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  • O lugar de Temer na história do Brasil

    O lugar de Temer na história do Brasil

     

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Michel Temer está se despedindo do Palácio do Jaburu. Pois sim, apesar do grande esforço para ser presidente, mesmo sem voto, Temer não quis morar no Palácio do Planalto. Ficou com medo dos fantasmas, dizem as boas línguas. Deve ser um lugar com energia carregada mesmo.

    Resta saber qual será o destino de Temer: a cadeia ou algum cargo no governo de Jair Bolsonaro. Só o tempo dirá. O que dá pra fazer agora é tentar entender os impactos do governo de Michel Temer na sociedade brasileira.

    Qual é o lugar de Michel Temer na história do Brasil?

    Foram apenas dois anos e meio de governo. Mas como a cronologia não é ciência exata, nesses dois anos e meio cabem 70 anos de história, da longa história de um projeto desenvolvimentista por muito tempo fracassado e que, finalmente, se sagrou vitorioso. Temer foi o arquiteto dessa vitória.

    Mas que projeto desenvolvimentista é esse?

    Vamos lá, à velha e boa síntese histórica, que sempre ajuda a orientar as ideias.

    O “Brasil Moderno” nasceu na década de 1930, quando uma revolução administrativa foi realizada no período que aprendemos a chamar de “Era Vargas”. Essa revolução transformou o Estado, o poder público, no agente idealizador e organizador do desenvolvimento nacional. Isso não quer dizer que em períodos anteriores não existiram experiências de centralização política e administrativa. O Estado brasileiro não nasceu em 1930, é claro. O protagonismo do governo central já tinha se manifestado antes, mas nada comparado ao que começou a acontecer depois da chegada do grupo político chefiado por Getúlio Vargas ao poder.

    Onde tem governo existe oposição. Sempre foi assim. No mesmo tempo em que o projeto getulista ganhava contornos mais nítidos, surgiu outro projeto de desenvolvimento, um projeto rival.

    Esse outro projeto, representado por um partido político chamado UDN, propunha que o desenvolvimento do Brasil deveria ser organizado e estimulado pelo mercado nacional e internacional, pela iniciativa privada. Na época, esse projeto ficou conhecido como “entreguista”. Pra usar uma linguagem mais sóbria, vou chamá-lo aqui de “privatista”.

    Importante mesmo é saber que desde então a história brasileira é movida pelo conflito entre esses dois projetos de desenvolvimento. De um lado, o desenvolvimento tutelado pelo Estado. Do outro lado, o desenvolvimento impulsionado pelas forças mercado.

    A UDN, liderada por um sujeito chamado Carlos Lacerda, fez o que podia (e o que não podia) pra derrotar o projeto estatista, hegemônico na década de 1950.

    A UDN Tentou inviabilizar o segundo governo de Getúlio, que começo em 1951 e terminou de forma trágica em 1954.

    A UDN tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek, tentou governar junto com Jânio Quadros.

    A UDN ajudou a tocar fogo no país durante o governo de João Goulart e acabou se associando aos militares, com a expectativa de chegar ao poder através de um golpe de Estado.

    A UDN deu com os burros n’água. Os militares assumiram em 1964 e Carlos Lacerda saiu corrido do Brasil. Foi mordido pela cobra que ajudou a alimentar.

    No geral, a agenda de desenvolvimento efetivada pela ditadura militar esteve mais perto do projeto estatista do que do projeto privatista. Os anos passaram e as coisas mudaram. No final da década de 1980, os defensores do mercado encontraram um novo amor: Fernando Collor de Melo.

    Collor falava em diminuir o Estado, em atacar os privilégios do funcionalismo público, em combater a corrupção. Era o caçador dos marajás. Por trás do discurso, estava o velho projeto de entregar o desenvolvimento nacional ao controle das forças do mercado. Não deu certo. Ainda não foi dessa vez.

    Fernando Henrique Cardoso subiu a rampa em 1995, levando junto o projeto privatista. Agora vai? Será que foi?

    Foi até foi, mas foi bem mais ou menos.

    A coisa andou, o projeto privatista conseguiu algumas vitórias, entre elas a aprovação da Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, no finalzinho da era FHC. A LRF trouxe uma novidade: agora, o Estado não teria mais poderes plenos para investir, para estimular o desenvolvimento nacional. O investimento ficaria limitado ao “equilíbrio das contas públicas”. Foi uma vitória do projeto privatista, sem dúvida. Mas foi pouco. A LRF e meia dúzia de privatizações. Os tucanos não entregaram tudo que prometeram.

