O Conselho da Comunidade da Vara de Execução Penal do Distrito Federal vem fazendo campanha pra arrecadação de produtos limpeza e de higiene pessoal, no intuito de tentar conter avanço da Covid-19 dentro do sistema prisional.
Uma vez que a crise do novo coronavírus (COVID-19) já se instalou no estado de São Paulo, paralisando cidades e diminuindo circulação de pessoas, é só uma questão de tempo até que o vírus se dissemine dentro do sistema prisional paulista, o maior e mais lotado do país. O medo é que, uma vez dentro das unidades, o vírus cause um genocídio, dadas as condições precárias das unidades prisionais. Para mitigar os possíveis danos a advogada Maira Pinheiro, que faz parte da Rede Feminista de Juristas, tem buscado pedidos de prisão domiciliar para seus clientes como forma de preservar todos os envolvidos com o sistema carcerário.
A advogada Maira Pinheiro (Foto: Arquivo Pessoal)
Os principais órgãos de saúde, desde a Secretaria Estadual de Saúde, passando pelo Mistério de Saúde e a própria Organização Mundial da Saúde (O.M.S) tem entre as recomendações básicas de prevenção contra a disseminação do vírus passos simples como
Lave as mãos com água e sabão ou use álcool em gel
Cubra o nariz e boca ao espirrar ou tossir
Evite aglomerações se estiver doente
Mantenha os ambientes bem ventilados
Não compartilhe objetos pessoais
(Fonte: Ministério da Saúde)
A OMS, em um relatório realizado por seu escritório europeu sobre o coronavírus, destacou na sessão sobre Direitos Humanos que “devem existir planos de contínuos para garantir a segurança e proteção inerentemente associado a prisões e outros locais de detenção. É de suma importância trabalhar em parceria entre agências públicas de saúde, serviços de saúde e centros de detenção, reunindo serviços comunitários e serviços de prisão / detenção. A estrutura de direitos humanos fornece princípios orientadores na determinação da resposta ao surto de COVID-19. Os direitos de todas as pessoas afetadas devem ser respeitados e todas as medidas de saúde pública devem ser realizadas sem discriminação de qualquer tipo. As pessoas em prisões e outros locais de detenção provavelmente não apenas Sendo mais vulneráveis à infecção pelo COVID-19, eles também são especialmente vulneráveis a violações dos direitos humanos”.
Mas o sistema prisional brasileiro, que segundo dados do Conselho Nacional de Justiça de julho do ano passado contava com 812.564 presos, tem poucas condições de levar a situação de forma a evitar uma explosão de casos. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo realizado em 2019 o estado de São Paulo já alcançou 235.775 presos, contados os diferentes tipos de regime. São comuns os relatos de falta de suprimentos básicos como água e itens de higiene dentro das unidade, o que impossibilita as recomendações para evitar contágio.
Por conta desse cenário Maira, que atua principalmente na área penal, elaborou uma pesquisa para montar as defesas de seus clientes, nas quais apresenta argumentos pela soltura, frente à pandemia.
No modelo de Habeas Corpus (HC) que montou, os principais pontos que apresenta concentram argumentos médicos e legais sobre as circunstâncias que o coronavírus impõem sobre o sistema carcerário. De início o argumento básico é “diante da conjuntura de pandemia, o paciente necessita a adequação da medida de segregação a ele imposta à conjuntura de pandemia atualmente em curso”.
Para sustentar a necessidade de adequação da pena ela apresenta outros fatores
Um estudo sobre os confinados do navio Princess Diamond, publicado no Journal of Travel Medicine, que recomenda a não permanência do confinamento, mas sim evacuação deste espaço, uma vez que a “possibilidade de contágio durante o período de incubação, geralmente assintomático, que pode levar ao subdimensionamento do surto”
Um conjunto de determinações em prisões estadunidenses que seguiu pelo caminho do desencarceramento, como:
– “condado de Douglas, no estado de Nebraska, determinou a soltura de presos acusados de infrações de menor ofensivo”
– “Cleveland, estado de Ohio, as medidas se iniciaram por ato do juiz corregedor dos presídios do condado de Cuyahoga escolheu a cadeia local para iniciar medidas desencarceradoras, realizando audiências aos sábados para agilizar a libertação de presos provisórios”
– “condado de Alameda, a defensoria requisitou a proteção de mais de 300 presos de grupos de risco, por meio de indultos e liberdades provisórias”
– “San Francisco, na Califórnia, a defensoria pública iniciou elaboração de diversos pedidos de liberdade para todos os presos provisórios que estão no grupo de risco em caso de infecção pelo Covid-19. O Ministério Público local orientou os promotores a não se oporem a pedidos de liberdade provisória em casos de infrações de menor ofensivo ou crimes de drogas”
Decretos realizados pela Itália e Irã, dois dois países mais afetados no mundo pelo coronavírus, que na Itália “determinou o encaminhamento para prisão domiciliar de presos com 18 meses ou menos de pena a cumprir e que não sejam reincidentes, não tenham praticado crimes com violência ou tenham associação com o crime organizado” e no Irã “o judiciário determinou a liberação temporária de 70.000”
A Portaria conjunta nº 19/pr-tjmg/2020 do presidente do Tribunal de Justiça , Governador, Corregedor-Geral de Justiça e Secretário de Estado de Justiça e Segurança do estado de Minas Gerais que recomenda para “todos os presos condenados em regime aberto e semiaberto”, “presos em virtude de não pagamento de pensão alimentícia” e “indivíduos privados de liberdade que se enquadram no perfil do grupo de risco” prisão domiciliar. A mesma portaria recomenda “a revisão de todas as prisões cautelares no âmbito do Estado de Minas Gerais, a fim de verificar a possibilidade excepcional de aplicação de medida alternativa à prisão”.
Até agora, com pedidos específicos realizados com esse modelo, a advogada conseguiu que dois de seus clientes tivessem sua liberdade provisória concedida. Para Maira a questão é “a massificação funciona para prender, sem muito critério, através de decisões generalistas, mas você não consegue obter a liberdade de maneira massificada. Se produz encarceramento de maneira massificada, mas a liberdade é a conta gotas”.
Pedidos Semelhantes
Os pedidos de HC elaborados por Maira não foram uma novidade. No último dia 20 a Defensoria Pública da União, através da Defensoria Regional de Direitos Humanos em São Paulo, e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária e de seu Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, impetraram um pedido de habeas corpus coletivo, repressivo e preventivo” para todas as “pessoas presas ou que vierem a ser presas e estejam nos grupos de risco da pandemia de coronavírus, aqueles em regime semiaberto e os condenados ou acusados por crimes sem violência ou grave ameaça”, no estado de São Paulo, por conta do novo coronavírus.
Na maioria dos casos foi pedido para que, de forma liminar, os presos “sejam colocadas em liberdade provisória ou, ao menos, em prisão domiciliar”. Em alguns casos foram sugeridas encaminhamento para serviços ambulatórios.
Eles consideram, no pedido, que caso não sejam adotadas essas medidas é possível que “as unidades prisionais serão palco de um genocídio sem precedente e epicentro da continuidade de disseminação dessa nova enfermidade, por conta da combinação da pandemia com a situação caótica dos presídios paulistas, em especial de sua superlotação”. E ainda colocam que é importante evitar a disseminação nos presídios para além da segurança das unidades, pois após o primeiro preso “contrair o vírus os efeitos serão devastadores e ampliar-se-ão a todas as pessoas que vivem nos municípios e cidades em que estão localizadas as unidades prisionais”.
Situação prisional em São Paulo (Fonte: relatório conjunto da Defensoria Pública da União e Defensoria Pública do Estado de SP)
O HC foca questão carcerária e a relação com o coronavírus no país e no mundo para conter o avanço na população prisional e na sociedade como um todo, como por exemplo nos Estados Unidos, no Irã e no Bahrein. Não só em âmbito internacional, mas também internamente já há medidas nesse sentido, como do TJ/MG” que adotou medidas parecidas com as recomendadas pelo pedido.
Lembraram também outras ações nacionais como a da “Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro/RJ adotou medida liberando os presos que já haviam sido ‘beneficiados com visita periódica ao lar’, sem necessidade de retorno” e do “próprio Tribunal de Justiça de São Paulo, em acertadíssima posição, adotou medidas liberatórias e humanitárias em relação aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa”.
