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  • Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia

    Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia

    Partindo de Belo Horizonte, MG, dia 27 de setembro de 2015, após 27 horas seguidas de viagem de avião, ônibus e automóvel, cheguei a Santa Terezinha, umas das cidadezinhas da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Por lá, durante cinco dias vi e ouvi muita coisa que merece ser partilhada em nome da responsabilidade que temos de honrar o imenso legado espiritual, ético, profético e revolucionário que Dom Pedro Casaldáliga nos deixou. Vi com os meus olhos, com a minha cabeça e com o meu coração.

    Por frei Gilvander Moreira[1]

    Eu já tinha ouvido dizer que a região de São Félix é conhecida como sertão. Vi que é um sertão diferente do mineiro e do nordestino e esta foi uma oportunidade de relembrar que não há sertão, mas sertões e que “os sertanejos são homens fortes”, conforme reconheceu Euclides da Cunha no livro “Os Sertões”.

    O estado do Mato Grosso era mato grosso, mas não é mais, porque “está sendo fritado em pouca gordura”: o estado mato-grossense está sendo despelado, desmatado impiedosamente. Lá, toda a cobertura vegetal que havia sobre a terra, cobrindo-a como a pele, está sendo arrancada com desmatamentos para dar lugar à pecuária e depois para as monoculturas da soja e do milho. O agronegócio vai sendo imposto e com ele resta um rastro de devastação. Nas estradas de chão batido, muitas carretas transitam levando commodities (grãos para exportação e para acumular capital) produzidas em solo que vai se tornando cada vez mais pobre. Nas veredas e no cerrado, ainda existem, é possível ver a presença de muitas árvores de caju, pequi e buriti. “Onde a gente vê reserva florestal é terra indígena. O que não é terra indígena já foi tudo derrubado e transformado em pastagens e depois em lavoura de monocultura. Não sei para que índio precisa de tanta terra,” comentava uma gaúcha no ônibus da empresa Xavante, empresa com nome indígena, mas de propriedade de brancos enriquecidos.

    Meu sangue ferveu de ira ao ouvir um trabalhador negro, no pequeníssimo aeroporto da pequena cidade de Confresa, dizer: “Porcaria de índio.” Ouvi falar que muitos fazendeiros dizem: “Índio bom é índio morto” e que um grande político – coronel moderno – foi aplaudido em praça pública ao dizer: “Índio não precisa de terra, pois não trabalha”. Os mesmos que apunhalam os povos indígenas, a começar pela linguagem preconceituosa, grilando suas terras, são os mesmos que já gritaram muitas vezes: “Fora, dom Pedro Casaldáliga!” “Fora, Prelazia de São Félix!” Um fazendeiro perguntou a um padre recém-chegado para ser missionário na Prelazia: “O senhor é contra ou a favor do progresso?” E ameaçou: “Se for um dos nossos, será bem-vindo! Se não …!”

    Meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das Irmãzinhas de Jesus e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Vi um grande grupo de indígenas delimitando seu território reconquistado, fazendo cerca na divisa com um megalatifúndio. À beira de uma estrada federal ainda sem asfalto e toda esburacada, vi ruínas de um lugarejo que a Força Nacional e o Exército puderam, durante o governo de Dilma Rousseff, devolver o território aos povos indígenas. “Vieram e disseram para as famílias que quem aceitasse sair espontaneamente das terras indígenas ganharia um lote de terra em outra localidade próxima, mas quem não saísse seria expulso após seis meses. Assim aconteceu,” me informou um agente de pastoral.

    Passei ao lado da Fazenda Rio Preto com uma grande fachada e segurança privada na entrada. “Essa fazenda tem 100 mil hectares. O dono cria 200 mil bois aí”, me informaram. Ao lado dessa fazenda está o território do povo indígena Xavante, com 160 mil hectares para 1400 indígenas. A Força Nacional e o Exército estiveram na área em 2012 para desentrusar fazendeiros que grilavam terras indígenas e derrubaram muitas casas de “brancos” que foram construídas na área indígena. Muitas pessoas dizem que os indígenas têm muita terra, mas não acham que 100 mil hectares para um só “branco” seja injustiça agrária e social.