    Fernando Henrique Cardoso prometeu acabar com a Era Vargas e refundar o Estado brasileiro. Não conseguiu. Tentou, mas não conseguiu.

    Chega 2003 e é a vez de Lula subir a rampa.

    Apesar de ter mantido parte da cultura administrativa formulada por FHC, os governos do PT brecaram o projeto privatista. O Estado voltou a ser o tutor do desenvolvimento nacional. Isso é especialmente verdadeiro para os governos de Dilma Rousseff, muito menos tolerantes com as ambições do mercado que os governos de Lula. Dilma é herdeira direta do projeto desenvolvimentista getulista, que chegou a ela através do filtro do brizolismo. Dilma jogou duro, talvez até demais.

    Dilma levou à ideia de que cabe ao Estado conduzir o progresso da nação ao limite do exagero, segundo alguns.

    Não à toa, o golpe parlamentar de 2016 se travestiu de impeachment usando exatamente a Lei da Responsabilidade Fiscal. Aconteceram ali dois golpes: o golpe óbvio se deu pelo afastamento da presidenta eleita sem comprovação de crime de responsabilidade. O golpe simbólico se manifestou no pretexto, que foi um ataque ao projeto estatista. É como se as forças do mercado, avalistas do golpe estivessem dizendo: o Estado não pode mais tutelar a economia. Se o ciclo é de crise, o Estado deve obedecer a tendência do mercado.

    O golpe parlamentar de 2016 criminalizou o movimento anticíclico do Estado brasileiro. Essa foi uma vitória do projeto privatista. Não parou por aí.

    Michel Temer conseguiu fazer em dois anos e meio o que os militares não fizeram (ou não quiseram fazer) em 21 anos, o que FHC não conseguiu fazer em oito anos.

    Michel Temer refundou o Estado moderno brasileiro. Temer, o refundador!

    Somente um governo não eleito e comandado por um político extremamente habilidoso e experiente poderia chegar tão longe, conseguiria fazer tanto e em tão pouco tempo. Isso não é um elogio, que fique claro.

    A PEC 55 (a PEC dos Gastos ou a PEC do Fim do Mundo) é o símbolo dessa refundação.

    Temer terminou o que FHC começou. A PEC 55 é a complementação da Lei da Responsabilidade Fiscal. Agora, o Estado está subordinado ao mercado por 20 anos. Não é mais o interesse público que condiciona o investimento do Estado, mas, sim, os limites dados pelo crescimento do mercado. O projeto privatista, finalmente, venceu.

    Mas ainda existia o risco das eleições de 2018. Ah, as eleições. O projeto privatista é escaldado com esse papo de eleição. Sempre perdeu muito mais do que ganhou. Historicamente, as urnas rejeitaram o projeto privatista.

    O projeto privatista deu um jeito para contornar o problema, um jeito engenhoso, habilidoso. Nem precisou recorrer à baioneta e à farda verde oliva. A formalidade democrática foi mantida, a formalidade.

    Primeiro, o candidato favorito, o principal antagonista do projeto privatista, foi impedido de concorrer. A expectativa era o retorno dos tucanos. Não foi possível. Sobrou Bolsonaro. O projeto privatista topou o risco.

    Depois, a discussão moral foi trazida para o centro do debate eleitoral. Corrupção pra cá, kit gay pra lá, mamadeira erótica acolá. Não houve confronto entre projetos. O segundo turno passou sem que sequer um debate acontecesse. Nenhum debate!

    A língua de Paulo Guedes coçou. Ele começou a falar. Foi silenciado. Bolsonaro foi eleito sem dizer como pretende governar o Brasil. Qualquer um minimamente atento sabe como Bolsonaro pretende governar o Brasil.

    Bolsonaro pretende seguir a trilha aberta por Temer.

    Temer é o refundador do Estado brasileiro. É este o lugar que ele ocupa na história do Brasil. Bolsonaro é figura secundária e tem a única função de manter o que foi feito, de evitar retrocessos. Pra isso, o PT precisa ser destruído. Lula deve morrer preso, mudo e longe de qualquer palanque.

