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Tag: Transfobia

  • CONDEPE pede abertura de processo contra deputado do PSL em SP

    CONDEPE pede abertura de processo contra deputado do PSL em SP

    O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo – CONDEPE apresentou no último dia 16 uma denúncia contra o deputado Douglas Garcia (PSL-SP) por conta de uma fala proferida pelo deputado durante uma votação na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) no dia três de abril.

    Durante a votação, que estabelecia “o sexo biológico” como critério único para identificação do gênero de atletas em jogos oficiais no Estado, a deputado Érica Malunguinho, única mulher transsexual na Alesp (PSOL-SP), foi ameaçada por Douglas

    “Se acaso, dentro do banheiro de uma mulher em que a minha irmã ou a minha mãe estiver utilizando e entrar um homem que se sente mulher, ou que pode ter arrancado o que ele quiser, colocado o que ele quiser, porém eu não estou nem aí, eu vou tirar primeiro no tapa, pra depois chamar a polícia pra ir levar”

    Na denuncia apresentada pelo CONDEPE ao Secretário da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, Paulo Dimas Mascaretti, a ameaça do deputado é caracterizada como apologia à violência e contraria à dignidade humana

    “O discurso do parlamentar viola a dignidade das pessoas travestis e transexuais, ao tempo que se revela como incentivo à atos de violência de natureza transfóbica. Ao se referir à esta população como “um homem que se sente mulher, ou que pode ter arrancado o que ele quiser, colocado o que ele quiser”, nega explicitamente a livre construção da identidade de gênero destas pessoas.”

    Após o episódio o deputado se desculpou publicamente. A denúncia do conselho relembra o pedido de desculpas, mas destaca que “tal feito, no entanto, não afasta o dever de apuração e responsabilização, pelo Estado de São Paulo, de conduta violadora dos preceitos que compõem a lei antidiscriminatória paulista” e que é urgente a necessidade da “aplicação da legislação estadual destinada a coibir práticas discriminatórias de cunho homofóbico ou transfóbico no Estado de São Paulo, reprimindo condutas antijurídicas e exaltando a dignidade humana de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais!”.

  • American Airlines é acusada de racismo e transfobia por impedir ativista de embarcar para os EUA

    American Airlines é acusada de racismo e transfobia por impedir ativista de embarcar para os EUA

     

    Nessa segunda-feira, 25, Alessandra Makkeda, um dos nomes mais importantes para o movimento LGBT do Rio de Janeiro, deveria ter embarcado para Washington para apresentar um projeto relacionado à década dos afro-descendentes no Congresso dos Estados Unidos.

    Fundadora do Fórum Nacional de Trans Negras, do Instituto Transformar, colaboradora dos Jornalistas Livres e integrante do Setorial LGBT do PSOL, Alessandra havia recebido convite do parlamentar negro do Partido Democrata, Harry “Hank” Johnson, dentro de um esforço pioneiro de sua agenda legislativa para impulsionar o marco simbólico criado pela ONU, a fim de dar atenção especial à comunidade afrodescendente pelo mundo.

    Porém, a companhia American Airlines impediu o embarque de Alessandra no aeroporto, já que o nome que constava nos seus documentos não correspondia ao bilhete emitido. Ficou configurado, então, o não reconhecimento do nome retificado de Alessandra em relação ao seu nome de registro – mesmo havendo em mãos uma cópia da sentença judicial que afirmava se tratarem da mesma pessoa.

    Em nota, o Setorial LGBT do PSOL do Rio de Janeiro afirmou que situações como essa são inaceitáveis, embora ainda sejam comuns. “Infelizmente, ainda faltam protocolos das companhias aéreas para se adequarem à realidade da diversidade de gênero. Entende-se que nem sempre se trata de má-fé ou repentino sentimento de ódio por parte de um ou outro indivíduo, mas que a transfobia envolvendo o caso está arraigada na cultura da sociedade brasileira como uma ignorância que se reproduz quase sempre sem reflexão”, destacou.

    “Somos solidários a ela, acima de qualquer debate sobre as responsabilidades individuais e coletivas relacionados ao caso de constrangimento ilegal e dano irreparável a nossa camarada”, acrescentou o Setorial. “Declaramos veementemente que Alessandra é uma mulher negra e trans com distinta dignidade e competência para atuar em defesa de toda comunidade LGBT”, acrescentou. “Se neste momento há uma enorme frustração pela perda de uma oportunidade ímpar de atuar junto a proeminentes ativismos negros que, agora, modificam o cenário politico nos EUA, a nossa convicção é que em breve não faltarão oportunidades melhores para Alessandra, com quem nos comprometemos a atuar como aliados incansáveis na luta contra o racismo e a transfobia que ainda tentam bloquear seu caminho”.

