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  • A gente tem lado – Um relato pessoal

    A gente tem lado – Um relato pessoal

    Amanheci a sexta-feira em dúvida ainda cercado de compromissos. Pairava sobre a cabeça uma nuvem de angústia, já faziam algumas noites que eu não dormia bem, me sentindo desterrado da realidade. É uma face oculta do golpe, que não toma apenas o poder político mas a própria percepção do possível e do absurdo. A hegemonia nefasta que Globo, Veja, Folha, Estadão e afins geram é tão opaca que nos faz parecer loucos aos olhos de amigos de infância, parentes, pessoas por quem muitas vezes não deixamos de ter afeto mas que hoje não se limitam a discordar de nossas opiniões, vão além: julgam que nossas opiniões são impossíveis. É uma negação total da política, que se movimenta na divergência, mas também uma negação da nossa capacidade de pensar e em suma, da nossa própria humanidade. É uma agressão e é muito doloroso de sentir.

    Eis que um amigo me chama pra ir pra São Bernardo. Depois outro. E outro. Mais um e eu cancelei tudo que tinha e fui. Nos encontramos um pouco perdidos no terminal Sacomã e uma mulher de uns 50 anos, negra, boné da CUT, estrela vermelha na camiseta, nos disse “Vocês vão pro sindicato né? É esse ônibus aqui mesmo.” Neste ônibus não cabia mais ninguém, mas nós entramos, a porta fechou logo atrás de mim e fiquei espremido contra ela. No aperto já se via mais vermelho, bandeiras, um boné com a bandeira de Cuba, um senhor com uma camiseta da campanha de 89. Era visível ali a solidez das bases que tem o PT no meio do povo, que a mídia não é capaz de destruir. Eu há alguns anos não me dizia petista, mas quanto mais essa corja podre ataca o PT mais eu fico petista; quanto mais a Globo fala mal de Lula, mais eu gosto de Lula – e mais eu detesto a Globo. O ônibus atravessava a Anchieta e as pessoas, ainda um pouco tímidas na conversa, iam jogando algumas opiniões e posicionamentos pra testar se ali já estávamos mesmo entre os nossos. Estávamos. E eu, como criança em viagem de família, perguntava a cada 5 minutos se já estava chegando.

    “Olê! Olê olê olá! Lulá! Lulá!”, descemos no ponto do pé da ladeira cantando. Na subida já encontramos mais amigos, uns que eu já conhecia, outros que eram meus amigos apenas porque estavam ali. Contei no céu 5 helicópteros. Entre as falas das lideranças políticas no trio elétrico e as canções de ordem, já circulavam boatos de que a Tropa de Choque estava chegando, mas ninguém arregou um dedo por causa disso. De repente uma vibração mais forte. Lula aparece na janela do sindicato e cumprimenta as milhares de pessoas que estavam ali. Choro pela primeira vez, por ele e pelo amor que dali emanava, pelos olhares de gratidão, solidariedade e disposição. Estávamos juntos e o nosso compromisso ali estava claro. A nuvem havia se dissipado, a angústia havia se transformado em força. Lula é meu amigo: mexeu com ele, mexeu comigo.

    O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC estava de portas abertas e nós, com os corações palpitando, entramos neste templo sagrado da esquerda brasileira, ou melhor, da humanidade. O prédio teve o abastecimento de água cortado desde a manhã sem nenhuma explicação pública, mesmo assim o sindicato providenciou água de carros-pipa, manteve os banheiros funcionando e acolheu a todos, sem ninguém que nos dissesse o que podia e o que não podia fazer, onde entrar e onde não entrar, total liberdade e responsabilidade. No terceiro andar, uma grande roda de samba, no quarto andar o bar servia cerveja, cachaça e porções de calabresa. Não era de graça, sinto a absurda obrigação de deixar isso claro, mas sim, tinha samba e tinha cerveja, tinha alegria. Porque lado a lado a gente se fortalece, cantando a gente se une e resiste à dor da violência que nos é imputada. É uma ofensa para os nossos adversários que nós estejamos alegres, pois então nós vamos cantar bem alto. Já há algum tempo venho percebendo alguns afetos do povo brasileiro que são simplesmente ingolpeáveis. A alegria da esquerda, nosso amor, nenhum golpe pode fazer diminuir.

