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  • A violência contra travestis e transexuais nas engrenagens do ambiente carcerário

    A violência contra travestis e transexuais nas engrenagens do ambiente carcerário

    Por Leo Moreira Sá, dos Jornalistas Livres

    Era uma roda de conversa em junho, dia 25. Discutia-se o “sistema penitenciário e população LGBT”, na Casa 1, centro de cultura e acolhimento de LGBTs. O evento foi parte do ato “30 Dias por Rafael Braga”, mês dedicado à denúncia da criminalização da juventude negra –que representa 60% das pessoas em privação de liberdade nos cárceres brasileiros.

    Rafael, um negro em situação de rua, foi o único manifestante da jornada de julho de 2013 a ser preso quando portava uma garrafa de pinho sol. Um mês depois da sua liberdade, em janeiro de 2016, foi preso novamente e condenado a mais de 11 anos de cadeia por tráfico de drogas. As únicas testemunhas do suposto crime foram os policiais que o prenderam. Não por acaso o debate sobre segurança pública acontecia na na Casa 1, cujos acolhidos em geral estão em situação de rua, muitos egressos do sistema prisional.

    A roda de conversa levantou uma discussão urgente: a violência contra travestis e transexuais no ambiente carcerário. Na mesa estavam o antropólogo Marcio Zamboni, que pesquisa sobre a diversidade sexual e gênero no sistema penitenciário, a representante do grupo mulher e diversidade da Pastoral Carcerária Anna Carolina Martins, a advogada Carolina Gerassi, criminalista atuante na defesa de pessoas trans, o ator e Jornalista Livre Leo Moreira Sá, além da maquiadora Veronica Bolina.

    Veronica Bolina na roda de conversa na Casa 1 durante evento que fez parte do ato “30 dias por Rafael Braga”: a pessoa negra e pobre é alvo primário da violência e é importante que a população LGBT se aproxime desse debate.

    Veronica é personagem de caso emblemático. Mulher transexual*, negra, depois de ser presa por agredir uma vizinha sofreu violência policial nas dependências de uma delegacia no centro de São Paulo em 2005. Ela foi colocada em celas com homens cisgêneros quando já existe legislação garantindo um espaço adequado pra pessoas trans. Depois de ser violentamente espancada, Veronica reagiu e mordeu a orelha de um agente. Após a agressões, os policiais divulgaram na internet fotos mostrando seu corpo semi nu e o seu rosto deformado pelo espancamento. Veronica, depois de dois anos presa, foi absolvida das agressões cometidas contra sua vizinha, foi absolvida das agressões cometidas contra sua vizinha, por ter sido considerada inimputável à data dos fatos. Atualmente, passa por acompanhamento psicológico.

    A repercussão do caso na grande mídia depois que as imagens foram divulgadas nas redes sociais e irradiadas pelos ativistas LGBTs deu visibilidade ao caso e garantiu a sua segurança e o tratamento condizente com sua identidade de gênero. No entanto, nenhum dos policiais agressores foram punidos porque a corregedoria da Polícia Militar não deu andamento à denúncia de tortura.

    O Ministério Público ainda está apurando o caso e as investigações continuam. A advogada de Veronica, Carolina Gerassi, está recolhendo provas para que esses policiais sejam punidos e afastados da corporação. Também luta para defender sua cliente da acusação de lesão grave ao carcereiro que, em seu entender, agiu em legítima defesa: “É uma total violação de direitos pegar uma pessoa que está visivelmente transtornada em surto e encarcerar em vez de levar pro hospital e dar o tratamento humanitário”. Veronica ficou 48hs em 2 delegacias onde foi espancada e torturada. De tanto apanhar, a prótese de silicone está deslocada. “Isso demonstra que a lesão causada no carcereiro foi de legítima defesa”, completa a advogada.

     

    A advogada lembra ainda que a resolução 11 da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SAP) , de 30/01/2014, teria como objetivo criar dispositivos de defesa à travestis, mulheres transexuais e homens trans dentro do sistema prisional Paulista. “Mas ela já nasceu transfóbica”, diz a especialista. Carolina cita o exemplo do artigo 3º da resolução, no qual existe imposição de procedimento cirúrgico de transgenitalização como requisito para inclusão da pessoa em “unidades prisionais do sexo correspondente”. Isso, por si, exclui a maior parte das pessoas trans que ou simplesmente não querem fazer as cirurgias ou por conta da fila de espera do SUS (Sistema Único de Saúde).