    Diante da situação, o Setorial LGBT decidiu planejar uma manifestação pública de repúdio. “Para nós, não basta que sejam dadas desculpas pontuais, mas é necessário que haja uma união que impeça a ocorrência de novos casos semelhantes. Fazemos um chamado para nos reunirmos por Alessandra e todxs pessoas trans que tiveram sonhos impedidos”, acentuou.

     

  • Como foi o Miss Curitiba Trans 2017

    Como foi o Miss Curitiba Trans 2017

    Texto por Cássia Ferreira

    No última sexta feira (3) aconteceu o Miss Curitiba Trans, um evento que vai muito além de um concurso de beleza. Trata-se também de um manifesto político em prol de uma luta por identidade e visibilidade da comunidade de transexuais e travestis, no melhor estilo girl power de enfrentamento da hostilidade, violência e até mesmo da hipocrisia da sociedade que as exclui todos dos dias. Como lembrou uma das líderes do Transgrupo Marcela Prado, e organizadora do evento, Catuxa Bourges “Não somos nós que excluímos a sociedade, é a sociedade quem nos exclui”.

    Ao anunciar as candidatas à coroa, Catuxa reforçou o objetivo do evento: “Cada menina aqui hoje tem uma história e está buscando a construção de sua identidade… Elas não estão aqui só para serem julgadas. Vamos escolher uma representante desse espaço político”. Num evento de empoderamento e força política, a comunidade trans tenta se fazer visível como ponto de partida para o debate e a desconstrução de estereótipos. Como disse a Miss de 2015, Nallanda Bioshe, além do caráter de representação da comunidade, ela se sente feliz ao emprestar a sua imagem na tentativa de “modificar um pouquinho a imagem que os cidadãos brasileiros têm de nós, mulheres trans”.

     


     

    Nallanda Bioche, miss 2015 – Foto: Josiane Sobrinho

    Uma coroa, uma porta aberta

    Desde que conquistou a coroa em 2015, Nallanda tem trabalhado como modelo. Uma porta que se abriu com a visibilidade alcançada pelo concurso. Apesar das oportunidades que tem surgido para a Miss, a realidade sobre a empregabilidade para pessoas transexuais e travestis está longe de um ideal almejado pela comunidade. O tema foi abordado no tradicional quadro de perguntas as candidatas. Questionada sobre isso, a candidata Renata Borges lembrou que para as portas da empregabilidade se abrirem é necessário além de consciência, mudanças principalmente no sistema de educação escolar. E ainda fez um apelo aos conselhos educacionais para que não tirem a acessibilidade das pessoas trans, “precisamos de escolas que incluam e não excluam” reforçou. Ela também lembrou do trabalho de ONGs como o transgrupo Marcela Prado que auxiliam nesse processo de orientação e cidadania. Segundo um levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans recorrem a prostituição como profissão, a maioria por falta de opção e oportudades devido a rejeição da sociedade.


    Renata Borges, candidata Miss Curitiba 2017 – Juh Moraes

    Debate social

    Também foram abordadas questões sobre o direito a retificação do nome, opinião sobre a conjuntura política atual, racismo, violência contra mulher, e sobre o projeto de “cura gay”, recentemente discutido no congresso nacional. Questionada sobre este último tópico, a candidata Dione Freitas respondeu de pronto “É inadmissível discutir cura gay para algo que não é doença”. A exposição de assuntos trans na mídia tradicional também foi levantada e teve um ponto de vista positivo da candidata Patrícia Lemonge, “Estamos aqui para isso, a gente tem que ser vista. Eu não sou menos por ser trans, nem mais. Eu sou igual a todo mundo”, respondeu.

    Na foto, Dionne Freitas – Foto: Josiane Sobrinho

    A mídia tem dado mais voz as minorias – que são, na prática, maiorias – e começamos a perceber uma certa evolução das políticas públicas, como a possibilidade de retificação do nome que é de certa forma um alívio para as pessoas transexuais que abrem caminho para serem tratadas com o devido respeito, alguns estados que já estão habilitados a realizar a cirurgia trangenitalizadoras, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Porém, a face da violência e da intolerância ainda é vista no dia a dia dessas mulheres. Num cenário contraditório, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, mas também ocupa o topo da lista dos que “mais consumem pornografia transexual”, como lembrou Tatiana Araújo, presidente da Rede Trans nacional. Mais um fato da realidade paradoxal que abrange a comunidade LGBTI.

