Jornalistas Livres

Tag: violência urbana

  • NO BECO QUE A CIMEIRA NÃO VIU

    NO BECO QUE A CIMEIRA NÃO VIU

    Após 20 anos da Chacina do Beco do Candeeiro, em Cuiabá, o assassinato de três adolescentes entre 13 e 16 anos continua impune. Ato em memória das vítimas e por JUSTIÇA acontece hoje, 10 de julho, a partir das 17h, no Beco do Candeeiro, na praça Senhor dos Passos. Por Johnny Marcus

    “14 anos, quinze tiros de fuzil, as vísceras esfoladas, expostas, coagulando. O sol assiste em fogo o sonho de viver que ainda pulsa nos miolos”.

    Esse verso dantesco é de autoria do poeta Edson Veóca e faz parte de um projeto de inclusão social chamado “Literatura Marginal”, idealizado e publicado pelo escritor Ferrez, em 2000, em parceria com a revista “Caros Amigos”, da qual é colunista.

    Ferrez é morador da favela de Capão Redondo, na Grande São Paulo, e autor de diversos romances. Os mais conhecidos são “Capão Pecado” (2000) e “Manual Prático do Ódio” (2003). Tive a felicidade de ler ambos tão logo foram publicados.

    Assim que deitei os olhos nas palavras de “No beco que a cimeira não viu”, no ano 2000, senti uma tristeza profunda e foi inevitável não pensar na chamada Chacina do Beco do Candeeiro, ocorrida dois anos antes em Cuiabá.

    Em 10 de julho de 1998, os adolescentes Adileu Santos, o Baby, 13, Edgar Rodrigues de Arruda, o Indinho, 14, e Reginaldo Dias Magalhães, o Nado, 16, foram executados com tiros à queima roupa, na rua 27 de Dezembro, popularmente conhecida como Beco do Candeeiro, no centro histórico da capital.

    O caso ganhou grande repercussão na mídia local e nacional, e gerou grande comoção social. Contudo, as investigações conduzidas pelo Ministério Público levaram a um único suspeito, o ex-policial militar Adeir de Souza Guedes Filho, 49, que acabou absolvido por falta de provas, após submetido a júri popular, em 2014.

    Até hoje, vinte anos depois, as mães dos meninos assassinados buscam por justiça. No local das execuções foi erguida uma estátua, esculpida pelo artista plástico Jonas Côrrea, ao mesmo tempo tributo aos jovens e promessa de que os crimes jamais seriam esquecidos.

    Os autos do processo, com mais de mil páginas, sugerem inépcia por parte do Ministério Público para a elucidação do caso. A investigação trabalhou, primordialmente, com três vertentes: os homicídios teriam sido cometidos por um pistoleiro profissional a mando dos comerciantes da região, supostamente inconformados com sucessivos assaltos, ou como ação de um processo de eugenia implantado na capital e até mesmo como vingança do cabo Hércules de Araújo Agostinho, o pistoleiro de João Arcanjo Ribeiro, porque uma das crianças teria roubado um cordão de ouro de sua esposa enquanto ela voltava de ônibus para casa.

    Cômico se não fosse trágico, essa linha de investigação não pôde ser comprovada porque os cartuchos recolhidos na cena do crime foram “perdidos” dentro do Fórum da Capital, o que inviabilizou um laudo de balística com a arma de Hércules, uma pistola 765, semelhante a arma usada pelo policial militar Sandro Márcio Martines para matar Alinor Santana Pereira, em 1999.

    Toda essa situação não resolvida sempre mexeu comigo e, por conta do peso dos vintes anos passados, resolvi produzir um livro-reportagem sobre o caso. O provável título será “Beco Sem Saída – A Chacina do Beco do Candeeiro 20 anos depois”.

    Pretendo inicialmente mostrar como esses meninos chegaram às ruas. E aqui cabe um esclarecimento importantíssimo: nenhum deles era de fato “menino DE rua”. Ainda que passassem vários dias perambulando pelo centro histórico, eles sempre voltavam às suas respectivas casas.

    O Baby, por exemplo, nem em Cuiabá morava. Residente em Cáceres, estava na capital há uma semana, onde veio passear porque a escola pública onde estudava estava em greve. Quem esclarece a situação é sua mãe, dona Maria Santos.

    Também conversei com dona Albina Rodrigues de Arruda, mãe de Indinho. Segundo ela, o filho estava de férias da escola quando foi assassinado. Ainda não consegui contato com a mãe de Nado. De acordo com relatos, ele não foi criado pela mãe biológica.

    O mais importante desse projeto literário-jornalístico é resgatar a humanidade dessas crianças. Contar suas histórias, relembrar seus sonhos. Em segundo plano está o desejo de esmiuçar ao máximo as investigações conduzidas pelo Ministério Público através de análise dos autos do processo e depoimentos das autoridades competentes.

    Há cerca de um mês tive a felicidade de conhecer o “Psicanálise na Rua”, coordenado pela professora Adriana Rangel, do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso. O projeto social atende pessoas em situação de vulnerabilidade no centro histórico de Cuiabá e marcou para hoje, 10 de julho, um ato em memória da chacina do Beco do Candeeiro.

    Desde a manhã estão ocorrendo intervenções, como limpeza do Beco, maquiagem das moças e ensaio fotográfico. As fotos serão expostas a partir das 17h, no próprio Beco, quando haverá apresentações artísticas. Dona Albina, mãe de Edgar, e dona Maria, mãe de Adileu, vieram de Lucas do Rio Verde e Cáceres, respectivamente, exclusivamente para participar do ato.

    A companheira Gabriela Rangel, antropóloga e filha da professora Adriana, é quem está à frente da organização. Ela conta que o tributo de hoje vai além da chacina ocorrida há vinte anos e é “uma forma de dar espaço a essas pessoas que de alguma se excluíram ou foram excluídas do meio social. Será um dia de intervenção para dar um presente a essa população de rua como representantes e herdeiros desses meninos chacinados”.

    Também fazem parte deste coletivo a Associação dos Familiares Vítimas da Violência (AFVV), a União de Negros pela Igualdade (Unegro), Instituto Mulheres Negras de Mato Grosso (Imune), A Lente, Outros 300, entre outros parceiros.

    A sua participação é importantíssima. Venha trocar uma ideia com a gente. Vamos discutir essa questão. Ela diz respeito a todos nós.

    Reforçando que o ato acontece hoje, 10 de julho, a partir das 17h, no Beco do Candeeiro, na praça Senhor dos Passos.

  • A percepção social da violência urbana

    A percepção social da violência urbana

    A trajetória da percepção social da violência urbana no Brasil, especificamente na cidade do Rio de Janeiro, já foi objeto de análises sociológicas das mais diversas, abrangendo diferentes vertentes teóricas e perspectivas analíticas. Abordar este tema constitui, portanto, uma tarefa que exige inicialmente, para além de uma delimitação consciente, a clareza de que não seremos capazes de abarcar todas as nuances que a questão exigiria. Para tanto, escolhemos a título deste trabalho nos atermos a construção de diálogo entre dois importantes autores que dedicaram especial atenção ao tema: MISSE(2008) e MACHADO DA SILVA (2010)

    A construção histórica das sociabilidades no Brasil é perpassada por diversos mitos que buscaram, cada qual a seu modo, operar na coletividade com vistas à construção de um imaginário coletivo determinado, um tipo ideal, e geralmente enganoso, assim se explicam os mitos por longos anos predominantes da democracia racial; do povo cordial e pacífico, etc. A profusão destes imaginários coletivos contribuíram para retardamos importantes reflexões que somente tardiamente ganharam a arena do debate público. É dentro deste contexto que se insere a percepção social da violência urbana. Enquanto os países de capitalismo central debruçavam-se já nos anos 1920 a este tema (a escola de Chicago como um marco destes estudos), no Brasil, a sociologia nacional passará a debruçar-se sobre o tema apenas em meados da década de 80.

    Até a década de 50 a resposta do Estado sobre o que Machado aponta como

    “o controle rotineiro das atividades típicas do lumpenproletariado urbano”,

    se dava de forma marginalizada, sem grande centralidade.

    As práticas consideradas criminosas até então variavam entre “contravenções, crimes contra a pessoa e o patrimônio, prostituição, varejo de mercadorias contrabandeadas, comércio de drogas ilícitas (quase exclusivamente maconha), etc. –, era uma questão socialmente periférica e submersa”, (idem), será, no entanto, com o início do regime ditatorial civil-militar de 64 que essa relação passará a transformar-se de forma mais significativa, em decorrência da ideologia de segurança nacional que, paulatinamente, introduziria as bases da politização do controle social.

    O autor menciona dois marcos para esta transformação, o primeiro deles é a militarização da polícia, que tensiona o deslocamento da atividade repressiva das ações corriqueiras de atuação policial para a atuação com vistas à “segurança do Estado”, delegando às polícias maior autonomia de ação, movimento que progressivamente leva ao distanciamento destas em relação à população e a perda de sua já fraca aceitação popular; e o outro diz repeito à lei de segurança nacional propriamente dita, que tensiona a percepção do crime desfazendo ou enfraquecendo a fronteira judicial entre os crimes comuns e os crimes políticos, como resposta às ações dos grupos de resistência à ditadura, tais como os furtos a bancos, sequestros, etc. Portanto, para Machado:

    “Essa é a matriz do atual ‘problema da segurança pública’:

    a) o deslocamento do controle social rotineiro para as questões da segurança do Estado;

    b) a militarização e o reforço da autonomia de funcionamento dos aparelhos policiais, que acabaram favorecendo a visibilidade altamente politizada das funções repressivas de rotina;

    c) o fato de que a truculência característica das atividades policiais passou a atingir também membros das camadas médias. Foi por esse caminho que o crime comum violento entrou na consideração pública e se tornou um problema a galvanizar as atenções”

    Com o fim do regime ditatorial a percepção social da violência urbana, já tensionada pelas medidas implementadas pela ditadura como a militarização e maior autonomia da polícia, reverberará na incursão da relação entre tráfico e Estado, através da corrupção policial, no entanto em um movimento onde os sujeitos e os territórios passam a ser o centro da criminalização. Misse aponta a existência de uma percepção social da violência que parece operar no imaginário da população de forma difusa, a violência está sempre à espreita a qualquer esquina, a qualquer momento, no entanto no bojo das relações cotidianas é possível determinar territórios específicos e corpos específicos sobre os quais pesam a “culpa” e responsabilidade atribuída para esse estado de medo. Estes territórios e corpos, como aponta o autor, são especificamente periféricos.

    O processo de redemocratização irá, paulatinamente,

    deslocar a percepção de violência urbana com o deslocamento

    do “inimigo interno” dos agentes políticos

    para os territórios periféricos e seus moradores.

    Este deslocamento, que se relaciona com a proeminência do tráfico e a associação destes territórios a uma sociabilidade violenta, de que fala Machado, funcionará para reforçar o medo direcionado não somente a estes territórios mas, e principalmente, a seus moradores. Como dito anteriormente, tendo bem delimitados os sujeitos passíveis de imputação de uma “criminalidade nata”, estes sujeitos, inseridos em territorialidades associadas ao crime, passam a ser marcados pelo que Misse chamará de sujeição criminal, que consiste no fenômeno por meio do qual um sujeito é apontado como potencialmente criminoso antes mesmo da realização de um ato criminoso, se este indivíduo pode ser associado a um grupo com características semelhantes tem-se um “tipo social estigmatizado”. Ao fim e ao cabo, ao reconhecermos as bases racistas sobre as quais se assenta a conformação social brasileira, é redundante dizer que este “tipo social estigmatizado” em questão é predominantemente negro.

    No âmbito do Rio de Janeiro, que figura certa centralidade na difusão social da percepção da violência, dentre outras coisas, por sediar parte da imprensa de circulação nacional, Misse destaca o surgimento do grupo denominado “esquadrão da morte” em movimento paralelo ao surgimento das primeiras manifestações coletivas de violência urbana ainda na década de 50; este movimento composto via de regra por policiais, de cunho justiceiro, passa a ser fortemente influenciado pelo modus operandi do regime ditatorial e passa a ter, como um de seus lemas, a conhecida frase “bandido bom é bandido morto”, atuando, portanto, no interior da contradição entre a punição racional legal e o justiçamento criminoso.

    A percepção social da violência urbana, principalmente por setores da classe média, associado a uma percepção de ineficiência do Estado quanto à efetivação da dominação racional legal, através do monopólio do uso da força e dos aparatos burocráticos legais, levaram a uma postura de passividade e até mesmo de reivindicação da existência de grupos paramilitares de justiçamento, mas também da execução de um “justiçamento ilegal” por parte da própria polícia, práticas que se resumem bem na expressão “bandido bom é bandido morto”. Por este conjunto de fatores e de aceitação que se torna possível, segundo Machado, uma absorção e neutralização, por parte da corporação militar, das críticas destinadas a seu modus operandi de, em nome da lei agir contra a lei.

    Desta forma, chega-se ao entendimento de que a transformação das corporações militares e suas práticas requer a antecedência de uma transformação da própria sociedade e das relações sociais que estamos dispostos a arcar. Um chamado a revermos o passado escravocrata e o presente racista, que delimita na imagem do “outro” a presença de uma ameaça constante; um chamado a revermos as bases da sociabilidade coletiva, que ao difundir o medo de uma criminalidade crescente funda uma economia social por meio da qual estruturam-se enclaves fortificados (CALDEIRA, 1996) e o aprofundamento da segregação social, que, ao gerar marginalização (de direitos e garantias legais), contribui para a retroalimentação da reprodução do crime em um ciclo vicioso.

    Notas

    1 Texto publicado originalmente em https://potlatchbrasil.blogspot.com.br/

    2 Breno Ribeiro é cientista social, graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contatos: botelho.ribeiro@yahoo.com.br / botelho.ribeiroo@gmail.com

    Referências Bibliográficas

    MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Violência urbana”, segurança pública e favelas, o caso do Rio de Janeiro atual. CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010.

    MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre v. 8 n. 3 p. 371-385 set.-dez. 2008

    CALDEIRA, Teresa. Enclaves fortificados: a nova segregação urbana. Public culture. 8(2). 1996. pp. 303-328.