    Soubemos então que Lula não falaria naquele dia, também que a polícia não viria. No dia seguinte, aniversário de dona Marisa, haveria uma missa aberta a todos. Lula estaria presente e só depois possivelmente se entregaria. Estava então decidido: passaríamos a noite lá. Nesse momento falei com minha mãe, sabia que ela ficaria apreensiva. Não tinha saído de casa preparado pra ficar, não me lembrava nem se tinha fechado as janelas direito, mas era simplesmente inconcebível para mim sair dali e passar a acompanhar os acontecimentos pela TV. A História estava acontecendo ali e nós éramos sujeitos ativos daquela construção, cada cabeça que se contava era importante. Eu não tinha um cobertor, mãe, mas tinha o acolhimento dos meus. O mais importante: eu estava feliz.

    Claro que não consegui dormir muito. Some-se aí mais uma noite com o sono prejudicado, mas o espírito estava pleno de energia. De manhã, dois sindicalistas me pediram pra fotografá-los diante de uma faixa com uma imagem de Lula que cobria os quatro andares do prédio. Me disseram que lembrava as faixas do primeiro de maio em Havana, pra onde eles foram numa excursão do sindicato, não pude imaginar a honra! Tiramos uma foto ali também, dá até pra ver nossos olhos cansados e incomodados. O sol matinal é inclemente com quem perde a noite, mas a essa hora já chegavam novos amigos e companheiros para a missa, trazendo uma nova vitalidade, e mesmo os que chegavam com expressões tristes logo se ambientavam no clima de acolhimento que se havia construído à noite.

    A missa começou no que havia se transformado no Vaticano da militância. Quando consegui dar a volta no trio elétrico, olhei pra cima, vi Lula abraçado com Dilma e chorei pela segunda vez. A partir daí as lágrimas não pararam mais. Entre homenagens à dona Marisa, canções, estas escolhidas pelo próprio Lula – Lulapalooza, um dos músicos brincou -, e orações como a carta de Paulo aos Coríntios e a de São Francisco de Assis – esta lida por Dilma, que saudade, Dilma! -, se lembrou sobretudo da importância do amor, do nosso dever um para com o outro naquele momento. Era evidente que estávamos ali processando um luto. Um luto necessário. Um momento para fazer as contas do que perdemos nos últimos anos, aceitar que nossos adversários políticos nos tomaram diversas trincheiras e isso culminaria no final daquele dia com a prisão do maior líder da nossa esquerda. Isso não dependia das tantas estratégias disponíveis, das tantas análises de conjuntura possíveis, nem de elaborações como esta aqui. Quem tem algum compromisso com a esquerda neste país, em presença ou em intenção, se deu as mãos naquela ladeira e rezou aquele pai nosso que encerrou a celebração.

    O que Lula falou em seguida já está sendo reproduzido e traduzido em todos os cantos da terra. O que nos atravessou, porém, não se pode reproduzir ou traduzir. Todos ali concordariam que Lula é o maior orador da história da humanidade. A sua generosidade ao apresentar todos os companheiros de luta que estavam no trio elétrico e ao apoiar as candidaturas de Manuela e Boulos, a força do seu compromisso com o povo brasileiro, esta já expressa nas suas realizações, a firmeza de sua ideologia democrática, de respeito às instituições – que justifica inclusive a sua opção por não resistir à prisão -, tudo isso foi conduzido pelo nossos corpos, que na multidão se tocavam, se apoiavam. Até os que, minutos antes, gritavam com toda a força que ele não deveria se entregar, no final entenderam e respeitaram a escolha de um homem que, convenhamos, tem mais sabedoria que nós pra decidir o que fazer naquele momento. E ele nos disse pra continuar, porque as suas idéias não podem ser presas e caminharão pelas nossas pernas, falarão pela nossa voz e baterão em nossos corações.

