfecho feliz não aconteceu.

    O juiz Sérgio Moro, que disse que a corrupção destinada a caixa 2 de campanha eleitoral é ainda mais perniciosa do que a corrupção destinada ao enriquecimento pessoal porque constitui um ataque direto à democracia, acaba de aceitar o convite de Bolsonaro para ser o seu ministro da justiça. Não é preciso dizer mais.