    Realidade ambígua

    Outro fator alarmante que diz respeito a violência contra transexuais reflete na expectativa de vida, em média 35 anos. Sendo menos da metade da média nacional, de 75 anos, segundo o IBGE. Além da aparente resistência no Congresso para acesso aos direitos civis, ainda com uma bancada conservadora capaz de apresentar projetos como a “cura gay”, ou na tentativa de impor limitações ao debate de gênero, sexualidade e política nas escolas por exemplo, abrindo brecha para a intolerância e a cultura do ódio. Sabendo desta realidade o evento teve poio de segurança da ANTIFA, grupo de combate ao fascismo, que montou guarda na porta do Tetro Guaíra para o caso de hostilização.

    Se não fossem as iniciativas de grupos e ativistas engajados em promover compreensão e o respeito a comunidade que condicionam um certo posicionamento político, seria difícil pensar uma mudança de hábitos da sociedade. Propício foi o agradecimento de abertura do Miss Curitiba Trans 2017, Catuxa peitou: “Sim eu sou uma mulher trans. Aprendi a me amar, aprendi a me reconhecer, aprendi a mudar meus conceitos. Tudo isso porque eu faço parte de uma grande associação que trabalha com as mulheres travesti e transexuais e os homens transexuais, ao transgrupo Marcela Prado”. A entidade que organizou o concurso, trabalha desde 2004 com o objetivo promover a cidadania, saúde, educação, combater estigmas e construir paradigmas que realmente representem a realidade dos travestis e transexuais no estado do Paraná. O Miss Trans faz parte da promoção dessas ações. Como disse Linda Power, uma das pessoas envolvidas na organização, o concurso traz visibilidade a esse universo “As trans ficam muito escondidas, hoje com a mídia estão vindo mais para fora do armário. Quando você via uma trans ou travesti? Era sempre na noite, numa boate ou num show. E esse concurso que vem trazendo para um horário diferente e um público diferente. E num teatro então, melhor ainda a visibilidade e a importância desse concurso”.

    Miss Curitiba Trans 2017 – Foto: Mariana Alves

    O Miss Curitiba Trans 2017 corou Priscila Siqueira, para ela o título representa “um sonho desde criança, de me tornar mulher, de me transformar, e acho que hoje prova que meu sonho foi real e que aconteceu” e revelou seus objetivos como miss “Estou disposta ajudar em qualquer coisa, para que a gente possa estar se unindo mais”, afirmou a cabelereira, 28 anos. Thayla Santos e Melissa Souza receberam a faixa de primeira e segunda princesa respectivamente, além da Paola Pimental, que ficou com a faixa de Miss Simpatia.

    Para a cobertura foi organizado um pequeno grupo de voluntários com 5 fotógrafas e um fotógrafo de Curitiba. Uma das fotógrafas, Josiane Sobrinho, é uma mulher trans de 22 anos que aprendeu a fotografar nas últimas semanas e diz ter ficado muito feliz com a experiência, pois, além de a vontade de trabalhar como fotógrafa ter aumentado, “foi muito importante ver essas mulheres, porque elas são do jeito que eu quero ser” e ter feito parte disso trouxe esse desejo para mais próximo de ser realizado. Veja mais imagens abaixo: 

    Foto: Juh Moraes
    Paola Pimental, Miss Simpatia – Foto: Juh Moraes
    Miss Curitiba Trans 2017 – Foto: Isabella Lanave
    Catuxa Borges, organizadora – Foto: Isabella Lanave
    Foto: Cassia Ferreira
    Foto: Juh Moraes
    Foto: Mariana Alves
    Foto: Isabella Lanave
    Foto: Juh Moraes
    Foto: Juh Moraes
    Foto; Isabella Lanave
    Foto: Mariana Alves
    Foto: Josiane Sobrinho
  • A violência contra travestis e transexuais nas engrenagens do ambiente carcerário

    A violência contra travestis e transexuais nas engrenagens do ambiente carcerário

    Por Leo Moreira Sá, dos Jornalistas Livres

    Era uma roda de conversa em junho, dia 25. Discutia-se o “sistema penitenciário e população LGBT”, na Casa 1, centro de cultura e acolhimento de LGBTs. O evento foi parte do ato “30 Dias por Rafael Braga”, mês dedicado à denúncia da criminalização da juventude negra –que representa 60% das pessoas em privação de liberdade nos cárceres brasileiros.

