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Tag: Rodrigo Perez Oliveira

  • O que é  ‘lugar de fala’ científico?

    O que é ‘lugar de fala’ científico?

    Talvez o termo ‘lugar de fala’ seja, hoje, o mais vulgarizado no debate público. Inicialmente pertencente ao campo da análise do discurso, o conceito, inadequadamente, foi transformado em régua moral usada para qualificar e interditar determinadas falas, tomando como o critério o corpo daquele que está falando.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    No seu significado original, “lugar de fala” é categoria cognitiva que parte de verdade óbvia: todo aquele que fala, fala a partir de um lugar na geografia da sociedade. Não existem falantes universais capazes de falar por todos. Toda fala tem pertencimento, é parcial.

    Portanto, ao evocarmos o lugar de fala nosso objetivo deveria ser posicionar, localizar discursos, jogar luz sobre o lugar de onde o falante está falando.

    “Peraí, eu tenho lugar de fala!”. Óbvio, cara pálida, todos temos!

    Ingenuamente, a militância identitária moralizou essa discussão, como faz com quase tudo. Diz o identitário que pretos e pretas seriam mais legítimos para tratar do racismo. LGBTS mais legítimos para tratar de homofobia. Mulheres mais legítimas para denunciar o machismo.

    Com essa leitura enviesada do conceito, identitários entraram numa roubada, numa situação de impasse da qual não conseguem sair, e nem conseguirão.

    As forças do atraso aprenderam rapidamente como explorar a fragilidade do discurso identitário. É fácil, fácil encontrar um preto para reivindicar o fim do sistema de cotas, um LGBT para dizer que não existe homofobia no Brasil, uma advogada mulher disposta a defender publicamente jogador de futebol condenado por estupro.

    Não à toa, o jogador Robinho contratou uma advogada mulher para fazer sua defesa política no tribunal moral das redes sociais. Os perversos não são burros.

    A condição de existência de pretos e pretas, LGBTs e mulheres não lhes garantem o monopólio da virtude. O valor moral da fala não está no corpo do falante. Está no conteúdo discurso.

    O mesmo podemos dizer para o médico que aparece na rede social denunciando a “vacina chinesa”, ou defendendo o uso da cloroquina como tratamento para a covid-19.

    Nesta semana, o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL/RJ) entrou em aeroporto portando atestado médico assinado por um dermatologista autorizando-o a dispensar o uso de máscara. Silveira se vangloriou de o médico já ter distribuído “mais de 20 iguais a esse”.

    É fácil, fácil achar “doutor” disposto a endossar o negacionismo científico.

    O “lugar de fala científico”, diferente do “lugar de fala”, não é apenas categoria de posicionamento discursivo. É, também, delimitação de autoridade científica.

    Não basta portar diploma de médico para ter autoridade científica.

    A autoridade científica não é pessoal, não pertence ao sujeito, ou ao diploma. É sempre institucional.

    Quando a Fiocruz, o Butantan, a UFRJ, a UFBA, a USP falam, quem está falando é um colegiado de especialistas autorizados pela comunidade científica. Cientistas que têm seu trabalho fiscalizado por outros cientistas.

    Em ciência, a fala autorizada não pertence aos sujeitos, mas, sim, às instituições.

    Por isso, leitor e leitora, ao esbarrar com algum “doutor” falando na internet, sempre perguntem: qual instituição está autorizando essa fala?

    Se não houver nenhuma, fiquem atentos, pois há o risco de a criatura estar mal intencionada, igualzinho ao preto que nega a existência do racismo, ao LGBT que diz nunca ter sido vítima de homofobia ou a mulher que afirma não precisar do feminismo.

    Pessoas falam o tempo inteiro. Falam sobre tudo, falam qualquer coisa sobre tudo. Afinal, quem tem boca fala o que quer.

    Uma das vocações da boca é falar.

    Cabe a nós, que ouvimos, avaliar o que serve e o que não serve, e jamais nos deixar levar pela crença ingênua de que determinados falantes estão corretos simplesmente por serem o que são.

  • O primeiro efeito colateral da coronaVac

    O primeiro efeito colateral da coronaVac

    O dia 18 de junho de 2020, quando Fabrício Queiroz foi preso, deu início a novo momento na história do governo de Jair Bolsonaro. Queiroz é fio solto no esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro durante mais de 20 anos. É bomba relógio tiquetaqueando no colo do presidente da República.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Acuado, Bolsonaro mudou o comportamento.

    Até então, agia como jogador agressivo disposto sempre a dobrar a aposta. Ameaçava a nação dia sim e outro também com golpe de Estado. Depois da prisão de Queiroz, foi amansando. Aproximou-se do “centrão”, tentando construir base parlamentar capaz de lhe garantir alguma governabilidade. Deixou-se flagrar em fotos de congraçamento com Dias Tofolli, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, sinalizando o interesse em se reconciliar com os outros poderes da República.

    Ventilou-se a possibilidade de que Bolsonaro estava devidamente controlado pelas instituições, que havia sido domado pelo sistema. Em 14 de outubro, a “Revista Veja” publicou editorial com fotografia montada onde o presidente aparece construindo pontes, alegoria daquilo que seria a “drástica mudança de comportamento”. O periódico vaticinou: “O risco de uma ruptura institucional foi superado”.

    A confirmação dessa mudança no comportamento do presidente, aparentemente, veio com a tão esperada indicação do nome para preencher a vaga no STF deixada pela aposentadoria de Celso de Mello. Contrariando sua promessa de que chamaria alguém “terrivelmente evangélico”, Bolsonaro indicou, em 5 de outubro, o desembargador piauiense Kássio Nunes, com histórico garantista.

    Bolsonaro é bruto, homem precariamente letrado, sem verniz intelectual algum, com vocabulário pobre, mas está longe de ser burro.

    É impossível passar tantos anos no Congresso Nacional sem aprender algo sobre política. O presidente sabe muito bem que, em futuro próximo, um garantista no STF pode ser bastante útil. É que depois de passar a faixa presidencial ao seu sucessor, em algum momento, Bolsonaro responderá por seus crimes, sentará no banco dos réus.

    O STF é corte de apelação, é a última corte de apelação do sistema de justiça brasileiro.

    A base orgânica do bolsonarismo protestou, chiou. Alguns chegaram a chamar o presidente de traidor. Bolsonaristas choraram nas redes sociais como maridos mansos traídos.

    Bolsonarismo sem Bolsonaro. Bolsonaro sem Bolsonarismo. Até poucos dias atrás, o cenário era esse, era exatamente esse.

    “Bolsonarismo sem Bolsonaro. Bolsonaro sem Bolsonarismo”. Esse seria, inclusive, o titulo da coluna que eu escreveria nesta semana. A coluna caducou sem sequer ter nascido.

    É que nas crises, o tempo passa rápido, muito rápido.

    Em 21 de outubro, ficou claro que a moderação não significava vitória derradeira das instituições, mas, sim, recuo estratégico feito em momento de fragilidade política e insegurança jurídica.

    Bolsonaro não está domado. Talvez não será domado nem depois de morto.

    O presidente surpreendeu o país desautorizando o ministro da Saúde, que na véspera havia assinado acordo se comprometendo a adquirir 46 milhões de doses da CoronaVac, vacina desenvolvida pela pareceria firmada entre o governo de São Paulo, por meio do instituto Butantan, e a empresa chinesa Sinovac Biotech.

    Ao que tudo indica, a CoronoVac é a mais auspiciosa entre as vacinas contra covid-19 atualmente em fase de teste clínico.

    Havia possibilidade de se apropriar da paternidade da vacina, frustrando a tentativa de João Dória em colher dividendos eleitorais. No acordo assinado pelo ministro, a CoronaVac não era chamada de “vacina chinesa”, tampouco de “vacina do Dória”, ou mesmo de “vacina paulista”. Era “vacina do Brasil”.

    Talvez essa tenha sido mesmo a intenção original, pois é difícil imaginar que o ministro da Saúde assinaria acordo de tamanha importância sem que o presidente conhecesse o conteúdo da minuta.

    Houve pressão dos EUA?

    O Brasil, um dos países mais afetados pela pandemia em todo mundo, sendo imunizado pela vacina desenvolvida na China seria, sem dúvida alguma, dura derrota diplomática para os EUA.

    Por enquanto não dá para saber.

    Fato mesmo é que Bolsonaro recuou no recuo e se reconectou ao bolsonarismo. Ocupou as redes sociais para jogar suspeição sobre a comunidade científica e sobre a imprensa, agindo como o crítico anti-sistêmico que denuncia conspirações globalistas.

    Esse é o Bolsonaro bolsonarista em sua manifestação mais genuína!

    A crítica anti-sistêmica, a desconfiança, o ceticismo em relação às principais instituições nascidas na modernidade (imprensa de massa, universidade, comunidade científica e organismos internacionais como ONU e OMS) são matéria-prima do bolsonarismo, bebidas diretamente nos textos que Olavo de Carvalho vem escrevendo desde a década de 1990.

    Se a segurança e a eficiência da CoronaVac forem confirmadas pela Anvisa, a Justiça obrigará o governo federal a oferecer as doses no sistema nacional de imunização. Duvido que o presidente fará grandes esforços para impedir isso. Repito: ele não é burro.

    Ficará berrando no twitter, tumultuando o processo, agitando sua malta de lunáticos, destilando ceticismos e desconfianças, performando o crítico, dizendo-se defensor da liberdade contra a tirania dos governadores de Estado.

    Liberdade x tirania. Bolsonaro, a seu modo, encena a narrativa política que funda a civilização ocidental.

    Seja como for, a imunização nacional contra a covid-19 já está comprometida.

    Vacinação é, antes de tudo, um acordo coletivo baseado na confiança. Bolsonaro enlameou o acordo. Essa é sua vocação: jogar lama nos acordos estabelecidos.

    Não há acordo possível com Bolsonaro. Tolos são os que ainda tentam.

    Bolsonaro jamais será um presidente de direita normal, como outros tantos que já existiram na história da democracia liberal, disposto a governar por dentro das instituições.

    Fato mesmo é que a CoronaVac, vacina, que ainda nem existe, já apresentou seu primeiro efeito colateral: reaproximou Bolsonaro e bolsonarismo.

  • Por que precisamos tanto de Ibis Pereira e Denice Santiago?

    Por que precisamos tanto de Ibis Pereira e Denice Santiago?

    Independente do que aconteça em dezembro, as eleições municipais deste ano já estão marcadas pela tentativa dos partidos de esquerda em produzir seus próprios quadros militares. Têm destaque aqui as candidaturas de Denice Santiago, ex-major da PM e candidata à prefeitura de Salvador pelo PT, e Ibis Pereira, ex-coronel da PM e candidato à vice-prefeito na chapa do PSOL, no Rio de Janeiro.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    As candidaturas de Denice e Ibis são alvo de críticas dentro da própria esquerda. Alguns acusam o PT baiano e o PSOL fluminense de estarem colaborando para a “militarização da política”.

    Ibis Pereira, ex-coronel da PM do Rio, candidato a vice-prefeito pelo PSOL – Reprodução Instagram

    Bom, um rápido passeio pela história no Brasil mostra que o engajamento dos militares na política não é nenhuma novidade entre nós. A própria República nasceu com uma quartelada e se consolidou com uma ditadura militar. Outras duas ditaduras ainda sangrariam a sociedade brasileira, uma civil, com Getúlio Vargas, e outra genuinamente militar, entre 1964 e 1985. Nas duas ocasiões, homens fardados estiveram em posição de poder, interferindo diretamente nos destinos da nação.

    Existiram também os militares de esquerda, movidos por ideias progressistas. Luís Carlos Prestes, o “cavaleiro da Esperança” eternizado nas páginas de Jorge Amado, e Henrique Lott, o Marechal da Legalidade, estão entre eles.

    Nos últimos anos, o perfil do engajamento político dos militares mudou bastante. Não é mais o Exército a única fonte institucional do ativismo político dos militares, mas também as PMs.

    O resultado das eleições de 2018 são taxativos: o número de agentes da segurança pública eleitos para o Congresso Nacional saltou de 14 para 73, um crescimento de mais de 500%. A força desses parlamentares é tão grande que eles conseguiram formar uma “frente ampla da segurança pública”, que defende o endurecimento do poder punitivo do Estado e o afrouxamento do controle legal sobre a atuação dos policiais.

    Pesquisas de opinião mostram que a violência urbana é vista como o principal problema do país pela sociedade civil. As esquerdas, limitando-se às agendas da desmilitarização das PMs e da descriminalização das drogas, nunca participaram efetivamente desta discussão. A avaliação é de que as polícias militares são o principal problema da segurança pública brasileira, como se o fato de homens armados sitiarem territórios não fosse problema social dos mais graves.

    Os dados eleitorais mostram que a população não concorda com essa avaliação.

    São muitos os relatos de famílias pobres que foram expulsas de suas casas por traficantes varejistas, que tiveram filhas assediadas. Trabalhadores e trabalhadoras convivem com assaltos diários, com constantes ofensivas contra o pouco patrimônio que possuem.

    Tudo isso acaba fomentando no imaginário coletivo a ideia de que a violência policial é um problema menor, ao mesmo tempo em que os políticos de esquerda estariam “defendendo bandido”.

    Quando o PT e o PSOL trazem para o primeiro plano de seus projetos eleitorais em duas importantes capitais quadros egressos das PMs, o objetivo é exatamente mostrar que a esquerda tem, sim, um plano para a segurança pública, que não passa pela rejeição à polícia e tampouco pela leniência com criminosos.

    Não há projeto de segurança pública viável e digno de confiança que se sustente na rejeição à polícia, que não reconheça a importância do uso legítimo da força pelo Estado.

    Ibis Pereira entrou para a reserva da PM em 2016 – Reprodução Socialista Morena

    Tanto Denice como Ibis têm em sua ficha funcional histórico de bons serviços prestados à população, na forma de uma polícia educativa, cidadã e respeitadora dos direitos humanos. Denice se destacou comandando a “Guarda Maria da Penha”, que protegia mulheres vitimas de agressão doméstica. Ibis é conhecido no Rio de Janeiro por sua atuação em projetos sociais de educação popular.

    Denice e Ibis foram policiais. Mas não eram policiais que executavam e torturavam, simplesmente porque não precisa ser assim. É possível ser diferente, porque dentro das corporações há bons servidores, lideranças que podem ser disputadas e servir como gatilho para um debate institucional que mostre aos próprios policiais que, do jeito que vai, não está bom pra ninguém. A polícia mata e também morre.

    Do outro lado, a esquerda tem a chance de amadurecer projetos para a segurança pública que consigam conquistar a confiança da população, que em geral só quer viver uma vida tranquila, usufruindo da pouca propriedade que tem. Quando é pouca, propriedade é ainda mais valiosa.

    Não, definitivamente, a polícia não tem que acabar. As polícias são fundamentais para o contrato social civilizado, são a garantia de que eu, pessoa privada, não preciso usar a força pra proteger minha vida e a minha família. A polícia precisa mesmo é mudar e o fato de termos Denice e Ibis mostra que isso é possível.

    Provavelmente, nenhum dos dois será eleito. Ao que tudo indica, as esquerdas brasileiras sofrerão mais uma dolorosa derrota. Mas se as candidaturas de Denice e Ibis forem capazes de despertar novas lideranças progressistas, sem o vícios da militância caricata e capazes de se reconectar com os sentimentos do nosso povo, já teremos lampejo de esperança.

  • Golpe pra quê?

    Golpe pra quê?

    Um dos principais gestos analíticos para a devida compreensão do atual momento da crise democrática brasileira é a distinção entre a figura pessoal do presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarisimo, entendido como projeto político disruptivo.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Sim, por mais estranho que possa parecer, fica cada vez mais claro que uma coisa não está, necessariamente, vinculada à outra.

    Explico.

    Há Jair Bolsonaro na política brasileira desde a década de 1990. Já bolsonarismo começou a nascer em 2014, quando o até então parlamentar de baixo-clero, inexpressivo, animador de auditório, aumentou seu capital eleitoral em quase 400%, tornando-se o deputado federal mais votado pelo Estado do Rio de Janeiro.

    O bolsonarismo é o resultado de um conjuntura específica de crise, alimentado por uma sociedade que se vê colapsada e impulsionada por outro projeto político disruptivo: o lava-jatismo.

    Durante algum tempo, bolsonarismo e lava-jatismo estiveram na mesma trincheira, mas nunca foram a mesma coisa. Juntos, mas não misturados!

    Bolsonaro soube se aproveitar do clima. Havia concorrentes. Marina Silva era a principal. Jair acabou vencendo a corrida. Venceu, também, porque foi mais esperto.

    Parece que agora, no exato momento em que escrevo este texto, o presidente Jair Bolsonaro começa a fazer o movimento de descolamento do bolsonarismo, abandonando a agenda da ruptura disruptiva e adotando a estratégia do aparelhamento institucional.

    Novamente, vem agindo com astúcia política, e se mostrando ainda mais perigoso para o contrato social inaugurado na redemocratização e instituído pela Carta de 1988.

    Olhando daqui, com certo distanciamento, creio que seja possível localizar na crônica os dois momentos que marcaram a inflexão do Bolsonaro disruptivo, que acreditava estar liderando uma revolução saneadora, para o Bolsonaro sistêmico, manipulador das instituições.

    Foram dois momentos que mostraram ao presidente que se continuasse marchando com os insanos, provavelmente não terminaria o mandato.

    O primeiro foi o dia 22 de maio, quando o presidente Bolsonaro, diante da possibilidade de ter seu aparelho de celular apreendido para perícia por ordem do ministro Celso de Melo, decidiu que, sim, interviria no Supremo Tribunal Federal. Em seus devaneios golpistas, Bolsonaro acreditou mesmo que bastava enviar um destacamento militar ao STF para fechar a corte superior da Justiça brasileira. O mais assustador é que ele não estava sozinho no projeto. Entre os generais palacianos houve quem apoiasse a ideia.

    Ao perceber que generais da ativa, com comando efetivo de tropas, não o acompanhariam na quartelada, o presidente recuou. Os bastidores da conspiração foram revelados na edição de agosto da Revista Piauí, em matéria assinada por Mônica Gugliano.

    O segundo momento foi o dia 18 de junho, quando Fabrício Queiroz, depois de mais de um ano desaparecido, foi preso.

    Queiroz é o fio solto do esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro. O presidente sabia perfeitamente que estava ali o seu ponto fraco e, acuado, se convenceu de que não tinha vara longa o suficiente para bancar o conflito com as outros poderes da República.

    A partir de então, vimos outro Bolsonaro, mais habilidoso no jogo político institucional. Aproximação com o centrão, piscadelas para medidas de transferência de renda, afastamento do núcleo ideológico mais radicalizado e liderado por Olavo de Carvalho, constantes pitos públicos em Paulo Guedes. Tudo isso indica que Bolsonaro está tentando se afastar do bolsonarismo.

    Os pilares do bolsonarismo são o neoliberalismo ortodoxo de Guedes e a guerra ideológica olavista. Ao que parece, Bolsonaro está dando de ombros para ambos. A ver se sustenta.

    Precisamos mencionar ainda o dedo certeiro na escolha do comando do Ministério Público. A dupla Augusto Aras e Lindoura Araújo não está apenas esvaziando a Operação Lava Jato. Está ocupando o território.

    Quando começou o governo, Sérgio Moro parecia muito maior e mais perigoso para as garantias democráticas que o próprio Bolsonaro.

    Moro era o herói laureado pela grande imprensa, o lorde gentil e educado, premiado, capa de revista, maxilar quadrado, terno preto alinhado, com caimento perfeito nos ombros. Já Bolsonaro era o aloprado desajeitado, feioso, o “burro chucro” que prometia tropeçar nas próprias pernas na primeira esquina.

    Nas crises, o tempo corre especialmente rápido.

    Hoje, Moro, sem nenhum poder efetivo de decisão, tenta se manter no jogo, contando com a lealdade de seus aliados na grande mídia e no poder Judiciário. Não é algo irrelevante, mas parece pouco para o homem que, em algum momento, foi o mais poderoso player em atuação no tabuleiro da política nacional.

    Já Bolsonaro demonstra ter aprendido a operar, e manipular, as instituições da República.

    Um dos mais importantes e inesperados acontecimentos nesta “temporada 2020” da crise democrática brasileira é o apequenamento de Moro e o amadurecimento político de Bolsonaro. Como os dados estão rolando, nada garante que até 2022 a situação continuará assim. A fotografia do momento é essa.

    Os dias 28 de agosto e 1º de setembro são outros dois momentos cruciais na recente crônica da crise.

    Em 28 de agosto, Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, foi afastado do mandato por decisão monocrática de Benedito Gonçalves, ministro do Superior Tribunal de Justiça, em episódio inédito na história da moderna democracia brasileira. Witzel foi afasto à revelia da Assembleia Legislativa, sem que seus advogados tenham sequer recebido denúncia formal do Ministério Público. O processo foi manipulado pelo Palácio do Planalto, diretamente pelo gabinete do presidente da República.

    Parte da esquerda comemorou a derrocada de Witzel, como se fosse a redenção da memória de Marielle Franco. A derrocada de Witzel é vitória de Bolsonaro, mais uma. Nada além disso.

    Ao abater Witzel, Bolsonaro matou dois coelhos com única paulada: eliminou um desafeto político e controlou o processo de escolha do próximo procurador Geral do Estado do Rio de Janeiro, a quem caberá decidir o futuro de Flávio, o 01.

    Em 1º de setembro, dando desculpa esfarrapada, Deltan Dallagnol se desligou da operação Lava Jato. Dallagnol enfrenta dificuldades no STF e no Conselho Nacional do Ministério Público, onde Gilmar Mendes e Augusto Aras afiam a lâmina da guilhotina. Dallagnol não seria o primeiro a perder o pescoço na mesma guilhotina que ajudou a montar.

    Caiu, assim, o último grande símbolo da Lava Jato, deixando o terreno livre para que Bolsonaro se aproprie da força-tarefa, direcionando a artilharia lava-jatista aos seus adversários, à esquerda e à direita.

    Vamos combinar, né? É muito melhor do que, simplesmente, extinguir a operação, que ainda conta com sólido capital político. Mas vale usar a marca e manter a narrativa do combate à corrupção, fazendo do Ministério Público uma política “soft”, sem armas de fogo.

    Nem precisa de arma de fogo não. O monopólio do processo penal é mais mortal que fuzil. Além do mais, essa coisa de canhão na rua e milico fechando tribunal é tão demodê.

    Claro que tudo pode mudar, que Dallagnol e Moro podem se recuperar, que os quadros lava-jatistas ainda leais à República de Curitiba podem virar o jogo, novamente. Mas a fotografia do momento, repito, é essa.

    Fato fato mesmo é que nos últimos dias Jair Bolsonaro está dormindo mais tranquilo, assistindo a recuperação de sua popularidade e se sentindo cada vez mais confortável nos corredores do poder. A cadeira já não queima tanto.

    Talvez esteja perguntando a si mesmo: onde eu estava com a cabeça? Golpe pra quê?

  • Eduardo Paes, ACM Neto e o amor pelo poder

    Eduardo Paes, ACM Neto e o amor pelo poder

    Sou nascido e criado no Rio de Janeiro. Na periferia, quase Baixada Fluminense. Sou carioca da clara. Moro em Salvador há três anos e meio. Duas cidades muito parecidas entre si, no que têm de bom e no que têm de ruim.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Violência, caos urbano, desigualdade social pornográfica. Cidades africanas e estruturalmente racistas. Festa, Carnaval, cartão postal. Muitas semelhanças, muitas mesmo.

    Salvador leva vantagem sobre o Rio de Janeiro porque tem praia na periferia. Acho fascinante. Uns bairros periféricos, casas humildes e vista pro mar. Praias bonitas, de banho bom. No Rio de Janeiro, estar perto do mar é privilégio. Fico aqui pensando a festa que não seria se tivesse praia em Madureira. Seria outra Copacabana.

    Imaginem só, conterrâneos, duas Copacabanas numa mesma cidade!

    Mas Salvador também perde em relação ao Rio. Não tem Flamengo na Bahia. Tem muito flamenguista, por todos os lugares. Mas não tem Flamengo. Faz falta.

    Mas não é exatamente das cidades que quero falar. Nem do Flamengo. Não hoje. Não aqui.

    Quero falar é de suas mais importantes lideranças políticas: Eduardo Paes e ACM Neto. Também muito semelhantes entre si.

    Ambos são do DEM, tantinho picaretas, relações próximas com o grande capital. Caixa dois em campanha. Gentrificaram as cidades. Eduardo Paes chegou às vias de fato, com remoções criminosas na época das Olimpíadas.

    Carisma faceiro, malandreado, cheio das ousadias. Se existem carioquique e soteropolitanisse como traços culturais, Eduardo Paes e ACM Neto as encarnam perfeitamente. Se metem no meio da festa, do carnaval, bebem, são flagrados bêbados pelas câmeras.

    Gestores habilidosos, bons comunicadores. Ambos amam o poder.

    Políticos profissionais são indispensáveis para a vida social. São eles que cuidam da rua, da praça, para que eu, pessoa privada, possa cuidar em paz da minha casa. Essa é a lógica das modernas democracias de massa, tão bem teorizada e criticada por Tocqueville. Os políticos governam para que as pessoas comuns possam se dedicar aos seus negócios particulares.

    Tolos são aqueles que odeiam os políticos profissionais e entram na onda desses outsiders neófitos aloprados que não entendem da máquina, que não sabem governar. Pior que o político corrupto só o político incompetente.

    Políticos profissionais! Tá aí uma boa forma de definir Eduardo Paes e ACM Neto. Os dois são profissionais. Dominam com excelência seu ofício. Para o bem e para o mal.

    Amados nas periferias e odiados pelas esquerdas. Eduardo Paes e ACM Neto jogam na nossa cara o quanto estamos desconectados da realidade, afastados dos sentimentos da maioria.

    ACM Neto se elegeu duas vezes prefeito de Salvador. A segunda, em 2016, foi de lavada, com os pés nas costas. Molezinha. Tá dando um show de eficiência na gestão da pandemia da covid-19. Se nada de muito diferente acontecer, elegerá com alguma facilidade seu sucessor nas eleições municipais agendadas para novembro próximo.

    Eduardo Paes também venceu duas vezes. Na reeleição, em 2012, venceu no primeiro turno. Na ocasião, Marcelo Freixo, do PSOL, ficou em segundo lugar. Lembro que o PSOL comemorou a derrota. Teve até documentário: “A primavera carioca”.

    É isso mesmo que você leu! O PSOL carioca produziu um documentário louvando uma derrota no primeiro turno!

    “Campanha bonita, colorida, inclusiva”.

    Políticos do quilate de ACM Neto e Eduardo Paes não entram em campanha pra fazer pedagogia, festa, congraçamento. Entram pra vencer. Querem vencer. Estão dispostos a tudo para vencer. Querem governar. Amam o poder.

    Amam o voto dos pobres. Não amam exatamente os pobres. Amam mesmo é o voto dos pobres. Sabem que pra ter poder precisa ganhar eleição. Sabem que pra ganhar eleição, tem que ter, pelo menos, metade +1 dos votos válidos.

    Especialmente em eleições municipais, pra conquistar o voto dos mais pobres, carece de entregar alguma coisa, principalmente quando se tem a máquina na mão. Quem gosta de campanha bonita, festiva e colorida é estudante universitário. Povão gosta é de eficiência. Quer ganhar alguma coisa na forma de bem-estar social. O cálculo do povão é pragmático, como deveria ser todo cálculo.

    Asfalto na rua pra criatura deixar de melar a perna de lama até o joelho quando sai pra trabalhar. Parque público bonitinho pra levar os meninos pra andar de bicicleta no domingo, fazer showzaço da Anitta de vez em quando, de graça.

    Carnaval apoteótico, cheio de artistas famosos. Orla revitalizada. Academia pras tias e pros tios mexerem os músculos e manter as juntas fortes. Posto de saúde funcionando.

    Sou um sujeito de esquerda. Por coerência ideológica, eu não deveria gostar de Eduardo Paes e ACM Neto. Mais ou menos. Ser de esquerda significa, antes de qualquer coisa, usar a política para melhorar a vida de quem mais precisa do Estado. Eduardo Paes e ACM Neto fizeram isso, de alguma forma, em alguma medida. Se fizeram muito ou se fizeram pouco é conversa pra mais de metro. Quem acha que fizeram pouco precisa apresentar projeto melhor, viável. Precisa vencer eleição.

    Fato é que o povão referendou. Os caras foram reeleitos em primeiro turno. Isso não é dado irrelevante. O povo não é burro e nem facilmente manipulado.

    Não confio em liderança política que não gosta de poder, que não tem tara pelo poder. Esses não têm responsabilidade com a realidade. Têm compromisso apenas com as próprias ideias. Não vencem eleição. Não melhoram a vida dos mais frágeis, nem mesmo dos grupos que dizem representar.

    Gosto de Netinho e do Dudu Paes. Não deveria, mas gosto.

  • Sem ressentimento, sem esquecimento

    Sem ressentimento, sem esquecimento

    Quatro de agosto de 2020. Sérgio Moro sofre sua principal derrota desde que se tornou um dos principais atores na cena política nacional.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    A segunda turma do STF determinou a exclusão da delação de Antonio Palocci do processo movido no âmbito da Operação Lava Jato contra o presidente Lula.

    Ricardo Lewandovski e Gilmar Mendes votaram favoráveis à exclusão. Edson Fachin (o ahá uhú do Dallagnol) votou contra a exclusão, o que significa votar a favor de Sérgio Moro. Fachin é o melhor advogado que Moro poderia ter.

    Não é exatamente a primeira derrota. Houve outras. Mas essa, sem dúvida alguma, foi a maior e sinaliza para a possibilidade de outra derrota, que seria devastadora. A suspeição de Moro no julgamento de Lula deve ser julgada pela plenária da corte ainda neste ano. A derrota na segunda turma não significa, necessariamente, que Moro será derrotado no colegiado ampliado. Mas indica a possibilidade. Definitivamente, o ex-juiz já viveu dias melhores.

    Lewandovski e Mendes falaram o óbvio! Moro politizou o julgamento de Lula com o objetivo claro de interferir nas eleições presidenciais.

    Grande novidade!

    Moro inseriu a delação de Palocci no processo por conta própria, sem ser provocado pela acusação, o que é mais do que atípico. É criminoso. É prova cabal de que o juiz era, na verdade, o chefe da acusação.

    Todos sabiam o que estava acontecendo. Todos calaram, consentiram, incluindo o próprio STF, que em abril de 2018 negou o pedido de habeas corpus, decisão que, na prática, mandou Lula pra cadeia. A mesma segunda turma negou outros dois pedidos de habeas corpus, em junho e agosto de 2019. Lewandowski sempre votou a favor da defesa de Lula, o que significava votar a favor do devido processo legal.

    Por que agora, justo agora, esse revés?

    Simples! O tempo da política é o tempo rápido, da constante mudança, principalmente em tempos de crise.

    A partir de 2014, o establishment jurídico brasileiro se associou aos grupos políticos anti-petistas. O objetivo era colocar um ponto final na hegemonia do Partido dos Trabalhadores, o que em cenário de normalidade democrática seria impossível.

    A aposta era que o PSDB, antagonista do PT desde meados da década de 1990, herdaria o butim. A situação saiu do controle e Bolsonaro foi eleito.

    O establishment jurídico dobrou a aposta: acreditou que seria possível negociar com Bolsonaro, controlar Bolsonaro. Errou novamente.

    A Lava Jato acumulou muito poder, a ponto de não querer mais ser puxadinho de ninguém. Nem do PSDB, nem do bolsonarismo, nem do próprio Ministério Público. Costuma-se dizer que o Ministério Público é o quarto poder, independente até mesmo do Poder Judiciário. A Lava Jato se tornou o quinto poder, independente do próprio Ministério Público.

    Nessa situação de desencanto, onde bolsonarismo e lava-jatismo se tornam ameaças ao próprio sistema, Lula volta a ter grande relevância. Primeiro, porque quando presidente sempre foi conciliador. Ninguém defendeu melhor o capitalismo brasileiro que Lula. Segundo, porque Lula é “o outro” tanto do bolsonarismo como do lava-jatismo.

    O sistema político que foi construído na redemocratização encontrou em Lula o seu melhor gestor. É uma virtude. Tenho saudade não apenas do tempo em que Lula era presidente. Tenho saudade do Lula como presidente. O Lula presidente foi muito melhor que o Lula metalúrgico. O Lula presidente é muito melhor que esse Lula líder esquerdizado pós-cárcere.

    Reabilitar os direitos políticos e a reputação de Lula seria a única forma possível de confrontar, ao mesmo tempo, o lava-jatismo e o bolsonarismo, os dois filhos rebeldes daqueles que apostaram na desestabilização da democracia como tática de retomada do poder.

    Que seja assim. Que se reposicionem. Que assumam, mesmo que silenciosamente, sua responsabilidade nessa nossa tragédia geracional. Sem ressentimento. Mas também sem esquecimento. Esquecer jamais. Nomes e sobrenomes serão sempre lembrados.

    Fotos de Lula Marques