    Bolsonaro vai se contentar com esse lugar secundário? Vai aceitar ser um mero coadjuvante? Ou ele vai se deixar levar pela histeria ideológica e moralista, tentando imprimir sua marca pessoal nessa “nova era”? Será Bolsonaro um presente de grego para o projeto privatista, como foram Jânio Quadros e Collor?

    A ver o que acontece. Só dá pra escrever história se for do passado.

     

  • Há um curto-circuito no coração do golpe

    Há um curto-circuito no coração do golpe

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Acho que poucos de nós duvidam que a palavra “corrupção” é o termo chave da crise brasileira contemporânea. Uma crise que começou em junho de 2013, mas que deita suas raízes mais profundas lá em 2005, na ocasião do que já na época ficou conhecido como o “julgamento do mensalão”.

    Aqui neste ensaio, quero mostrar como essa palavrinha mágica pode ser entendida de várias maneiras e como a história da crise brasileira contemporânea pode ser contada a partir do privilégio de um desses sentidos: o sentido “liberal”, segundo o qual a “corrupção” está diretamente vinculada ao Estado, a tudo que é público. É como se o Estado fosse naturalmente corrupto e corruptor e o combate à corrupção passasse, necessariamente, pelo combate ao Estado, pelo desmonte do Estado.

    O privilégio dessa leitura liberal do fenômeno da corrupção diz muito sobre a crise, especialmente sobre os seus movimentos mais recentes. De uns dias pra cá, os veículos mais poderosos da imprensa hegemônica brasileira (Folha de São Paulo, o departamento de jornalismo da Rede Globo, Estadão) vêm abrindo fogo contra os privilégios dos juízes, que já são conhecidos por todos nós há muito tempo. Por que somente agora a imprensa hegemônica denuncia os privilégios nababescos dos juízes brasileiros? Penso que estamos entrando num novo momento da cronologia da crise, em que a aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até então sólida como pedra, começa a fazer água. Também aqui a leitura liberal do conceito “corrupção” tem uma importante função política a cumprir.

    Bom, pra começar a conversa é importante esclarecer melhor o que estou querendo dizer quando afirmo que o conceito “corrupção” é polissêmico, que possui vários sentidos. Pra isso, cito, bem rápido, alguns autores que ao longo da história da cultura política ocidental usaram a palavra “corrupção”, fazendo-o de diferentes formas.

    Para Aristóteles, que que no IV século antes de Cristo escreveu o tratado da “Política”, a “corrupção” era o efeito natural do tempo sobre os organismos políticos. Maquiavel, escrevendo no século XVI da era cristã, seguiu a trilha aberta por Aristóteles e definiu a “corrupção” como a perda da capacidade da República em institucionalizar os conflitos travados entre seus cidadãos. Chamo de “republicana” essa forma de tratar a corrupção.

    Karl Marx, escrevendo no século XIX, enfrentou o tema da corrupção em um livro pouco conhecido, cujo título é “A luta de classes na França entre 1848 e 1850”. Basicamente, Marx argumenta que falar em “corrupção política” no sistema capitalista é uma redundância, pois o próprio capitalismo já é corrupto, na medida em que se fundamenta na exploração de uma classe pela outra. Essa é a definição marxista.

    Nenhuma dessas formas de pensar associou a “corrupção” ao roubo do dinheiro público. Vamos encontrar essa associação sendo feita de forma mais clara nos textos que Friedrick Hayek escreveu ao longo do século XX. Preocupado em discutir o tema da “ética na política”, Hayek definiu a corrupção como a apropriação para fins particulares dos recursos públicos. Como o objeto da corrupção seria o dinheiro público, a definição proposta por Hayek sugere que o terreno da “coisa pública”, do “Estado”, é solo fértil para a corrupção. Podemos chamar essa definição de “liberal”.

    Bom, o conceito “corrupção” tem, pelo menos, três significados distintos: o republicano, o marxista e o liberal. Nem carece de gastar muito papel e tinta pra mostrar que na crise brasileira contemporânea um desses significados foi privilegiado: o liberal. Ao menos na minha avaliação, isso não aconteceu à toa, sendo um projeto planejado deliberadamente por segmentos poderosíssimos das elites brasileiras para realizar um antigo sonho, para viabilizar um projeto que vem sendo frustrado desde a década de 1940.

    Que projeto é esse? Que sonho é esse que animou durante esse tempo todo o sono da direita brasileira, mas que jamais foi plenamente realizado?