    “Um abraço, companheiros. E até a vitória.” Lula encerrou seu discurso como vem fazendo, dizendo que provará sua inocência e logo retornará à luta, com a expressão tranquila de quem dorme o sono dos justos. Desceu do trio elétrico e foi carregado até a entrada do sindicato, cercado pelas flores que o povo erguia, apertando as mãos das pessoas, sorrindo e chorando. As imagens disso também o mundo inteiro já viu. A comoção em que ficamos do lado de fora não tem nome. O som continuava tocando “Apesar de Você”, mas na verdade estávamos todos em silêncio. Não vi um que não chorasse, não vi um que negasse um abraço, nem um que não estivesse precisando desesperadamente de um abraço. Até agora eu choro enquanto lembro, enquanto escrevo, quando vejo uma foto, quando lembro de alguém que abracei naquela hora. Todas aquelas pessoas estão marcadas no meu coração pra sempre.

    Foi a coisa mais emocionante que eu já vivi.

    Lembro da prisão de Cunha, que não foi acompanhado nem pela esposa. Apesar da tristeza de perceber a neurose coletiva que tomou de assalto o Brasil, de termos que testemunhar absurdos completos golpeando o cotidiano enquanto se impõe a aparência de normalidade, apesar da perspectiva de tempos sombrios, ali estávamos milhares no mesmo abraço, onde tudo começou e preparados para recomeçar. Talvez a entrega de Lula sirva para nos tirar do estado de suspensão e negação em que nos encontrávamos desde o começo dos movimentos do golpe e nos leve a dar os passos além. “A gente tem lado”, ele disse em seu discurso, porque só quem é livre pode escolher de que lado está. Eu tenho lado e está claro: é com os trabalhadores que pegaram aquele ônibus comigo, com quem acenou junto quando Lula apareceu na janela, com quem tocou aquele surdo e brindou uma cerveja no terraço do sindicato, com quem dormiu naquele chão, com quem chorou junto a manhã inteira, com quem ficou sentado em frente ao portão pra não deixar Lula ir embora, com quem está disposto a seguir no compromisso de lutar. Uma certeza dessas é rara de se ter na vida.

  • MTST ocupa terreno em São Bernado do Campo

    MTST ocupa terreno em São Bernado do Campo

    O MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) voltou à cena hoje (02/09) com mais uma ocupação.

    O movimento ocupou um terreno de 60 mil m² no centro de São Bernardo, na Rua João Augusto de Souza, em frente à histórica fábrica da Scania, berço do movimento sindical que levou ao surgimento de Lula como liderança metalúrgica. Trata-se de um terreno particular, cercado por condomínios de alto padrão, que nunca recebeu qualquer uso além da cruel especulação imobiliária e em desrespeito explícito à função social da propriedade — definida pela Constituição de 1988 como obrigatória. Para o Estatuto da Cidade, Lei federal que regula a obrigatoriedade da função social da propriedade, toda propriedade precisa ter algum uso que envolva “o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”. Esse terreno não está de acordo com a norma jurídica do país, uma vez que não é utilizado para a sociedade de nenhuma forma.

    A importância dessa ocupação é enorme uma vez que, só em São Bernardo, o déficit habitacional é de 90 mil famílias sem casa, o maior do ABC, que acumula 230 mil famílias sem teto. A ocupação foi feita por quinhentas famílias do MTST que buscam, com a força da luta, garantir o direito constitucional e humano de ter uma casa. A legitimidade da ocupação se garante pelo simples fato de que o terreno foi sempre alvo exclusivo da especulação imobiliária.

    Em um momento de crise econômica aguda no país, com diversos ataques aos direitos sociais, o desemprego em alta e os salários em baixa, muitas pessoas não têm como garantir uma casa, seja por meio de aluguel ou pela compra da própria casa. Assim, a ocupação de terrenos que não têm uso, apenas são deixados à espera da valorização de seu preço, enquanto milhares de pessoas não têm um teto sob o qual se abrigar, não é apenas um passo lógico, mas que caminha em busca da igualdade.