O pedido enumera a situação de diversas unidades do sistema estadual que apresentam superlotação, chegando a conclusão de que “24 unidades prisionais do estado estão superlotadas, em outras palavras, 69% das unidades abrigam mais pessoas que a sua capacidade” de acordo com a Secretária de Administração Penitenciária (SAP).
Os dados juntados no relatório, sobre o próprio coronavírus, apontam que parte significativa da população carcerária corre grandes perigo de morte, uma vez que estão nos grupos de risco das doenças. O grupo de risco é composto por pessoas que sofrem de asma, problemas respiratórios, doenças cardíacas, diabéticos, fumantes e idosos, segundo a Organização Mundial da Saúde (O.M.S). Mas recentemente a OMS tem divulgado casos de mortes de crianças e jovens sem as condições do grupo de risco.
Parte do relatório das defensorias que mostra condição de unidades prisonais de SP
Parte do relatório das defensorias que mostra condição de unidades prisonais de SP
Também apontam para falhas estruturais do sistema estadual que complicam ainda mais a situação. Entre essas são destacadas o racionamento de água em 70,07% das unidades, insuficiência na reposição de itens de higiene (“69% das pessoas presas entrevistadas pelos defensores afirmaram que não recebem sabonete todas as vezes que necessitam” é um dos trechos do relatório), poucas “opções de roupas para as mais diferentes variações climáticas” e que em 77,28% das unidades prisionais não possuem profissionais de saúde o suficiente.
O pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, mas os órgãos recorreram em instâncias federais.
Situação em São Paulo
Em sentido contrário aos pedidos feitos pela advogada e pelas defensorias a SAP adotou medidas que mantém os presos nas unidades e dificulta qualquer relacionamento exterior ou saída.
No último dia 17 foram suspensas as saídas temporárias, afetando cerca de 34 presos do regime semiaberto. A secretaria justificou a decisão afirmando que uma vez que saíssem eles “retornando ao cárcere, teriam elevado potencial para instalar e propagar o coronavírus em uma população vulnerável, gerando riscos à saúde de servidores e de custodiados”.
Também foram alteradas as regras de visita nas unidades, que determinam apenas 1 visitante [por preso] por fim de semana; proibiram a entrada de menores de idade ou qualquer pessoa do grupo de risco e a realização de triagem, para evitar que pessoas com sintomas entrem nas unidades. Por conta de fugas que ocorreram na semana passada os Centros de Progressão Penitenciária (CPPs) de Mongaguá, Tremembé e Porto Feliz e a ala de semiaberto da Penitenciária I de Mirandópolis tiveram as visitas canceladas.
Por Natália Martino e Leo Drumond | Projeto Voz para os Jornalistas Livres
Nos primórdios, ela era um mero lugar de espera para o cumprimento da pena, que podia ser de enforcamento, fogueira ou suplício em praça pública, por exemplo. Evoluímos como sociedade e hoje a prisão é a pena em si – o suplício saiu das praças e passou a ser escondido por muros altos. No caminho trilhado pelas sociedades ocidentais, o discurso oficial amenizou o caráter repressivo do encarceramento e criou para ele objetivos educacionais. Está lá, na Lei de Execução Penal brasileira em seu primeiro artigo: “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Não se trata de vingança, e sim do que é chamado de ressocialização – conceito esse bem mais controverso do que parece, mas essa discussão vai ficar para outro momento. A pergunta é: funciona? “É ruim, mas é bem melhor do que acreditamos” é a resposta da socióloga Roberta Fernandes, que recentemente concluiu sua dissertação de mestrado sobre reincidência criminal em Minas Gerais.
APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policias e armas
Essa é, em geral, a medida mais usada para avaliar o funcionamento de uma pena privativa de liberdade. Se alguém ficou preso e voltou a cometer crimes é porque a prisão não teria funcionado. Em sua dissertação, apresentada na PUC/MG em 2015, ela não deixa de relativizar esse indicador ao destacar que outras questões socioeconômicas são importantes e que acompanhar o egresso depois da saída da cadeia é essencial para aumentar as chances de reinserção social. “Você coloca o indivíduo em uma instituição total, que mortifica o ego e padroniza os comportamentos. Assim, você mata quem ele era antes da prisão e cria para ele uma nova identidade. Só que essa identidade não serve mais quando ele sai de novo da prisão”, explica. Distância da família, ausência de assistência do estado e estigma de ex-presidiário podem formar uma tríade que, em alguns casos, é capaz de inviabilizar o retorno à legalidade daquele indivíduo independentemente da sua experiência na penitenciária.
Dito isso, vamos ao resultado da pesquisa. Depois de acompanhar por cinco anos inquéritos policiais em busca de 800 dos 2.116 condenados que saíram de penitenciárias mineiras no ano de 2008, Roberta concluiu que o índice de reincidência no crime em Minas Gerais é de 51,4%. O número é alto, sem dúvida, mas é bem menor do que se especula normalmente. “Há uma fala que ficou enraizada no discurso brasileiro de que esse índice chega a 85%, mas não existe nenhum trabalho que comprove isso empiricamente”, diz. Em sua dissertação, ela destaca que a prisão teve um efeito positivo em quase metade dos casos estudados. “Não consideramos uma taxa baixa e satisfatória, mas em relação à especulação midiática, do senso comum e da militância do abolicionismo penal, que se estima de 75% a 85%, a prisão demonstra um indicador ruim, mas não tão ruim quanto se fala”, avaliou em seu trabalho.
APAC de Itauna, referencia nacional no modelo que prega um presidio sem policiais e armas
Um dado, porém, chama atenção. No universo pesquisado estavam aqueles que ganharam as ruas por cumprimento total da pena e aqueles que conseguiram livramento condicional. De acordo com os resultados de Roberta, aqueles que cumpriram toda a pena estão 97,5% mais propensos a voltar a cometer crimes em relação aos outros. “A sociedade sempre quer que a pena seja o mais longa e o mais cruel possível, mas talvez esse excesso de prisão não funcione”, avalia. A socióloga explica que existem duas hipóteses principais para explicar a diferença. A primeira é a de que os condenados que cumpriram pena até o fim seriam aqueles de mau comportamento, o que teria impedido a progressão do seu regime. Portanto, seriam pessoas com menor predisposição para seguir regras. A segunda explicação possível é a de que o livramento condicional impõe uma série de regras, como não sair de casa depois das 22h, o que poderia reduzir as oportunidades de ação criminosa.
Discurso ressocializador ainda está longe da realidade
Na conclusão do seu trabalho, a socióloga diz que a “função ressocializadora” foi incorporada no discurso da prisão ao longo da história, mas não tem um efeito expressivo nas nossas prisões. Para ela, entre tantas necessidades de melhorias, uma é fundamental: valorizar o agente penitenciário. É precisar formar a identidade dos agentes penitenciários como educadores. O código que deve dirigir o trabalho dos membros dessa corporação, como explica Roberta Fernandes, é a Lei de Execução Penal, que tem caráter educativo. Ao contrário do Código Penal, uma lei altamente punitiva e que dirige o trabalho de outros órgãos da Justiça Criminal, a legislação que trata do funcionamento das penas visa o ensino e não a repressão. “Os agentes, portanto, teriam que ser educadores, essa teria que ser a identidade deles”, afirma.
Treinamento de agentes penitenciários no presidio PPP (Parceria publico Privada) em Ribeirão das Neves (MG).
Vários outros são os problemas enfrentados pelas penitenciárias, como a dificuldade de individualizar a pena. “O indivíduo que cometeu um pequeno delito acaba cumprindo pena ao lado de um ‘criminoso de carreira’”, afirma Roberta, que atua em várias instituições que trabalham com o sistema prisional. Um dos indicativos de que estamos longe de resolvermos qualquer umas das questões é a quase ausência de dados e pesquisas na área. Não sabemos o tamanho do problema, suas causas e suas dinâmicas. E assim fica impossível achar uma solução.
Mais conteúdo sobre sistema prisional você pode ver aqui e aqui.
Sobre modelos alternativos ao sistema carcerário tradicional temos este artigo. Para as críticas sobre os modelos veja aqui.