    Outro artigo, o 6º, impõe que os procedimentos de ingresso na unidade prisional de visitantes transexuais e travestis devem ser “realizados por agente de segurança penitenciária conforme o sexo biológico”, excetuando-se esta regra apenas em caso de cirurgia de transgenitalização. Isso significa que travestis e mulheres transexuais não operadas terão que passar pela revista com agentes masculinos e homens trans, com agentes femininos. E há lacunas em toda a resolução SAP 11, que flexibiliza cada unidade prisional a adotar ou não os dispositivos. Ou seja, no artigo 2º, diz claramente que “as unidades prisionais podem implantar, após análise de viabilidade, cela ou ala específica para população de travestis e transexuais de modo a garantir sua dignidade, individualidade e adequado alojamento”.

    Homens trans são muito bem aceitos no sistema prisional feminino e não há, até o momento, nenhum relato de maus tratos. Mas são muitos os casos relatados de violência sexual contra pessoas trans em presídios masculinos. Um local separado do convívio com homens cisgêneros para a população de travestis e mulheres transexuais é fundamental para preservar sua integridade psicológica e física. Vale lembrar, ainda, que a polícia leva travestis e mulheres transexuais diretamente para o seguro onde são usadas como escravas sexuais e obrigadas a fazerem os trabalhos que são considerados “femininos” como limpar a cela e lavar roupa.

    Presente no evento, a ativista independente Neon Cunha, fez uma perspectiva histórica da violência contra travestis e transexuais no Brasil. Neon foi frequentadora da “boca do lixo” – região do centro de São Paulo no bairro da Luz, nas décadas de 80 e 90, e contou que a violência contra pessoas trans vem desde o regime militar. Ela presenciou e foi muitas vezes vítima de violência policial. Foi presa nos “arrastões” do delegado Ricchet (1982) e na “operação tarântula” (1987) que tinham um objetivo higienista muito parecido com a forma como os dependentes da cracolândia foram recentemente tratados.

    Neon lembrou que os policiais paravam os camburões nos guetos sociais LGBTs e todas as pessoas que estavam ali iam presas e libertadas depois de fichadas. As travestis e mulheres transexuais recebiam um tratamento mais cruel e eram frequentemente extorquidas nas delegacias. Elas costumavam se automutilarem com a lâminas de barbear que escondiam na gengiva: “você quebra a lâmina no meio e encaixa na gengiva com a parte cortante pra baixo… não machuca”, lembrou Neon. Os policiais não pegavam nas travestis machucadas com medo de contrair o vírus da AIDS.

    Todo esse histórico de violência contra a população trans reflete a desumanização e consequente criminalização de travestis, mulheres transexuais e homens trans no Brasil, o país campeão de crimes por transfobia no mundo. Até o momento a RedeTrans contabilizou 90 assassinatos e 38 tentativas de homicídio em 2017 e em 2016 foram 144 mortes por transfobia. A própria população não se comove com a crueldade com que travestis e transexuais são assassinadas e assassinados diariamente.

    A falta de acesso à uma moradia digna, à educação e ao mercado de trabalho formal empurra essa população para as margens sociais onde estão expostas a todo tipo de violência inclusive à violência policial. Se não são assassinadas e assassinados ficam expostas ao encarceramento como forma de higienizar uma sociedade construída sobre uma cultura misógina, racista e transfóbica.

    “Quando a gente passa a analisar as engrenagens do sistema prisional brasileiro, fica claro que opressões de raça e classe são a base de tudo, e é justamente por isso que a pessoa negra e pobre é alvo primário da violência gerada através desse processo. Então, é importante que a população LGBT se aproxime desse debate, porque até mesmo entre nós, a exemplo de Veronica Bolina e Luana Barbosa (mulher cisgênera lésbica que morreu após ser espancada por policiais em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo), é a pessoa LGBT negra quem esta mais vulnerável”, disse em discurso da abertura do evento Henrique Santana um dos organizadores da campanha “30 dias por Rafael Braga”. E como concluiu Neon: “esse país não chora por travestis e mulheres transexuais e em especial por negras e pobres”.

    *Embora tenha sido amplamente divulgado pela mídia que Veronica é uma travesti, ela na verdade se autodefine como mulher transexual. Ainda que exista uma luta política preocupada em desconstruir o estigma negativo que a palavra travesti carrega, é preciso também desconstruir o estereótipo de que mulher transexual é aquela que é branca, feminina, teve acesso à informação e fez ou quer fazer cirurgia de transgenitalização.

  • Indignação, chantagem e revolta no caso Verônica

    Indignação, chantagem e revolta no caso Verônica

     

    Um sentimento de triste indignação e revolta se espalha pela comunidade LGBT, com a confirmação de que o áudio gravado por Verônica Bolina, dizendo que não foi torturada, foi realmente instruído pela Coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual, Heloisa Alves, uma funcionária do governo Alckmin.

    Em depoimento ontem (17/04) aos promotores do Ministério Público e à Defensoria Pública, Verônica não só confirmou a fraude processual como disse também que recebeu de Heloisa Alves uma oferta de redução de pena, caso concordasse em dar a declaração isentando de responsabilidade os policiais que a torturaram.

    A pergunta que não quer calar é: Por que uma ativista tão querida e comprometida com as questões da Comunidade T, como Heloisa Alves, se envolveu em um ato tão sórdido na tentativa de escamotear informações fundamentais que pudessem apontar os culpados e esclarecer as condições que vitimaram nossa companheira?

    Mas, aos poucos, a verdade está vindo à tona, com a grande repercussão nas redes sociais e na grande mídia, que não pode mais ignorar a gravidade da situação. Em nota na quarta-feira, dia 15/04, o Centro de Cidadania LGBT, vinculado à Prefeitura Municipal de São Paulo, divulgou que Verônica Bolina tinha sido vítima de agressão por parte de policiais militares e de agentes do GOE (Grupo de Operações Estratégicas), da Polícia Civil.

    As agressões teriam ocorrido em três momentos: no ato da prisão, quando Verônica Bolina foi detida sob acusação de agredir uma senhora que vive no mesmo prédio que ela; na troca de cela, quando mordeu a orelha do carcereiro e, pasme, no Hospital Mandaqui, para onde foi levada pelos policiais do GOE.

    O Estado e seus agentes, que deveriam cuidar da integridade física de alguém sob sua responsabilidade, foram seus algozes, e cometeram (ou deixaram cometer) atrocidades e violação de direitos fundamentais, espancando (ou deixando espancar) e expondo (ou deixando expor) um ser humano totalmente impotente.

    Imagens de Verônica totalmente deformada depois dos espancamentos foram postadas em sites policiais e em seguida disseminadas pelas redes sociais, causando comoção não só na comunidade LGBT. Foi um escândalo!

    Preocupados com a repercussão de suas atrocidades, os policiais resolveram promover outro show, pelo qual se tornariam “vítimas” de Verônica, e não seus algozes. E assim teria instrumentalizado Heloisa Alves para que convencesse Verônica a assumir toda a culpa por sua situação, em troca um “alívio” na acusação de tentativa de homicídio contra a idosa.

    E Verônica apareceu em toda a mídia, dizendo o que segue:
    “Todo mundo está achando que eu fui torturada pela polícia, mas eu não fui. Eu simplesmente agi de uma maneira que eu achava que estava possuída, agredi os policiais, eles só agiram com o trabalho deles. Não teve agressão de tortura. Cada ação tem uma reação, eu agredi e fui agredida. Eles tiveram que usar das leis deles para me conter, então não teve de nenhuma forma tortura. Eu só fui contida, não fui torturada”.

    Inclementes, mais uma vez expuseram a vítima em praça pública.
    O que se sabe é que Verônica foi colocada numa primeira cela com 15 homens. Depois, colocaram-na em outra com 10. Foi quando tentaram transferi-la para uma terceira cela que Verônica mordeu e arrancou parte da orelha de seu carcereiro.

    Verônica é uma travesti muito bonita e tudo leva a crer que as sucessivas transferências de cela ocorreram para que ela fosse oferecida aos presos para ser violentada — jogada algemada na cova dos leões, sem dó nem piedade. Outra situação de flagrante ilegalidade foi o desrespeito ao seu nome social, com o delegado chamando Verônica pelo nome masculino. Em todo o inquérito, apenas o nome de registro dela é colocado.

    A foto que consta no processo mostra Verônica de costas, para encobrir os sinais de espancamento. As imagens escancaram a forma com que a polícia brasileira trata pessoas socialmente vulneráveis e é impossível não se estarrecer ao ver tamanha brutalidade e desrespeito ao ser humano.

    A fotografia em que se vê Verônica jogada de bruços no chão da delegacia, com as calças rasgadas, aparecendo uma nádega, com braços algemados e pés acorrentados, representa todas as pessoas vulneráveis que são presas, espancadas e muitas vezes mortas por uma polícia treinada para a guerra e para vencer e subjugar o “inimigo” (nós o povo brasileiro). Na mesma imagem, vê-se um policial apontando um fuzil para Verônica absolutamente imobilizada.

    Não só a comunidade T mas todo o Brasil quer justiça e a responsabilização criminal dos culpados. #‎SomosTod‬@sVerônica.