    A ocupa

    Localizada no centro de São Bernardo, região metropolitana de São Paulo, foi feita por volta das 00:30h da madrugada de sexta (01/09) para sábado (02/09) como é prática como do MTST, que evita realizar suas ações durante o dia para não atrair a atenção dos vizinhos e policiais. Cerca de 500 famílias ocuparam o terreno, sendo a maioria de São Bernardo, mas algumas vindo das cidades vizinhas, como Mauá, Santo André e Diadema.

    O procedimento foi padrão. A hora da chegada é a mais importante e tensa, todos têm que sair dos ônibus rapidamente, pegar os kits de bambu e lona e, no meio do escuro total, começar a construir suas “casas”, na verdade, barracas precárias. É uma imagem impressionante, mais de quinhentas pessoas correndo por um campo aberto, só com as luzes do celular e às vezes uma lanterna aqui e ali, fazendo um trabalho bem coordenado de montar a estrutura de bambu, fincar a estrutura na terra e amarrar a lona. Em pouco menos de uma hora todo o campo já está lotado de pequenas barracas, algumas concentradas umas perto das outras, formando pequenas vilas. Outras pessoas escolhem um pouco de privacidade e montam suas barracas mais longe, e assim todo o campo acaba por ser ocupado.

    Esse terreno era ideal para se montar o acampamento, pouco íngreme, bem largo e plano. As dificuldades de engenharia para montar a barraca são menores que em terrenos (muitas vezes já ocupados pelo movimento) que têm grandes barrancos, declives e a geografia passa a ser mais um problema. Mas, mesmo com um terreno bom, o pior problema enfrentado pelo movimento ao iniciar uma nova ocupação é a polícia.

    A Polícia sempre acaba chegando, uma hora ou outra, e é esse o ponto que vai definir se a ocupação terá futuro ou acabará rapidamente. Caso a polícia resolva atacar, o movimento vai ter que escolher entre a resistência ou a saída do terreno. A escolha tem que ser tática: em alguns momentos é melhor sair, muitas vezes há crianças e idosos demais ou a polícia está muito intransigente. Em outros casos, o diálogo é possível. O movimento  consegue explicar quais são seus objetivos e quem são aquelas pessoas que, se pudessem, não estariam ali no meio da noite e do frio. Há casos em que, tamanha é a importância do movimento, que os PMs respeitam a ocupação e deixam sua tradicional truculência de lado.

    Ontem, a ação da PM, que chegou pouco mais de uma hora depois do início da ocupação, foi mais agressiva. Os primeiros policiais chegaram já com armas de grande calibre e munição dispersiva. Em menos  de meia hora da chegada da primeira viatura, a pequena rua que levava até o terreno estava tomada por carros da ROTA e de viaturas comuns. A discussão entre o capitão e os advogados do movimento foi tensa. Mas como o número de pessoas dentro do terreno era muito grande, e como não havia nenhuma disposição para a violência entre os sem-teto, a polícia desistiu de intervir. Quem sabe o cordão de isolamento que os Sem Teto fizeram em frente ao terreno, com cerca de cem pessoas cantando em uníssono tenha influenciado a decisão de não reprimir a ocupação.

    Com a saída da PM, a calma enfim chegou à ocupação. O maior perigo já passara, a maior parte das barracas de lona já estava montada (algumas pessoas já até dormiam dentro de suas casas improvisadas). Enquanto os últimos bambus eram fincados, a única coisa que faltava era terminar a construção da cozinha, o principal local do acampamento, aonde as refeições são preparadas e as reuniões ocorrem.

    A ocupação continua resistindo. Durante a manhã, a PM fez uma passagem de averiguação, mas não houve tensões.

    1º dia da ocupação (MTST / Comunicação)

    Veja em vídeos como foi a ocupação: