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  • A DOUTRINA BOLSONARISTA

    A DOUTRINA BOLSONARISTA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    22 de maio de 2020. Por ordem de Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, partes do vídeo da reunião de governo realizada em 22 de abril foram divulgados. Todos assistimos. Sérgio Moro afirma que há no vídeo provas de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal.

    Quero aqui examinar o vídeo, buscando entender como os valores fundamentais do bolsonarismo atravessam as manifestações de Bolsonaro e de seus ministros. O vídeo é o documento mais completo que temos para tentar entender a doutrina bolsonarista.

    Fica evidente que o bolsonarismo se considera um projeto político revolucionário. Não é cortina de fumaça. Não é simples retórica usada para esconder os interesses do capitalismo internacional. É genuíno. É sincero. Bolsonaro e seus seguidores estão mesmo convencidos de que estão promovendo uma revolução. O revolucionário é o tipo social mais perigoso que existe. Na ética revolucionária vale tudo para acelerar o processo histórico rumo à utopia. O revolucionário não tem limites.

    Qual é a utopia bolsonarista?

    Diferente das utopias modernas, a utopia bolsonarista não aponta para um futuro inédito, para o novo a ser construído. Trata-se de uma utopia reacionária, com o objetivo de reconstruir o mundo perfeito que já teria existido no passado. Na temporalidade bolsonarista, o passado é a matriz da utopia. O futuro é a regeneração. O presente é a decadência a ser superada pela ação revolucionária.

    Seria equivocado dizer que a utopia bolsonarista é conservadora. Conservadores, hoje, são aqueles que tentam salvar as instituições democráticas da revolução bolsonarista.

    Qual é o passado que serve como objeto de desejo para a utopia reacionária bolsonarista?

    Não é a ditadura militar instituída no Brasil em 1964. E aqui temos aspecto muito importante para a compreensão do bolsonarismo. O deputado Jair Bolsonaro ficou quase 30 anos no parlamento elogiando a ditadura. O objeto da nostalgia do deputado era a ditadura militar. A nostalgia do presidente Bolsonaro é outra. Em algum momento aconteceu o encontro do deputado Bolsonaro com a crítica da modernidade desenvolvida por Olavo de Carvalho ao longo da década de 1990. Esse encontro, que ainda precisamos descobrir como aconteceu, quando aconteceu, é o berço do bolsonarismo como projeto revolucionário.

    O presidente Jair Bolsonaro idealiza um mundo pré-moderno, anterior à invenção do Estado, onde os patriarcas pegam em armas, se organizam em milícias para proteger sua propriedade e sua família, para dominar sua propriedade e sua família. Esse é o núcleo duro do projeto bolsonarista, manifestado não apenas nas falas do presidente na tal reunião, mas nas diversas tentativas do governo em flexibilizar as regras de controle do comércio de armas de fogo, quase sempre à revelia das Forças Armadas, que legalmente têm autoridade técnica sobre a matéria.

    Na doutrina bolsonarista, o cidadão de bem, homem, proprietário, deve ser livre para matar, se entender que é necessário para defender seus interesses. O regime de força que o bolsonarismo tenta implantar no Brasil não tem o objetivo de reeditar a ditadura militar. O objetivo é transformar o país num continente feudal, onde cada lote de terra é guardado pelo patriarca armado, senhor da vida e da morte de todos aqueles que vivem sob sua tutela/proteção. Essa é a liberdade que Weintraub e Bolsonaro querem defender, dizem estar dispostos a tudo para defender.

    Na utopia bolsonarista, os filhos devem ser criados à imagem e semelhança dos pais, sem nenhuma interferência externa à casa. A educação pública seria, então, ato de tirania, a tentativa do Estado em corromper os filhos do patriarca. Por isso, tudo que Weintraub fez desde que assumiu o Ministério da Educação foi tentar desmoralizar a educação pública. Desmoralizar os professores, as universidades, o ENEM. Não é incompetência administrativa. É projeto. É ideologia. É a doutrina bolsonarista.

    E Paulo Guedes? O chicago boy tão incensado pela imprensa liberal, definido como a reserva técnica dentro do governo do capitão aloprado. Lembro de Eliana Catanhede dizendo que Bolsonaro havia feito um “golaço” ao convidar Guedes para comandar a fazenda. Ah, essa “direita democrática” brasileira. Ou são cínicos ou são burros. Talvez as duas coisas.

    Guedes é tão militante como Weintraub. Sua adesão ao bolsonarismo também é ideológica. A utopia reacionária bolsonarista cai como uma luva no neoliberalismo religioso de Paulo Guedes. “Nunca briguei com Guedes”, disse Bolsonaro. Por que brigaria? Eles foram feitos um para o outro.

    Guedes não é um infiltrado do mercado que tenta disciplinar Bolsonaro. Guedes não é a concessão feita por Bolsonaro para agradar o mercado e se sustentar no governo. Guedes é escolha ideológica, é prova de que o capitalismo especulativo não tem nenhum compromisso com a civilização.

    “Tem que privatizar a porra toda!”, disse Guedes. Somente na utopia bolsonarista, o fanatismo de Guedes é viável. Somente em um mundo dominado pela casa, o Estado pode ser mínimo, quase inexistente, como professa a religião de Paulo Guedes. O Estado é mínimo porque a casa é grande. Definitivamente, Paulo Guedes é militante bolsonarista.

    O bolsonarismo também evoca certo conceito de democracia e de representação política, mas numa chave muito diferente daquela que caracteriza o experimento democrático liberal-burguês. Na democracia liberal, o Estado é dividido em três poderes, que estabelecem entre si relação de controle recíproco, naquilo que costuma ser chamado de “sistema de freios e contrapesos”. Na democracia liberal, a participação política do cidadão é indireta. Periodicamente, o sujeito vai às urnas escolher seus representantes, para quem delega sua soberania.

    O bolsonarismo altera o conceito de democracia e redimensiona a ideia de representação política, se aproximando muito da lógica fascista. Para o bolsonarismo, toda e qualquer mediação é corrupta em si. Nesse sentido, Legislativo e Judiciário nada mais fariam do que se locupletar do dinheiro público e criar dificuldades para o poder Executivo, único legítimo, o único verdadeiramente capaz de representar o cidadão.

    O bolsonarismo não tolera negociar com os outros poderes, não aceita nenhum tipo de interferência. A representação política bolsonarista se dá pela projeção direta, sem mediação, de soberania no chefe, o único considerado verdadeiramente honesto. Existiria entre o chefe e o cidadão um vínculo afetivo, de confiança, de cumplicidade. O chefe representaria o cidadão porque também é homem honrado, pai de família em luta contra a corrupção sistêmica. O fascista é sempre um homem comum.

    A representação liberal é pragmática, é movida pelo interesse do cidadão em delegar sua responsabilidade cívica a outro, garantindo, assim, o ócio necessário para se dedicar a seus assuntos privados. A democracia liberal é desmobilizadora. Já a representação fascista é afetiva, emocional, depende de constante agitação. O fascismo é mobilizador.

    A democracia bolsonarista significa uma sociedade organizada em clãs, cada qual protegido por um patriarca armado, homem de bem, representado diretamente pelo chefe maior, entendido como um deles.

    O bolsonarismo opera com conceitos que são constitutivos da tradição política ocidental, como liberdade, democracia e representação política. Conceitos que são elásticos o suficiente para permitirem a leitura fascista. O fascismo não é fruto estranho no terreno da tradição política ocidental. É possibilidade política aberta por essa tradição. De alguma forma, o fascismo é parte daquilo que somos, que todos nós somos. Por isso, ora ou outra o ovo da serpente dá cria. Por isso, é necessário estar sempre vigilante. Quando menos esperamos, o fascismo brota do chão, sem aviso prévio. Simplesmente chega, de mansinho, enquanto tudo estava normal, enquanto as instituições “estão funcionando”. Funcionam até o exato momento em que não funcionam mais.

    Não sei se o vídeo da fatídica reunião comprova as acusações de Sérgio Moro. O processo legal, que Moro nunca respeitou quando era juiz, dirá. Fato mesmo é que o vídeo é o tratado de definição da doutrina bolsonarista. É o texto que Olavo de Carvalho não escreveu.

     

  • Sem ‘bala de prata’, com cloroquina do Paulo Guedes

    Sem ‘bala de prata’, com cloroquina do Paulo Guedes

    ARTIGO

    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

     

    A divulgação do vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro não foi a “bala de prata” para derrubar o governo, muito menos enfraquecer o bolsonarismo. E o problema não está no conteúdo do material divulgado, mas na expectativa gerada em torno dele: nem o presidente nem a ideologia que lhe sustenta caem com uma “bala de prata”. Para cair o governo por meio de impeachment, como sabemos, o caminho é longo e depende do procurador Geral da República e do Congresso, um um processo que é jurídico e político. Para a queda do bolsonarismo, o percurso é ainda mais longo e tortuoso, algo que nem a circunstância hipotética do impeachment será capaz de derrubar.

    Contraditoriamente, o vídeo enfraquece o governo e fortalece o sentimento político que o sustenta. O ponto central que levou à divulgação do vídeo é a acusação de Moro, mas há outros aspectos laterais que nos ajudam a entender a lógica e o funcionamento do governo, para além da exposição dos lunáticos olavistas, como mostrou o artigo de Valdei Araujo e Mateus Pereira aqui no Jornalistas Livres.

    Dois aspectos, no entanto, aparecem de maneira “lateral” na contenda com Moro, mas são fundamentais para o nosso contexto atual: enfrentamento da pandemia de Covid (1) e crise econômica dela decorrente (2). A ausência do primeiro e a presença do segundo na reunião nos ajudam a entender os próximos passos e é um termômetro decisivo para o enfraquecimento do governo.

    Sem bala de prata, com provas

    O vídeo não deixa dúvidas de que a acusação de Moro é procedente. Bolsonaro queria usar a Polícia Federal para proteger a si, seus amigos e sua família. Mais grave ainda, como ferramenta de polícia política para perseguir e atacar adversários, como fica claro nos momentos em que ele reclama de falta de acesso a sistema de investigação e informação. Assistindo a reunião completa, fica claro que a fala de Bolsonaro sobre a necessidade de substituição do “chefe, do diretor e do ministro” é, na verdade, a conclusão de uma longa “bronca”, toda ela direcionada a Moro, que já contava cerca quase dez minutos.

    Para “Bozo”, Moro não usava seu prestígio social e jurídico para defender aguerridamente o governo em meio aos ataques de todos os lados. Na hora de colher os louros, Moro colhia; na hora de defender o governo de ataques, se escondia. Bolsonaro cita o episódio de sua participação nas manifestações antidemocráticas de 19 de abril, e suas repercussões negativas na Imprensa e no Judiciário. Pedindo mais engajamento político de seus subordinados, insinuou que era o momento de ministros, com bom trânsito no Judiciário e na Opinião Pública, se apresentarem para a luta. Era óbvio que ele falava de Moro, um bolsonarista de última hora que, tal e qual um bom lava-jatista, apoiou o projeto sem fechar com um “pacote completo” que incluía “terra-planismo”, negacionismo científico, gestos milicianos e ataque ao STF.

    Moro foi para o governo com nome próprio e histórico de parceria com o núcleo lava-jatista do STF – sobretudo Barroso, Carmem Lúcia, Fachin e Fux (In “Fux we trust”, lembram?). Ao seu modo, autoritário e esbravejante, Bolsonaro pedia a Moro que submetesse sua imagem ao bolsonarismo. Se tivesse consciência democrática, Moro sequer aceitaria o convite de Bolsonaro, depois de condenar à prisão o principal líder de oposição ao governo; tampouco aceitaria continuar se subordinando a um presidente que se soma a manifestações políticas que pedem retorno do AI-5. Isso para citar apenas dois exemplos.

    Não é este o Sérgio Moro, mas dessa vez ele apresentou provas concretas: está lá, na voz de Bolsonaro, que exigia acesso a investigações de órgãos de inteligência. Que fique claro: ele não reivindicava a prerrogativa constitucional de demitir ministro nem nomear diretor, mas, sim, o acesso às investigações. Prometeu e fez. Demitiu Moro, Valeixo e o superintendente do Rio. Queria tornar oficial o que já é sua prática oficiosa (e criminosa), e ele esbravejou isto para quem quisesse ouvir no último dia 22, após a divulgação do vídeo. Se o governo cairá, diante de tantas provas e confissão, não sabemos. Dilma caiu por pretensas “pedaladas fiscais”; Temer não caiu, mesmo depois de ter sua voz exposta consentindo com crimes praticados por empresário corrupto (para dizer o mínimo). O processo de impeachment é político e juridico.

    Cloroquina de Paulo Guedes

    Paulo Guedes é uma das figuras mais representativas da mudança política que conduziu Bolsonaro da Câmara dos Deputados ao Planalto. Enquanto deputado, defendia um programa econômico nacional desenvolvimentista, alinhado ao modelo implementado pela Ditadura Militar. Orgulhava-se das obras monumentais, do padrão de desenvolvimento ancorado no Estado. Como candidato, já no quadriênio 2014-2018, enquanto exercia seu mandato, se alinhou ao discurso neoliberal como forma de agradar aos mercados e de polarizar com o governo Dilma, disputando o eleitorado de Aécio Neves, que em 2014 somara 49% no segundo turno.

    Paulo Guedes era o nome ideal, com a experiência de quem atuou no regime ditatorial chileno de Augusto Pinochet. No governo, tal como Sérgio Moro, o “Posto Ipiranga” virou um elo entre governo e grande imprensa. Como forma de diferenciar Guedes e sua agenda econômica do restante do governo, comentaristas da Globo News cunharam o termo “ala ideológica”, como se Guedes não estivesse nela, mas, um quadro “técnico”, distante da política. Assim impôs-se um consenso em torno da necessidade da reforma da previdência como único caminho possível para uma modernização econômica. Paulo Guedes foi bastante poupado pela grande imprensa na cobertura sobre o vídeo e a reunião. Ali ele defendeu o turismo sexual em nome do livre mercado e a privatização da “porra” do Banco do Brasil, só para citar dois exemplos. Lamentou que o governo seja obrigado a subsidiar pequenas empresas para saída da crise – estas, as maiores geradoras de empregos do país.

    Não há motivos, portanto, para não considerarmos ele também um lunático. Mais do que isso. Na reunião ficou claro que há dois programas econômicos em disputa no governo. Um encampado pelos generais, Rogério Marinho e Tarcísio Freitas; e outro defendido pelo Posto Ipiranga. O motivo central daquela reunião, aliás, era apresentar e discutir o “Pro-Brasil”, coordenado pelo general Braga Netto, ministro Chefe da Casa Civil. O programa recebeu o apelido de novo Plano Marshall (prontamente atacado por Guedes) pela injeção de investimento público na economia em contexto de reconstrução, comparando o pós-pandemia ao pós-guerra. Nada muito diferente da tendência mundial atual, entre países de economia neoliberal, como França, Alemanha e Estados Unidos.

    Para Paulo Guedes, a saída continua sendo a radicalização das reformas neoliberais, privatizações (inclusive da “porra” do Banco do Brasil), cortes de direitos e retração econômica. Rogério Marinho, ministro da Integração Nacional, ressaltou que a crise econômica gerada pela pandemia não admite a reafirmação de dogmas, destacando a tendência internacional de maior intervenção econômica do Estado. Em resposta, Guedes reafirmou seu dogma: a saída para a crise da Covid é, ainda, a solução neoliberal, estreita e unilateral. Esta não conhece contexto, circustância, conjuntura internacional. Paulo Guedes revelou ali a sua própria cloroquina. Haverá um antídoto anti-bolsonarismo?

    Um governo como este não cai por meio de uma “bala de prata”. A geração da expectativa da “bala de prata” é motivada pelo ritmo temporal acelerado e ansioso que caracteriza o público de internet (de esquerda e de direita). Um tempo atualista, como denominam Valdei Araujo e Mateus Pereira em suas pesquisas. Acompanham a cena política nacional como se estivessem assistindo uma série de Netflix em final de temporada. O tempo real da política, entretanto, é outro, conhece outros ritmos. O bolsonarismo, enquanto fenômeno político e cultural mais amplo, não termina com o governo Bolsonaro, como gosta de lembrar o historiador Rodrigo Perez. Ele se alimenta das manifestações golpistas de Weintraub, da fala de Damares sobre as feministas do Ministério da Saúde, da exaltação armamentista do presidente da Caixa, da fala de Ricardo Salles que vê na crise do corona ótima oportunidade para passar projetos anti-ambientais.

    No vídeo, o bolsonarista-raiz reafirma o seu próprio modo de ver o mundo, a besta fascista que carrega em si. É o público que hoje se diz muito satisfeito com a atuação de Bolsonaro na pandemia, girando em torno de 25 a 30% pelas últimas de opinião. Para eles não há remédio a curto prazo; a solução imediata é colocá-los em minoria, diminuindo sua capacidade de capilarização no seio da sociedade. Infelizmente a pandemia de Covid atinge a todos. E a população brasileira está sentido na pele o que é ter um governo sem compromisso com as vidas. Países com situação sócio econômica como a nossa, como Argentina, tem números muito menores de infectados e mortes.

    A reunião ministerial retratou, pela ausência, este descaso. Sobre as vítimas e ações de combate ao virus, nada. Em meio a maior epidemia dos últimos cem anos, a reunião deixou claro para qualquer brasileiro que o enfrentamento da pandemia e das vítimas não é prioridade neste governo. Uma política de morte posta a prova. A cloroquina de Paulo Guedes, por sua vez, aponta para uma política econômica “anti-povo” e altamente destrutiva para os mais pobres. Não é necessário ser de esquerda para chegar a essas conclusões. Não haverá bala de prata, mas há crise. Há mito capaz de sobreviver a ela? 

  • O PALÁCIO DE WITZEL

    O PALÁCIO DE WITZEL

     

    ARTIGO

    Alexandre Santos de Moraes, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Fluminense

    Na coletiva em que anunciou sua exoneração, o ex-ministro Sérgio Moro reconheceu a relação republicana que os governos do PT mantinham com as instituições brasileiras. Nas redes sociais, a facção bolsonarista correu para denunciar traição; as esquerdas, sobretudo as petistas, repercutiram o elogio aos governos Lula e Dilma feito por seu maior inimigo político, denunciando a óbvia virtude do partido nesse quesito.

    Não deixa de ser curioso que o ex-juiz, que fez uso descarado dos aparelhos do Estado para fazer política, tente dissociar sua imagem dessa prática. A ideia de que as instituições são utilizadas para acumular poder pessoal foi o tom da crítica que parte das esquerdas fez contra Moro durante o período em que ganhou prestígio, visibilidade e um belo cargo no governo federal; contudo, por força das circunstâncias ou por rasteiro oportunismo, o algoz se posiciona como vítima dessa prática que conduziu o país ao caos.

    As novas forças políticas que surgiram na esteira de Bolsonaro seguiram o mesmo protocolo. Dentre eles (é bom não esquecer!) o governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, uma figura pública quase desconhecida que gozou de ascensão meteórica por reproduzir a ladainha autoritária que cativou o eleitorado em 2018. Hoje, dia 26 de maio de 2020, após romper com o governo por força da crise da pandemia, Witzel se tornou mais uma vítima da prática autoritária que ajudou a instituir.

    Na manhã dessa terça-feira, a Polícia Federal, já sob o comando do indicado de Bolsonaro, cumpriu 12 mandatos de busca e apreensão na Operação Placebo, que investiga suspeitas de desvio da Saúde. Um deles foi endereçado ao Palácio Laranjeiras, residência oficial do governador. Os policiais também se dirigiram ao escritório de advocacia e à casa em que Witzel morava antes de eleito. Tão logo possível, o governador se manifestou: “A interferência anunciada pelo presidente da República está devidamente oficializada”.

    Poucas situações poderiam ser tão ilustrativas da atual crise republicana. Ao longo de seus mandatos, como o próprio Moro reconheceu, o PT garantiu autonomia às instituições brasileiras. Essa outorga, inédita nos termos praticados, foi fundamental para que a casta política pouco afeita à democracia conduzisse o golpe de 2016. A ascensão de Bolsonaro e sua permanência no poder dependem não apenas do discurso anti-petista, mas da ruptura com as práticas republicanas defendidas pelo PT. O paradoxo volta à cena: o atual governo, que foi eleito com base no discurso contra a corrupção, enfraquece os instrumentos de combate à mesma corrupção que supostamente iria combater. Esse fato óbvio, utilizado de forma cínica pelo próprio Sérgio Moro, é um dos mais poderosos legados do governo do PT, o que redobra o paradoxo: uma possível solução para essa crise, que surge discursivamente ligada ao Partido dos Trabalhadores, depende, dentre outras coisas, da restituição do modus operandi que marcou as gestões do próprio PT.

    A queda do Palácio de Witzel é, certamente, apenas a primeira de muitas ações que tornarão essa contradição ainda mais visível. Mais do que nunca, o Brasil padece de absoluta falta de estabilidade. Com a instrumentalização da Polícia Federal, tudo parece se tornar objeto de disputas políticas. É possível que Witzel seja inocente nas acusações que ora enfrenta, e todo esse circo não passa de ataque do presidente provisório; também é possível que Witzel seja culpado, mas a atuação da Polícia Federal sob a batuta de uma besta autoritária tornará as acusações frágeis, suspeitas e, na ausência de provas contundentes, completamente ilegítimas.

    O déficit de democracia vai se alastrando com a velocidade do coronavírus. O autoritarismo lateja qual ferida aberta e infestada de moscas. Ontem, dia 25 de maio, em entrevista à Rádio Gaúcha, a deputada Carla Zambelli antecipou que governadores seriam alvo de investigações da Polícia Federal; hoje, dissimulando falta de informação, Bolsonaro afirmou que nada sabia. Difícil acreditar que uma deputada que pertence ao núcleo bolsonarista tivesse acesso a uma informação privilegiada desconhecida pelo próprio presidente, sobretudo após a divulgação do vídeo em que ele afirma a necessidade de intervir na Polícia Federal do Rio de Janeiro. Mas nada disso faz diferença, sobretudo porque a colisão substituiu a coalizão no presidencialismo à brasileira.

    O Palácio de Witzel começa a ruir. Difícil saber quem será o próximo, mas é improvável que situações como essa deixem de acontecer. Não há solução para a crise sem profunda revisão do anti-petismo doentio que autorizou, dentre outras coisas, a atmosfera de descrédito e desconfiança que Bolsonaro produziu. Além de tudo isso, pesa a frustração de saber que Witzel venha a ser atingido por um crime que ele pode, ou não, ter cometido. Não é pelo assalto à credibilidade da República que ele ajudou a produzir ou pelo extermínio de pobres que pratica nas favelas e que segue vitimando jovens negros mesmo durante a pandemia. A culpa atribuída a Witzel convém a Bolsonaro, e, mais do que nunca, os interesses de Bolsonaro não coincidem com as necessidades do povo brasileiro.

     

     

  • Reunião ministerial: totalitarismo à vista

    Reunião ministerial: totalitarismo à vista

     

    ARTIGO

    Fábio Faversani, professor titular de História Antiga na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

    Assisti à reunião ministerial de 22 de abril completa e cheguei a duas conclusões:

    1) O governo Bolsonaro não tem rumo nenhum, nem para fazer o mal que deseja, e tem impulsos diferentes, sempre contra os interesses populares e muitas vezes em confronto aberto e direto com a democracia; e 2) que, apesar disso tudo, o eleitorado que apoia o governo não se afastará do presidente, mas, ao contrário, o que se vê ali galvaniza esse apoio e fortalece a militância em sua defesa, que é alimentada por um discurso que sustenta uma saída totalitária. Parece absurdo? Vejamos ponto a ponto.

    A reunião tem início com o ministro Chefe da Casa Civil, general Braga Netto apresentando o esboço de um plano de recuperação da economia que ele alcunhou de “Plano Marshall brasileiro”.  Esse apelido dado pelo militar já deixa claro um entendimento pífio, quer da economia, quer da história. O que se vê é uma lista na qual tudo é prioridade, confusamente lida, como um aluno apresentando seminário que não preparou. Um vexame!

    Mas isso não assusta nem afasta o eleitor fiel de Bolsonaro. Para esses, só Paulo Guedes entende de economia e ninguém mais, nem o presidente, nem seus eleitores. Essa ideia da economia como um domínio técnico misterioso a ser gerido sem transparência, delegado a um todo poderoso que assegure que os interesses do “mercado” serão atendidos não é nova. Basta lembrar do papel de um Henrique Meirelles com Lula ou, pior, Joaquim Levy com Dilma. O problema é que Guedes também não entende muito de economia, como logo demonstrou, delirando com um Brasil que ia começar a voar e que a saída para a crise econômica se dará com investimentos privados exclusivamente (em nenhum lugar do mundo isso vai acontecer, muito menos no Brasil!). Para ele, acabar com desigualdades era coisa que o PT fazia e o governo de Bolsonaro não segue esse caminho. Para o eleitor de Bolsonaro é isso mesmo! Políticas de redução de desigualdades é sinônimo de dar bolsa para quem não trabalha (ideia absurda e antiliberal defendida largamente também pelo PSDB por seguidas campanhas) e que o governo deve ajudar apenas os ricos, os grandes empresários, que vivem com inúmeras dificuldades e são eles que geram riquezas, empregos.

    Em outras palavras, Bolsonaro dá consequência a uma ideia muito difundida de que favorecer os pobres é favorecer mais pobreza e que isso não deu certo com o PT, quebrou o Brasil. O que se deve fazer é isso mesmo: favorecer os ricos, que vão gerar mais riqueza e fará o Brasil um país próspero, com muito investimento e empregos. Não se trata de reduzir as desigualdades, mas de escapar individualmente à pobreza. Nesse entendimento, quem fica pobre quando o mercado cresce é vagabundo. Cada um olha para si e pensa: “Eu não sou vagabundo; se os ricos começarem a ganhar mais eu vou ter oportunidade e vou ganhar mais!”. Quem tem que se preocupar, nesse sentido, é quem não correr atrás. O que uns chamam de precarizados, muitos se percebem como empreendedores, futuros casos de sucesso, que o Estado só atrapalha.

    Como essa população cresce, um grande contingente sem direitos e sem perspectiva de ter aposentadoria vai sendo integrado como parte importante do eleitorado (cada vez mais importante do que aqueles com carteira assinada, com direitos). Assim, para muitos, não faz sentido a defesa de direitos, que são vistos como privilégio de vagabundos, pois são para cada vez menos pessoas que têm direitos. A cada vez que temos uma reforma trabalhista, uma reforma previdenciária diminui o número de pessoas que têm direitos… e elas não começaram com Bolsonaro. Para esse público, a visão econômica de Guedes, excludente, que aprofunda desigualdades e retira direitos, é motivo para aplauso. O Estado não vai nos proteger. Quem diz isso é petista demagogo ou, pior ainda, os privilegiados entre os privilegiados, os vagabundos entre os vagabundos, os funcionários públicos! Esse, como disse Guedes, o governo deve abraçar e colocar uma granada em seu bolso. Deveria gerar horror, especialmente quando a pandemia mostra que o serviço público é fundamental! Mas não…

    Faz muitos anos e muitos governos que essa demonização do serviço público como privilégio, ineficiência e vagabundagem é reforçada. Nenhum eleitor de Bolsonaro se assusta com a ideia de colocar uma granada no bolso do funcionalismo público. Pelo contrário, todos que são contra a democracia e o acesso universal aos serviços básicos para todos puxam o pino da granada rindo! É horrível, é chocante, mas é assim. Para os bolsonaristas, Guedes está sendo sincero, correto e agrada o mercado. Isso que importa. A chave, afinal, há décadas é essa: agradar ao mercado sobre todas as coisas. Guedes repete a música de Raul Seixas: “A solução é alugar o Brasil!”

    Depois, Bolsonaro faz um ataque à imprensa. Diz que são todos uns pulhas, inimigos a serem ignorados na melhor das hipóteses. Ao longo da reunião, o presidente retomará esses ataques. Qual eleitor de Bolsonaro não assina embaixo e se engaja nisso? Precisa ser lembrado que não foi Bolsonaro e seus eleitores que criaram palavras de ordem contra a imprensa? Xingar a Globo só se tornou hábito da direita recentemente. Tiveram com quem aprender. O pouco apreço à imprensa visto como mentirosa e odiosa não é novo e nem é exclusividade de bolsonaristas. A questão das concessões publicas para órgãos de imprensa, o domínio de uma imprensa corporativa e todos esses temas nunca foram debatidos e enfrentados no Brasil e nossa democracia frágil tem aí belos pés de barro.

    Onyx Lorenzoni repete a mesma ideia de que o PT quebrou o Brasil e o governo Bolsonaro estava recuperando a economia. Veio a pandemia e a histeria que a acompanha prejudicou o governo, que deveria retomar o caminho original que estava levando o Brasil a voar. Obviamente, os indicadores do Brasil pré-pandemia eram os de “pibinho”. Não havia nenhuma economia pronta para voar. Mas a parte mais delirante é que o Brasil estava tendo amplo reconhecimento internacional positivo. A pergunta que fica é: em que planeta está esse senhor? O Brasil perdeu a confiança internacional especialmente, mas não apenas, por seu atrelamento automático aos EUA e por sua agenda ambiental desastrosa. A baixa confiança em uma recuperação econômica com um governo claramente sem projeto e uma Chancelaria olavista delirante completam o cenário desastroso.

    Mas, para o eleitor de Bolsonaro, ser amigo do Trump é tudo. Para esses, Trump não tem nenhum respeito internacional porque defende os EUA sobre todas as coisas. Bolsonaro também. É a luta contra o globalismo! Faz sentido? Nenhum! Mas é uma mensagem fácil de entender. O globalismo é ruim e o isolamento do Brasil é bom. Ficamos com Trump e de que nos importa o mundo? A relação com a China ocupa um lugar especial no pensamento anti-globalista e anti-comunista do eleitor de Bolsonaro. Para esses, ali é só comércio, sem ideologia. Isso foi repetido por Guedes. Alguém ainda precisa contar isso para os chineses. Enquanto eles não sabem, a posição do Brasil no mercado internacional vai se deteriorando. Adiante, Bolsonaro também reafirma essa confusão.

    Mais adiante o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, delira que após a pandemia cinco ou seis nações vão se sentar para redefinir a ordem mundial. A nova globalização seria pautada em valores de liberdade e excluiria a China. Para o eleitor de Bolsonaro, nada demais. É um desejo, delirante. Se você disser para um eleitor de Bolsonaro que o Brasil não estará no centro de negociações sobre a ordem pós-pandemia e que, ao contrário, a China estará, ouvirá que você está torcendo contra o Brasil, que não é patriota e é comunista. Esse tipo de bobagem, de descalabro absurdo não afasta o eleitor de Bolsonaro, ao contrário, faz com que o sentimento de patriotismo se reforce. 

    O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, apela para que as mentes estejam abertas para o momento extraordinário e que o Estado precisa ter um papel destacado e atuar para dar liquidez ao mercado, diferentemente do que se esperaria antes da pandemia. Diz o óbvio: o endividamento do governo vai ser enorme e Guedes e Onyx estão errados ao falar em retomar o rumo anterior. O governo deveria focar em dar liquidez ao mercado, ajudar quem precisa e reduzir desigualdades regionais e melhorar a infraestrutura. Atacou quem quer manter os dogmas de sempre, mesmo a situação sendo totalmente nova e exija respostas novas. Falou e ninguém ouviu.

    Mas, bem ao final da reunião, Guedes retomou a palavra e disse que não é apegado a dogmas, mas sabe tudo sobre retomada da economia, estudou todos os casos importantes, Alemanha da década de 40, Chile da década de 70 – atualizadíssimo o “Posto Ipiranga”. Mesmo que não seja obviamente verdade, para o eleitor de Bolsonaro o que interessa é que Guedes é quem governa a economia e governa para o mercado, como outros antes dele. As fissuras são claras, e Braga Netto com seus planos desenvolvimentistas e Marinho com suas dúvidas sobre o dogma não mandam. Quem manda é Bolsonaro e Bolsonaro manda Guedes comandar. Essa confusão é a alegria dos apoiadores de Bolsonaro e sua aposta de que o PT quebrou o Brasil e a redenção está no “Posto Ipiranga”.

    Qual o prazo de validade dessa promessa que não vai se cumprir? É impossível dizer. Mas uma crise econômica brutal vem aí e a renovação do bode expiatório está pronta: o PT quebrou o Brasil e, depois, a pandemia foi usada por governadores e prefeitos, além da imprensa, para disseminar o pânico e, com isso, quebrar o governo Bolsonaro. Para completar, o STF não permitiu que o governo federal conduzisse a situação, dando poder para governadores e prefeitos. Assim, STF se soma aos culpados pelas mortes e pela brutal crise econômica que virá. A resposta para a crise econômica será desmantelar o serviço público, cortar mais direitos, adotar medidas que favoreçam as grandes empresas e os mais ricos. Afinal, políticas que visem maior igualdade quebram o país. O Estado salva os ricos e daí para baixo é salve-se quem puder.  

    Depois, vem o Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e declara que o governo deveria se aproveitar que há uma pandemia e passar todas as reformas infralegais sem nenhum debate. Para ele, a pandemia é uma oportunidade de ouro, pois a retirada de toda a proteção hoje existente seria fácil agora que a imprensa só fala em Covid. Sem a atenção da sociedade, restaria “passar a boiada”. O eleitor bolsonarista aplaude isso, de retirar a proteção ao meio ambiente, aos povos originários e quilombolas, tudo isso que só atrapalha. O discurso dele é que sem o Congresso e sem a sociedade para debater as medidas, o único obstáculo seria o Judiciário, que decide contra tudo que o governo tenta fazer de ilegal. Para o eleitor bolsonarista, o Judiciário protege quem não merece. A justiça é injusta. Merece ser atacada e desrespeitada. Nada novo.

    O Presidente do BNDES, Gustavo Montezano, diz que concorda plenamente com Salles e que a pandemia é uma oportunidade impar para retirar tudo que atrapalha os negócios. A lógica do governo e dos eleitores que o apoiam é clara: proteger meio ambiente e populações vulneráveis é coisa de ONGs pilantras que controlam a imprensa e a Justiça. O debate público (ou mi-mi-mi) e a democracia atrapalham que o governo Bolsonaro faça o que é preciso fazer. Essas falas que são escandalosas e chocantes para quem tem apreço pela democracia, soam como música para eleitores de Bolsonaro que a desprezam como um empecilho.

    Bolsonaro retoma a palavra para reclamar de seus ministros que só querem elogios e porque as críticas são todas para o presidente. Diz que ninguém pode deixar de defendê-lo e seguir o que ele “pensa”. Assim, o presidente afirma sua posição de que ele é mais importante do que qualquer ministro. Esse é um elemento novo e que tem sido muito bem aceito pelos bolsonaristas. A ideia é que os ministros devem ser fiéis ao presidente e devem se expor nas disputas políticas. Bolsonaro está lá para brigar. Isso inclui os ministros. No caso do Ministério da Justiça é dito que falta combate e são feitos vários ataques à inação de Moro.

    O então ministro Sérgio Moro se manifesta a seguir e nada diz sobre as críticas de Bolsonaro claramente dirigidas a ele e às suas omissões na defesa do presidente. Ele apenas pede para incluir a segurança pública e o controle da corrupção no plano Pró-Brasil, apresentado na abertura da reunião. Ao eleitor bolsonarista, Moro aparece acovardado e sem compromisso com a proteção do governo. A recusa de Moro se dá porque ele não quer defender o governo, e não porque defender o governo ou o presidente, família e amigos é errado. Fosse errado, teria dito algo. Não disse nada. Para o eleitor bolsonarista, Moro é, assim, um egoísta arrogante que só pensa em si. Portanto, não há conflito moral ou ético na cobrança do presidente por proteção. As coisas seriam assim mesmo, sempre. As investigações não são feitas para apurar a verdade, crimes, mas, sim, para prejudicar as pessoas. A polícia não tem uma atuação republicana e impessoal. Sendo assim, se há uma investigação é porque alguém quer prejudicar alguém. No caso, opositores querem investigar Bolsonaro, sua família e amigos.

    O que Bolsonaro e seus eleitores esperam não é o funcionamento republicano das instituições, que nunca existiu. O que eles querem é que as instituições assegurem a sua impunidade, que não sejam feitas investigações que o comprometam, pois isso seria armação da oposição para prejudicar o governo. Sendo assim, ou as instituições funcionam para proteger Bolsonaro e sua família e amigos, ou vai mudar a pessoa lá na ponta, o chefe, o ministro. Historicamente, isso está na memória da população desde o famoso “Engavetador Geral da República”, que atuou no governo Fernando Henrique Cardoso. Mais recentemente e em sentido oposto, sob o comando do próprio Moro essa justiça injusta foi exposta, funcionando com uma celeridade e seletividade ímpares não para punir crimes, mas para destruir um setor político e muito especialmente inviabilizar a candidatura de Lula à Presidência. Sendo assim, parece claro que a justiça não funciona de forma republicana, mas serve para punir quem não tem força política.

    O então Ministro Nelson Teich diz que primeiro é necessário enfrentar a pandemia porque, enquanto não houver resposta para a doença, o medo não permitirá que a adoção de nenhuma medida no campo econômico tenha sucesso. Expressa ainda sua preocupação que os hospitais particulares vão ter prejuízo nesse período de Covid por conta da restrição de atendimento a outros pacientes. Assusta um ministro da Saúde estar mais preocupado com lucros dos hospitais privados do que com a saúde pública? Com o fortalecimento do SUS? Assusta mais ainda essa passagem não ter sido comentada em lugar nenhum que eu tenha visto. Impressiona que o debate sobre como enfrentar a pandemia não se torna o centro do debate da reunião ministerial depois disso. Há um entendimento tácito, rapidamente expresso pelo presidente, de que a pandemia não é nada disso, muitos mortos por Covid são vítimas de comorbidades, segue o baile. Nada que assuste o eleitor de Bolsonaro que acha que a pandemia é uma invenção da extrema-imprensa e governadores e prefeitos de oposição para prejudicar o presidente com a ajuda do STF, que não permite que o governo federal atue.

    Mais adiante, tais agentes públicos serão qualificados como “bosta”, “estrume”.  O presidente do Banco Central diz nesse sentido que respeitar o teto dos gastos e a reforma da Previdência levaram à queda dos juros. Mas que há muito medo, gerado pela imprensa, e que por isso haverá dificuldades econômicas. As dificuldades econômicas não virão pela resposta insuficiente do governo, mas pelo medo incutido na população por prefeitos, governadores e imprensa, com apoio do STF. Reitero: o governo prepara a justificativa para a catástrofe econômica e a agenda de reformas que aprofundem a desigualdade, o desmonte do serviço público e a retirada de direitos. Vamos ter um mix de o PT quebrou o Brasil com a pandemia não permitiu nossa economia voar como base para um recuo sem precedentes na proteção aos trabalhadores, na qualidade do serviço público e na proteção a setores vulneráveis da sociedade.

    O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, fala dos ladrões, todos do PT, PMDB que cobravam 25% de juros. Afirma também que não deu dinheiro para a Band e por isso recebeu críticas da emissora. Menciona a seguir a detenção da filha de um deputado que teria desrespeitado o isolamento e diz que, se fosse com ele, pegaria suas 15 armas e seria matar ou morrer, mas não deixaria a polícia atuar. O governador do estado em que ocorreu o fato seria ladrão também. Reclama que todos são ladrões e não eram criticados. Agora, os que compõem o governo Bolsonaro não estão roubando e estão sendo atacados. Volta-se à cobrança por proteção. Essa contraposição é central: os outros são ladrões e mal intencionados e vale tudo para se contrapor a esses: descumprir a lei, desrespeitar direitos.

    Por outro lado, proteger os seus também é marcado por um vale tudo. Sendo assim, a base de apoio do governo não trabalha com a distinção respeito ou desrespeito às leis. O pressuposto é que todos desrespeitam as leis, que são complicadas, difíceis de obedecer por cidadãos e governo. O que faz uns serem punidos, ou não, é o controle político das instituições. Assim, para o bolsonarismo é fundamental defender o desrespeito às leis e às instituições para alcançar seus fins. Atender à lei é obedecer aos tribunais, aos governadores, aos prefeitos, aos parlamentos. Para o bolsonarismo (e esse é um ponto fundamental!), cada vez mais a aposta totalitária sobe no sentido de existir só o Chefe Supremo e seu povo único, sem intermediação nenhuma (no máximo com a mediação das mídias sociais).  

    A ministra Damares Alves afirma que tudo é uma questão de valores e coloca a par dos povos tradicionais a existência de um 1,3 milhão ucranianos e fala que o STF deve retomar a pauta da liberação do aborto e que o Ministério da Saúde está tomado por feministas que só têm essa pauta. Afirma a seguir que houve um complô para transmitir a Covid para indígenas e que houve uma operação secreta com generais da Amazônia para conter isso que seria feito só para prejudicar Bolsonaro. Damares afirma que governadores e prefeitos estão violando direitos humanos ao prender pessoas que desrespeitam o isolamento. Anuncia que o Ministério está tomando providências, que vai jogar duro, que vai prender governadores. Isso tudo, que pode parecer chocante, para o eleitor bolsonarista é música: ataque às feministas, inimigos imaginários na Amazônia (ONGs talvez?), colocar na prisão os adversários políticos. O compromisso com uma saída autoritária para a crise que se forma no pós-pandemia está anunciado de forma explícita nessa reunião ministerial em vários momentos.  

    O ministro da Educação, Abraham Weintraub, desenvolve a ideia de que não há povos indígenas, ou povos tradicionais. Há um só povo, o povo brasileiro. A relação do governo deve ser direta com o povo e esse povo uno e indivisível deve ser atendido de forma direta, sem intermediação das instituições. O ministro da Educação expressa uma teoria totalitária e obviamente isso agrada bastante aos que apoiam Bolsonaro. Ele afirma que aceitou o convite para participar do governo para acabar com Brasília, pois a capital federal “é um cancro de corrupção e privilégio”. Interessante que ele afirma que tais características se mantêm sob o governo atual. Seu projeto é defender a liberdade e, diz ele, “por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”.

    Paradoxalmente, a defesa da liberdade é construída pelo encarceramento dos agentes públicos que formam “Brasília”. O Estado é o inimigo do governo Bolsonaro. As instituições são um obstáculo para que o governo liberte o povo. Há uma luta e é preciso que todos no governo se protejam uns aos outros. Queixa-se que está respondendo processos no Comitê de Ética da Presidência da República. Isso porque é militante e se coloca contra os privilégios. Os inimigos o perseguem e caberia aos amigos dar-lhe proteção e não ouvidos aos inimigos. A proteção, assim, não é apresentada mais uma vez como privilégio, mas como salvaguarda para lutar contra os privilegiados, contra “Brasília”. Afirma que a lei não é igual para todos e, claro, não deve ser. O problema é quem a lei vai favorecer.

    A resposta do Ministro da Educação é clara: temos que ser protegidos e a Justiça não pode nos alcançar porque a Justiça é parte desses privilégios contra os quais estamos lutando. As noções de justiça e liberdade são entendidas de uma forma diferente por pessoas que apoiam Bolsonaro e os que se opõem a ele. E são esses entendimentos diversos que levam as pessoas a terem essas posições políticas diversas. Não é o contrário! Por isso é inútil querer convencer que o entendimento dado a esses valores por Bolsonaro é absurdo. Quem apoia Bolsonaro concorda com esses valores e quem se opõe a Bolsonaro discorda. O que está em disputa não é Bolsonaro, mas a adesão a valores democráticos e humanitários que são anteriores à aparição de Bolsonaro no centro do cenário político brasileiro. Bolsonaro sempre falou os absurdos que fala hoje. Revelar que Bolsonaro e seus ministros falam absurdos, como nesse vídeo, não vai tirar apoio dele. Pelo contrário, vai galvanizar ainda mais os que o apoiam em torno dele. A democracia brasileira é frágil e permitiu que ataques às instituições e à República fossem longe demais. E esses ataques vem de longe! As fórmulas todas usadas pelo ministro da Educação apontam claramente para uma ruptura institucional, representada por destruir “Brasília”.  

    Partindo da fala de Weintraub, o presidente diz que concorda com ele, que Brasília é perigosa e que ele mesmo se aproximou de quem não devia. Os privilegiados se afastam do povo. Bolsonaro diz que as pessoas não lembram, mas a liberdade foi assegurada por 1964 e que, caso o outro lado tivesse tomado o poder, a miséria seria geral no Brasil. A falsificação que o golpe de 1964 nos livrou do comunismo que dominava o poder no Brasil, como revisionismo histórico sem fundamento, só pode seguir sendo afirmado porque nossa democracia não teve uma justiça de transição vivida em outros países. Já virou rotina elogiar a ditadura no Brasil. O presidente recomenda, então, que todos se aproximem do povo, que no domingo saiam às ruas e rompam o isolamento (apesar das críticas que virão dos “bostas” de sempre). Reclama que a família é perseguida injustamente e aí diz que é preciso trocar todo mundo para que sua família não seja prejudicada. É preciso se defender e proteger os seus familiares e amigos. Lamenta que seja muito fácil impor uma ditadura nesse momento em que todos estão em casa. E defende que é por isso que quer que o povo se arme. O povo não vai permitir uma ditadura e vai defender a liberdade. “Povo armado jamais será escravizado.” E quem escraviza o povo? Os poderes constituídos, prefeitos e governadores “bostas” que fazem decretos para manter as pessoas em casa.

    Bolsonaro condena que existam divisões dentro do governo e que haja ministros que sejam elogiados pela imprensa por seu bom trabalho, “apesar do presidente”. Apela para que todos se mantenham unidos porque o que “os caras querem é a nossa hemorroida, é a nossa liberdade”. O governo luta contra os “bostas” privilegiados e esses querem tirar a liberdade deles, incriminando-os. Se não houver proteção e informação para os que estão no governo, a ditadura dos “bostas” privilegiados se instaura e quem está no governo vai acabar na cadeia, perderá a liberdade. Há um embate no horizonte próximo e o que está em disputa é quem vai acabar na cadeia: os que estão no governo ou os que estão na oposição. Alguém vai perder a hemorroida. Quem não tem proteção, perde a liberdade. Não é possível que todos sejam livres. Há uma guerra aberta e uns vão prender aos outros. Tanto faz se crimes foram cometidos ou não. É o dilema da “libertoida”: todos que estão na política serão atacados em suas hemorroidas, mas quem tem proteção sairá livre. É isso que Bolsonaro esperava de Moro, que seguisse fazendo o trabalho que realizava antes de ser ministro: livrar amigos e prender inimigos.

    Não existe impessoalidade e nem funcionamento institucional independente jamais. A fragilidade de nossa democracia levou a esse entendimento de que a justiça é sempre injusta. Importa controlá-la, pois a hipótese de seu funcionamento independente e impessoal inexiste. O que se colocou em disputa é quem controla a Justiça: “Curitiba”, “Brasília” ou Bolsonaro? “Curitiba” foi eliminada da disputa.

    A reunião ministerial mostrou muita confusão, muito palavrão, ausência completa de planos para enfrentar a pandemia, quer do ponto de vista sanitário quer do ponto de vista econômico. A catástrofe se avizinha e é no conflito mais agudo que virá no pós-pandemia que o governo mostra elementos importantes em que busca uma unidade que ainda não tem.

    Em primeiro lugar, no campo econômico, a ala militar reclama uma pauta desenvolvimentista e há uma ou outra voz que reclama políticas de proteção social. O próprio presidente demonstra que não adere totalmente à orientação de Guedes que é clara: aprofundar a concentração de riqueza, desmantelar o serviço público e retirar direitos.     

    Em segundo lugar, no campo político, aprofunda-se assustadoramente a saída autoritária. Isso está no cerne de toda a reunião ministerial. O pós-pandemia trará um aprofundamento dos ataques do governo às instituições e na aposta de que o governo deve se relacionar diretamente com o povo, um povo único, patriota e fiel ao Chefe Supremo. Aqueles que não estão de acordo são os privilegiados e devem ser neutralizados, presos e destruídos. Afinal, a liberdade dos inimigos significa um ataque à hemorroida do governo. Não pode haver oposição, pois a oposição obsta as ações do governo no curto prazo e os coloca na cadeia no final.

    Em terceiro lugar, como base a essa unidade do povo, as noções de que direitos são privilégios e, portanto, proteção é coisa de gente “mimizenta” e direitos é coisa de feministas, gayzistas, abortistas etc. A unidade do povo é dada por uma pauta moral e econômica excludente, de ódio.

    Unindo esses três elementos se vê claramente que a reunião ministerial aponta para um rumo em que a nossa frágil democracia está em grave risco. O fato de termos chegado até aqui mostra que as instituições falharam em exercer o tão falado sistema de pesos e contrapesos. Uma ruptura institucional é declaradamente desejada e tem apoio por parte da população que não tem qualquer apreço pela democracia. Esse grupo, que não é pequeno, não se afastará de Bolsonaro por ele desrespeitar as instituições e as leis. Pelo contrário, é isso que esses apoiadores do governo mais desejam. A cada arroubo autoritário, maior o apoio e agressividade desse setor. 

    De fato, temos um Judiciário que funciona mal e é venal. Está aí claramente uma imprensa corporativa que não tem compromissos sólidos com a democracia e que é alimentada pelos interesses mais obscuros de forma sistemática. Presente também se faz uma classe política largamente corrompida, desacreditada, e afastada dos interesses dos diversos segmentos das classes populares. Sobretudo, temos a precariedade e o limitado alcance dos direitos de cidadania. Foi esse conjunto de fragilidades que permitiu que ocorresse a eleição de Bolsonaro. Ou as instituições funcionam e dão um basta a esse curso claro de desrespeito à ordem democrática e à construção de uma saída autoritária para a crise ou a democracia brasileira perecerá com o caos pós-pandemia. A reunião ministerial deixou claro: ou é #foraBolsonaro ou é #tchauDemocracia.  

  • UMA BREVE HISTÓRIA DA CRISE, UMA BREVE HISTÓRIA DA CRÍTICA

    UMA BREVE HISTÓRIA DA CRISE, UMA BREVE HISTÓRIA DA CRÍTICA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia 

     

    Início da madrugada de 21 de outubro de 2014. 00h14 para ser exato. O tribunal Superior Eleitoral divulgava os resultados oficiais das eleições presidenciais e estaduais. Aparentemente, tudo estava normal, segundo a dinâmica do jogo político da “Nova República”. PT e PSDB continuaram polarizando a disputa pelo Planalto. PMDB e DEM continuaram fortes nos Executivos estaduais e no poder Legislativo. Mas se olharmos os números com mais cuidado, perceberemos que o normal já não era tão normal assim. Algo no jogo começava a mudar. Ou melhor, o jogo começava a terminar.

    Chama atenção o fenômeno Marina Silva, terceira colocada na corrida presidencial, com mais de 22 milhões de votos. O importante aqui nem é a quantidade de votos, pois desde 2010 Marina já era player importante na disputa. O que impressiona mesmo foi a dinâmica da campanha eleitoral, a narrativa mobilizada.

    Com pouco tempo de TV, a equipe de Marina Silva direcionou todas suas energias para o Facebook, que na época era a rede social mais popular entre os brasileiros. Segundo a consultoria E. Life, Marina se tornou a candidata com melhor desempenho no Facebook no final de agosto, quando a campanha se tornava mais aguda. Marina tinha 1,43 milhão de seguidores, enquanto Aécio Neves tinha 1,20 milhão e Dilma Rousseff tinha 937 mil. Certamente, o desempenho de Marina Silva foi impulsionado pela comoção gerada pela morte trágica de Eduardo Campos. Os números mostram também a relevância que as mídias digitais começavam a ter na disputa eleitoral.

    Em 20 de agosto de 2014, Marina Silva assumiu formalmente a cabeça da chapa. Na solenidade organizada pelo PSB, Marina disse que “era o momento de ter ousadia de sair do roteiro da política tradicional para recriar, com novos elementos e novos métodos o caminho de nossa luta pela justiça social“. É clara a transformação no discurso em relação à campanha de 2010, quando Marina tinha o meio ambiente como mote, protagonizando aquilo que ficou conhecido como “Onda verde”.

    Em 2014, Marina era a candidata da renovação, a representante da “nova política”. Naquela altura, a Operação Lava Jato já estampava diariamente o noticiário nacional. Marina Silva foi a primeira a se apropriar do potencial eleitoral da crítica anti-sistêmica. Por muito pouco, não chegou ao segundo turno. Se tivesse chegado, fatalmente seria eleita, pois é difícil imaginar os eleitores de Aécio Neves migrando para Dilma Rousseff.

    Com pouco tempo de TV, em campanha feita basicamente na internet e falando em “nova política”, Marina Silva transformou a crítica anti-sistêmica em capital eleitoral, antecipando em diversos aspectos o que Bolsonaro faria quatro anos mais tarde.

    E por falar em Bolsonaro…

    Em 30 de outubro de 2014, assim que a eleição acabou, Jair Bolsonaro concedeu entrevista ao jornal “Estado de São Paulo”. Bolsonaro acabava de ser reeleito deputado federal, o mais votado pelo Rio de Janeiro, com 464.572 votos. Em 2010, tinha conseguido 120.646 votos. Em quatro anos, o eleitorado de Bolsonaro cresceu 385%!

    Entre 2010 e 2014 está 2013, o marco inicial da crise democrática brasileira, o berço da crítica.

    Bolsonaro entendeu perfeitamente o que estava acontecendo e na entrevista lançou sua pré-candidatura às eleições presidenciais de 2018. O deputado estava convencido de que poderia ser eleito presidente da República. Apenas ele acreditava. Disse que a votação expressiva de Aécio Neves no segundo turno apontava para uma insatisfação que em pouco tempo o PSDB não conseguiria mais canalizar.

    2014-2018. Foram quatro anos de pré-campanha, utilizando dinheiro do gabinete para viajar pelo Brasil. Bolsonaro seguiu a trilha aberta por Marina Silva, se apresentou como o “novo”, como o crítico ao sistema. Como mostrou o historiador Daniel Pinha, foi nesse período que o deputado de baixo clero deu origem ao mito.

    Enquanto isso, a Lava Jato, ressonada pela mídia hegemônica, fixava no imaginário nacional a ideia de que o sistema político estava podre, tomado em suas entranhas pela corrupção. Bolsonaro assumiu o controle da critica anti-sistêmica. Marina Silva, que optou pela via da discrição, ficou chupando dedo. Talvez Marina não tenha entendido o que estava sendo disputado. Bolsonaro entendeu. Entendeu perfeitamente.

    O que havia sido um sopro em 2014 se tornou um ciclone nas eleições municipais de 2016. A crítica ao sistema, definitivamente, se tornava realidade política incontornável. O PT perdeu 60% das prefeituras. Mas se enganou quem achou que se tratava, apenas, de anti-petismo. As eleições presidenciais de 2018 mostraram que a rejeição não era apenas ao PT, mas, sim, a todos os partidos identificados com a tal “velha política”.

    As eleições de 2018 foram atravessadas de cabo a rabo por uma energia política disruptiva. O PSDB, que até então era hegemônico à direita do espectro político, foi destroçado. O PMDB perdeu o Rio de Janeiro. O DEM ficou limitado a alguns nichos oligárquicos.  Marina Silva virou pó. O nanico PSL, impulsionado pelo bolsonarismo, se tornou o partido com a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados. Os desconhecidos Witzel e Zema venceram no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. O sistema partidário da “Nova República” foi destruído.

    O processo de destruição não começou em 2018. Já estava em curso desde 2013, se manifestando nas eleições de 2014. A partir de então, e cada vez mais, a crise brasileira seria pautada pela potência crítica. Bolsonaro deixou de ser o deputado de baixo clero para se tornar o presidente carismático porque conseguiu se apropriar da crítica.

    A questão que se coloca agora é até quando Bolsonaro será o dono da crítica.

    Ao longo desses 17 meses de governo, Bolsonaro resistiu em ser presidente normal. Investiu sempre no caos, no horizonte da ruptura. Bolsonaro se apega à critica com unhas e dentes.

    Mas quanto mais tempo se é governo, mais difícil fica fugir da pecha de gestor do sistema, mais difícil fica performar a crítica. Fica ainda mais difícil quando Bolsonaro começa sentar à mesa de negociação com o famigerado “Centrão”. Waldemar da Costa Netto, Arthur Lyra, Roberto Jefferson são presenças constantes no Palácio do Planalto.

    É difícil performar a crítica com a Polícia Federal na cola da família presidencial. As denúncias de Paulo Marinho parecem ser nitroglicerina pura. Não consigo imaginar que Bolsonaro continuará por muito mais tempo no controle da crítica. Não consigo imaginar como ele se sustentaria a partir do momento em que perca o controle sobre a crítica.

    Sem dono a crítica não ficará. Quem será o próximo? Tem muita gente nessa disputa. De Dória a Ciro Gomes, passando por Amoedo, Luciano Huck, Wilson Witzel e Sérgio Moro. Sem contar ainda os próprios militares, que cada vez mais ocupam o governo e já mostraram não ter muito apreço por Jair Bolsonaro.

    Fato é que o próximo crítico precisará bater em Bolsonaro e em Lula com a mesma força. Precisará investir energia narrativa na criação de uma simetria entre Lula e Bolsonaro, como se eles fossem exatos opostos um do outro. Sem essa simetria, a crítica perde o sentido.

    Não dá pra saber como será o futuro da crítica e é sempre prudente não se deixar levar pelo quase irresistível desejo de fazer previsões. Certeza mesmo é que enquanto houver crise, haverá crítica. A história da crise é a história da crítica.

     

  • Cadê o Queiroz? Braço direito de Bolsonaro tem a senha pra derrubar o presidente

    Cadê o Queiroz? Braço direito de Bolsonaro tem a senha pra derrubar o presidente

    Por Dacio Malta*

    Não resta dúvida que a entrevista do lobista Paulo Marinho à Monica Bergamo, e mais as 8 horas de depoimentos que ele prestou à Polícia Federal e ao Ministério Público, abalam o senador Flávio Bolsonaro mas, principalmente, o seu pai  — o presidente da República.

    Como o inquérito corre em segredo de justiça, não se sabe o que Marinho apresentou aos investigadores. Ele diz apenas que mostrou “provas” da ligação de um delegado com os Bolsonaros, e “ampliou as denúncias”.

    O lobista tem se mostrando excessivamente confiante em relação a esses depoimentos. Mas o que teria de novo? Seriam vídeos, gravações, fotos? Ninguém sabe.

    Se forem apenas fatos — mesmo com nomes, datas, locais e horários—  será difícil a investigação ganhar musculatura. Será a palavra de um contra o outro.

    O fato de Fabrício Queiroz  — e sua filha—  serem demitidos em uma mesma data, entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, já foi respondido, no passado, pelo próprio capitão.  Queiroz foi demitido porque Flavio foi eleito senador, e precisava exonerar seus assessores na Assembleia Legislativa do Rio.

    A filha de Queiroz foi pra rua pelo mesmo motivo. Como candidato a presidência da República, o capitão não voltaria para a Câmara dos Deputados.

    É claro que todos poderiam continuar ganhando seu dinheirinho até dezembro, e não ter os proventos suspensos no início de outubro.

    Mas, tecnicamente, a argumentação faz sentido.

    A verdade é que o imbróglio que envolve a famiglia Bolsonaro só será esclarecido quando Queiroz for localizado e preso — para prestar o depoimento que ele deve desde dezembro de 2018.

    Já se passaram 18 meses.

    Como é sabido, Queiroz tem enorme intimidade com milicianos, mas esses, como bons mercenários que são, não garantem a sua segurança.

    Hoje vivemos uma pandemia. E se Queiroz for infectado e morrer?

    Toda a narrativa da rachadinha, do envolvimento da família com milicianos, da lavagem de dinheiro, da compra e venda de imóveis, da franquia de uma marca de chocolates e outros crimes, irão para o lixo.

    Durante os 14 meses em que Sergio Moro foi ministro da Justiça, ele não moveu uma palha para que Queiroz fosse localizado. O ex-juiz, considerado traidor pelos bolsonaristas, prestou enorme serviço ao chefe, a partir do momento em que não se interessou pelo caso. Ou guardou as informações para ele.

    Agora que o presidente tem a Polícia Federal na mão, e mais a superintendência do Rio de Janeiro, a localização de Queiroz torna-se ainda mais difícil.

    E assim como pergunta-se “Quem mandou matar Marielle?”, a indagação “Cadê o Queiroz?” continuará sem resposta.

    Ele sabe que os procuradores têm “uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente”. Por isso sumiu.

    Ninguém sabe onde vive, com que recursos, onde está sua mulher e sua filha. Até mesmo os oito funcionários do gabinete — que mensal e candidamente entregavam parte dos salários para a caixinha do então deputado—  estão desaparecidos.

    Se a investigação contra Flavio Bolsonaro for para valer, é preciso saber cadê o Queiroz.

     

     

    *Dacio Malta trabalhou nos três principais jornais do Rio – O Globo, Jornal do Brasil e O Dia – e na revista Veja.

    Leia mais Dacio Malta em:

     

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    BOLSONARO DEVE DEIXAR SAÚDE COM PAZUELLO, QUE CONFUNDE HOMENS COM CAVALOS