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Tag: São Bernardo do Campo

  • Moradores da Vila São Pedro sofrem reintegração de posse e casas são demolidas

    Moradores da Vila São Pedro sofrem reintegração de posse e casas são demolidas

    Texto: Karina Iliesco

    Fotos: Régis Ferraz

    Ontem, as 5 horas da manhã, sem qualquer aviso prévio, a Prefeitura de São Bernardo do Campo (SP) demoliu 6 casas dos moradores da Vila São Pedro sem qualquer ordem judicial ou justificativa. Outros moradores já receberam uma notificação que a qualquer momento podem sofrer uma reintegração de posse e ter suas casas derrubadas. As famílias não tiverem sequer tempo pra retirar seus pertences.

    O MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) organizaram um ato para chamar a atenção das autoridades e fecharam a avenida Dom Pedro de Alcântara, principal avenida da Vila São Pedro. A GCM apareceu e se comprometeu junto ao capitão Inácio da Policia Militar para realizar uma reunião com o Prefeito Orlando Morando hoje (10) às 11 horas na Secretária de Habitação com as famílias que não tinham para onde ir depois da realização de demolição e despejo de suas casas.

    Essa reunião pretendia dar auxílio aluguel pra essas famílias que ficaram sem moradia e, para as outras que foram notificadas, suspender o despejo. Porém, a Secretária da Habitação fechou suas portas com cadeado e as família ficaram do lado de fora sem qualquer diálogo, descumprindo o acordo que havia sido feito no momento da manifestação.

    Os movimentos junto aos moradores de São Bernardo do Campo permaneceram em frente a prefeitura para cobrar seus os direitos e realizaram uma live explicando todo o processo ilegal dos despejos.

    Em momento de pandemia, a prefeitura orienta a população que fique em casa. Mas essa mesma prefeitura realiza despejos nas periferias, onde o contagio é crítico e as pessoas estão vulneráveis.
    A ação ocorreu mesmo com o Tribunal de Justiça indicando para que ações como essa não acontecessem em tempos de pandemia.

  • Lula está solto, mas ainda não livre

    Lula está solto, mas ainda não livre

    Por Ricardo Melo*, especial para os Jornalistas Livres

     

    Pode soar incrível. Saíram da boca do usurpador Bolsonaro duas palavras úteis além de bravatas escatológicas de padrão fascista: Lula está “momentaneamente solto”.

    Mais do que despeito diante do revés imposto aos golpistas, a definição guarda significado estratégico. O grande capital e seus associados na mídia, judiciário, executivo e legislativo insistem no objetivo de eliminar Lula e o que ele representa. A decisão do Supremo é sintomática: cederam-se alguns anéis para tentar outro bote para recuperá-los (com lucro) mais à frente. Sobretudo mantiveram-se os dedos que apertam gatilhos simbólica e literalmente, como aconteceu com Marielle/Anderson.

    Os elogios derramados ao presidente do STF pelo voto de minerva mal abafaram o constrangimento. Nem bem terminou a sessão, Toffoli saiu a dizer que o Congresso pode mudar o decidido pouco antes. “Basta uma emenda”. Quanta hipocrisia. Nenhuma das chamadas cláusulas pétreas pode ser modificada exceto por outra Assembleia Constituinte. Nenhuma. Entre elas, as relativas a direitos e garantias individuais, como a do direito à defesa até o último recurso ser julgado. A Constituição é inequívoca a respeito –assim como inequívoco é o percurso tortuoso de Toffoli nos tribunais.

    Ato em São Bernardo, para receber Luiz Inácio Lula da Silva, depois de 580 dias de prisão na sede da Polícia Federal de Curitiba - Foto de Bacellar/Jornalistas Livres
    Ato em São Bernardo, para receber Lula – Foto de Bacellar

    É indiferente então que Lula tenha saído da solitária? Nem um tolo pensaria isto. Trata-se de uma vitória tática da maior importância. Deixe-se em papelada o raciocínio malabarista de que Lula fora da cadeia favorece a direita, disposta a se reaglutinar com receio do fantasma petista. Pensamento tão razoável quanto imaginar que o inimigo solto, mesmo momentaneamente, é mais seguro do que preso!

    Dúvida? Com a palavra Steve Bannon, um dos gurus da extrema direita, conselheiro de todas horas da famiglia Bolsonaro e ex-queridinho de Donald Trump: “Lula é uma figura trágica […] ele é alguém que foi corrompido por dinheiro e poder. É evidente e, para mim, isso agora vai causar uma enorme perturbação política no Brasil”.

    Bannon sabe do que fala. Já para o povo pobre do Brasil, para os democratas de verdade, o alcance da liberdade provisória de Lula ficou expresso nas demonstrações incontidas de alegria, satisfação e esperança. Impossível para quem deseja um país decente ficar imóvel diante da recepção a Lula tanto em Curitiba como em São Bernardo. Se Lula ainda não está livre das acusações que pesam sobre ele, é fato que o recuo imposto aos golpistas tornou-se um combustível pronto a incendiar-se diante de um governo interventor.

     

    Agenda de ruínas

    Lições da história demonstram que o Brasil reúne as chamadas condições objetivas para entrar nos trilhos da democracia. Os de baixo não podem mais viver como agora. A miséria se alastra a toda velocidade; direitos trabalhistas e previdenciários viraram pó; o setor público vem sendo desmantelado impiedosamente; a soberania nacional sofre ataques sucessivos; estatais são vendidas na bacia das almas; os parcos ganhos salariais dos anos pré-golpe começam a ser revertidos. E o desemprego permanece nas alturas, mesmo com as maquiagens estatísticas de “informalidade”, “intermitência” e outros eufemismos abjetos. O esmagamento das liberdades e das minorias, a entrega do poder a milicianos e o desprezo pelo povo equivalem à expressão política necessária para o êxito da agenda de ruínas.