    Rafael, um negro em situação de rua, foi o único manifestante da jornada de julho de 2013 a ser preso quando portava uma garrafa de pinho sol. Um mês depois da sua liberdade, em janeiro de 2016, foi preso novamente e condenado a mais de 11 anos de cadeia por tráfico de drogas. As únicas testemunhas do suposto crime foram os policiais que o prenderam. Não por acaso o debate sobre segurança pública acontecia na na Casa 1, cujos acolhidos em geral estão em situação de rua, muitos egressos do sistema prisional.

    A roda de conversa levantou uma discussão urgente: a violência contra travestis e transexuais no ambiente carcerário. Na mesa estavam o antropólogo Marcio Zamboni, que pesquisa sobre a diversidade sexual e gênero no sistema penitenciário, a representante do grupo mulher e diversidade da Pastoral Carcerária Anna Carolina Martins, a advogada Carolina Gerassi, criminalista atuante na defesa de pessoas trans, o ator e Jornalista Livre Leo Moreira Sá, além da maquiadora Veronica Bolina.

    Veronica Bolina na roda de conversa na Casa 1 durante evento que fez parte do ato “30 dias por Rafael Braga”: a pessoa negra e pobre é alvo primário da violência e é importante que a população LGBT se aproxime desse debate.

    Veronica é personagem de caso emblemático. Mulher transexual*, negra, depois de ser presa por agredir uma vizinha sofreu violência policial nas dependências de uma delegacia no centro de São Paulo em 2005. Ela foi colocada em celas com homens cisgêneros quando já existe legislação garantindo um espaço adequado pra pessoas trans. Depois de ser violentamente espancada, Veronica reagiu e mordeu a orelha de um agente. Após a agressões, os policiais divulgaram na internet fotos mostrando seu corpo semi nu e o seu rosto deformado pelo espancamento. Veronica, depois de dois anos presa, foi absolvida das agressões cometidas contra sua vizinha, foi absolvida das agressões cometidas contra sua vizinha, por ter sido considerada inimputável à data dos fatos. Atualmente, passa por acompanhamento psicológico.

    A repercussão do caso na grande mídia depois que as imagens foram divulgadas nas redes sociais e irradiadas pelos ativistas LGBTs deu visibilidade ao caso e garantiu a sua segurança e o tratamento condizente com sua identidade de gênero. No entanto, nenhum dos policiais agressores foram punidos porque a corregedoria da Polícia Militar não deu andamento à denúncia de tortura.

    O Ministério Público ainda está apurando o caso e as investigações continuam. A advogada de Veronica, Carolina Gerassi, está recolhendo provas para que esses policiais sejam punidos e afastados da corporação. Também luta para defender sua cliente da acusação de lesão grave ao carcereiro que, em seu entender, agiu em legítima defesa: “É uma total violação de direitos pegar uma pessoa que está visivelmente transtornada em surto e encarcerar em vez de levar pro hospital e dar o tratamento humanitário”. Veronica ficou 48hs em 2 delegacias onde foi espancada e torturada. De tanto apanhar, a prótese de silicone está deslocada. “Isso demonstra que a lesão causada no carcereiro foi de legítima defesa”, completa a advogada.

     

    A advogada lembra ainda que a resolução 11 da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SAP) , de 30/01/2014, teria como objetivo criar dispositivos de defesa à travestis, mulheres transexuais e homens trans dentro do sistema prisional Paulista. “Mas ela já nasceu transfóbica”, diz a especialista. Carolina cita o exemplo do artigo 3º da resolução, no qual existe imposição de procedimento cirúrgico de transgenitalização como requisito para inclusão da pessoa em “unidades prisionais do sexo correspondente”. Isso, por si, exclui a maior parte das pessoas trans que ou simplesmente não querem fazer as cirurgias ou por conta da fila de espera do SUS (Sistema Único de Saúde).

    Outro artigo, o 6º, impõe que os procedimentos de ingresso na unidade prisional de visitantes transexuais e travestis devem ser “realizados por agente de segurança penitenciária conforme o sexo biológico”, excetuando-se esta regra apenas em caso de cirurgia de transgenitalização. Isso significa que travestis e mulheres transexuais não operadas terão que passar pela revista com agentes masculinos e homens trans, com agentes femininos. E há lacunas em toda a resolução SAP 11, que flexibiliza cada unidade prisional a adotar ou não os dispositivos. Ou seja, no artigo 2º, diz claramente que “as unidades prisionais podem implantar, após análise de viabilidade, cela ou ala específica para população de travestis e transexuais de modo a garantir sua dignidade, individualidade e adequado alojamento”.

    Homens trans são muito bem aceitos no sistema prisional feminino e não há, até o momento, nenhum relato de maus tratos. Mas são muitos os casos relatados de violência sexual contra pessoas trans em presídios masculinos. Um local separado do convívio com homens cisgêneros para a população de travestis e mulheres transexuais é fundamental para preservar sua integridade psicológica e física. Vale lembrar, ainda, que a polícia leva travestis e mulheres transexuais diretamente para o seguro onde são usadas como escravas sexuais e obrigadas a fazerem os trabalhos que são considerados “femininos” como limpar a cela e lavar roupa.

    Presente no evento, a ativista independente Neon Cunha, fez uma perspectiva histórica da violência contra travestis e transexuais no Brasil. Neon foi frequentadora da “boca do lixo” – região do centro de São Paulo no bairro da Luz, nas décadas de 80 e 90, e contou que a violência contra pessoas trans vem desde o regime militar. Ela presenciou e foi muitas vezes vítima de violência policial. Foi presa nos “arrastões” do delegado Ricchet (1982) e na “operação tarântula” (1987) que tinham um objetivo higienista muito parecido com a forma como os dependentes da cracolândia foram recentemente tratados.

    Neon lembrou que os policiais paravam os camburões nos guetos sociais LGBTs e todas as pessoas que estavam ali iam presas e libertadas depois de fichadas. As travestis e mulheres transexuais recebiam um tratamento mais cruel e eram frequentemente extorquidas nas delegacias. Elas costumavam se automutilarem com a lâminas de barbear que escondiam na gengiva: “você quebra a lâmina no meio e encaixa na gengiva com a parte cortante pra baixo… não machuca”, lembrou Neon. Os policiais não pegavam nas travestis machucadas com medo de contrair o vírus da AIDS.

    Todo esse histórico de violência contra a população trans reflete a desumanização e consequente criminalização de travestis, mulheres transexuais e homens trans no Brasil, o país campeão de crimes por transfobia no mundo. Até o momento a RedeTrans contabilizou 90 assassinatos e 38 tentativas de homicídio em 2017 e em 2016 foram 144 mortes por transfobia. A própria população não se comove com a crueldade com que travestis e transexuais são assassinadas e assassinados diariamente.

    A falta de acesso à uma moradia digna, à educação e ao mercado de trabalho formal empurra essa população para as margens sociais onde estão expostas a todo tipo de violência inclusive à violência policial. Se não são assassinadas e assassinados ficam expostas ao encarceramento como forma de higienizar uma sociedade construída sobre uma cultura misógina, racista e transfóbica.

    “Quando a gente passa a analisar as engrenagens do sistema prisional brasileiro, fica claro que opressões de raça e classe são a base de tudo, e é justamente por isso que a pessoa negra e pobre é alvo primário da violência gerada através desse processo. Então, é importante que a população LGBT se aproxime desse debate, porque até mesmo entre nós, a exemplo de Veronica Bolina e Luana Barbosa (mulher cisgênera lésbica que morreu após ser espancada por policiais em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo), é a pessoa LGBT negra quem esta mais vulnerável”, disse em discurso da abertura do evento Henrique Santana um dos organizadores da campanha “30 dias por Rafael Braga”. E como concluiu Neon: “esse país não chora por travestis e mulheres transexuais e em especial por negras e pobres”.

    *Embora tenha sido amplamente divulgado pela mídia que Veronica é uma travesti, ela na verdade se autodefine como mulher transexual. Ainda que exista uma luta política preocupada em desconstruir o estigma negativo que a palavra travesti carrega, é preciso também desconstruir o estereótipo de que mulher transexual é aquela que é branca, feminina, teve acesso à informação e fez ou quer fazer cirurgia de transgenitalização.

  • São Gonçalo (RJ) faz mais uma vítima de transfobia no Brasil

    São Gonçalo (RJ) faz mais uma vítima de transfobia no Brasil

    Por Leandro Barbosa e Agatha Azevedo, para os Jornalistas Livres 

    Foto: Maxwell Vilela/ Jornalistas Livres

    A jovem de 22 anos havia chegado à casa de sua mãe há um mês para uma tentativa de reconciliação após um período afastada, vivendo com a sua companheira, também mulher trans, em Belo Horizonte. A promessa era de que, ao voltar a viver com a família, Bruna e Bianca pudessem construir um lar, compartilhando o mesmo terreno que a mãe dela.