    Pra responder, apresento uma breve síntese da história contemporânea do Brasil. Síntese histórica é igual prudência e canja de galinha: é sempre bem-vinda. O conhecimento histórico é útil à vida.

    Trata-se do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, projeto que começou a ser defendido no final dos anos 1940 pela UDN, partido político que na época foi o portador da narrativa da redemocratização que marcou a transição da Ditadura do Estado Novo para a ordem democrática que se consolidaria em 1945. Não era, ainda, o “Estado Mínimo” neoliberal, mas sim um projeto desenvolvimentista internacionalista que priorizava o mercado e o capital, considerando o Estado um obstáculo para a prosperidade nacional.

    Esse projeto desenvolvimentista jamais foi aprovado nas urnas, o que explica em parte o transformismo golpista da UDN. Em algum momento da década de 1950, a UDN cansou de brincar de eleição e passou a recorrer ao expediente golpista. Já que o povo não colaborava, a UDN resolveu caminhar sem o povo mesmo. A aproximação com os militares foi uma consequência quase natural.

    A aliança entre a UDN e os militares viabilizou o golpe civil-militar de 1964. Mas como os militares não são seres acéfalos, não serviram como simples instrumento para a realização do projeto udenista. Acabou mesmo que a UDN deu com os burros n’água, pois os milicos sentaram na cadeira do poder e ali ficaram por mais de 20 anos, perseguindo até mesmo os aliados de véspera, como o líder udenista Carlos Lacerda.

    E o pior para o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” vou contar agora: os militares não efetivaram o projeto udenista, pelo contrário, já que em vários aspectos os governos militares podem ser definidos como estatais-desenvolvimentistas. Isso não significa um elogio aos militares, bem longe disso, pois a ditadura foi fundada em um golpe que destituiu um governo democraticamente eleito. Diante desse vício de origem, nenhum ato da ditadura militar pode ser considerado legítimo.

    Enfim, não foi com a UDN e não foi com os militares que o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” se tornou realidade.

    O projeto voltou com força no final dos anos 1980 e pautou as eleições presidenciais de 1989. Sob a batuta do “Consenso de Washington”, um jovem político alagoano, bonitinho mas ordinário, prometeu “caçar os marajás”. Ou em outras palavras, combater a “corrupção”. Adivinhem como? Enxugando o Estado.

    Sabemos bem o que aconteceu com esse jovem e charmoso político alagoano. Collor também não conseguiu realizar o velho sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”.

    Com um discurso de propaganda em muitos aspectos parecidos com o de Collor, só que acrescido da narrativa da “estabilidade econômica resultante do plano real”, Fernando Henrique Cardoso se submeteu às urnas em 1994. E venceu. Havia chegado a vez do príncipe da sociologia uspiana tentar realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, dessa vez com a legitimidade de uma vitória eleitoral.

    O sucesso foi relativo. Sem dúvidas, FHC avançou mais que seus antecessores, mas no final dos seus oito anos de governo ficou a sensação de que foi pouco, de que dava pra entregar mais. O neoliberalismo é um lobo faminto.

    Por mais que o governo de Lula tenha negociado com a agenda neoliberal, apenas com muita desonestidade intelectual seria possível dizer que o desmonte iniciado pelos tucanos foi mantido pelos governos petistas. Com a eleição de Lula, o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” sofreu um duro revés. Mas o lobo não é só faminto. É insistente e teimoso também.

    O que estou querendo dizer é: A crise brasileira contemporânea representa uma nova ofensiva desse lobo neoliberal contra o Estado brasileiro e pra isso é necessário algo a mais do que o simples argumento macroeconômico. É que esse negócio de economia, de números, não convence muito, tem pouca eficiência retórica.

    É aqui que o tratamento da “corrupção” na perspectiva liberal vai cumprir sua função discursiva, ao definir o Estado como o antro da corrupção, como o cabaré da imoralidade. A diferença é que a experiência mostrou que o marketing político não basta, que é necessário algo mais forte: a judicialização da política. Nasce assim, lá em 2005, a aliança que até a semana passada era a força política mais poderosa da República: o concubinato entre a mídia hegemônica e setores do poder judiciário.

    Quem não lembra de Joaquim Barbosa, o homem da capa preta que prometia colocar todos os políticos corruptos na cadeia?