    Só que no topo da pirâmide o ambiente está longe de ser tranquilo. Mesmo o mais cínico dos extremistas de direita sabe que a “vitória” de Bolsonaro emergiu da fraude e da manipulação descaradas, a começar pelo banimento de Lula das eleições. O capitão medíocre foi o que restou aos tubarões assustados com o desmoronamento das candidaturas de direita tidas como “civilizadas”. Há, porém, um desconforto inquietante nessa esfera em face da brutalidade da gangue aboletada no Planalto. Também medo de que a implosão do PSL exponha mazelas muito maiores e fétidas além da fronteira do partido.

    A divergência não é de fundo, claro. Preocupa esta “gente limpinha”, alinhada desde sempre com os golpistas, que a desfaçatez bolsonarista multiplique a oposição às contrarreformas, cuja aprovação é objetivo maior da elite apodrecida. O pano de fundo internacional não ajuda, com as grandes potências travando uma batalha encarniçada para assegurar fatias crescentes do mercado. Isto num momento em que os próprios teóricos neo-liberais do FMI, Banco Mundial e Cia. admitem que a economia mundial patina e o horizonte se torna mais e mais sombrio.

    Não à toa Trump faz gato e sapato do “grande aliado” Bolsonaro, transformado o Brasil em chacota mundial. As multinacionais esnobam Guedes e seus asseclas nos leilões de petróleo e exigem benefícios ainda mais indecentes. Em resposta, Guedes providencia mais contrarreformas para chilenizar o Brasil a toque de caixa antes que aventureiros de outros países o façam. O golpe na Bolívia que derrubou Evo Morales –responsável por um dos maiores índices de crescimento e inclusão social em seus governos– prova que o grande capital não está para brincadeira. Ele compreende muito bem a origem da onda de revoltas espalhadas mundo afora.

    Ninguém se engane: neste cenário, a artilharia contra Lula de forma alguma arrefeceu. Seu nome está associado à ideia de conquistas sociais, de liberdade, democracia, menos desigualdade e limites à exploração desenfreada. Tudo o que contradiz a cartilha do grande capital. Obrigados a recuar um pouco, os donos do dinheiro já anunciam nova ofensiva em todas as instâncias. Provocadores esparramados em redes sociais também não pensarão duas vezes em passar das palavras à ação. Contam com a mesma impunidade que cerca, por exemplo, a famiglia Bolsonaro, os assassinos de Marielle/Anderson e o poder miliciano infiltrado no Estado. O reforço da segurança do ex-presidente Lula é questão de honra para o movimento popular, assim como a anulação de todos os processos mentirosos abertos contra ele.

    A melhor defesa é o ataque. Como bem disse Lula, o combate imediato é contra a agenda de destruição do Brasil colocada em prática desde a derrubada de Dilma Rousseff. Algo muito maior que uma guerra de palavras parlamentar ou batalha de twitters. A disputa, mais do que nunca, ocorre na ação: nas ruas, nos bairros, nas escolas, nas empresas, nas estatais, no comércio, nos movimentos sociais, nos agrupamentos de desempregados, nas caravanas pelo Brasil –na recusa permanente a todos os atos, leis e decretos que atentam contra a dignidade, sobrevivência e livre manifestação.

    Lula é insubstituível como alavanca dessa contraofensiva progressista. Instrumento necessário para organizar os pobres e democratas, tanto quanto para construir uma frente política à altura das urgências do Brasil. O sucesso ou fracasso desse confronto cotidiano vai ditar o prazo de validade de Bolsonaro no poder.

     

     

    *Ricardo Melo é jornalista, ex-presidente da EBC (Empresa Brasil de Comunicação) e apresentador do programa ‘Contraponto’ na rádio Trianon de S.Paulo (AM 740)

    Ato em São Bernardo, para receber Luiz Inácio Lula da Silva, depois de 580 dias de prisão na sede da Polícia Federal de Curitiba - Foto de Ricardo Stuckert
    Ato em São Bernardo, para receber Luiz Inácio Lula da Silva, depois de 580 dias de prisão na sede da Polícia Federal de Curitiba – Foto de Ricardo Stuckert
  • Lula deu um nó nas forças do golpe neoliberal

    Lula deu um nó nas forças do golpe neoliberal

    Artigo de Rodrigo Perez  Oliveira, professor de Teoria da História na UFBA, com foto de Francisco Proner

    Que Lula há muito tempo deixou de ser homem e se tornou uma instituição é consenso à direita e à esquerda. O que está em jogo, em disputa, é o significado da instituição, o que ela representa.

    Lula é o maior corrupto da história do Brasil ou a principal liderança popular que esse país já teve?

    A disputa está ai. No atual estado da situação não sobrou muito espaço para meio termo. Ou é uma coisa ou é a outra. Cada um que escolha seu lado.

    Na condição de instituição, todo gesto de Lula tem dimensão simbólica, é lido e interpretado por todos, por detratores e admiradores. Lula pega o microfone e o país paralisa em frente à TV. Os admiradores choram. Os jornalistas a serviço da mídia hegemônica silenciam. Ninguém fica indiferente a uma instituição desse tamanho.

    Lula sabe perfeitamente que está sendo observado, conhece muito bem o tamanho que tem e explora com extrema habilidade sua capacidade de fabricar símbolos.

    Aqui neste ensaio, trato de uma parte muito pequena da biografia de Lula, mas que talvez seja, na perspectiva simbólica, a mais importante. Talvez seja até mais importante que os oito anos de seu governo.

    Falo das 34 horas em que Lula esteve no sindicato dos metalúrgicos, sob os olhares do mundo, construindo a narrativa de seu próprio martírio.

    Não falo em “resistência”, pois desde a condenação no Tribunal da Quarta Região, em 24 de janeiro, que o destino de Lula já estava selado. Os advogados cumpriram sua função, recorrendo a todos as instâncias e tentando um habeas corpus, mas todos já sabiam que Lula seria preso.

    Por isso, seria ingênuo dizer que o que aconteceu em São Bernardo do Campo foi um ato de resistência. Lula é um político experiente demais para resistir em causa perdida.