    No dia 30 de março, ambas foram para o interior do Rio de Janeiro acreditando que a mãe da Bruna, D. Margarida, cumpriria a promessa de se esforçar para entender a identidade de gênero da filha e a relação lésbica entre ela e Bianca, e que elas poderiam morar numa casa nos fundos com harmonia.

    Na última quarta-feira (10), houve uma discussão entre mãe e filha devido ao desejo de Bruna de voltar para BH, motivada pelas melhores oportunidades na capital mineira, principalmente para pessoas trans.  No dia seguinte, Bruna se deparou com a equipe dos “Anjos da Vida” ao abrir o portão de sua casa nos fundos do quintal da mãe. Ela não teve tempo de se defender enquanto o serviço de remoção da empresa a levava a força para um tratamento não solicitado e desnecessário, enquanto sua mãe e os responsáveis pela “remoção” a chamavam no masculino e a tratavam como homem.

    Segundo Bianca, D. Margarida ainda disse que a primeira coisa que ela faria seria raspar a cabeça dela, porque agora ela “voltaria a ser homem”. Enquanto Bianca tentava defender a esposa, ouvia a equipe dos “Anjos da Vida” despejar machismo e transfobia:

    “Tinham dois homens maiores do que ela, segurando-a pelo braço com muita força e tentando colocar ela na ambulância. Eu comecei a segurar ela para eles não levarem, e eles torceram o meu braço, me enforcaram. Eles falaram que travesti para eles era macho, e que eles iam me enfiar a porrada, um deles me segurou pelo pescoço e disse que ia me botar pra dormir se eu continuasse fazendo aquilo e a mãe dela dizendo que ela se tornaria um homem renovado.”

    Bruna foi dopada pelo funcionário do serviço de remoção. A agarram a força, e com a truculência o seu vestido abriu e a mãe dela aproveitou para trocar a sua roupa, deixando-a nua no meio da rua, para colocar um short e uma camiseta preta. O responsável pela empresa, Paulo Rogério, disse que apenas cumpriram com a norma baseados na lei 10.216 de 2001. Ao conversar com os Jornalistas Livres, ele alegou que atendeu ao pedido da mãe, que esteve presente durante toda a ação.

    Para explicar o trabalho da empresa, ele usou a seguinte alusão: “Somos como um correio. Pegamos a pessoa e a levamos para o destino combinado”.

    Na conversa, o responsável pela “Anjos da Vida” deixa claro que não houve nada no pedido de remoção a respeito do uso de drogas, que era um caso de “questões psicológicas” e, já na clínica, Bruna passaria por atendimento psicológico e psiquiátrico.

    Embora Paulo tenha sido evasivo às perguntas feitas e não tenha revelado o local para onde havia enviado a Bruna, no Facebook contém uma publicação no dia da remoção da Bruna, com check-in em São Gonçalo (RJ), que indica o local para onde ela foi levada.

    Em uma conversa no whatsapp, a mãe de Bruna confirma a internação da filha, referindo-se a ela no masculino. A lei utilizada pela clínica (10.216 / 2001) para embasar a internação involuntária exige laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, o que não foi apresentado. É considerado  internação compulsória aquela determinada pela justiça, e internação involuntária, aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiros.

    Segundo a Lei Federal 10.216 / 2001, para os casos de remoção, a internação precisa ser autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se localize o estabelecimento, e são necessários os seguintes documentos:    

    • Laudo e prescrição médica de profissional com registro no CRM; (não há informações a respeito, inclusive todos os documentos da Bruna estão com a Bianca, ela foi levada sem documentos);   
    • Comunicado ao Ministério Público Estadual em 72 horas da internação involuntária (Até ontem (16) o MP do RJ não havia identificado nenhum comunicado).
    Bruna sonha em publicar um livro como uma forma de deixar sua marca no mundo | Foto: Maxwell Vilela/ Jornalistas Livres

    Bruna, que sonha em ser poeta, publicava as suas reflexões sobre ser mulher trans e seus enfrentamentos diários, já que o Brasil é o país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo e a intolerância cresce com a desinformação e a negligência do sistema, que subnotifica essas mortes, abusos e agressões. Ela também participou da ocupação realizada pelas mulheres do Movimento Olga Benário em BH, que deu origem à Casa de Referência da Mulher Tina Martins, durante o período em que esteve morando na cidade para poder fazer seu processo de transição de gênero longe da família. Bruna e Bianca estão juntas desde 23 de março de 2014, já três anos vivendo sob o mesmo teto.

    Movimento Olga Benário | Foto: Maxwell Vilela/ Jornalistas Livres
  • Tema da Parada LGBT é causa trans e vira palco de protesto contra Temer

    Tema da Parada LGBT é causa trans e vira palco de protesto contra Temer

    Por Leo Moreira Sá, especial para os Jornalistas Livres

    Após 20 anos de sua criação, em 1997, a 20°Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, dá visibilidade a comunidade trans com o tema: “Lei de Identidade de Gênero. Todas as pessoas juntas contra a transfobia.” O segundo maior evento da maior cidade da América Latina – depois da Fórmula1-, nunca havia referendado a última letra da sigla LGBT, mesmo ela representando uma das populações que mais sofrem com crimes de ódio em nosso país. A RedeTrans Brasil notificou 53 assassinatos, 20 tentativas de homicídio, 4 suicídios, e 23 casos de violação de Direitos Humanos contra travestis, mulheres transexuais e homens trans apenas nos cinco primeiros meses deste ano. O marco histórico no ativismo LGBT é fruto das conquistas do movimento social de um dos segmentos de maior vulnerabilidade do Brasil.

    “Foi um afunilamento decorrente da luta histórica das travestis e mulheres transexuais, e também dos homens trans que já militam há mais de 15 anos, e que recentemente se organizaram politicamente através do ABRAT (Associação Brasileira de Homens Trans) e depois o IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidade )”, pontua Heitor Marconato, 30 anos, ativista do IBRAT.

    Em 2014, a ativista transfeminista Daniela Andrade criou uma petição online que foi assinada por mais de 7 mil pessoas e, assim, conseguiu influenciar o resultado final da votação do tema da parada, que incorporou a transfobia (discriminação por identidade de gênero) no tema recorrente da homofobia (discriminação por orientação sexual) ficando: “Todos juntos contra a homolesbitransfobia”. O tema defendido pela petição de Daniela já era a Lei de Identidade de Gênero João W Nery que tramita na justiça desde 2013, e que permite a mudança do nome e do gênero nos documentos de forma definitiva.

    Pela primeira vez, em 2014, a APOLGBT (Associação da Parada do orgulho LGBT) disponibilizou um carro para travestis e transexuais, mas o veículo não saindo porque teve problemas mecânicos. Em 2015, o tema foi: “Eu nasci assim. Eu cresci assim. Vou ser sempre assim, Respeitem-me” que tentava dar uma resposta ao projeto de “cura gay” defendida por fundamentalistas religiosos, mas que por outro lado, excluía radicalmente travestis e transexuais, que lutam para ter sua identidade de gênero reconhecida e seu corpo respeitado e diferente daquele com o qual nasceu.

    A travesti Bruna Valin da RedeTrans Brasil esteve na reunião que definiu o tema. “Eu participei na reunião da construção do tema e defendi junto com Adriana Silva -travesti que faz parte da APOLGBT- e os homens trans presentes, a importância de se ter visibilidade positiva para as leis específicas em prol da nossa população. Depois disso, todas as reuniões foram abertas e tiveram representação de alguém de identidade trans.”

    O movimento social de travestis, mulheres transexuais e homens trans se fez representar também por falas de lideranças na abertura do evento, mas infelizmente não estava presente de forma massiva na parada. Causou estranheza o “Carro da Visibilidade Trans” estar ocupado, em sua grande maioria, por pessoas cisgêneras e gays. Sobre isso, a mulher transexual, professora de filosofia e pré-candidata a vereadora pelo Psol, Luiza Coppieters, se posicionou:

    “Essa parada não mudou muito apesar do tema, mas este posicionamento é um marco, apesar de termos algumas questões pra se discutir como a representatividade dos homens trans, e da pluralidade. É preciso investigar as causas da não-participação da nossa comunidade, do esvaziamento e, principalmente, do acesso das travestis, mulheres transexuais e homens trans aos carros.”

    Luiza considera que é um momento difícil mas que o movimento deve superar, sem “rachas internos” e que os que “estão no poder hoje, na liderança do movimento lgbt, especialmente os homens gays, tem que se posicionar ao lado das travestis, mulheres transexuais e homens trans, respeitando-@s como protagonistas na reivindicações de direitos”, afirma.

    “Por isso precisamos ocupar os espaços de decisão. A gente tem uma série de demandas e bandeiras em comum. A gente tem que sair às ruas, se organizar, construir um discurso, e ter a força pra lutar contra esse governo conservador que está tomando conta de todas as instituições políticas. A gente tem que ficar junto e batalhar pra ser a resistência à esse governo golpista.” concluiu Luiza.

    O fato de o tema da 20° Parada do Orgulho LGBT dar visibilidade a comunidade trans agregou, apesar das dificuldades da APOLGBT em democratizar os espaços físicos para a população que se quis referendar, um valor inestimável no debate do tema da transexualidade, que ainda é desconhecido do grande público. As saídas de metrô da Avenida Paulista estavam entupidas e pessoas não paravam de chegar de todas as regiões, inclusive as periféricas de São Paulo, provando que o povo compareceu em peso na festa e se fantasiando conforme o entendimento individual de cada um com relação ao tema da transexualidade.

    parada 1

    Este ano, a grande festa também proporcionou um enorme protesto político. A multidão presente expressou seu descontentamento com o governo Temer e seu golpe institucional. Nos primeiros dias de seu governo ilegítimo, Temer tomou decisões que afetam diretamente as populações socialmente vulneráveis, como a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, reduzido a uma secretaria subordinada à pasta da Justiça. Em seguida, fundamentalistas religiosos protocolaram um PDC (Pedido de Decreto Legislativo ) com o objetivo de anular o decreto que a presidenta Dilma assinou antes de ser afastada, reconhecendo a população de travestis e transexuais com o estabelecimento do nome social em todas as autarquias federais do país.

    “Graças ao nome social, na minha universidade eu sou respeitado. Já no meu trabalho no Centro Cultural foi muito difícil, porque o meu nome só foi colocado no meu crachá depois de sete meses. Agora eles vem dizendo que não vão permitir que a gente use o nome social. Isso é um retrocesso que nós não podemos deixar acontecer. Nome social é um Direito”, desabafou o trans homem carioca Bernardo de Assis.

    Homens trans, principalmente ativistas do IBRAT, se reuniram no chão atrás do “Carro da visibilidade trans”, que cedeu apenas 6 pulseiras de acesso para esse segmento. Foi aberto uma faixa em protesto ao governo Temer onde se via um mapa do Brasil LGBT e uma bandeira trans sendo cortada por uma tesoura escrita “golpe”. Depois disso os homens trans se dispersaram.

    O segmento de homens trans, dentro da comunidade de travestis e transexuais, é o mais invisível, com muitas dificuldades para lutar em espaços públicos. Depois da criação do IBRAT, em 2013, com núcleos em todos as cinco regiões do país, essa realidade vem aos poucos sendo mudada. Com o primeiro Encontro Nacional de Homens Trans, em 2015, onde o IBRAT conseguiu a marca histórica de 116 homens trans reunidos, houve uma aceleração nas articulações nacionais. Já haviam alguns protagonismo importantes de alguns militantes desde a década passada, mas o ativismo organizado das Transmasculinidades é relativamente jovem.

    Censura no Facebook

    Uma foto postada na página dos Jornalistas Livres, do homem trans Heitor Marconato, que não se submeteu a nenhuma cirurgia e estava sem camisa mostrando os seios, provocou a indignação e repulsa de usuários transfóbicos, que não só postaram comentários de ódio como denunciaram o post. O Facebook excluiu a foto numa censura fora de propósito, porque outras fotos de pessoas cisgêneras nuas não provocaram nenhuma reação.

    Heitor tem barba e bigode e ressignificou o seu corpo culturalmente designado como de “mulher”, para transmasculino. A denúncia de internautas transfóbicos seguido da censura do Facebook, se baseia na noção binarista que nos obriga a ter a identidade corpórea que a cultura designou para o sexo que nascemos. As pessoas não conseguem conviver com a ruptura que o corpo de uma travesti, mulher transexual ou homem trans traz em sua nova equalização, principalmente se ela mistura os elementos contrários . Sobre essa questão, a mulher transexual, atriz e jornalista livre Wallace Ruy declarou:

    “Viver a transgeneridade pode resultar numa vivência de isolamentos, mas é importante que nos mostremos, pois estamos viv@s e carregamos a herança de histórias em nosso próprio corpo, -abjeto, marginal, vulgo(ar)-; reinventando novas e outras maneiras do ser humano, não nos negando grandes oportunidades e possibilidades, pois a criatividade humana é inesgotável. Ser quem se é, é um ato de coragem e sabedoria, e o mundo carece de observar, testemunhar e ouvir. A revolução pela liberdade é urgente, é para já, é A-G-O-R-A.”