    O agronegócio avança como um tsunami, mas deixa atrás de si um rastro de destruição: áreas devastadas, nascentes exterminadas, terra, ar e águas envenenadas pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e trabalhadores submetidos a situações análogas à de escravidão, isso para citar apenas alguns dos prejuízos causados pelo agronegócio. Foi na Prelazia de São Félix que iniciou a Campanha Permanente contra o Trabalho Escravo, uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai parar nos cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.” A UTI mais próxima está em Cuiabá, MT, ou em Goiânia, GO, distante de 1000 a 1500 Km. Para se tentar salvar alguém em situação grave só por meio de taxi aéreo, que custa cerca de 15 mil reais.

    Acima das coisas que vi com meus olhos, minha cabeça e meu coração, vi a eloquência do testemunho espiritual profético de dom Pedro Casaldáliga, que segue irradiando espiritualidade profética, agora partilhando vida em plenitude, após os últimos anos em que esteve sentado em uma cadeira, ou deitado em uma cama, na companhia do mal de Parkinson???, de três bons samaritanos – padres agostinianos – e de três anjos/as que o acompanhavam diariamente. Vi a paixão, a simplicidade, a humildade e a profecia presente em toda a equipe de agentes de pastoral da Prelazia de São Félix: leigos/as, freiras, freis, padres e o bispo dom Adriano Ciocca, todos/as missionários/as, de mãos dadas tocando em frente o legado espiritual e profético da Prelazia e abraçando os novos/velhos e grandes desafios da hora presente.  Obrigado a todos/as que me acolheram na fraternidade e por tudo o que me ensinaram em poucos dias de intensa convivência em retiro na Casa de Pastoral de Santa Terezinha, às margens do rio Araguaia, onde tive a oportunidade de tomar um banho e contemplar o irmão boto e toda a sacralidade do ambiente. Não foi por acaso que “Trovas ao Cristo Libertador”, escrito por dom Pedro Casaldáliga (e musicado por Cirineu Kuhn), tornou-se o hino da Prelazia São Félix do Araguaia: naquele lugar sagrado, da fé no Deus da vida, da espiritualidade libertadora, da luta e da esperança ativa germina, brota e floresce ressurreição!

    “Trovas ao Cristo Libertador”
    Dom Pedro Casaldáliga

    Olhar ressuscitado, todo o teu Corpo
    acompanhando a marcha lenta do povo.

    Todo Tu debruçado, como um caminho,
    traçando em tua Carne nosso destino.
    No azul do Araguaia os roxos medos,
    no sol de tua glória nossos direitos.
    Sangue vivo no verde das índias matas,
    faixas gritando viva a Esperança!

    Procissão de oprimidos, rezando lutas,
    e Tu, Círio de Páscoa, flor de aleluias.
    Páscoa nossa imolado, em Ti enxertamos,
    como Tu perseguidos, por Ti triunfamos.
    Libertador vencido, vencendo tudo,
    companheiro dos pobres, donos do mundo.

    Guerrilheiro do Reino, maior guerrilha,
    Tua cruz empunhamos em prol da vida.
    Nossos mortos retornam, com nossos passos,
    em teu Corpo vivente ressuscitados.
    Em Ti, cabeça nossa, Libertador,
    libertos, libertando, erguemo-nos.

     ———————–

    Sigamos de cabeça erguida, firmes na luta! Viva a Esperança![2]

    25/8/2020.

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Poema “Trovas ao Cristo Libertador“, Dom Pedro Casaldáliga, hino da Prelazia de São Félix do Araguaia.

    http://gilvander.org.br/site/poema-trovas-ao-cristo-libertador-de-dom-pedro-casaldaliga-musicado-por-cirineu-kuhn-hino-da-prelazia-sao-felix-do-araguaia/

    2 – PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA – Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga – 08/8/2020

    3 – Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga: místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020

    4 – “Dom Pedro Casaldáliga vive para sempre em nós” (Padre Júlio Lancellotti) – Pai Nosso dos Mártires.

    5 – Dom Pedro Casaldáliga, o Profeta que viveu e lutou entre nós, faz sua Páscoa definitiva – 08/8/2020

    6 – Missão de Dom Pedro Casaldáliga em Documentário da Verbo Filmes – 2011: Espiritualidade libertadora


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra), do CEBI/MG (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos Sociais de luta por terra e moradia; e-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br  – www.twitter.com/gilvanderluis  – Facebook: Gilvander Moreira

    [2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

    Na foto de cima, Dom Adriano Ciocca e Dom Pedro Casaldáliga

  • Dom Pedro Casaldáliga e o Quilombo Campo Grande do MST em Minas

    Dom Pedro Casaldáliga e o Quilombo Campo Grande do MST em Minas

    Diante de Dom Pedro Casaldáliga, precisamos “tirar as sandálias”, pois estamos diante de alguém sagrado, místico no verdadeiro sentido, porque se tornou profeta, bom pastor, além de poeta. Marcou-me muito as 12 vezes que tive a alegria e a responsabilidade de estar com “o bispo vermelho”.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Conheci Dom Pedro Casaldáliga em 1985, enquanto ele dava uma palestra no Studium Teológico, em Curitiba, PR. Fiquei impressionado com aquele homem franzino, mas que com língua afiada, dedo em riste, olhar vibrante, utopia da terra sem males no coração, profetizava dizendo: “Se eu tiver que escolher entre o amor e a justiça, ficarei com a luta pela justiça, pois em uma sociedade estruturalmente injusta não basta amar no sentido de solidariedade”.

    Marcou-me muito a segunda vez que estive com Dom Pedro Casaldáliga, no Memorial da América Latina, em São Paulo, SP. Dom Pedro, com amor infinito por todos os povos latino-americanos, bradava: “Temos que construir a Pátria Mãe, a América AfroLatÍndia, pois nossa América não é apenas latina, é principalmente indígena e afrodescendente. Somos povos irmãos. Não podemos ficar olhando para Europa e Estados Unidos e de costas para os povos da Pátria Grande, nossa América AfroLatÍndia. Somos povos irmãos, porque fomos vítimas de genocídio indígena e de escravização pelos opressores europeus. Que maravilha o esplendor cultural existente na nossa Pátria Grande e Mãe.”

    Em 1992, Dom Pedro, de surpresa, chegou a São Paulo, na celebração dos 60 anos de Frei Carlos Mesters. Chegou carregando um grande pote e, retirando de dentro do pote uma Bíblia da edição Pastoral, dizia: “Frei Carlos Mesters é presença do Deus da vida no nosso meio que retira do baú, do pote, coisas velhas que são coisas da vida e da caminhada. Carlos Mesters democratiza o acesso aos textos bíblicos ao nos ensinar a fazer leitura bíblica de forma comunitária, ecumênica, transformadora e militante. Quem não leu ainda deve ler todos os livrinhos do frei Carlos Mesters. Seus textos, frei Carlos, nos ajudam na caminhada de enfrentamento ao latifúndio, na Opção pelos Pobres, na luta pela terra e pelos direitos dos povos indígenas.”

    Inesquecível também o protagonismo de Dom Pedro Casaldáliga no 10º Intereclesial das CEBs, em Ilhéus, na Bahia, em julho de 2000. Irradiando espiritualidade, ecumênica e macroecumênica, Dom Pedro bradava profeticamente: “Nosso sonho, nossa utopia, é a terra sem males. Esse é o sonho de Deus, pois a terra é de Deus, pertence a Deus. Malditas todas as cercas …”

    Em 2015, a convite do bispo Dom Adriano Ciocca, tive a alegria de passar uma semana na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, assessorando um retiro da equipe de pastoral da prelazia, equipe composta por Dom Adriano, padres, freis, freiras e leigos/as da caminhada. Vi que a Prelazia de São Félix, sob a guia de Dom Pedro Casaldáliga, se tornou uma das locomotivas da profecia na Igreja dos Pobres não apenas no Brasil, mas na América AfroLatÍndia e em muitas regiões do mundo. Na Prelazia de São Félix, meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das irmãzinhas de Jesus, e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Foi na Prelazia de São Félix que iniciou a Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai para os cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.”

    Em Ribeirão Cascalheira, na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, visitei o Santuário dos Mártires da Caminhada. Emocionante caminhar onde o padre João Bosco Burnier, missionário jesuíta, foi martirizado de 11 para 12 de outubro de 1976. Ouvi que Dom Pedro Casaldáliga, ameaçado de morte na Prelazia, e o padre João Bosco Burnier, após celebrarem com o povo os festejos de N. Sra. Aparecida, incomodados pelos gritos de duas mulheres presas – Margarida e Santana – foram interceder por elas na delegacia-cadeia de Ribeirão Cascalheira. As mulheres estavam “impotentes e sob torturas: um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas; essa repressão desumana”, relata dom Pedro no livrinho “Martírio do Padre João Bosco Penido Burnier”, da Ed. Loyola.

    Aos 92 anos, com 52 anos sendo missionário profeta no Brasil, Dom Pedro Casaldáliga fez sua páscoa no dia 8 de agosto de 2020 e agora vive em plenitude e em nós na luta sempre, pela construção do reino de Deus a partir do aqui e do agora. Na Missa das Exéquias, celebrada em São Félix do Araguaia, no dia 12 de agosto, Dom Adriano Ciocca, atual bispo de São Felix do Araguaia, afirmou que “o sonho de Deus foi o sonho de Pedro também, o sonho do Reino”, porque “ele queria justiça, queria fartura, queria alegria, vida plena para todas e para todos.” E continuou Dom Adriano: “Ele sonhou, e sonhou com os pés no chão, porque não ficou só no sonho, mas ele procurou viver e lutar para que este sonho se realizasse.” E Dom Adriano lembrou a opção radical de Dom Pedro Casaldáliga pelo seguimento a Jesus de Nazaré, colocando-se ao lado dos oprimidos, injustiçados, marginalizados: “´Se fez peão com os peões, se fez índio com os índios, se fez solidário com quem Deus se solidarizou, os abandonados, os excluídos, os escravos.”

    O corpo de Dom Pedro Casaldáliga descansa no cemitério dos Carajás, onde eram sepultados os sem nome. Seu corpo lá está, debaixo da cruz, entre um peão e de uma mulher prostituída. Com os pobres, os preferidos de Deus, na beira do rio Araguaia, com paz inquieta, foi plantado o corpo de Pedro, semente de vida nova, de ressurreição! Que tenhamos a graça, a coragem e a sabedoria para honrarmos o imenso legado espiritual e profético que Dom Pedro nos deixou.

    Dom Pedro Casaldáliga, com paz inquieta, esteve vivo misticamente com todas as pessoas do Quilombo Campo Grande, do MST, no sul de Minas Gerais, e com todos/as que se somaram na resistência durante três dias e três noites. Certamente, Dom Pedro, com ira santa e profética, assina embaixo da denúncia que se segue, abaixo.

    Aconteceu uma tremenda injustiça, barbárie no Estado de MG dias 12, 13 e 14 de agosto de 2020. No Quilombo Campo Grande, do MST, em Campo do Meio, no sul de MG, há 22 anos, 453 famílias Sem Terra vivem dignamente dando função social para mega-latifúndio das terras da ex-Usina Ariadnópolis, de 4.900 hectares, que estava totalmente abandonado e ocioso, após a Usina falir deixando mais de 400 milhões de reais de dívida trabalhista.

    Quilombo bombardeado

    Enquanto o irmão sol voltava a brilhar dia 12 de agosto de 2020, vimos na cidade de Campo do Meio um cortejo de morte com dezenas e dezenas de viaturas, ambulâncias, caminhões do Corpo de Bombeiro, um aparato de guerra, a PM de MG, a mando do governador Romeu Zema (do Novo), com decisão liminar de reintegração de posse do TJMG, com mais de 200 policiais de vários batalhões, com caveirões, cachorros, helicóptero e pesado arsenal de armas, com tropa de choque, fazer despejo de várias famílias no Quilombo Campo Grande, do MST. Os Sem Terra do MST, com a militância de uma vasta rede de apoio, resistiram três dias e três noites, de 12 a 14/8/2020. Policiais atearam fogo em várias partes do Quilombo e no final bombardearam o Quilombo com chuva de bombas de gás lacrimogêneo, com voos rasantes do helicóptero da PM, com policiais apontando metralhadoras para o povo que resistia bravamente. Asfixiando os Sem Terra com gás lacrimogêneo e terror, a PM expulsou crianças e professoras e destruiu a Escola Popular Eduardo Galeano, destruiu setes casas e não ofereceu alternativa digna de moradia previamente.

    Uma das primeiras barreiras de resistência que a tropa de choque encontrou foi um grupo de crianças Sem Terrinha, do MST, que, de cabeça erguida e muita coragem, segurando cartazes, bloqueavam a estrada por onde a tropa de choque deveria passar para fazer o infame despejo. Uma das cenas mais emocionantes e eloquentes: crianças Sem Terrinha, na luta, resistindo à investida de um imenso aparato bélico. Diziam: “Não derrubem nossa escola!” “Não derrubem nossas casas!”

    Em meio à pandemia, esse despejo é genocida. A Liminar de reintegração de posse cumprida com repressão e violência policial é injusta, inconstitucional, cruel e uma ação genocida do Governador Romeu Zema. A decisão do TJMG, que expediu a liminar de reintegração e se negou a cassá-la, mesmo diante de “mil” argumentos da Defensoria Pública, do Ministério Público e de Advogados Populares, é inconstitucional, porque viola e pisoteia no principal princípio e básico da Constituição de 1988: RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Além do terror espalhado, da Escola Popular Eduardo Galeano, de várias casas, sonhos e direitos destruídos, quantas pessoas terão contraído ou disseminado o coronavírus durante os três dias de megaoperação de despejo durante a pandemia, violando todas as regras sanitárias recomendadas pela OMS e por médicos infectologistas?

    A Ocupação do mega-latifúndio das terras da ex-usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, aconteceu em 1998, 22 anos atrás, como fruto do combate ao trabalho escravo no sul de MG e como fruto dos mártires de Eldorado dos Carajás. Todos os presidentes do Brasil, de 1998 até hoje, poderiam e deveriam ter desapropriado o latifúndio que estava abandonado sem cumprir a função social, mas nenhum presidente nos últimos 22 anos assentou as 450 famílias Sem Terra do MST que já sofreram seis cruéis despejos, mas não arredam o pé da terra. “Essa terra é nossa”, bradam heroicamente os Sem Terra do MST.

    O Poder Judiciário também, em 22 anos, se julgasse conforme os princípios da Constituição do respeito à dignidade humana, função social da propriedade e direito à terra poderia e deveria ter decidido, justamente, a favor dos Sem Terra do Quilombo Campo Grande, mas até hoje tem decidido para beneficiar empresários especuladores. Indignados com mais essa imensa sexta-feira da paixão promovida pelo Estado em MG, reafirmamos que não há despejo apropriado e nem oportuno. Todo despejo é maldito, cruel, desumano, execrável e desintegrador de sonhos e de direitos. Mas a história demonstra que a força mística e espiritual dos injustiçados é invencível. O mais profundo da história é construído pelos/as injustiçados/as.

    Os opressores e os violentos, mandantes e executores, serão jogados na lata de lixo da história. Vivem e viverão sempre em nós na luta por tudo o que é JUSTO e BEM COMUM: as profetizas e os profetas, Jesus Cristo, Che Guevara, Rosa Luxemburgo, Chico Mendes, Padre Ezequiel Ramin, Padre Josimo, os fiscais massacrados em Unaí, Irmã Dorothy, Margarida Alves, os Sem-Terra assassinados, Dandara, Zumbi, Antônio Conselheiro, Dom Pedro Casaldáliga … Enfim, uma multidão de mártires que nos impulsionam na luta obstinada pela construção de uma terra sem males.

    Exigimos que o Governador de MG, Romeu Zema, e/ou o presidente do TJMG, desembargador Gilson Gomes Lemes, suspendam esse despejo absurdo em tempo de pandemia e proíbam outros despejos durante a pandemia. Despejar não é atividade essencial. Exigimos Despejo Zero! E exigimos com urgência a DESAPROPRIAÇÃO DEFINITIVA do latifúndio das terras da ex-Usina Ariadnópolis. O MST iniciou o despejo do Zema.

    Pedimos em nome de Deus, das crianças e por respeito à dignidade da pessoa humana: Parem todos despejos no Brasil para salvar vidas!

    18/8/2020.

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Exigimos “Despejo Zero” para salvar vidas – Por frei Gilvander – 1ª Parte – 17/8/2020

    2 – “A luta não vai parar!” MST e Quilombo Campo Grande, em MG: Despejo é crime; na pandemia, genocídio

    3 – Lições da luta/resistência no Quilombo Campo Grande, do MST, sul de MG, após despejo genocida/cruel

    4 – Cenário de guerra no Quilombo Campo Grande, do MST, Campo do Meio/MG: Gov. Zema, TJMG, PM/MG/14/8/20

    5 – PM de MG bombardeando o Quilombo Campo Grande, do MST, em campo do Meio, MG: barbárie – 14/8/2020

    6 – Quilombo Campo Grande, do MST, resiste há 48 horas ao despejo, em Campo do Meio/MG. Caveirão na área

    7 – PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA – Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga – 08/8/2020

    8 – Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga: místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

  • Pedro Casaldáliga, Profeta e Poeta

    Pedro Casaldáliga, Profeta e Poeta

    Por João Pedro Stedile*
    Da Página do MST

     

    Quem poderia imaginar um catalão, sair de sua terra, nunca mais voltar e apaixonar-se pelos povos indígenas da América Latina?

    Quem poderia imaginar em plena ditadura empresarial-militar, nos confins da Amazônia, um homem franzino, usar a fé e a coragem para denunciar e exigir justiça, em defesa dos trabalhadores, posseiros, povos indígenas e camponeses, humilhados e explorados?

    Quem poderia imaginar, que, jurado de morte pelos latifundiários da região, em 1976, foram à delegacia interceder por duas mulheres pobres que estavam sendo torturadas. E um dos policiais, confundiu a aparência de bispo e  assassinou seu colega, padre João Bosco Burnier, em seu lugar?

    Quem poderia imaginar, que um homem de igreja relutasse até os últimos instantes porque não queria ser nomeado bispo, até ser convencido pelo seu melhor amigo, o bispo Dom Tomas Balduino?

    Quem poderia imaginar, que quando poucos podiam, ele se engajou desde a década de setenta em defesa da causa dos povos nicaraguense, cubano, guatemalteco…

    Quem poderia imaginar que esse homem, além de pastor e profeta, era um grande poeta? Usou as letras e a força das palavras, para denunciar o injusto, solidarizar-se com os trabalhadores e pregar as mudanças. Com sua vocação literária, ajudou a escrever a Missa da terra sem males, a Missa dos quilombos… cantada por nosso querido Milton Nascimento e outros músicos. E escreveu centenas de poemas, que expressam a linguagem da alma e do coração.

     

    Quem poderia imaginar, que apesar de viver no longínquo São Félix do Araguaia, e das dificuldades de comunicação da época, contribuiu decisivamente para articular e fundar, primeiro, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), na CNBB, para defender os povos indígenas? E depois a Comissão Pastoral da Terra (CPT), como um serviço ecumênico dos cristãos em apoio à organização dos camponeses brasileiros?

    Quem poderia imaginar que um bispo brasileiro, com todo seu poder e influência, preferisse viver como pobre, entre os pobres, com suas sandálias havaianas e sua sabedoria de verdadeiro mestre?

    Quem poderia imaginar sua coragem de ir a Roma e dizer umas verdades para o todo poderoso cardeal Ratzinger? Pedro foi um defensor e praticante do ecumenismo, de todas as práticas e crenças religiosas, de um Deus-Pai-Mãe-Irmão, de todos e todas, que aparece em diferentes formas e práticas. Às vezes, até nas manifestações da natureza e sobretudo na voz do povo!

    Quem poderia imaginar, que apesar de conviver muitos anos com seu “primo” parkison, como o chama, nunca desanimou, recusando-se a mudar para outros centros com maior atenção médica?

    Pedro tornou-se um grande brasileiro e latinoamericano. Um exemplo de luta, dignidade e coerência. É nosso orgulho, dos povos indígenas, dos camponeses, dos pobres e de todas as igrejas. Com seus noventa anos de corajosa teimosia, palavra que gosta muito de usar.

    Certa vez disse aos jornalistas da imprensa burguesa, que criticavam nossas ocupações de terra, “se o MST não existisse teríamos que criá-lo!”

    O MST se orgulha de seu carinho e agradece seu exemplo!

    *(Conheci Dom Pedro numa ocupação urbana, Vila Santo Operário, em Canoas-RS, nos idos de 1979, junto com o Irmão Antonio Cecchin. Cultivo desde então, admiração e amizade. Ele esteve em muitas atividades do MST, sempre nos ajudou com sua presença, reflexões, escritos e, sobretudo, seu exemplo. Foi um dos privilégios que a vida me deu).

     

     

    Publicado originalmente em http://www.mst.org.br/2018/02/16/pedro-profeta-e-poeta.html (Editado por Rafael Soriano)