    Alguns companheiros e companheiras, no auge da emoção, tentaram usar a força. Lula fugiu da custódia dos trabalhadores e se entregou à Polícia Federal, pois sabe que contra o braço armado do Estado ninguém pode. Lula sabe que aqueles que ali estavam eram trabalhadores e trabalhadoras, pais e mães de família. Não eram soldados. Não eram guerrilheiros. A resistência não era possível.

    Lula sabe que seria impossível sustentar aquela mobilização durante muito tempo e por isso não resistiu. Mas daí a se entregar resignado como boi manso para o abate a distância é grande, muito grande.

    Penso mesmo que Lula fez mais que resistir, já que a resistência seria quixotesca, irresponsável. Lula pautou a própria prisão, saiu da posição de simples condenado pela Justiça para se tornar o dono da narrativa. Lula foi sujeito do próprio encarceramento, deu um nó nas forças do golpe neoliberal.

    Muitos achavam que Lula deveria ter fugido para uma embaixada amiga e de lá partido para o exílio no exterior. Confesso que também pensei assim. Mas Lula é muito mais inteligente que todos nós juntos.

    Lula sabe que já viveu muito, sabe que não lhe sobra muito tempo de vida. O que resta agora é a consolidação da biografia, o retorno às origens, seu renascimento como ícone da esquerda brasileira, imagem que ficou um tanto maculada pelos oito anos em que governou o Brasil.

    É que no capitalismo não existem governos de esquerda. Governo de esquerda só com revolução e Lula nunca foi revolucionário, nunca prometeu uma revolução.

    Todo governo legitimado pelas instituições burguesas será sempre burguês. No máximo, no melhor dos cenários, será um governo de centro sensível às demandas populares. O lulismo foi exatamente isso: uma prática de governo de centro sensível às necessidades dos mais pobres. O lulismo transformou o Brasil pra melhor, com todos os seus limites, com todas as suas contradições.

    Mas para encerrar a vida em grande estilo carece de algo mais. Era necessária a canonização política. E só a esquerda canoniza líderes políticos. A direita é dura, cinza, sem poesia.

    O golpe neoliberal conseguiu reconciliar Lula com as esquerdas, o que há poucos anos parecia algo impossível de acontecer.

    É que pra ser canonizado pelas esquerdas nada melhor que ser perseguido pelo Poder Judiciário, habitat histórico das elites da terra. Basta lançar no Google os sobrenomes da maioria dos nossos juízes, procuradores e desembargadores e veremos os berços de jacarandá que embalaram os primeiros sonhos dos nossos magistrados.

    É claro que Lula não planejou a perseguição. É óbvio que ele não queria ser perseguido. Se pudesse escolher, estaria tendo um final de vida mais tranquilo, talvez afastado da política doméstica e atuando nas Nações Unidas. Mas já que a vida deu o limão, por que não espremer, misturar com açúcar, cachaça, mexer bem e mandar pra dentro?

    Lula fez exatamente isso: uma caipirinha com os limões azedos que seus adversários togados lhe deram.

    Primeiro, ele fez questão de esgotar todos os mecanismos legais. A sentença de Moro, os votos dos desembargadores, os votos dos ministros da Suprema Corte não são palavras ao vento. São “peças”, para falar em bom juridiquês, que ficarão arquivadas e disponíveis para a consulta, para análise.

    Imaginem só, leitor e leitora, os historiadores que no futuro, afastados da histeria e das disputas que hoje turvam nossos sentidos, examinarão a sentença de Sérgio Moro, verão que o juiz não foi capaz de determinar em quais “atos de ofício” Lula teria beneficiado a OAS para fazer por merecer o tal Triplex do Guarujá.

    É como se Moro estivesse falando: “Não sei como fez, mas que fez, ah, fez”.

    E o voto dos desembargadores do TRF-4, atravessados de juízos de valor, quase sem relar no mérito da sentença?

    E o voto de Rosa Weber? Por Deus, o que foi aquele voto de Rosa Weber?

    Sei que estou votando errado, mas vou continuar votando errado só porque a maioria votou errado. Uma maioria que só vai votar porque eu vou votar errado também.”

    Lula, ao se negar a fugir, obrigou cada um desses togados a deixar impressos na história os rastros da própria infâmia.

    Uma vez decretada a prisão, o que fez Lula?

    Deu um tiro no peito? Se entregou em São Paulo? Foi pra Curitiba? Fugiu?

    Não!

    Lula se aquartelou no sindicado mais simbólico da redemocratização brasileira, o sindicado que representa as expectativas que nos anos 1980 apontavam para um Brasil mais justo, mais solidário.

    No apogeu da crise que significa o colapso do regime político fundado na redemocratização, Lula decidiu encenar o seu martírio onde tudo começou.

    Naquele que talvez seja o último grande ato de sua vida pública, Lula voltou às origens.

    Protegido pela massa de trabalhadores, Lula não cumpriu o cronograma estipulado por Sérgio Moro. Cercado por uma multidão, o Presidente operário transformou o sindicato dos metalúrgicos numa embaixada trabalhista.

    A Polícia Federal, o braço armado do governo golpista, disse que não usaria a força. A Polícia Federal sabia que o povo resistiria, que sem negociação não tiraria Lula do sindicado sem deixar uma trilha de sangue.

    Lula negociou e, nos limites dados por sua posição de condenado pela Justiça, venceu e humilhou as instituições ocupadas pelo golpe neoliberal.

    Lula não estava foragido. O mundo inteiro sabia onde ele estava e mesmo assim o Estado brasileiro não foi capaz de prendê-lo no prazo determinado pela Justiça golpista. Durante um pouco mais de 30 horas, Lula foi um exilado dentro do Brasil, como se São Bernardo do Campo fosse um República independente, a “República Popular dos Trabalhadores”.

    Lula fez de uma missa em homenagem a Dona Marisa Letícia um ato político e aqui temos mais um lance simbólico do Presidente operário: restabeleceu as pontes entre a esquerda brasileira e a Igreja Católica, aliança que tão importante nos anos 1970, quando sob as bênçãos da Teologia da Libertação foi fundado o Partido dos Trabalhadores.