    O tal combate à corrupção foi seletivo e serviu apenas para desestabilizar os governos petistas, que estavam fortalecendo o Estado como grande agente de regulação estratégica do desenvolvimento nacional. Lideranças petistas foram perseguidas judicialmente, como foi o caso de José Dirceu e José Genoíno, e isso sob os aplausos de uma opinião pública raivosa, com fome de vísceras.

    Pouco importava o devido processo legal, desde que os “corruptos” fossem punidos e os “corruptos”, é claro, eram as lideranças petistas. Pronto! A matriz da crise está aqui. Só que do outro lado tinha um certo Luiz Inácio, cabra esperto, inteligente, que conseguiu sobreviver à primeira ofensiva do conglomerado “judiciário/imprensa hegemônica”.

    Nos anos seguintes, com a prosperidade econômica resultante do boom das commodities, os ânimos foram pacificados. Tava entrando dinheiro no bolso de todo mundo e a opção lulista em não tensionar as contradições estruturais fez com que o lobo faminto e temporariamente saciado pudesse dormir.

    O jogo mudou a partir de 2013, em virtude da combinação da crise econômica com algumas escolhas políticas da presidenta Dilma. Pois sim, em muitos aspectos o “dilmismo” é diferente do “lulismo”. Ainda precisamos avançar na conceituação do “dilmismo”. Não é isso que faço aqui.

    O lobo acordou, mais faminto que nunca e viu naquele momento uma chance de ouro para realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”. Outra vez foi evocada a narrativa liberal do combate à corrupção. Foi assim que o governo da presidenta Dilma foi desestabilizado, foi com essa semântica que o golpe de 2016 se efetivou, novamente sob os aplausos dos “brasileiros de bem”, indignados com a corrupção.

    Mal sabiam os “brasileiros de bem” que eles estavam sendo bombardeados por uma narrativa que deu ao conceito “corrupção” um sentido específico, que de forma alguma é o único. Assim, com essa narrativa, Dilma foi derrubada e Lula condenado, em processos jurídicos profundamente politizados e questionados pela comunidade jurídica nacional e internacional.

    Acontece que a crise é um processo em movimento que ainda não acabou. Ao que parece, acabamos de entrar num outro momento da cronologia da crise: com Lula condenado e virtualmente preso, chegou a hora do lobo neoliberal devorar todo o banquete. O lobo é insaciável.

    E pra matar a fome do lobo, nada melhor do que servir, numa bandeja de prata, os privilégios do judiciário. Não é possível a realização do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” com um judiciário tão caro, cheio dos privilégios, cheio das pensões vitalícias.

    Bastaram menos de 72 horas após a condenação de Lula para aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até aqui marcada por lealdade recíproca, se dissolver. Moro, Dallagnol, Bretas, até então representados como heróis nas páginas dos principais jornais da imprensa brasileira, se tornaram aproveitadores da coisa pública, se tornaram corruptos.

    Justo agora, os privilégios tão conhecidos por todos nós começaram a incomodar a imprensa hegemônica. De forma alguma, quero defender os juízes, mas precisamos entender que os ataques midiáticos ao judiciário fazem parte do mesmo projeto neoliberal que desestabilizou o reformismo petista. O lobo é faminto, teimoso e criativo. Tomara que as esquerdas brasileiras não se deixem seduzir pelo uivo do lobo, travestido de canto de sereia. Tem sereia não, meus amigos. É lobo mesmo, com os dentes enormes, mais perigoso que aquele jantou a chapeuzinho vermelho. Ou almoçou? Não sei.

    Escrever no olho do furacão é sempre um desafio e aquele que se arrisca acaba botando a língua na guilhotina. Não tem jeito. Por isso, arrisco a integridade da minha língua dizendo que temos um elemento novo na cronologia da crise brasileira.

    As duas forças que juntas foram as responsáveis pela aplicação do golpe têm projetos distintos e até mesmo rivais para o futuro da nação: de um lado, o judiciário querendo uma República dos bacharéis, onde os magistrados serão os guardiões da moral pública, com a devida recompensa, sob a forma de privilégios que não estão disponíveis a nenhum outro setor do funcionalismo público. Do outro lado, a imprensa hegemônica, que representando os interesses do neoliberalismo vê na atual conjuntura de crise a chance para tornar realidade, de uma vez por todas, o antigo sonho do “Estado Mínimo” brasileiro.

    Há um curto-circuito no coração do golpe! Em tempos tão difíceis, com tantas notícias ruins, talvez exista aqui algo a se comemorar.

    (*) Com ilustração de Cau Gomez