    No palanque, junto com o padre, estavam Lula e as futuras lideranças da esquerda brasileira. Lula dividiu seu espólio em vida, tomou pra si esse ato mórbido ao abençoar Boulos, Manuela e Fernando Haddad.

    Lula unificou em vida a esquerda brasileira. Não só unificou, mas pautou, apresentou o programa, cantou o caminho das pedras.

    Lula deixou claro que o povo mais pobre precisa comer melhor, precisa consumir, viajar de avião, estudar na universidade. Lula, o operário que durante a vida inteira foi humilhado por não ter diploma de ensino superior, foi o professor de milhões de brasileiros que sonham com um país melhor.

    É como se Lula estivesse dizendo: “Num país como o Brasil, a obrigação mais urgente da esquerda é transformar o Estado burguês em agente provedor de direitos sociais”.

    Lula discursou durante uma hora em rede nacional, se defendeu das acusações. Não foi uma defesa para a Justiça, mas sim para o tribunal moral da nação. Não foi um discurso para o presente. Foi um discurso para a história.

    Não, meus amigos, acuado pelas forças do atraso, Lula não deu um tiro no próprio peito.

    Lula mandou trazer cerveja e carne e fez um churrasco com seus companheiros e companheiras. Foi carregado pelos seus iguais, foi tocado, beijado. Saliva, suor, pele.

    Lula não deu um tiro no próprio peito.

    Getúlio é gigante, sem dúvida, mas também era herdeiro das oligarquias. Lula é o único trabalhador que, vindo da base da sociedade, conseguiu governar e transformar o Brasil. Lula já é maior que Getúlio.

    Diferente de Getúlio, Lula entrou pra história sem precisar sair da vida.

  • UM GRITO POR DIGNIDADE: CONHEÇA A OCUPAÇÃO POVO SEM MEDO – SÃO BERNARDO DO CAMPO

    UM GRITO POR DIGNIDADE: CONHEÇA A OCUPAÇÃO POVO SEM MEDO – SÃO BERNARDO DO CAMPO

    Por Taís Di Crisci – Socióloga / GICA TV para os Jornalistas Livres

    O Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) unido a centenas de famílias ocupam um grande terreno em São Bernardo do Campo em busca do compromisso do governo com a construção de moradias populares. As pessoas que constroem o acampamento não possuem condições financeiras para comprar uma moradia própria e estão demonstrando com muita força de vontade e organização que a ocupação é uma forma de luta capaz de pressionar o poder público e ainda desenvolver a coletividade e o senso de democracia.

    Durante as últimas semanas a GICA TV tem tido a honra de participar como apoiadora da Ocupação Povo Sem Medo em São Bernardo do Campo, uma luta organizada pelo MTST para que no terreno com 60 mil metros quadrados, que está vazio há cerca de 40 anos, sejam construídos prédios pelo programa ‘Minha Casa Minha Vida’ faixa 1, dando oportunidade de moradia própria para as tantas famílias carentes que fazem parte do acampamento.

    A ocupação, que é a segunda maior do MTST e já conta com mais de 8 mil participantes, vem sofrendo ataques da mídia e da população que relacionam o movimento com apropriação indevida, “baderna” e reforçam o discurso de marginalização das pessoas envolvidas. Com os moradores vizinhos a tensão tem sido grande, os acampantes foram acusados sem provas de uso de drogas, roubo, sofrem agressões verbais ao serem chamados de “vermes” e “gafanhotos” e a situação se agravou quando tiros foram disparados contra a ocupação no dia 17 de setembro.

    Quem convive dentro do acampamento ou o visita é capaz de perceber sem dificuldades que essas acusações são indevidas e injustas, a realidade dos ocupantes é bem diferente do estereótipo divulgado. O acampamento conta com uma organização bem articulada, um estatuto com regras de convivência que garante a segurança dos acampados e muito trabalho em equipe. O clima é de colaboração mútua, respeito ao próximo e acima de tudo esperança de uma vida melhor. Mas quem são essas pessoas, como funcionam essas regras e por que estão ali? São essas perguntas que a GICA TV se propôs a responder, respeitando a veracidade dos depoimentos que recebemos e agradecendo a receptividade.

    A ocupação começou no dia 2 de setembro, quando cerca de 500 pessoas do MTST, após saberem da situação ociosa do terreno, montaram os primeiros barracos. Desde então centenas de famílias procuraram o acampamento para se juntar a ele e tentar a oportunidade de uma moradia própria. Essas pessoas estavam alocadas anteriormente em São Bernardo do Campo e cidades vizinhas como Diadema, dentre elas muitas pessoas que migraram da região Nordeste para o estado de São Paulo.

    Talvez um dos questionamentos mais pertinentes seja se todas essas pessoas eram moradores de rua, e a resposta é não, nem todos, mas existe sim uma parcela de acampados que não tem outro lugar para morar. Outros tem, dentre os relatos que escutamos estão pessoas que moram com familiares, amigos, que tem casa alugada mas estão desempregadas ou não ganham o suficiente para pagar o aluguel e despesas básicas como alimentação. Uma parcela significativa também é a de mães solo, mulheres que carregam sozinhas a responsabilidade de sustentar os filhos e outros familiares.

    Até a lotação do terreno qualquer pessoa pode chegar ao acampamento e pedir um espaço, não existe distinção nem preferências, quando a liberação dos prédios for conquistada ficará a cargo da Caixa Econômica Federal realizar verificações de renda e documentação. No acampamento são designados 2 metros quadrados por pessoa para a construção do barraco, logo famílias têm espaço maior e cada um é responsável pelos materiais e pela montagem, porém tudo acaba acontecendo com solidariedade entre os ocupantes. É importante ressaltar que como o acampamento é provisório e luta pela construção de prédios naquele terreno não são permitidas construções permanentes.

    Os acampados são divididos em grupos para possibilitar a organização inclusive territorial, cada grupo possui banheiro e cozinha que utilizam coletivamente. Existe também o barracão onde fica a organização e um palco onde acontecem as assembleias gerais. As construções dos espaços de convivência, a alimentação e todas as tarefas coletivas do acampamento são realizadas por multirões, cada participante se coloca voluntariamente na tarefa que mais se sente à vontade. A alimentação vem em sua maioria de doações de apoiadores e dos próprios acampados quando tem condições. Uma horta coletiva já foi plantada para ajudar com alimentos frescos.
    Para a segurança dos ocupantes e que tudo ocorra em harmonia, existem regras de convivência, um estatuto que define horário de silêncio, a proibição do consumo de álcool e drogas dentro do acampamento e outras colocações que garantem o bem estar de todos os envolvidos. O desrespeito ao estatuto gera dois caminhos dependendo da gravidade da situação, a maioria dos casos é tratada com empatia e acolhimento mas dureza na vigilância do problema, porém se o caso for grave ou de reincidência a pessoa perde a oportunidade de fazer parte do acampamento.

    As assembleias são os principais meios de organização dos acampantes e acontecem de forma geral, com todos os participantes, em datas mais espaçadas e diariamente nos grupos. Nelas são tomadas as decisões referentes ao futuro do movimento, ações, estrutura e todos os aspectos pertinentes a ocupação. A presença nas assembleias é obrigatória, os participantes assinam listas diárias de presença para comprovar a atividade dentro do movimento e que estão cientes das decisões tomadas. Cada grupo também possui um grupo de WhatsApp com a maioria dos participantes para garantir a comunicação. A troca de informações entre grupos fica a cargo dos coordenadores, acampados representantes de cada grupo cuja a tarefa é a organização, ser coordenador não imprime poder ao acampado, o movimento é horizontal.

    Na ocupação também acontecem atividades culturais e educativas, um espaço está sendo construído para atender às crianças e proporcionar brincadeiras e aulas públicas. Profissionais de diversas áreas se envolvem no movimento e doam seu tempo de trabalho para estar lá trocando conhecimentos, dentre os ocupantes e apoiadores. O mesmo acontece em relação aos cuidados com a saúde, acampados que possuem formação na área prestam os primeiros socorros quando necessário, uma agente de saúde apoiadora orienta e acompanha os doentes e a coordenação possui um telefone disponível para chamar uma ambulância em caso de emergência.

    A situação de vida no acampamento é precária principalmente pela falta de saneamento e estrutura, porém o que percebemos é que a precariedade não é diferente da rotina dessas pessoas. Os acampados que estão ali contam, a quem estiver disposto a escutar, suas histórias que demonstram o quanto a casa própria é fundamental para que as possibilidades de qualidade de vida comecem a surgir. O principal foco da maioria dos acampados é dar aos filhos a chance de uma realidade diferente e com menos dificuldades. As pessoas que estão ali necessitam dessa moradia para continuar sobrevivendo.

    A reivindicação dos ocupantes é por moradia popular, mas como eles repetem com orgulho, ninguém quer nada de graça. Os apartamentos, quando estiverem prontos, serão comprados pelos ocupantes, porém com valores acessíveis e parcelas que não comprometam o orçamento familiar. O programa ‘Minha Casa Minha Vida’ funciona por faixas de renda familiar, a faixa 1, que é a reivindicação do movimento, atende famílias que têm renda bruta de até R$1800. O terreno reivindicado pelo MTST pertence a construtora MZM, que teve o pedido de reintegração de posse negado. O espaço está em situação ilegal pois não está cumprindo sua função social determinada por lei, o que o torna um bom local para a construção por programas sociais de moradia.

    Caso o terreno não seja adquirido pela prefeitura para a construção dos prédios populares, o MTST se propõe a negociar com os governantes a inclusão dos acampados em programas sociais que diminuam as dificuldades pelas quais eles passam. Em caso de decisão positiva, onde a prefeitura se responsabilize pela construção dos prédios, os acampados se realocam temporariamente em seus locais de origem até a conclusão das obras. Quanto aos acampados desempregados o MTST negocia com a construtora a contratação dessas pessoas durante o período de obras.

    Mesmo com todas as dificuldades e incertezas, a esperança é o sentimento mais forte presente no acampamento. Pessoas de fé, trabalhadores, mães e pais de famílias e crianças são um resumo dos acampantes que fazem da ocupação um grito de socorro por dignidade. Agradecemos a cada uma dessas pessoas que nos receberam de coração aberto e compartilharam conosco suas histórias, agradecimentos especiais a organização pelo convite, e todo o movimento MTST/Povo Sem Medo pela parceria.

     

  • De Mulher pra Mulher

    De Mulher pra Mulher

    O Brasil era todo novo em 2003. Lula havia sido eleito com dois a cada três votos válidos no segundo turno e Dona Marisa chegava de vermelho para colorir o Alvorada. Era tudo novidade. A imprensa, acostumada a lidar com os salamaleques, cerimônias, formalidades e rapapés presidenciais, tinha prazer em fazer piada do jeito despachado do casal. Uma notinha maldozinha sobre o churrasco no jardim, um aposto no texto da reportagem que mencionava o frango com polenta que o casal adorava comer. Dona Marisa não era madame. A cozinha do palácio passou a ter buchada, arroz e feijão com bife e bacon na couve. Foi fotografada mais de uma vez vestindo legging, tênis e sem maquiagem.
    Toda a imprensa queria entrevistá-la. Ela negava sem meias-palavras a todos os pedidos. Principalmente aos das revistas femininas, ávidas em perfilá-la e levá-la para estúdios fotográficos de profissionais acostumados a retratar modelos famosas. Prometia-se roupa de grife, foto de grife, maquiagem de grife e até jornalista de grife para convencê-la a dar entrevista. Eu era repórter sem nome famoso, só mais uma na lista dos queriam conversar pela primeira vez com Dona Marisa no papel de primeira-dama. Trabalhava na revista popular Criativa, da Editora Globo, nada bem vista pelo Partido dos Trabalhadores (PT). De “grife” a publicação também não tinha nada. Naquela época, a revista era voltada para jovens mulheres que, como eu, se dividiam entre o trabalho e a vida doméstica. Por pesquisas, sabíamos que a maioria fazia isso tudo sem marido.

    De Dona Marisa colecionei negativas de entrevista desde a posse. Até que decidi fazer o que toda mulher faz quando precisa saber mais de alguém: falar com as amigas. Fui para São Bernardo, e lá comecei pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Escolhi a parte mais convidativa de qualquer lugar: a cantina. Logo descobri como Luiza de Farias tinha virado a “Tia da Cantina” por causa de Dona Marisa, por exemplo.

    A Tia, como era carinhosamente chamada, era líder comunitária de uma favela e conheceu Lula em 1980, pouco antes de ele ser preso. “Fui cozinhar pra peãozada que ia protestar para soltarem o Lula. Fazia linguiça, vendia Guaraná e pinguinha. Apinhava de gente”, contou. Foram Marisa e Lula que a convidaram para trabalhar no sindicato. Eles sabiam que Tia morava num cômodo com os seis filhos e combinaram que ela só ia pagar o aluguel depois que o negócio decolasse. “Vendia muito Domecq, pinga, Jurubeba, cerveja e comida de homem: arroz e feijão, caldo de mocotó, costela assada, sarapatel, maionese…”. Em 2003, a Tia já estava há 22 anos no sindicato e, nesse meio tempo, comprou terreno, construiu sua casa. Quando dona Marisa fez visita ao sindicato como primeira-dama, comeu mais uma vez o bolo de fubá da Tia.

    Marisa e a “Tia” da cantina

    No bar da esquina, fui jogar conversa fora sobre Dona Marisa com Rosa Kido, que atendia no balcão. “Ela sempre vinha me ver quando ia ao sindicato. Dei para ela um amuleto japonês para dar sorte no amor. Dez anos depois, fui na casa dela levar um vinho no Natal e ela ainda tinha o amuleto no quarto dela!”, contou. E, naquele longínquo Brasil de esperança, perguntou: “Será que ela vai levar pra Brasília?”

    Expedito Soares Batista, então advogado do sindicato havia 12 anos, também tinha história para contar. “A casa da Marisa ficava uma bagunça por causa do pessoal do PT. A Marisa tinha que botar todo mundo pra correr, senão o papo não acabava.” Contou também que ela ia a todas as passeatas com o pessoal. Vida, trabalho no partido e no sindicato sempre foram uma coisa só.

    Os padrinhos de casamento de Lula e Marisa confirmaram. “Na época das greves, tanto eu quanto a Marisa víamos nossos maridos saindo de casa às 4 horas da manhã para ir para porta de fábrica fazer mobilização, distribuir folheto. Era perigoso. Mulher de sindicalista sofria”, lembrou a comadre Emília de Oliveira. “Nossos maridos faziam greve: e o medo que perdessem os empregos? E se fossem presos? Torturados?”

    Os quatro filhos de Emília brincavam com os quatro filhos de Marisa. “Ficamos comadres organizando festas para arrecadar dinheiro para o fundo de greve”, diz a madrinha de Sandro. Quando a filha de Emília se casou, Lula era deputado federal e foi no casamento direto de Brasília. O casal também compareceu no aniversário de 25 anos do casamento da amiga com o Janjão, João de Oliveira, o compadre de Lula.

    As histórias de Dona Marisa logo me levaram ao restaurante São Judas Tadeu, onde Lula e a mulher iam comer o famoso frango com polenta que a primeira-dama levou para a cozinha do Alvorada. No imenso galpão do restaurante perto da fábrica da Volks – que chegava a servir mais de 300 famílias de metalúrgicos nos fins de semana, cerca de 1300 pessoas -, encontrei Cidinha e Laerte Demarchi. Eles conheciam Marisa e Lula desde 1978, eram companheiros de pescaria e mesa farta. Mas não falavam de política quando se encontravam.

    Cidinha contou que Marisa era leoa, gostava de proteger e cuidar. Dos amigos, da casa, da família e do marido. Ia ao mercado, na escola das crianças, ouvia os desabafos das amigas, apoiava o marido e sabia o que tinha de mistura no prato do almoço e no jantar. “Ela é quietinha, tímida, mas muito viva. Sabe tudo da carreira do Lula, acompanha, é inteirada. Quando o Lula está falando, ela está ligada, sempre de olho no que ele diz”, lembrou a comadre. Famoso por adorar ser o centro das atenções, o ex-presidente adorava fazer piadinhas mas a amiga do casal disse que Marisa era engraçada também. “Numa pescaria no Mato Grosso, só deu piranha. Então a gente foi comprar os peixes dos pescadores da região para fazer a foto.”

    Foi Cidinha quem conversou com Marisa em meu nome e levou à primeira-dama, mais uma vez, o meu pedido de entrevista. Fiz questão de avisar que não era de política a nossa conversa. Era papo de mulher. E assim foi. Depois de cinco meses de tentativas frustradas, Dona Marisa finalmente conversou comigo como primeira-dama. “Para as pessoas gostarem de mim, se sentirem bem ao meu lado, eu não preciso ser diferente do que sou”, falou sem cerimônia.

    Dona Marisa contou que estranhava morar no Alvorada. “É muito grande, tem muitos funcionários. Estou acostumada e gosto de lugares pequenos, aconchegantes. E tinha apenas uma pessoa para me ajudar”, disse. Era maio, fazia só cinco meses que estava na casa nova. “Hoje está tudo bem. Conheço todo o pessoal, horários de trabalho, dias de folga. Eles também me conhecem.” Fez questão de citar os peixes que levou para o lago do Palácio, a recuperação dos móveis que estavam nos depósitos e os copos-de-leite coloridos que pediu para plantar no jardim. “Eu tenho consciência de que o Palácio do Alvorada não é minha casa. Mas cuido dele como se fosse.”

    Na entrevista também falamos de vida a dois: “amar é muito importante mas sonhar juntos é fundamental. É isso que alimenta nosso casamento até hoje. Estamos também preocupados com os detalhes. Às vezes um gesto, um olhar muda tudo.” Lula falou do olhar forte e marcante de sua mulher em dezenas de ocasiões. Sabia também que se fosse preciso ela botava a boca no trombone.

    “Na posse é praxe que o presidente desfile em carro aberto ao lado do vice-presidente. Quando eu soube disso, perguntei: ‘E eu?’ Responderam: ‘A senhora será conduzida ao Palácio do Planalto e aguardará a chegada do presidente lá dentro’. Eu disse: ‘Ah, mas não mesmo, eu quero estar ao lado do presidente, durante o desfile. Também quero ver o povo, quero sentir essa energia’. ‘Mas, dona Marisa, sempre foi assim’, eles me responderam. Então, eu disse ‘meus filhos, esse governo será diferente, será de mudanças. E a mudança já vai começar na posse’. E foi o que aconteceu: eu desfilei ao lado do presidente e participei da foto junto com ministros e ministras. Nesse momento, eu me senti uma representante de todas as mulheres que lutaram e lutam ao lado de seus maridos”, ela contou. E foi mesmo, Dona Marisa. Foi mesmo.

    Em tempo: Dona Marisa posou para foto de capa da Revista Criativa usando suas próprias roupas, com seu fotógrafo e maquiador de confiança. Não quis produção em estúdio, não exigiu cardápio afrescalhado na sessão de fotos, prática comum entre atrizes e modelos famosas nesses ensaios. Perguntada sobre a rotina de maquiagem, cabelo, manicure, respondeu: “Esses cuidados eu sempre tive, independente de ser primeira-dama. As minhas unhas faço toda semana, como todo mundo. Com maquiagem também me viro bem, pelo menos não tive reclamações. O meu cabelo eu mesma arrumo e, de vez em quando, o Lula faz uma escova pra mim.”

    Sobre a história de amor entre Lula e Marisa, leia mais aqui.

  • ETERNA COMPANHEIRA

    ETERNA COMPANHEIRA

    Dona Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017)

    Foi num palácio. O Palácio da Alvorada. E era domingo festivo: Dia das Mães, 11 de maio de 2003, ano do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nos jardins, acontecia um churrasco. Diante da corte de fotógrafos, jornalistas  e curiosos, Lula ajoelha-se aos pés de sua mulher. A primeira-dama, então, pousa os pés sobre a perna do marido. E ele amarra o cadarço solto do tênis dela.

    No dia seguinte, UAU, a foto sai estampada na capa dos principais jornais e revistas do país. Mais uma vez, o Brasil inteiro se derretia com a demonstração explícita de afeto do presidente por sua companheira, Marisa Letícia Lula da Silva. A vida de dona Marisa, no entanto, nunca foi de Cinderela. Nem Marisa sonhou ser princesa. Lula sempre a tratou como rainha, fato. Mas isso nada tem a ver com os jardins palacianos do flagra em Brasília. A majestade de dona Marisa Letícia já vinha de muito, muito antes do cargo de primeira-dama.

    Casada há 43 anos, Marisa já foi descrita pelo marido como uma “grande mãe italiana”. Ela esteve ao lado de Lula nas greves, nas lutas, na criação do PT, nas viagens das caravanas da cidadania, nas campanhas eleitorais. Mas preferiu ficar longe dos holofotes. “Fora de casa Lula é o centro das atenções. No campo doméstico, Marisa é soberana. Ela é a âncora da família”, contou amiga dos tempos de sindicalismo Miriam Belchior, que foi ex-assessora especial da Presidência. Mulher de opiniões declaradas, sempre foi discreta, tímida e, segundo a amiga, optou por esse papel.

    O temperamento forte sempre foi da porta para dentro, onde botava “os pingos nos is”. Em público foi reservada. Gentil, simpática e afetuosa com os amigos, tratava com indiferença gente que julgava interesseira. Também nunca foi de lamentar, mas de resolver os problemas. Em sua primeira entrevista como primeira-dama, à revista Criativa em 2003, respondeu sobre o segredo de seu casamento: “quando somos jovens imaginamos que o mundo tem que ser cor-de-rosa, só que ele não é. Isso muitas vezes é um choque. O amadurecimento proporciona isso, compreensão das coisas, mais paciência. Nós (Lula e ela) aproveitamos o nosso tempo juntos para ficar bem, felizes.”

     

     

    PÉS NO CHÃO DE TERRA BATIDA

    Neta de italianos, dona Marisa nasceu num sitio em São Bernardo do Campo, SP, onde havia plantações de batata e milho e criações de galinhas e porcos. A casa de dois quartos onde viveu até o sete anos era de pau-a-pique e chão de terra batida. Não tinha luz elétrica. Nem água encanada, só poço. O colchão onde dormia era de palha. Marisa foi a penúltima filha dentre 12 irmãos. Sua mãe, Regina Rocco Casa, era famosa benzedeira: sabia tirar quebranto, curava menino com bucho virado. O pai hortelão, Antônio João Casa, adorava plantas. Marisa puxou isso dele.

    A primeira-dama tinha “mão boa” para lidar com mudas. Quando levou uma jabuticabeira no vaso para dentro do apartamento em São Bernardo, Lula achou que a planta jamais ia vingar. “Eu fiquei, como muitos, todo santo dia resmungando e dizendo que era impossível”, disse o marido num discurso em que fez parábola da planta de Marisa. Lula disse que o Brasil poderia crescer em pleno aperto econômico como a jabuticabeira que, contrariando todas as previsões, sua mulher fez vicejar. “Como ela acreditou mais, irrigou mais, cuidou mais do que eu, o pezinho de jabuticaba dá frutos quatro, cinco vezes por ano, coisa que esse conselho [Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social] pode imitar se quiser”, disse Lula, quando criou órgão do governo em fevereiro de 2003.

    Marisa sempre cultivou legumes e verduras. A ponto de não precisar comprá-los no mercado por anos. Quando virou primeira-dama incrementava a horta atrás do Alvorada. Orgulhava-se de dizer que os canteiros estavam com mais variedade. Também povoou o lago do Palácio com peixes e patos quando se mudou para Brasília. A ex-primeira-dama gostava de bichos. Em plena correria da campanha do primeiro mandato de Lula, levou para o apartamento um cabritinho que a mãe rejeitou e o alimentou a mamadeira. Instinto maternal exercido desde criança. Quando ainda era menina de nove anos, em vez de bonecas, Maria foi embalar três sobrinhas do pintor Cândido Portinari. De babá, virou operária aos 13 anos. Embalou, então, bombons Alpino na fábrica de chocolates Dulcora. Teve de parar de estudar na sétima série.

     

     

    ENCONTRO DE FORTES

    Moça bonita, loura de cachos até a cintura, aos 19 anos, Marisa saiu da casa dos pais para se casar com seu primeiro namorado, Marcos, um motorista de caminhão. Ele carregava areia para construções durante o dia e  de noite, saía com o táxi do pai, um Fusca, para ganhar um extra. Queria comprar a casa própria. Seis meses depois do casamento, Marcos foi morto por bandidos num assalto ao táxi. Viúva, a única herança de Marisa foi o filho de quatro meses na barriga. Ela morou no primeiro ano de viuvez com o sogro, depois foi para a casa de sua mãe e trabalhou como inspetora de alunos num colégio público. Dona Marília, a primeira sogra que sempre foi amiga do peito de Marisa, ajudou a nora criar o neto de sangue, Marcos Claudio, e os outros três que a primeira-dama teve com Lula.

    Curiosidade dos destino: o sogro do primeiro casamento de Marisa, seu Cândido, foi quem primeiro falou de Marisa para Lula. Em 1973, Luiz Inácio tinha o apelido de “Baiano”. Novato no sindicato dos metalúrgicos, sofria o luto por sua primeira mulher, Maria de Lourdes, que perdeu, com o filho, na sala de parto havia dois anos. Vez ou outra, Lula fazia uma corrida no taxi Fusquinha de seu Cândido porque a bandeirada era mais barata do que a dos carros de quatro portas. Lula contou, em entrevista à escritora Denise Paraná no livro “O filho do Brasil”, que seu Cândido, sempre que falava da morte do filho, dizia que a nora Marisa era muito bonita. “Foi muita coincidência. O tempo passou. Quando um belo dia estou no sindicato chega essa tal de dona Marisa”, disse Lula.

    No encontro entre os dois viúvos não houve suspiros de contos de fada. Marisa foi ao sindicato buscar um carimbo para retirar sua pensão. Lula deixou cair sua carteirinha de identidade de sindicalista para mostrar que também era viúvo. Ele inventou uma firula qualquer na documentação dela para ter desculpa para pedir o telefone de Marisa. Ela nem atendia as ligações. Mas o ex-operário, que venceu a primeira eleição para presidente na quarta tentativa, é insistente. Um dia estacionou o carrinho TL na porta da casa da viúva loura e botou o então namorado de Marisa para correr, dizendo que precisava falar um assunto sério com ela. Lula acabou conquistando a simpatia da mãe de Marisa, Dona Regina, a benzedeira, e depois o coração da ex-primeira-dama. Em sete meses se casaram.

     

    COMPANHEIRA DE TODAS AS HORAS

    Um ano depois do casamento, Lula já era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Naquele tempo, Marisa não entendia nada sobre sindicalismo, greves, ditadura, passeatas, piquetes… Carregava no colo o recém-nascido Fábio Luiz e tinha na barra da saia o primogênito Marcos Cláudio, que Lula adotou como seu. Um dia, cansada do sumiços de Lula – que saía de casa de madrugada para fazer piquete em porta de fábrica–, Marisa decidiu entrar no curso de política do religioso militante de esquerda Frei Betto. Aos poucos, ela passou a entender a luta dos sindicalistas e acabou por influenciar outras mulheres de metalúrgicos.


    Certamente não foi fácil. Lula nunca pôde acompanhar a mulher na maternidade no nascimento dos filhos, por exemplo. Marisa foi mãe e pai dos meninos. Reunião de escola, festinha, finanças da casa, crediário… Tudo era ela quem cuidava. E sem empregada. Joana, considerada uma “irmã de criação” de Marisa, e a ex-sogra, dona Marília, a acudiam em situações especiais.

    Em 1980, os militares tomaram o sindicato e a sala da casa de dona Marisa virou a nova sede dos metalúrgicos. E ela também assumiu posto de secretária. Nesse mesmo ano, Lula foi preso. Acusado de incitar uma greve ilegal, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, principal instrumento de repressão do regime militar. “Marisa organizou toda a passeata com as mulheres de metalúrgicos encarcerados. E levou as crianças no meio daquela multidão “, recorda amiga Miriam Belchior, que também participou da manifestação. “Tinha polícia para tudo quanto é lado”, Marisa disse em entrevistas. Ela levava os filhos Marcos, Fábio e Sandro para visitar o pai na cadeia. O caçula, Luiz Cláudio, ainda não tinha nascido.

    Sempre junto de Lula, dona Marisa fundou o partido dos trabalhadores também em sua sala. “Marisa entendia a missão do Lula. Ela só pegava no pé do marido aos domingos”, disse Luiz Marinho, amigo do casal, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e ministro da Previdência no governo Lula. Para ela, domingo era sagrado, era o dia da família. E pouco importava se o almoço familiar acontecesse no apartamento de São Bernardo ou nos salões projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer. A cena dominical do dia das Mães em que Lula se ajoelhou aos seus pés não teve nada de excepcional como alardeou a imprensa na época. Os pequeninos gestos de carinho de Lula à sua mulher eram rotineiros. Em uma entrevista, Marisa disse: “Em um casamento o amor é muito importante. Mas sonhar juntos é fundamental”. Nos sonhos de dona Marisa, estávamos todos incluídos.